quarta-feira, outubro 3

A noite do lobo

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Kathy Cook

Na floresta escura, um par de olhos observava as pessoas dormindo no acampamento.

Em pé junto ao acampamento da família, Zachariah Delventhal, 11 anos, jogou uma pedra no lado Tom Thomson, Ontário, fragmentando o reflexo da floresta em volta. Quando o irmão de 10 anos, Elijah, atirou outra pedra, Zach olhou para o céu, brilhante e avermelhado, o sol começando a se por atrás dos morros. “Venha, papai”, chamou. “Vamos ver o por do sol no lago. Eli e eu vamos remar.”
Exausto de um longo dia de canoagem, Thom Delventhal sorriu para a esposa, Tracy, que brincava com Willem, 3 anos. “Certo”, gritou, “desde que eu não tenha de pegar nos remos!”
Zach, Elijah e Thom remaram tranqüilamente e, ao escurecer, voltaram ao acampamento. No caminho, encontraram alguns escoteiros com as canoas presos em círculo. Tinham visto um lobo durante o dia, e começaram a encenar um “chama lobo” – ritual no qual imitam o uivo do lobo e esperam obter resposta. Os Delventhal trouxeram sua canoa e juntaram-se à “cerimônia”. Uivos encheram a noite. Momentos depois, o uivo de um lobo solitário ecoou na outra margem do lago.
Era dia 17 de agosto de 1996, última noite da viagem de nove dias da família pelos lagos e rios do Parque de Algonquin. Tracy e Thom estavam tristes por estar terminando. Logo voltariam as suas vidas atribuladas em Pittsburgh, onde Thom ensinava arte dramática na Universidade Carnegie Mellon e Tracy dirigia uma companhia de teatro.
Naquela noite, Thom e Tracy decidiram que todos dormiriam sob as estrelas. O acampamento, com acesso apenas pela água, era cercado de pinheiros. Enrolados em sacos de dormir na noite escura, sem lua, logo foram tomados pelo sono.
A dez metros dali, numa árvore da floresta, um par de olhos inspecionava a cena.
Zach estava sonhando quando, de repente, uma pressão martirizante no rosto o acordou. Viu as árvores correrem violentamente, enquanto era atirado a dois metros do saco de dormir. Gritou, e a criatura o soltou.
“Fui mordido!”
Tracy levantou-se num pulo. Olhando no escuro, correu em direção ao vulto de Zach e o abraçou. Em pânico, o menino lutou para soltar-se do abraço da mãe.
“Está tudo bem, Zach”, repetiu ela, tentando conforta-lo.
Não muito longe, o animal observava, parado.
Tracy viu um grande corte sob o olho de Zach, mas a escuridão escondia os ferimentos. Ao levantar o braço para afastar o cabelo do rosto, ela notou que sua roupa estava ensopada de sangue. Zach está perdendo muito sangue! Agarrou o saco de dormir e comprimiu o rosto do filho.
“Thom, preciso de você!”, gritou.
Naquele momento, Thom viu o vulto do animal a cerca de um metro da mulher e do filho. Pulou do saco de dormir e correu, gritando para o intruso. A criatura afastava-se e aproximava-se de Tracy e Zach.
Os olhos de Thom examinavam o acampamento, enquanto ele tentava adivinhar de que direção o animal viria a seguir. A voz aterrorizada de Zach se ouviu:
“O que é?”
De novo o animal cruzou o acampamento, mantendo distância de Thom.
“É um lobo!’, exclamou Thom.
Elijah engatinhou até Tracy e entregou-lhe a lanterna que ela usava na floresta.
Enfurecido, Thom correu para o lobo novamente e afugentou-o para a floresta. “Preciso de algo para o rosto de Zach”, gritou Tracy em meio ao caos. A parte de cima do saco de dormir azul estava cheia de sangue. Thom atirou-lhe uma toalha. Enquanto Tracy cuidava de Zach, Thom pegava a lanterna e continuava a examinar as árvores. Voltando para Zach e Tracy, acendeu a luz sobre o filho.
“Oh, meu Deus”, pensou.
O rosto do garoto fora dilacerado. O nariz estava destruído. Partes da boca e da bochecha direita estavam penduradas. O sangue esguichava das feridas sob os olhos, e a parte inferior da orelha direita fora arrancada.
“Termos de ir ao hospital”, disse Thom, o mais calmo possível.
O coração de Tracy disparou. Eram 2 horas da manhã e não haveria luz nas próximas cinco horas. O carro encontrava-se estacionado no posto da guarda florestal, a dezesseis quilômetros de canoa. Ela não fazia idéia de onde ficava o hospital mais próximo. No entanto, Zach perdera muito sangue e os ferimentos não paravam de sangrar. Não podemos deixa-lo morrer, pensou, olhando para a criança ensangüentada tremendo em seus braços. Precisamos ir agora.
Para distrair o lobo, Thom atirou na floresta o saco de dormir ensangüentado. Pegou o mapa do parque, desamarrou a canoa e pôs a família a bordo.
“Há um acampamento infantil em Teppe Lake”, disse. “Deve haver telefone.”
Teriam de remar na direção sul pelo enlameado canal do lago Tom Thomson até o lago Litledoe e encontrar o canal para o lago Teppe. Vamos levar cerca de duas horas, pensou Thom. Impulsionou a canoa e, junto com Tracy, começou a remar com toda a força.
Em segundos estavam imersos na escuridão, incapazes de distinguir árvores, terra e água. Thom olhou para o céu procurando guiar-se pelas estrelas. Remaram às cegas até o canal rumo a Litledoe, mas a canoa logo se chocou contra um obstáculo.
Aquilo foi uma faísca?, perguntou-se Tracy com medo. Sentindo a canoa curvar sob os pés, acendeu a lanterna e viu um tronco submerso forçando o fundo.
Depois de se soltarem, ela gritou:
“Acho que não consigo mais remar. É melhor eu ficar olhando.”
Thom concordou. Com um dos filhos mais velhos gravemente ferido e o pequeno que não sabia nadar, não podiam correr o risco de afundar.
Segurando a lanterna à frente, Tracy inclinou-se sobre a proa para ver se havia pedras e troncos. As pilhas estavam ficando gastas e, com a luz fraca, tudo se tornava cinza.
Um movimento errado e a canoa vira, pensou.
Thom remava sem parar, ignorando os músculos doídos. No escuro intenso, os minutos pareciam infinitos.
Entorpecido pela dor, Zach lutava para falar. Afastou a toalha levemente e perguntou:
“Pai, acha que vou sangrar até morrer?”
“Não”, respondeu Thom. “Mas quero que use a cabeça, Zach, e concentre-se para conter o sangramento.”
Thom ouvira que as pessoas eram capazes de reduzir o próprio batimento cardíaco. Talvez ajudasse.
Após algum tempo. Thom percebeu que a água se tornara mais encrespada. “Deve ser o Lago Litledoe”, disse. Olhou o mapa e as estrelas.
O lago Teppe deve ser nesta direção, pensou. Remou até onde pensou haver passagem, porém não havia nada. Agitado, olhou para as estrelas novamente. Estou perdendo tempo!, percebeu de repente. Como o sol, as estrelas parecem mover-se de acordo com a hora do dia. Na ansiedade, esquecera de considerar o fato. Logo a água se tornou mais calma. Estavam no canal sudoeste, dirigindo-se para Teppe. Thom remara durante duas horas. Finalmente o canal se alargou.
“Acho que é aqui!”, avisou.
Fizeram a curva e viram as luzes distantes do acampamento brilhando na água.
“Estamos quase lá!”
No meio do lago, Thom gritou: “Ei, pessoal. Precisamos de ajuda!”
Acordados pelos gritos, o diretor e a enfermeira do acampamento correram para o cais. Tiraram Zach da canoa e o levaram ao doutor Fred Harris, no pavilhão médico.
Harris deitou-o na maca, olhou os ferimentos e ligou para o Hospital Infantil de Toronto, a 320 quilômetros.
Dois membros do acampamento conduziram Tracy e Zach ao hospital. Lá, o cirurgião plástico levou quatro horas na cirurgia de reconstrução da face, dando mais de 80 pontos para fechar os ferimentos.
As cicatrizes de Zach talvez desapareçam. Embora ainda assaltado por pesadelos ocasionais, age como freqüentemente o fazem crianças que sofrem trauma. Sempre sensível, tornou-se extremamente protetor de Eli e Will.
Thom e Tracy também se sentem mais fortes pela vitória na corrida desesperada contra a escuridão. Em abril, Tracy deu à luz uma menina. Anya Eve, e a família planeja acampar outra vez neste verão.

Quase todos os lobos tem medo de seres humanos. Por alguma razão, aquele não tinha. Na mesma época do ataque a Zach, uma sacola desapareceu de sob a cabeça de alguém que dormia no acampamento, e objetos sumiram de outros acampamentos. As autoridades do parque interditaram o local e, cinco dias após o ataque, mataram um lobo macho de 30 quilos. Seu estômago continha cenouras, feijões, barbante e papéis. Desde sua morte, não houve relatos de agressão por lobos na área.