terça-feira, dezembro 20

Perseguido pelos cães

Fonte : Revista Seleções

Data : Novembro de 1947

Autor : Daniel P. Mannix (condensado de “The Saturdeay Evening Post”)

Empregado no balcão de uma sorveteria de Wisconsin, ele faz maravilhas com seus cachorros de olhos tristes.

A força policial tinha seguido a pista de Ray Olson, suspeito do crime de rapto, até uma cabana isolada perto de Cable, no Wisconsin. Quando dois dos policiais se acercavam cautelosamente da porta, Olson abriu fogo e os matou; depois, tendo-lhes tirado as pistolas, mergulhou nos bosques, onde ninguém ousava persegui-lo. O xerife deu então ordem: “Vão buscar o George Brooks com os cães sabujos!”

Brooks é um homem magro e sério, e um dos poucos que neste mundo conhecem a arte antiga e curiosa de trabalhar com cachorros na caça ao homem. Nestes últimos 15 anos seus serviços já foram requisitados mais de duas mil vezes. Seus cachorros tem farejado o rasto de assassinos, crianças perdidas, loucos fugidos do manicômio e penitenciários evadidos.

No caso de Olson, George Brooks viu-se a braços com um da das tarefas mais sérias de sua carreira. “Para trabalhar com os sabujos,” explica ele, “a gente precisa saber por onde é que o homem passou, ou ter um “guia olfativo” – qualquer cosa em que ele tenha pegado, para que os cães possam conhecer-lhe o cheiro. Na altura em que cheguei a Cable, bem umas mil pessoas já teriam andado em volta dos cadáveres das autoridades. Não era possível encontrar o guia olfativo, nada de que eu pudesse ter certeza que só Olson havia tocado.”

“Em face disso, levei os cães para dar uma volta de quase um quilometro de raio, em torno da cabana; eles descobriram um rasto, e levantaram os olhos para mim, como que a perguntar o que haviam de fazer. Eu disse: O homem fugiu. E eles se lançaram na pista. Durante três dias, eu, os cachorros e 175 policias seguimos aquela pista. Encontramos ruínas fumegantes de cabanas incendiadas. Olson ateava foto a todos os lugares onde dormia, para ter certeza de que não deixava rasto que os cães pudessem farejar. Mas os meus sabujos davam uma volta em torno do lugar; farejando, encontravam a pista do outro lado, e continuavam a perseguição.”

Em seguida; Olson se refugiou em uma zona lacustre, toda semeada de ilhotas minúsculas. Sabendo que o cheiro não persiste em cima da água, ele fazia jangadas, e viajava milhas e milhas ao longo dos canais, por entre as ilhotas. Mas ele tinha que descer em algum lugar e os cães sempre acabavam descobrindo o rasto dele. Passadas duas semana, certo dia Olson desceu em terra firme, para cortar caminho. Brooks podia ver, pela direção em que os cães avançavam, que o fugitivo se encaminhava para um lago distante. Uma parte da expedição meteu-se em carros para lhe ir cortar a retirada. Quando se aproximavam do lago, avistaram Olson correndo para um bote; mas este não pode correr muito: logo caiu varado por uma saraivada de balas...

George Brooks não tem na vida nenhum interesse alem dos seus cães. Nunca lê uma revista nem um livro, e nunca viu um filme falado. A fim de acompanhar os seus cachorros, tem uma vida espartana, e se alimenta quase exclusivamente de carne picada. Tem hoje 51 anos de idade; em rapaz dedicava-se a treinar perdigueiros, e depois consagrou-se aos canzarrões. “Com eles pode-se trabalhar o ano inteiro, e uma vez que a gente vê esses grandes cachorros farejando a pista dum foragido, nunca mais é capaz de se interessar por outra caçada qualquer,” explica ele.

Quando jovem, tencionava tornar-se farmacêutico mas, já na escola superior, faltou-lhe o dinheiro, e teve que se empregar no balcão de uma sorveteria. Isso se passou há 25 anos, e George ainda está lá... Quando o chamam para ir com os seus cães à procura de alguém – e recebe três ou quatro chamados por semana – deixa a casa por algumas horas e, em certos casos, até mesmo durante dias. O dono da loja, William Donadurer, refere-se a ele nestes termos: “George nunca cobra dinheiro pelos serviços de seus cachorros. Esses cães tem feito um bem incalculável, e se ele pode consagrar-lhes tanto tempo e dinheiro, eu acho que, por minha parte, posso também sacrificar os seus serviços...”

O primeiro cão de George, Lady, tinha somente quatro meses de idade quando ele o importou da Inglaterra, em 1932. mal ele tivera tempo de fazer a cama para a cachorrinha, num canto da garagem, quando um xerife local o chamou: “Ouvi dizer que você acaba de receber um cão de caça,” disse o funcionário mantenedor da ordem. “Faça o favor de trazê-lo para aqui, já. Três homens roubaram um banco em Mindoro. Um deles nós conseguimos balear através do para brisa do carro em que iam fugindo. Os outros dois meteram-se na floresta.”

George ainda tentou explicar que Lady era muito novinha, sem treinamento, e alem disso estava enfraquecida pela longa viagem.

“Vou dar autoridade oficial a você e ao seu cachorro,” insistiu o xerife. “Esteja aqui dentro de uma hora.”

Uma hora depois, George e a sua Lady chegavam ao local onde se encontrava o carro espatifado dos salteadores. Ao lado, ainda estava o cadáver do ladrão. Lady começou logo, por instinto, a farejar uma pista, coisa pouco comum em um cachorro sem treino. Farejou o rasto dos fugitivos até a margem do rio Black. O xerife concluiu que os ladrões tinham atravessado a corrente a nado, mas Lady se recusou a sair daquele lugar. Finalmente o xerife ordenou que George arrastasse a cadela à força dali para fora, e experimentasse pô-la a farejar na outra margem. Lady não foi capaz de dar com pista nenhuma. Mais tarde, ambos os assaltantes foram presos, e George foi de propósito à penitenciária, para averiguar como é que eles tinham desorientado a sua cachorra.

Os homens se riram: “Nós estávamos metidos debaixo da água, a dois metros da margem, respirando por uns caniços ocos! Se você tivesse soltado essa cachorra, ela tinha pegado a gente direitinho.”

Desde então, George já teve mais de quarenta sabujos. Desses, ele considera cinco como verdadeiramente “grandes”. Os sabujos são selecionados e cruzados especialmente para terem um focinho muito largo, capaz de sentir qualquer cheiro; beiços pendentes que possam, à maneira de leques, agitar os odores do terreno quando o cachorro fareja; e grandes orelhas caídas, que formam com que uma bolsa à retaguarda do nariz do cão, para reter os cheiros, quando o animal corre de cabeça levantada. Mas um faro realmente bom, num cachorro, é um dom tão precioso como o de uma grande voz em um cantor lírico! Também é preciso que o cão esteja disposto a trabalhar num rasto dias e dias seguidos e seja capaz de suportar as condições mais adversas. Tem acontecido casos de George treinar um cão durante mais de um ano, para no fim chegar à conclusão de que o animal não é capaz de agüentar as dificuldades de uma tarefa pesada.

O treino se faz com o auxilio de um ajudante, que, postado a certa distância, chama o cachorrinho. O ajudante dá de comer ao cão, que delira de alegria com este jogo inesperado. Passados alguns dias, quando os cachorros se dirigem para ele, o ajudante dobra uma esquina, correndo, deixando cair pelo caminho um lenço ou qualquer outro objeto que possa servir de guia olfativo. George incita o cão a farejar o lenço, repetindo: “O homem fugiu!” Gradualmente o treino vai se tornando mais complicado. O ajudante passa pela parte central da cidade, para que o animal se habitue a selecionar determinado cheiro no labirinto de cheiros das calçadas apinhadas de gente, e através do tráfego mais intenso. Passado algum tempo, o cachorro não vive senão para aquilo: destrinçar pistas no meio da confusão de odores.

George anda sempre com os cachorros atados à correia. Um cão que segue um rasto é indiferente a tudo o mais, e é capaz de se deixar esborrachar por um auto que se atravesse em seu caminho, ou por um trem que avance direto a ele. O sabujo é um animal possante, e quando pega um rasto deixa-se desvairar e puxa a trela como um touro. Isso obriga o dono a usar um cinturão de couro grosso e muito largo, com anéis a toda a volta, onde se prendem as correias. Um homem que levasse as trelas na mão não poderia agüentar o esforço por mais de uma ou duas horas; mas, graças ao cinturão, George consegue andar durante dias, muito embora o corpo lhe fique coberto de equimoses causadas pelos puxões incessantes dos animais.

Os cães que correm soltos são treinados a dar latidos, de modo que o dono possa segui-los; mas George ensina a seus a trabalhar calados. Uma criança perdida pode-se assustar com os latidos, a ponto de perder a cabeça e se atirar duma ribanceira ou se precipitar num rio. Os latidos servem também de aviso aos criminosos. Como é indispensável que os cães se exercitem todos os dias, e George se recusa a deixá-los sair do canil quando não seja para pô-los a seguir uma pista, é lhe preciso recorrer aos serviços de meninos que, por alguns níqueis, se prestam a fazer pistas para os cachorros. Os pequenos procuram , por todos os meios, iludir os cachorros, mas George crê que ninguém é capaz de ludibriar um sabujo.

Muita gente acredita vagamente que o cheiro de uma pessoa impregna de certo modo as suas pegadas; na realidade, o cheiro é emitido pelo corpo todo. Fica pairando no ar como uma fina névoa, à passagem da pessoa, e depois, pouco a pouco, vai caindo no chão. Os sabujos são muitas vezes capazes de achar no ar a pista de um homem, à distância de quase um quilômetro, se uma brisa úmida estiver soprando na direção deles. Um amigo apostou um dia com George que os cães dele não seriam capazes de pega-lo. Passou horas descrevendo um curso complicado, em seguida voltou ao ponto de partida para observar o trabalho dos cães: quando George lhes deu o guia olfativo, os cachorros não fizeram caso algum da pista – limitaram-se a caminhar direitinho ao lugar onde o amigo se escondera.

Dois meninos a quem George pagara para fazer pistas, estavam tão resolvidos a atrapalhar a pesquisa dos cães, que passaram uma hora debatendo-se através dum pântano, metidos até à cintura em água fria. Quando os animais se acercaram do lugar, farejaram no ar o rasto ainda fresco dos meninos, lá do outro lado do pântano, deram a volta a este, e em cinco minutos encontraram os garotos exaustos de cansaço!

Acontece por vezes que um cachorro é capaz de seguir até o rasto de um homem que vá de automóvel. Os cães de George ajudaram a prender um gatuno que havia roubado um posto de gasolina. A primeira coisa que ele fez foi deixar que os cães cheirassem a caixa registradora arrombada. Os cães seguiram o cheiro do homem por cinco quarteirões; aí, sentando-se em terra, deram a entender que ele fizera alguma coisa de inesperado – no caso, tomara um automóvel que o esperava ali. De repente, King, o melhor cão que George já possuiu, recomeçou a farejar. Caminhou mais um quarteirão e meio, até onde o homem descera do carro para entrar em casa. King podia bem ter farejado no ar o rasto ainda fresco do homem, há adiante, mas havia uma brisa forte soprando desse lado, e George acha que ela levou o cheiro do gatuno pelas janelas do carro, e o odor se foi depositar ao longo da base dos edifícios.

Na terra mole e úmida, o odor pode durar quase 15 dias. Na terra seca e quente desaparece em poucas horas. Parece que parte dele se mete pela terra abaixo, pois quando em busca de uma pista já velha, “fria”, o cachorro esgaravata na terra, fareja e continua a andar. Os sabujos chegam a revolver intencionalmente a folhagem caída por terra, para dar com um rasto que persiste em baixo dela.

George crê que o feito mais extraordinário que seus cachorros já realizaram teve lugar em Minesota. Depois de ter escrito uma carta despedindo-se da vida, um homem desapareceu, e havia bem uma semana que as autoridades o andavam procurando. Encontraram o carro dele, abandonado à beira de uma estrada, e George pôs King na trilha do tênue cheiro deixado pelo desaparecido. King guiou os homens até uma cidade vizinha, onde continuou farejando a calçada, muito embora incontáveis pessoas já houvessem passado ali nos seis dias decorridos desde o desaparecimento do homem. Foram dar com o suposto suicida almoçando em um restaurante.

Mas a maior missão que George já teve, foi o caso de Jens Thompson. Este era um lavrador que um dia teve uma desavença com os vizinhos, matou a tiro quatro deles, e depois fugiu par a floresta. O crime ocorreu em tempo de seca. Já sabemos que o terreno seco é pouco propicio ao farejo, mas durante quatro dias os batedores seguiram os cães através de espessas matas. King, o famoso canzarrão de George, tanto farejou a poeira quente e seca do chão, que lhe sobreveio uma hemorragia pulmonar! Assim mesmo, foi para a frente. Ao quinto dia, os cães iam atravessando um milharal, quando King parou e desenterrou com as patas um sabugo que alguém tinha roído. Jens se detivera ali para comer milho e depois tinha enterrado o sabugo!

Nos dez dias seguintes, George dormiu no rasto do fugitivo. A dada altura, Thompson, desesperado, pulara de uma rocha. Os cachorros obstinados deram o salto – e George foi atrás deles, preso pelas trelas!

Fazendo um esforço supremo para despistar os cães, o fugitivo levou quase um dia inteiro para subir um morro praticamente inacessível, e depois retornou seguindo uma linha paralela ao seu próprio rasto. Ao regressar, a chuva começou a cair. Quando os cães se acercaram do morro puderam farejar no ar úmido a pista ainda fresca. Em vez de subir o morro, foram diretamente à nova trilha. O fugitivo, exausto, rendeu-se sem opor resistência.

Depois da perseguição aos criminosos, a maioria dos casos confiados a George é de crianças perdidas. Os cachorros são idéias para esse gênero de trabalho, mas muitos pais receiam utiliza-los, devido à noção errônea de que os animais podem atacar a criança e machuca-la. A verdade, porem, é que os sabujos são bastante mansos. Foram criados primitivamente como cães de caça, e o seu aterrador denominativo em inglês Bloodhounds (Cachorros de sangue) significa somente que eram cães de puro sangue, do mesmo modo que fazemos referencia a cavalos puro sangue.

Muita gente tem perguntado a George por que razão é que ele não larga o seu emprego no balcão da sorveteria, para se dedicar de todo a seus cães.

“Se eu fizesse isso,” confessou-me ele, “nunca mais poderia empregar meus cães na descoberta de um caso sem cobrar pelo serviço. Muitos dos chamados que recebo são de pessoas que não tem posses para me pagar: o lavrador cuja mulher desapareceu em uma nevasca, ou o pescador cujo filho se extraviou. Enquanto eu estiver no emprego, tenho ordenado certo, e posso sair com os cães sempre que me apetece. É assim que eu prefiro!”

Colóquio com uma rainha

Fonte : Revista Seleções

Data : Novembro de 1949

Autor : Max Eastman

“É boa a sensação de ser rainha?” perguntei.

“Aqui na Grécia, pelo menos, é a melhor possível porque envolve um trabalho criador, que afasta o tédio comum à maioria das cortes.”

“Vossa Majestade se sente superior devido ao sangue real que tem?” A rainha Frederica é neta do kaiser Guilherme II, soberano por direito divino, e eu estava preparado para perdoa-la se me respondesse afirmativamente.

“Não,” respondeu, enfaticamente, “em absoluto.”

“Qual a sensação que Vossa Majestade teve, em menina, ao descobrir que era princesa?”

Não se tratava de um interrogatório psicanalítico ou de uma Inquisição; sorríamos ambos, cordialmente. Eu havia chegado ao palácio num curioso estado de espírito. Republicano ardente, precisava manter uma certa arrogância cortês; nada de reverências e salamaleques. Como simples plebeu que sou, sentia-me nervoso e acanhado. A gentil dama de companhia atendeu-me com grande deferência e acalmou-me os nervos com uma xícara de café turco na ante-sala. (Na Grécia, nada se consegue a n~´ao ser por meio de uma boa xícara de café.) Mas eu ainda estava trêmulo quando fui levado à presença da soberana.

Presença de uma adorável jovem, esbelta, de olhos vivos, num elegante vestido de linho cor de rosa, a qual caminhava em minha direção com um sorriso nos lábios, saudando-me graciosamente: “Muito prazer em conhece-lo!”

Embora seja mãe de três filhos, parece quase uma menina, com os olhos sempre alegres e um leve arrebitado do nariz, que lhe dão um encanto extraordinário.

Sentamo-nos em um sofá em frente à lareira, numa sala que mais parecia de um modesto lar que de um palácio, e pusemo-nos a conversar como se fôssemos amigos de muitos anos. Por isso, pareceu mesmo natural quando, pouco depois, observei, num sorriso: “Desde menino que, por simples curiosidade, desejo fazer a um rei ou a uma rainha algumas perguntas de natureza pessoal.”

“Pois que venham as perguntas,” disse ela, com afabilidade. “Estou igualmente curiosa para conhece-las.”

Foi assim que comecei o diálogo transcrito linhas atrás. E quando perguntei como se sentira, em menina, a rainha respondeu:

“Senti-me algo perplexa. Costumava discutir o assunto comigo mesma, com toda a seriedade. Com que direito pode alguém colocar-se acima dos demais sem ter lutado para chegar lá? Esta reflexão me perturbou por muito tempo e o senhor sabe como foi que conseguir apaziguar as minhas dúvidas? Lendo Platão. Como o senhor deve lembrar-se, ele dividiu os cidadãos em diferentes grupos: os trabalhadores e comerciantes, os soldados e os líderes. Cada grupo tinha as suas funções específicas e os líderes, afim de poderem preencher as suas, tinham de ser educados e treinados especialmente desde a infância. Evidentemente, para poderem receber este treinamento, tinham de ser escolhidos previamente. Fiquei em paz com a minha consciência ao decidir usar da minha própria situação hereditária como o faziam os líderes na doutrina de Platão.”

Excetuados os comunistas fanáticos, dificilmente se encontrará uma pessoa na Grécia que não tenha louvores para o resultado desta decisão. Desde o Ministro do Exterior (antigo primeiro ministro), Tsaldaris – que me disse: “Ela não só tem bom senso como noção exata dos acontecimentos” – aos recrutas de um acampamento militar que a carregaram nos ombros até o alto de uma colina, onde a soberana partilhou o rancho com eles, é unânime a opinião de que ela é uma criatura de dotes excepcionais, uma benção para o país.

Socialmente, a Grécia é um país tão democrático como qualquer outro. Não tem aristocracia, nem duques, condes ou barões – apenas o rei, a rainha e o povo. É o que torna possível os contatos diretos entre eles, prática que o rei Paulo e a rainha Frederica tem cultivado intensamente. Desde que subiram ao trono, em abril de 1947*, tem passado a maior parte do tempo viajando através das áreas mais desoladas do país, fazendo amigos no povo, ouvindo-lhes as queixas, inquirindo das suas necessidades. “Praticamente, ainda não habitamos o palácio,” disse-me a rainha.

Viajar pelo devastado interior do país é extremamente cansativo, alem de ser, ou ter sido, uma temeridade, devido à presença de bandidos nas montanhas, comandados pelos comunistas. Mas tais percalços intimidaram tão pouco a rainha quanto o rei, um rapagão desempenado e atlético. Ao chegarem a uma cidade, param o carro nas imediações e caminham em meio do povo até a rua principal. Não há arautos, cerimonial, guardas reais, polícias montadas e nem mesmo sinais da presença de agentes da polícia secreta. Qualquer pessoa pode dirigir-se aos monarcas, caminhar a seu lado, chegar bem perto deles e tirar-lhes fotografias. No edifício da prefeitura, dão audiência pública e discutem livremente os problemas da região ou do país, mostrando-se incansáveis. Dificilmente algum outro estadista conhecerá o seu país de forma tão pessoal e direta como o rei Paulo e a rainha Frederica da Grécia.

“Quer V. M. dizer, precisamente, quando se refere ao trabalho criador da rainha da Grécia?”

“Vou dar-lhe alguns exemplos concretos,” respondeu-me a soberana. “A Grécia, como conseqüência do seu esforço titânico ao lado dos aliados, sofreu mais do que qualquer outro país do mundo. Primeiro os italianos, depois os nazistas, e agora os comunistas atacaram, bombardearam e devastaram o país a ponto de arrasaram completamente certas regiões. Quase quatro mil cidades e aldeias foram destruídas. Ainda agora, de quando em vez, os comunistas devastam mais uma. O senhor sabe o que isto significa par uma mulher? Significa que o país está cheio de crianças famintas, sem amor e sem lar. Esta é uma das minhas tarefas – salvar esses órfãos da morte e evitar que cresçam física moralmente deformados. Em suma, fazer desse material humano uma geração nova, sadia de corpo e forte de espírito como o foram os seus pais, que tombaram lutando pela liberdade. Não acha um trabalho criador?”

A cabeça da rainha estava coroada de cachos castanhos arrumados com tanta naturalidade que lhe davam mais o aspecto de uma estudante de universidade do que de uma soberana. Não usava mais jóias do que uma jovem universitária. Apenas duas pedras de jade verde, encastoadas numa pulseira de prata, adornavam-lhe o braço esquerdo. As sobrancelhas, apesar de muito espessas, não eram arrancadas, atributo de realeza que eu gostaria que as jovens dos nossos países democráticos tivessem o bom gosto de imitar. Em conjunto, deu-me a soberana uma tal impressão de naturalidade que só pode revelar o seu verdadeiro feitio ou então a mais extraordinária vocação teatral.

“Organizei um comitê com esse objetivo,” continuou ela, “e já temos sob nos nossos cuidados 18 mil dessas crianças, recolhidas a 48 centros diferentes. Já iniciamos a construção de novos centros para abrigar mais 25 mil crianças.”

Eu havia visitado um desses centros na praia de Santo André, onde se encontram 700 meninos e meninas de 6 a 14 anos de idade. Examinei as camas, provei do almoço que comiam, conversei com os pais adotivos, visitei as salas de aula, a nova capelinha, toda branca; observei-os na hora de recreio ou regando os pequeninos canteiros de legumes. O prédio foram outrora um cassino bombardeado pelos alemães e reconstruído para servir de lar para os órfãos da guerra. Até mesmo os menorezinhos pareciam estar felizes.

Os olhos da rainha, de um azul escuro, iluminaram-se quando lhe descrevi a minha visita.

“Tudo foi feito sem um centavo, sequer, do Governo,” disse ela, “e sem um centavo do estrangeiro. O meu primeiro apelo, divulgado pelo rádio e pelos jornais, trouxe donativos no valor de 4 milhões de dólares. Todos contribuíram, pobres ou ricos. Os sindicatos resolveram que todos dessem um domingo de trabalho, o que rendeu cerca de 240 mil dólares. Os comunistas, naturalmente, protestaram vivamente chamando-nos de monarco facistas e dizendo aos operários que a rainha lhes estava roubando o dia de salário. Os sindicatos, porem, mantiveram-se inabaláveis. Os operários figuram entre os melhores elementos do país. São esclarecidos e sabem muito bem que são os comunistas os autores dos ataques e depredações que deixam na orfandade as crianças que procuramos socorrer.”

Eu soube, por outra fonte, da resolução com que a rainha se entregou ao salvamento dessas crianças. O rei estava doente, em janeiro de 1948, quando Konitsa, cidade chave próxima à fronteira da Albânia, foi recapturada pelas ações legais. Havia 250 crianças num acampamento em Lonitsa e a cidade se encontrava sediada e sob bombardeio havia oito dias. A rainha, que se achava em Janina, acorreu em socorro dessas crianças. Mas o comandante em chefe disse-lhe que a estrada estava minada e não oferecia a menor segurança.

“Muito bem,” retrucou ela, “irei a cavalo, pelas montanhas.”

Mas isso seria ainda mais perigoso, protestou o general. E como ela insistisse em ir por um ou outro dos caminhos, ele acabou concordando em que a rainha fosse pela estrada regular, sob a condição de ser guardado o maior sigilo possível. Uma das pontes fora destruída e ela teve de caminhar vários quilômetros, pela madrugada, até encontrar um jeep que a esperava do outro lado. Ninguém o soube, então, e são poucos os que sabem, hoje, que a rainha da Grécia foi o primeiro civil a entrar em Konitsa, depois da recaptura da cidade. Foi saudade com lágrimas pelos soldados extenuados pelo combate e exultantes pela vitória e teve de fazer-lhes um discurso na praça pública. A própria rainha contou-me como foi o discurso.

“Era o primeiro que fazia em toda a minha vida,” disse ela, “e fiquei realmente aterrada. Durante um minuto, confesso que não sabia o que dizer.”

“Mas o que foi que V. M. disse?”

“Apenas uma frase. Limitei-me a dizer: Meu marido está doente e o meu lugar deveria ser a seu lado, mas acho que ele vos ama ainda mais do que a mim, pois me enviou para acompanhar-vos, em lugar dele.”

A rainha sempre se refere a “meu marido”, nunca “o rei”, mas descreve as realizações dele com tanto entusiasmo como as suas próprias. Entre outras atividades, está ele dirigindo sete escolas agrícolas espalhadas no país e inaugurou recentemente em Laros, no Dodecaneso, um reformatório modelo para jovens “bandidos”, de 16 a 20 anos. Na Grécia, eles são chamados “bandidos” e não comunistas, nem vermelhos ou nem mesmo guerrilheiros. E, em sua maior parte, o são, realmente, segundo pude constatar pessoalmente ao tentar identifica algum ideal político entre cerca de 300 deles, que entrevistei na prisão. No dia da inauguração, o rei fez um discurso aos rapazes, muitos dos quais, ou mesmo quase todos, haviam cometido assassinatos, incêndios ou assaltos a mão armada em estradas. A rainha reproduziu-me alguns trechos desse discurso:

“Não guardamos provas contra ninguém. Tudo quanto se refere ao passado foi destruído. Só pensamos no futuro de vocês. Queremos prepara-los para enfrentar com sabedoria os problemas da vida e transforma-los em bons cidadãos da Grécia.”

Há um abismo entre a frieza da República de Platão e o monarquismo social que a rainha me descrevia. O que me dizia tinha muito mais de cristão que de platônico.

Conscientemente ou não, a rainha planeja introduzir inovações radicais no sistema que Platão delineou para a formação dos líderes. Tenciona, segundo me disse, mandar o filho, o príncipe herdeiro, trabalhar nas minas e fazendas da Grécia a fim de conhecer, por experiência própria, os problemas da vida com que se defronta a maioria dos homens.

“Antes que se vá,” disse ela quando me levantei, “quero contar-lhe uma pequena história. Uma história verdadeira.”

“Nossa única preocupação, quando fundamos o reformatório de Laros era com relação aos habitantes da ilha. Como o senhor sabe, faz só dois anos que as Ilhas do Dodecaneso foram devolvidas à Grécia e podia parecer até inamistoso enviar-lhes 700 bandidos como um gesto de boas vindas! Ficamos realmente apreensivos quanto à reação que teriam os habitantes. Os rapazes chegaram à ilha duas semanas antes do Domingo de Páscoa. Nesse dia, o povo de Laros fez uma procissão e marchou até o reformatório carregando uma bandeira grega. Pediram que os rapazes fossem concentrados no pátio e o padre, que caminhava à frente da procissão, dirigiu-lhes a palavra:

“Nós, os cidadãos de Laros, lutamos 700 anos para reconquistar esta bandeira. Sabemos bem o que ela representa. E vamos confia-la à vossa guarda porque estamos certos de que sabereis defende-la.”

“Os rapazes ficaram profundamente comovidos. Muitos não contiveram e exclamaram que não eram dignos sequer de toca-la: - Chegamos a lugar contra a nossa própria pátria! Mas os habitantes da vila insistiram e os rapazes acabaram aceitando a bandeira que foi por eles mesmos içada à frente do prédio.”

“Este é o tipo de compressão e ajuda que nos dá o povo grego. O senhor ainda tem alguma dúvida sobre as minhas razões para estar encantada de ser rainha da Grécia?”

Colonos na vizinhança

Fonte : Revista Seleções

Data : Novembro de 1949

Autor : William Drake (condensado de “The American Magazine”)

A família Caperelli conseguiu criar um lar em ambiente que lhe era por certo bem hostil.

Os novos moradores caíram entre nós num lindo sábado de primavera, em 1941. esta nossa povoação é uma típica localidade semi-urbana de classe média, cujos habitantes são na maioria gente de “colarinho e gravata”. Nessas condições, os recém-chegados Caperellis tornaram-se o que há de menos desejável.

Papai Caperelli, homem de 50 anos e de físico possante, com uma cabeleira ondulada e olhos negros faiscantes, fez recuar o caminhão decrépito para entrar no lote vizinho ao nosso, e deu a mão para ajudar a mulher a descer. Então, da retaguarda do caminhão, vimos sair em cascata mais nove Caperellis – homens, mulheres e crianças – e, com eles, ferramentas, madeira velha, uma barraca, utensílios de cozinha, cestas com comida, um barril de cerveja, um rádio portátil, e um cachorro de aparência pouco recomendável!

Soltando gritos de júbilo, os Caperellis se espalharam por sobre o terreno da sua nova propriedade. Era quase meio hectare de verdadeira selva, pantanosa em certos pontos, coberta de densa vegetação de roseiras silvestres e de arbustos enfezados, mas os Caperellis tinham morado em um bairro pobre de uma grande cidade, desde que chegaram da Itália, cinco anos antes, e agora, ávidos de natureza, agarravam punhados de terra que esfarelavam entre os dedos, falando todos ao mesmo tempo numa algazarra tremenda.

Em seguida, armaram a barraca, fizeram uma fogueira enorme, tiraram as comedorias das cestas, abriram o rádio bem alto, e durante todo o dia cantaram e se divertiram. Quando a noite caiu, dividiram-se em duas turmas, e dormiram uns na barraca, outros no caminhão.

No dia seguinte, antes do anoitecer, tinham erigido no seu terreno uma rude cabana de papel alcatroado. Os vizinhos indignados, gente de classe média a cambar para a alta, reuniram-se em assembléia de protesto. Mas, depois de muito deblatera, chegou-se à irremediável conclusão de que ninguém podia impedir os Caperellis de fazerem o que muito bem entendessem em seu próprio terreno.

A família de imigrantes constituiu assim o seu reino pequenino e isolado em meio de um mundo hostil – Papai Caperelli, porem, compreendendo ser um dever cívico, ofereceu-se para fazer parte da brigada de bombeiros voluntários. Foi recusado. “Demasiado velho,” disse o chefe.

Todas as manhãs, durante a semana, os Caperellis adultos saíam no caminhão para ir trabalhar em uma obra, onde ganhavam bons salários. Quando regressavam, à tarde, descansavam apenas o tempo suficiente para o jantar que Mamãe Caperelli preparara numa fogueira, e lançavam-se ao trabalho com denodo – arrancando raízes, assentando as manilhas, e escavando para o alicerce da futura residência.

E as mulheres mourejavam não menos que os homens. Fizeram um vasto jardim, ajudaram a cavar os alicerces e construíram galinheiro, casa para os coelhos e abrigo para uma cabra.

A família trabalhava em comum todos os domingos desde o romper da manhã até ao escurecer. Até os guris da família manejavam as pás e enxadas, e mais tarde ajudaram a misturar o cimento. Nunca em minha vida conhecia uma família, mesmo nas estações de veraneio mais caras, que fosse capaz de divertir-se tanto como aqueles Caperellis, quando trabalhavam em mio de brados atroadores e canções em coro!

Chegado o tempo do frio, eles tinham completado a construção de um amplo porão e instalado água, gás e eletricidade com as suas próprias mãos. Isso lhes permitiu passaram a viver dentro de casa.

Nem a guerra conseguiu deter aquela atividade de pioneiros obstinados. Giuseppe, Rocco e Vincent foram convocados, e o tio Domenico arranjou emprego em uma fábrica de material de guerra. Ficou o Papai Caperelli sozinho com as mulheres e as crianças, mas assim mesmo se foi erguendo, acima do porão, a estrutura de dois andares de blocos de cimento. Depois, Mamãe Caperelli, Rosa e Juanita ultimaram a cobertura do telhado, enquanto os guris içavam os materiais de construção com cordas e roldanas.

Alguns dos vizinhos murmuravam entres dentes que era indigno, próprio de gente de classe inferior, as mulheres darem o espetáculo de trabalhar daquela maneira; mas eu tenho a impressão de que as distantes antepassadas desses vizinhos também não se tinham recusado a ajudar seus maridos, colocando a cobertura de suas cabanas.

Algo, porem, aconteceu logo depois, que veio determinar na comunidade uma franca mudança de atitude.

Certa manhã, a tragédia bateu à porta toda branquinha dos Bradleys, casal já idoso que morava em frente aos italianos. A senhora Bradley sofreu uma hemorragia cerebral, e o marido, que já estava entrevado pelo artritismo caiu sem sentidos ao tentar locomover-se da cama para o telefone. O mais que pode fazer antes de desmaiar foi bater na vidraça de uma janela, e gritar por socorro.

Os Caperellis ouviram-no gritar, e correram em auxilio. Ajudaram a conduzir a sra. Bradley ao hospital, e o tempo que ela esteve ausente fizeram todo o trabalho doméstico por ela e cozinharam para o semi-paralítico. Nem um centavo as mulheres da família Caperelli quiseram aceitar por seus serviços. “Então para que servem os vizinhos,” dizia Rosa, “se não pra ajudar uma pessoa num caso de necessidade?”

Passado tempo, poucas semanas antes de acabada a guerra, Vincent Caperelli morreu na frente do Pacífico. A notícia, quero crer, deixou todo o mundo um tanto envergonhado na nossa vizinhança.

Quando os outros rapazes regressaram da guerra e o tio Domenico voltou da fábrica de armamentos, ergueram-se as paredes de uma segunda casa, esta para o filho Giuseppe e sua mulher.

Mas o que realmente galvanizou, comoveu, surpreendeu e satisfez a nossa cidadezinha, foi a fase final dos empreendimentos construtivos dos Caperellis. O verão passado, Papai Caperelli comprou uma montanha de tijolos de segunda mão. Vinham ainda cobertos de argamassa seca, e à primeira vista não prestavam para nada; mas a família inteira meteu mãos à obra, afanosamente, separando os tijolos uns dos outros e limpando-os da argamassa. A pequena Angelina raspava os tijolos um por um com uma escova de aço, e Fernando, o de 3 anos, limpava-os criteriosamente com uma vassourinha.

Em seguida, Papai Caperelli, ajudado pelos filhos, começou a aplicar um revestimento novo aos seus prédios. Os tijolos usados tinham uma contextura suave, que falta aos tijolos novos, e aqueles horrores de ontem se transformaram em lindas casas.

Desde então, eles construíram duas garagens duplas, onde guardam os três automóveis que hoje possuem, alem do caminhão; plantaram grama, flores e arbustos decorativos. Ambas as casas são muito espaçosas, e se conservam imaculadamente asseadas. Cada uma tem dois banheiros, máquina de lavar roupa, refrigerador e congelador doméstico. Onde, faz agora oito anos, encontraram uma selva, os Caperellis possuem hoje, livre e alodial, uma pequena propriedade que deve valer bem uns 50 mil dólares.

Mas isso não é tudo: não menos importante é o lugar que eles souberam conquistar no respeito e afeição da sua comunidade. São hoje aceitos por todos, como aquilo que são de verdade: bons vizinhos e bons cidadãos. Dois dos membros da família pertencem ao Corpo de Bombeiros Voluntários.

Quanto aos pequenos, foram prontamente aceitos como companheiros pelos nossos filhos e os filhos dos outros vizinhos. Tony, que está agora no ginásio, quer ir para uma universidade estudar arquitetura, e Angelina tem esperança de tirar diploma de enfermeira.

Os Caperellis são hoje, portanto, membros plenamente acatados de uma comunidade que de começo os hostilizou. E, com franqueza, nós ganhamos com isso muito mais do que eles...

segunda-feira, dezembro 5

O Papai Noel que existe dentro de mim

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1983
Autor : Jay Frankston

Era bom termos um assim para nós!

Não há nada mais bonito que uma criança acreditar em Papai Noel. Eu sempre sonhei com ele, mas sou judeu e meus pais não comemoravam o Natal. Era o feriado de todas as outras pessoas – uma grande festa para a qual eu não era convidado. Não eram os brinquedos que me seduziam, mas o Papai Noel e a árvore de Natal. Então, depois que casei e vieram os filhos, resolvi dar a eles o que eu não tivera.
Comecei com uma árvore de dois metros de altura, toda decorada com luzes e enfeites. Corria o ano de 1956 e nós morávamos em Nova York. Minha filha Claire tinha apenas dois anos, mas, quando olhava para a árvore, sorria e seus olhinhos brilhavam. Nossa árvore desprendia uma sensação de enlevo que enchia todos os cantos da casa. Coloquei uma estrela de Davi no alto dela, para contentar as pessoas cujos sentimentos israelitas ficassem perturbados com a comemoração, e sentia-me feliz de ver aquele brilho, porque agora a festa era na minha casa, e todo mundo estava convidado.
Mas faltava algo, grande e redondo e alegre, com som de sinos e uma gorda risada nos lábios: Ho! Ho! Ho!. Comprei uma fazenda de um vermelho vivo e minha mulher fez com ela uma fantasia para mim.
Algumas almofadas de soprar deram um ar mais roliço à minha delgada estrutura. Uma máscara de Papai Noel, com barbas e cabelos branquinhos e ondulados, me fez parecer tão verdadeiro como o sonho infantil do velho São Nicolau.
Estréia. Claire tinha quase quatro anos e Danny ainda não completara um, quando Papai Noel apareceu pela primeira vez lá em casa. Durante dois anos, adorei fantasiar-me de Papai Noel para meus filhos, que ficavam num misto de aterrorizados e encantados. No terceiro ano, o Papai Noel que habitava dentro de mim crescera e criara uma personalidade própria que carecia de mais espaço. Resolvi então satisfaze-lo, deixando-o mostrar-se para outras crianças também.
Um dia, num final de novembro, vi uma linda garotinha tentando alcançar a caixa de correio e dizendo: “Mamãe, você tem certeza de que o Papai Noel vai receber minha carta?”. Minha cabeça começou a girar. Que acontece com as cartas de todas aquelas crianças que escrevem para Papai Noel? Telefonei para o correio e obtive a resposta: a repartição de cartas não entregues armazenava milhares delas em enormes sacas.
Meu Papai Noel fez Ho! Ho! Ho!, e fomos diretos para o correio. Ao examinar as primeiras cartas, fiquei um pouco decepcionado com os pedidos e a ganância de tantas crianças mimadas. A maioria das cartas era só “me dá”. Mas, como o meu Papai Noel continuasse ouvindo um chamado de dentro da saca, continuei à procura até encontrar uma carta que me comoveu:
“Querido Papai Noel, sou uma menina de 11 anos, tenho dois irmãos e uma irmãzinha. Meu pai morreu no ano passado e minha mãe está doente. Sei que existem muitas pessoas mais pobres do que nós e não peço nada para mim, mas será que você podia nos trazer um cobertor, porque mamãe sente frio de noite?” estava assinada “Suzy”.
Catei mais fundo ainda nas sacas e achei outras oito cartas deste tipo, oriundas de extrema pobreza. Levei-as comigo e corri a passar um telegrama para cada criança: “Recebi sua carta. Estarei em sua casa. Espere por mim. Papai Noel.”
Fiz um orçamento de 150 dólares e comprei os presentes. No dia de Natal, minha mulher me levou de carro aos lugares marcados. Meu primeiro compromisso era na periferia da cidade. A carta de Peter Barski era a seguinte:
“Querido Papai Noel, tenho 10 anos e sou filho único. Acabamos de nos mudar para esta casa e ainda não tenho amigos. Não fico triste por ser pobre, mas por ser sozinho. Sei que você tem muita gente para visitar e provavelmente não vai ter tempo para mim. Por isso, não peço para vir até minha casa ou trazer alguma coisa... Mas será que você não podia mandar uma carta para eu saber que você existe?”
“Querido Peter”, assim começava meu telegrama. “Não somente existo, como estarei aí no dia de Natal. Espere por mim.”
A casa de Peter, mais barraco que casa, ficava espremidinha entre dois prédios. O telhado era de ondulado de zinco. Com um saco de brinquedos nos ombros, subi os degraus e bati à porta. Um homem abatido abriu.
“Boze moj!” (Meu Deus!”, em polonês) exclamou ele estupefato – e levou as mãos ao rosto. “Por favor”, balbuciou, “o menino... está na missa. Vou busca-lo! Espere, por favor”. Jogou um casaco sobre as costas e, depois de se certificar que eu ia mesmo ficar ali, correu rua abaixo.
Fiquei defronte da casa, cheio de felicidade. Percebi, então, no lado oposto da rua, outro barraco. Pela janela, vi uns rostinhos negros me olhando e pequenas mãos acenando. A porta se abriu timidamente e algumas vozes gritaram: “Papai Noel!”
Aproximei-me e uma mulher me convidou a entrar. Aceitei. Lá dentro havia cinco crianças, com idades de um a sete anos. Falei-lhes de Papai Noel e do espírito de Amor que é o do Natal. Depois, vendo os papéis de embrulho amassados, perguntei se haviam gostado do que Papai Noel lhes trouxera. Todos me agradeceram... as meias de lã, o suéter ou a roupa de baixo mais quente.
“Mas eu não trouxe para vocês nenhum brinquedo?”
Balançaram a cabeça tristemente.
“Cometi um erro!”, afirmei eu.
“Vamos remediar isso.”
Sabendo que tinha mais brinquedos no carro, dei um para cada criança. Elas riram, mortas de felicidade, mas, quando Papai Noel estava pronto para sair, uma garotinha começou a chorar. Inclinei-me e perguntei: “Que foi que aconteceu?”
“Ah, Papai Noel” soluçou ela, é que eu estou tão feliz!”
As lágrimas correram dos meus olhos, por baixo da máscara.
Na rua, ouvi o Sr. Barski gritar: “Panie, panie, prosze!” (“Senhor, senhor, por favor!”)
Peter estava lá, estático, olhando Papai Noel entrar na casa dele.
“Você veio!” exclamou ele maravilhado. “Escrevi... e você veio!”
Poliglota. Quando se recuperou, falei-lhe sobre a solidão e a amizade, e dei-lhe um conjunto de química e uma bola de basquete. Ele me agradeceu louco de alegria. Sua mãe perguntou algo ao marido em polonês. Meus pais eram poloneses e eu falo um pouco da língua, além de compreender muita coisa.
“Do pólo Norte”, respondi em polonês. Ela me olhou surpresa. “Você fala polonês?”
“É claro”, respondi. “Papai Noel fala todas as línguas.” E deixei-os alegres e admirados.
No ano seguinte, quando o movimento de Natal começou a se formar, senti o velho comichão e vi que o Papai Noel que habitava dentro de mim estava de volta. Retornei ao correio e aquelas cartas de cortar o coração.
Fiz minha ronda assim durante 12 anos, ouvindo as lamentações infantis ocultas em envelopes não abertos, respondendo ao chamado de tantas quantas conseguisse, frustrado por não poder responder a todas.
Com o passar do tempo, espalhou-se a história sobre meu Papai Noel, e os fabricantes começaram a mandar-me anúncios de brinquedos. Tendo começado com 20 crianças, já estava com 120, de porta em porta, de uma extremidade de Nova York à outra, da véspera até o dia de Natal.
Na minha última visita, há alguns anos, sabia que em certa casa havia quatro crianças, e cheguei prevenido. Era um lugar pequeno e pobremente mobiliado. As crianças tinham esperado o dia todo, com o telegrama, e repetiam para a mãe, céptica: “Ele vem, mamãe, ele vem.”
Quando a campainha tocou, a porta abriu e todos correram para me apertar a mão. “Papai Noel! Nós sabíamos que você vinha!”
Peguei cada um no colo, contei histórias de alegria, esperança e paciência, e dei a cada criança um brinquedo. Durante o tempo todo, uma quinta criança, uma garota engraçadinha de cabelos louros e olhos azuis, ficou muito quieta num canto.
Virei-me para ela: “Você não faz parte da família, não é?”
Ela balançou a cabeça tristemente e murmurou: “Não.”
“Como é que você se chama?” perguntei.
“Lisa.”
“Quantos anos você tem?”
“Sete.”
“Venha, sente aqui no meu colo.” Ela hesitou, mas veio.
“Você ganhou algum brinquedo no Natal?” perguntei.
“Não”, disse ela. Peguei uma boneca grande e bonita. “Quer esta boneca?” “Não”, disse ela. Inclinou-se e sussurrou no meu ouvido: “Sou judia.”
Cutuquei-a e murmurei: “Eu também sou judeu.”
Lisa abriu um sorriso delicado. Pegou a boneca, apertou-a e correu para fora.
Não sei quem ficou mais feliz, se ela ou se o Papai Noel que vive dentro de mim.
Feliz Natal a todos os meus amigos!