quarta-feira, janeiro 31

Não vou me aposentar

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1982
Autor : Henry Lee

Às vezes a “boa vida” não é assim tão boa...

Durante anos, trabalhando sete dias na semana, senti pena de mim próprio. Rabisquei centena de artigos para os jornais, além de alguns livros, para conseguir criar três filhos e poder manda-los para a universidade.
Então, quase repentinamente, os que dependiam de mim tornaram-se independentes. A pressão aliviou e eu me aposentei. Livre, enfim! Podia agora dormir até tarde, ir aonde me agradasse e quando me desse na cabeça.
Mas a coisa não se passou assim. Todas as manhãs eu acordava e olhava um calendário vazio. Bem, podia zanzar, fingir entreter-me com pequenos trabalhos em casa ou ir às compras. Tentei interessar-me por passatempos, mas nem todo mundo nasce para curtir essas coisas.
Comecei a ter uns vagos achaques. Meus sonhos, curiosamente, tornaram-se ruins: acordava no meio da noite de punhos cerrados. Mental e fisicamente sentia-me acabado.
Por fim, analisei a expressão, simples mas profunda, do poeta e filósofo suíço Henri-Frederic Amiel: “É o trabalho que dá gosto à vida.”
Então, voltei ao trabalho. Os achaques desapareceram gradualmente, os sonhos suavizaram-se. Hoje, com 71 anos, possuo aquele sentimento de determinação e orgulho na minha vida que só o trabalho dá.
Segundo a minha experiência, as pessoas que mais duram trabalham parecem sempre ser as mais felizes. Meu pai era oriundo da Nova Inglaterra e, quando jovem, trabalhou, durante a Guerra Civil norte-americana, numa fábrica de munições em que o dia de trabalho durava de 10 a 12 horas e a semana era de pelo menos seis dias. Mais tarde, ele montou um negócio próprio, de novo trabalhando 12 horas por dia, e prosperou. Conseguia até arranjar tempo para se interessar pelos assuntos públicos e alcançou um sucesso moderado na política.
A recessão da primeira década de 1900 arruinou-o financeiramente, e assim se perdeu uma vida inteira de trabalho. Meu pai escolheu o único caminho que conhecia: começar tudo de novo.
Ele já passava dos 80 anos quando eu realmente principiei a compreende-lo. Na altura, ganhava ele algum dinheiro fazendo parte de júris, administrando uma propriedade por conta do tribunal de sucessões e viajando regularmente até as cidades vizinhas para destrinçar pequenos negócios complicados envolvendo propriedades. Suas múltiplas atividades mal davam, naqueles tempos heróicos e cruéis, para manter a família, mas raramente ele parecia preocupado e praticamente nunca se queixava. Desde o café da manhã, às 7:30, até se deitar, às 22:00, andava permanentemente ocupado.
Quando ele morreu, senti um grande choque ao descobrir a pilha de faturas por liquidar, do fornecedor de carvão e da mercearia, e só então compreendi como ele devia ter-se sentido desesperadamente atormentado. Maravilhou-me a sua determinação e, ao mesmo tempo, senti pena. Ali estava um homem que não tinha pensão de aposentadoria nem quaisquer benefícios sociais, e que, já na velhice, enfrentara a Grande Depressão da única maneira que sabia – trabalhando sem perdão e no duro.
Hoje sinto menos pena dele. Sei que foi o trabalho árduo que o manteve vigoroso e feliz até quase o seu 85º aniversário.
Claro, percebo que estas palavras podem soar falso às vítimas da recessão de hoje, gente involuntariamente desocupada. Meu coração está com elas, pois o desemprego é muito mais que uma catástrofe econômica; consome a alma.
Já me aconteceu uma vez. Certa manhã, meu chefe me prometeu que, se eu continuasse trabalhando em força, me aumentaria o salário para o dobro no fim de um ano. Nesse mesmo dia, depois do almoço, ele me chamou subitamente ao seu gabinete.
“Você é um jornalista”, disse bruscamente, “por isso vou lhe falar sem rodeios: vamos ter de fechar no fim do mês. Não sei por que, mas estamos falidos.”
De um momento para outro, eu era um zero econômico, despojado do meu objetivo, da minha dignidade pessoal, do meu valor próprio.
O choque e a desolação que senti eram semelhantes ao que se sente quando nos morre um velho amigo. Pior. Eu evitava os amigos, receando a inocente pergunta: “Como é que vai o trabalho?”
Se não ter o que fazer me era doloroso, imagine o que será para os jovens, para os pais e as mães com famílias para sustentar. O trabalho dá dignidade e significado à vida.
Sem ele, ficamos terrivelmente diminuídos.
Com certeza que, se existe o inferno, o castigo supremo lá deve ser acordar numa chamejante manhã sem lugar nenhum para onde ir, sem nada para fazer, sem nenhum desafio de trabalho que nos faça a adrenalina pular no sangue.
Não sou capaz de imaginar nada pior.

terça-feira, janeiro 30

Bill Lear : Inventor do "Impossível"

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Ronald Schiller

Este gênio imprevisível tornou-se famoso criando aquilo que “não pode ser”. Breve um novo motor de automóvel com turbina a vapor que muito poderá contribuir para eliminar a poluição do ar.

Uma das primeiras coisas que milhões de pessoas fazem ao acordar é ouvir as notícias no rádio ou na televisão, com um alto-falante dinâmico e amortecedores de ruídos. Ao ir para o trabalho, provavelmente ligam o rádio em seus carros. Quando fazem uma viagem aérea, o jato está equipado com piloto automático, rádio goniômetro e, claro, rádio transmissor receptor.
O que todos esses dispositivos, além de uns 145 outros mecanismos patenteados de uso diário ( inclusive um dos mais rápidos, elegante e populares jatos particulares do mundo), tem em comum é que nasceram do cérebro fértil de um gênio excêntrico chamado William Powell Lear. E vem mais inventos por aí. Todas essas impressionantes realizações parecerão insignificantes se Bill Lear for bem sucedido no que está trabalhando agora: o primeiro motor de automóvel no mundo com turbina a vapor e que não polui o ar.
Os protótipos deste motor, instalados num chevrolet sedan e num ônibus GM, estão atualmente sendo submetidos a experiências na pista de provas do aeroporto particular de Lear, perto de Reno, em Nevada. Se o motor funcionar como seu inventor alardeia, revolucionará a indústria automobilística.
O homem por trás de tudo isso não se parece nem age como o estereótipo de Hollywood de um gênio inventivo. Tem o rosto corado, bom físico, é afável e espirituoso e parece ter muito menos do que os seus 69 anos. Homem de uma energia diabólica, trabalha de 10 a 15 horas por dia, sete dias por semana, e espera o mesmo de seus assistentes. “Nós aqui só sabemos que é domingo”, disse um dos seus engenheiros, “porque o jornal vem mais grosso.” (Por exigir tanto dos empregados, as esposas menos compreensivas desses assistentes já lhe deram o apelido de Rei Lear.)
Quando a fábrica finalmente fecha as portas, Lear às vezes parte em seu jato para uma conferência à meia-noite ou para ir a um night clube em alguma cidade distante. Ou pode passar metade da noite em telefonemas interurbanos, ora da banheira, ora do carro, ou de um telefone que leva em sua maleta de documentos.
Apesar de suas importantes contribuições à tecnologia moderna, o próprio Lear é um anacronismo da engenharia, numa era de centros de pesquisas e estudos de viabilidade feitos em computadores. Embora tenha vários títulos honorários e muitos prêmios tecnológicos, nunca passou do curso primário. “Hoje, provavelmente, não conseguiria um emprego em minha própria fábrica”, admite ele. No entanto, atribui à sua falta de instrução convencional grande parte do informalismo em que se baseia seu sucesso.
Na década de 1920, por exemplo, um professor reconhecido então como a maior autoridade mundial em eletrônica provou matematicamente que uma bobina de sintonização de rádio só podia funcionar se tivesse pelo menos 5,7 centímetros de diâmetro e fosse protegida num recipiente com 13 centímetros de largura. Essa sentença era aceita como uma lei da eletrônica. “Mas eu era tão ignorante”, conta Lear, “que nunca ouvira falar no professor nem na sua lei.” Construiu uma bobina com menos de metade do tamanho mínimo, encerrou-a num recipiente com apenas cinco centímetros de largura e o dispositivo funcionou perfeitamente; assim pode produzir os primeiros rádios suficientemente pequenos para serem encaixados em automóveis.
Praticamente, um em cada dois inventos de Lear foi lançado a despeito de advertências de que “não é possível”. Em 1962, sua afirmação de que iria construir um pequeno avião a jato particular, com a velocidade e a qualidade de um Boeing 707, foi recebida com exclamações de escárnio. Fabricantes de aviões salientaram que um projetista de aeronáutica com muita experiência precisaria de 10 anos e 100 milhões de dólares para realizar o trabalho – e Bill era um simples amador neste terreno. No entanto, o Learjet foi projetado, construído e aprovado pelo Governo americano no tempo recorde de dois anos, por apenas 10 milhões de dólares, e um ano depois tinha faturado 52 milhões de dólares em vendas.
“O velho é incrível”, comenta admirado Hugh Carson, engenheiro-chefe da Lear. “Ele diz que é ruim demais para entender equações e não sabe usar régua de cálculo, muito menos um computador. Todavia, faz cálculos mentais mais depressa do que eu com a régua, geralmente saltando diretamente para a solução final, sem se importar com as operações intermediárias.” O próprio Lear não sabe explicar seu talento. Diz que introduz os dados no cérebro e esquece o caso, e a resposta acaba vindo à tona por si mesma, às vezes enquanto dorme ou nas ocasiões mais inesperadas. Ele desenhou o intrincado circuito do primeiro piloto automático para aviões a jato num guardanapo, numa boate de Nova York. “Por acaso a idéia certa me veio naquele momento”, recorda ele.
Pode ser difícil viver om um homem que às vezes passa a noite ao telefone, mas sua vida doméstica é tranqüila, graças à sua atraente quarta esposa, Moya Lear, com quem está casado há 30 anos. Senhora de grande encanto e muito tato, 16 anos mais moça do que ele, entende perfeitamente seu senso de humor e suas crises, ambos imprevisíveis. Quando Bill volta para casa depois do trabalho, costuma ser saudado à porta por um bordado no qual se lê: “Bem vindo a casa, querido”. Mas quando Moya percebe que o marido está ficando irrequieto, vira o bordado para o outro lado, que tem a mensagem: “Cai fora!”
Criado em Chicago por sua mãe divorciada, Lear fugiu de casa aos 15 anos, casou-se pela primeira vez aos 19 e fez seu primeiro milhão de dólares em 1931, ano da depressão econômica, quando aperfeiçoou o rádio para automóveis. Tinha então 29 anos. Sua contínua busca de novos problemas difíceis em engenharia não raro o tinham deixado quase quebrado. Cada vez, porém, que se via próximo à falência, saía mais forte ainda.
Lear aposentou-se uma vez, em 1967, mas a inatividade revelou-se a única dificuldade que ele não conseguiu vencer. Desempregado pela primeira vez na vida, com 65 anos e multimilionário, ele ficou alucinado. Quebrou a perna num acidente trivial. Estava ainda engessado, da coxa aos dedos dos pés, quando rompeu a artéria junto à base do crânio. No curso da operação para restaurar a artéria rompida, ficou sem pulso durante oito segundos. Perdeu tanto sangue que foram necessárias transfusões simultâneas nos dois braços e nas duas pernas.
Enquanto se recuperava, Lear sentia-se tão inútil que pensou seriamente em suicidar-se. Levantou-se uma noite, com a intenção de tomar seu avião e mergulhar no Pacífico, mas sua esposa apanhou-o antes que ele alcançasse a porta e mandou que ele voltasse para a cama. O que o arrancou à depressão foi um bom carão de um velho amigo que lhe disse que já era hora de acabar as “férias” e voltar ao trabalho.
“Que posso fazer?”, perguntou Lear.
O amigo olhou pela janela para o “smog” de Los Angeles.
“Por que não construir um automóvel a vapor que não cause poluição?”, sugeriu o amigo.
Era o típico desafio irresistível para Lear – um mecanismo complicado de que o mundo tinha premente necessidade, que os fabricantes de automóveis de Detroit tinham declarado “impossível” de adaptar às exigências dos motoristas modernos. Comprou um aeroporto em Nevada, para servir de base, e reuniu uma equipe de 125 engenheiros, cientistas e desenhistas. Ainda de muletas, pálido, macilento e cheio de dores, pôs-se a trabalhar. Depois de fracassar várias vezes, e de ter gasto oito milhões de dólares de seu próprio bolso, chegou tão perto de por o seu motor em condições de funcionamento que, ao que se diz, um fabricante de automóveis não americano teria oferecido 25 milhões de dólares para se associar ao projeto.
Para os que tem saudades dos velhos Stanley Steamers de há 50 anos, à primeira vista o novo carro é uma decepção. Parece-se com qualquer outro Chevrolet sedan 1971. seus controles e os instrumentos do painel são todos standard, com uma única diferença: quando se liga a ignição, acende-se uma luz vermelha e é preciso esperar que ela mude para verde (no máximo 15 segundos), indicando que o motor está suficientemente aquecido, antes de por o carro em marcha.
A verdadeira surpresa vem quando se ergue o capô do motor. Assentado ali, como uma grande rosca metálica, está o gerador de vapor, ou caldeira, no qual um fluído orgânico chamado “Learium” (naturalmente) é aquecido até transformar-se em vapor. Água não serve porque congela no inverno, leva muito tempo para ferver e tem peso molecular baixo demais. O vapor, forçado através de uma bateria de minúsculos bocais, sob enorme pressão, faz girar um rotor de turbina de 15 centímetros de diâmetro a velocidades superiores a 50.000 revoluções por minuto, que fornece energia para a transmissão automática do carro. Depois que o vapor realizou sua função, é recondensado no radiador, bombeado de volta ao gerador de vapor e reaquecido, repetindo-se o ciclo.
Esse motor pesa 90 quilos menos que um motor convencional de potência equivalente e poderá, afirma Lear, ser vendido mais ou menos pelo mesmo preço. Com exceção da bomba, do ventilador de combustível e da ventoinha do condensador, a roda da turbina é a única parte móvel; os atuais motores de combustão interna possuem cerca de 200 partes móveis. Com fricção e desgaste deste modo reduzidos ao mínimo, acredita Lear que o seu motor durará 80.000 quilômetros.
Mas nesse carro a vapor o que mais empolga as pessoas preocupadas com a poluição é a emissão do cano de descarga. Motores de combustão interna são intrinsecamente “sujos”, pois queimam apenas parte da gasolina bombeada para dentro deles, jogando o resto na atmosfera, sob a forma de hidrocarbonetos não consumidos, monóxido de carbono e outras emanações nocivas.
Motores a vapor queimam o combustível externamente, consumindo-o quase por completo (praticamente qualquer espécie de combustível servirá, embora querosene seja o preferido). A poluição resultante está tão abaixo dos níveis recentemente estabelecidos como aceitáveis, que o motor Lear provavelmente satisfará os padrões ainda mais rigorosos esperados por volta do ano 2000, quando o número de automóveis em uso será duas vezes maior.
Embora ainda sejam necessários muitos meses de trabalho antes que o motor com turbina a vapor esteja pronto para ser oferecido aos céticos fabricantes de automóveis, Lear o considera apenas um motor “transitório”. Ele já está pensando na turbina de gás, que considera o próximo passo para a força automotora “limpa”. Embora este motor ainda pertença ao campo dos sonhos – e aí ficará pelo menos durante os próximos 10 anos – eu não apostaria contra ele. Só um tolo aposta contra qualquer coisa a que Bill Lear dedique sua imaginação. Já houve desses apostadores, e perderam sempre.

segunda-feira, janeiro 29

Moço sobre rodas

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1981
Autor : Fred McGuiness

Numa pequena cidade canadense, na década de 1930, um mensageiro descobriu que sua profissão era uma fantástica escola de vida.

Passados 45 anos, as recordações para mim ainda estão frescas e claras como o ar da pradaria. Durante a recessão e a depressão da década de 1930, eu era entregador do jornal Sun, de Brandon, Manitoba, além de mensageiro uniformizado do serviço telegráfico da Canadian Pacific; era um MOÇO SOBRE RODAS, como dizia o anúncio na vitrina da velha loja. Por um período de cinco anos, minhas inúmeras entregas de embrulhos ou mensagens me proporcionaram um curso intensivo de relações humanas – o mesmo é dizer: trabalhar num emprego que me deu uma visão dos bastidores do comércio de uma pequena cidade e uma inesquecível introdução ao mundo dos adultos.
O percurso para a distribuição do meu jornal cobria o bairro comercial. Se eu me apressasse, podia fazer minhas 80 entregas em meia hora. Não era esse, porém, meu objetivo, porque minhas entregas me levavam a muitos lugares onde não teriam entrada nem amigos nem familiares.
Minha primeira incumbência, por exemplo, era um velho restaurante situado no andar térreo de um decrépito edifício de dois andares, em frente da estrada de ferro. O segundo andar era uma casa de cômodos, que os alugava a homens sós, ao mês, à semana, ao dia ou até, segundo boatos locais, por horas.
Eixo social. A poucos passos dali, minha segunda entrega era no característico edifício onde se situava a A . E. McKenzie Seed Co. Ltd., conhecida em Brandon há muitas gerações como a “maior empresa de sementes do império britânico”. Seu gênio fundador, ainda lá residente, “A . E.”, era um homem de aparência severa, com um nariz de falcão e um pince-nez sem hastes. Vez por outra ele me acenava par que eu entrasse no seu gabinete envidraçado e me perguntava: “Você é o filho de Will, não é mesmo?” Então me dizia que eu me deveria tornar um homem de bem como meu pai. Isso sempre me emocionava e ainda hoje me emociona, quase meio século depois: papai tinha falecido na primavera anterior.
A seguir, vinham um comerciante de ferramentas, uma sala de aposta de corridas de cavalos e um hotel. O comerciante de ferramenta fora amigo de meu pai e nós dois conversávamos, enquanto ele supervisionava alguém que colocava um implemento dentado num arado ou calços nas velhas rodas de aço de um trator. A sala de apostas era uma terrível delícia, porque, como meus deveres me obrigavam a entrar, eu o fazia com o absoluto conhecimento, que me fora transmitido pela minha mãe, de que um dos mais ardentes cantos do inferno estava reservado para os rapazes que costumavam freqüentar esses locais.
Minha entrega mais vultosa era a seguir: cinco exemplares do jornal no balcão de venda de charutos no hotel Prince Edward, o eixo social da cidade.
Relógio antigo. Depois eu corria de volta pela rua 9 para levar um jornal ao gabinete do funcionário municipal, no velho e decrépito edifício do município, e esperava um minuto para que ele pudesse fazer sua habitual leitura, baseado no direito público à informação. Uma vez por mês, o delegado de saúde do distrito procedia a um ajuste de contas com os micróbios nas leitarias locais, e publicava os resultados das inspeções no boletim municipal. Eu sempre verificava os resultados obtidos na leitaria onde minha mãe comprava o leite, e me regozijava quando estes eram baixos, sentindo-me nauseado quando o não eram.
A seguir, na minha rota, ficava a ACM, onde alguns veneráveis cidadãos se tinham instalado quando o edifício fora construído e no qual ainda residiam, passados 30 anos. Um deles, o capitão Jabcz Butler, oficial do exército britânico, na reserva, ofereceu-me seu relógio de bolso pouco tempo antes de morrer – um relógio antigo, a que se dava corda com uma pequena chave. Eu dava corda nele todas as manhãs, antes de começar a escrever, e colocava-o na minha escrivaninha – recordação de um homem solitário que se tornara amigo do seu visitante cotidiano.
Os doces. Deliberadamente, eu apressava o andamento perto do final do meu percurso, porque esse era o único pedaço do caminho que não me divertia. Havia aí um clube masculino, onde, sentados em torno de mesas cobertas de feltro, homens, que fumavam e diziam palavrões, jogavam infindáveis partidas de copas e gin-rummy. Depois vinham diversos apartamentos em segundos andares, sobre as lojas e os galpões de atacadistas: pela minha observação diária, eu sabia que os residentes tinham de se “arrumar”, como dizia minha mãe, com um banheiro por andar e poucas comodidades. Até hoje não consigo apagar a recordação de uma criança que mal andava ainda, que eu encontrava diariamente quando levava o jornal para o apartamento de seus pais. Certo dia morreu escaldada por um balde de água fervente em que tropeçou e que sua mãe esquentara para os banhos. Por várias semanas não apareci por lá; não conseguir enfrentar seus parentes.
Minha última entrega era no mais antigo edifício de apartamentos da cidade, onde uma viúva franzina como um passarinho, mas de coração caloroso, que conhecia minha mãe, sempre me acolheu com amizade, desde o primeiro dia em que trabalhei como mensageiro. Se estivesse fazendo doces, sempre me dava algum.
Recordo o dia em que segurei na porta para que os homens da agência funerária carregassem o seu caixão para o carro fúnebre e, quando cheguei no segundo andar, deparei com um grupo de vizinhos entristecidos que se aglomerava diante da porta aberta do seu apartamento vazio. Chorei amargas lágrimas porque, no meu bolso, estava ainda o festivo cartão de Páscoa que lhe trazia. Dez anos depois, quando cheguei em casa, vindo da batalha do Atlântico, encontrei esse cartão na gaveta de uma escrivaninha.
Depois de ter sido por dois anos distribuidor de jornais, eu estava apto para coisas mais importantes, como por exemplo ser mensageiro dos serviços telegráficos. Nesse tempo, em que não havia ainda chamadas telefônicas para longas distâncias, os telegramas eram o principal elo de ligação da cidade com o mundo exterior. Mesmo numa pequena povoação como Brandon, os telegramas chegavam às dezenas: encomendas de utensílios, anúncios de mortes e de nascimentos, avisos de cobranças de dívidas, resmas de disparates em telegramas de felicitações por ocasião de casamentos e açucarados votos no Dia das Mães, todos eles arrumados num “pacote”, como chamavam a essas mensagens os rapazes que as distribuíam, quando reunidas no bolso da sua farda.
Segredos e sustos. Quando eu saía do escritório e segurava o guidom da minha bicicleta, sentia-me semelhante a um missionário incumbido de uma missão profundamente simbólica. Conhecia a tristeza de alguns dos cidadãos mais idosos, vivendo abaixo dos níveis de subsistência nos apartamentos da parte baixa da cidade, sem água quente; conhecia o orgulho de passar tranqüilo pelo recolhedor de entradas nos cinemas, entrar em exposições ou até mesmo em bailes, porque meu uniforme era a garantia da minha admissão. Houve ocasiões em que homens ficaram pálidos quando eu apareci e mulheres desmaiaram. Se as mensagens eram abertas apressadamente e lidas a correr, eu enfrentava risadas, maldições, lamentos ou gratificações, o que, dependia, obviamente, do seu conteúdo.
Antes de entregar uma mensagem, somente duas pessoas em toda a cidade conheciam o seu teor: o telegrafista e eu. Depois da entrega, os que as recebiam parecia que me tratavam de modo diferente, porque sabiam que eu estava ao corrente dos segredos das suas vidas.
Certa ocasião, uma senhora abriu um telegrama que lhe comunicava a morte de uma pessoa da família e desmaiou nos meus braços – carga algo pesada para mim, frágil rapaz de 14 anos. Deitei-a o mais suavemente que pude no chão pintado de cinzento da entrada da sua casa, e depois corri para a porta próxima, buscando auxilio. Quando voltei com ajuda, ela já havia recobrado os sentidos e estava sentada nos degraus. Pois, em vez de me agradecer minha boa ação, ralhou comigo por ter contado ao seu vizinho, com quem estava brigada, o que se passara.
Também houve certas manhãs em que comecei meu trabalho com o coração pesado, porque no meu bolso havia muitos telegramas de uma agência de cobranças ameaçando mover processos por dívidas. No idealismo dos meus verdes anos, eu não dava importância às necessidades do comércio: achava que o telegrama era uma arma poderosa demais para ser usada contra gente amedrontada. Eu lhes sugeria que exercessem uma opção possível: que lessem o telegrama mas o devolvessem, recusando-se a pagar as suas dívidas – o que, habitualmente, faziam.
Em menos tempo do que o de uma vida humana, e explosão tecnológica trouxe às nossas casas uma imediata comunicação com o resto do mundo através dos satélites, rádio-amadores, telex,, rádio, televisão e o telefone, sendo agora possível comunicar-se a longas distâncias. É estranho pensar que, há apenas 40 anos, grande parte da comunicação de uma cidade era prosaicamente feita por um moço sobre rodas.

sábado, janeiro 27

Na paz da desordem

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1999
Autor : Jim Thorton

Quem tirou o controle remoto do lugar?

É meia-noite quando, depois de uma semana ausente, retorno de uma viagem de trabalho e abro a porta da frente de minha casa. Enquanto giro a maçaneta, rezo para que pelo menos dessa vez minha família tenha se esforçado em arrumar a casa para receber o patriarca exausto e saudoso.
Foi talvez por ter a mente trunca por pensamentos contraditórios que nos últimos anos acabei me tornando intolerante em relação à desordem doméstica. Nesse aspecto recebo pouco apoio. Minha mulher, Debbie, parece comprazer-se com a bagunça. Sua filosofia sobre decoração do lar formou-se durante uma infância em que nenhuma quinquilharia era insignificante demais para ser exibida, nenhum pedaço de papel merecia ser jogado fora. Debbie encara a vida como se a sobrevivência dependesse do maior número possível de objetos reunidos.
Ela perde em média três horas por semana só procurando as chaves do carro. Eu, no entanto, sempre as coloco exatamente no mesmo lugar, e fico uma fera quando não estão onde deveriam. Nessas questões, sou como o peru, que, segundo ouvi dizer, morre de fome se tirarem sua ração do local costumeiro. Mesmo que isso não seja verdade, descreve-me com perfeição.
Enquanto empurro a porta, imagino uma sala totalmente despojada de entulhos, à semelhança de um quarto de convento. Mas uma olhada basta para me mostrar que essa fantasia não vai se tornar realidade.
“Desculpe!”, diz Debbie, recebendo-me com um abraço. “Peguei uma gripe, por isso os meninos e eu deixamos tudo para lá.”
Vivendo a fase da arquitetura infantil, nossos filhos, Bem, 9 anos, e Jack, 5, converteram todo o andar térreo em uma aldeia de fortes interligados. Estenderam colchas, lençóis e sacos de dormir de uma cadeira a outra, firmando suas construções com pilhas de travesseiros, livros, troféus esportivos e um pufe precariamente equilibrado. Espalhadas por essa ‘favela’ vêem-se fichas de jogo, caixas de pizza manchadas de gordura, peças de quebra-cabeça e toda espécie de destroços domésticos.
Uma onda de fúria toma conta de mim. Olho para Debbie como se dissesse: É demais pedir que eu possa voltar a uma casa e não a um barraco? Mas, quando me abaixo para arrancar uma colcha de retalhos do forte, uma voz soa baixinho:
“Papai, venha nos procurar”, diz Jack.
É tão tarde que eu tinha certeza de que os meninos estariam na cama. Olho para Debbie, que sorri e explica:
“Eles estavam agitados demais para dormir!”
Tão rápido como veio, a raiva se vai. Bem devagar, levanto uma ponta da colcha, revelando a entrada do labirinto. Então rastejo para dentro do forte, onde os garotos esperam na escuridão.
“Oi, papai!”, diz Bem.
“Oi, papai!”, ecoa Jack.
E acrescentam, juntos.
“Sentimos sua falta!”
Trocamos abraços e logo Debbie se junta a nós dentro dessa obra da desordem.
Sinto-me calmo, distante do mundo dos compromissos, do stresse e dos prazos finais. Compreendo que, quando Debbie e eu envelhecermos, não serão lembranças de uma casa anti séptica que nos trarão alegria, mas sim recordações de um lar informal, repleto de liberdades e trastes.
Depois que todos vão para a cama, minha paz com a bagunça dura uns 15 minutos. Com o relógio biológico ainda desregulado, procuro o controle remoto da TV. Ai, meu Deus! Ele não está onde sempre o deixo... E a caçada recomeça.

sexta-feira, janeiro 26

Duas mulheres

Fonte : Internet
autor : desconhecido

Depois de 21 anos de casado, descobri uma nova maneira de manter viva a chama do amor. Há pouco tempo decidi sair com outra mulher. Na realidade foi idéia da minha esposa.- Você sabe que a ama - disse-me minha esposa um dia, pegando-me de surpresa.A vida é muito curta, você deve dedicar especial tempo a essa mulher...- Mas, eu te amo - protestei à minha mulher.- Eu sei. Mas, você também a ama. Tenho certeza disto.A outra mulher, a quem minha esposa queria que eu visitasse, era minha mãe, que já era viúva há 19 anos, mas as exigências do meu trabalho e de meus 3 filhos, faziam com que eu a visitasse ocasionalmente. Essa noite, a convidei para jantar e ir ao cinema.- O que é que você tem? Você está bem? - perguntou-me ela, após o convite. (Minha mãe é o tipo de mulher que acredita que uma chamada tarde da noite, ou um convite surpresa é indício de más notícias).- Pensei que seria agradável passar algum tempo com você - respondi a ela. -Só nós dois; o que acha?Ela refletiu por um momento.- Me agradaria muitíssimo - disse ela sorrindo.Depois de alguns dias, estava dirigindo para pegá-la depois do trabalho, estava um tanto nervoso, era o nervosismo que antecede a um primeiro encontro...E que coisa interessante, pude notar que ela também estava muito emocionada. Esperava-me na porta com seu casaco, havia feito um penteado e usava o vestido com que celebrou seu último aniversário de bodas. Seu rosto sorria e irradiava luz como um anjo.- Eu disse a minhas amigas que ia sair com você, e ficaram muito impressionadas. Comentou enquanto subia no carro.Fomos a um restaurante não muito elegante, mas, sim, aconchegante, minha mãe se agarrou ao meu braço como se fosse "a primeira dama". Quando nos sentamos, tive que ler para ela o menu. Seus olhos só enxergavam grandes figuras.Quando estava pela metade das entradas, levantei os olhos; mamãe estava sentada do outro lado da mesa, e me olhava fixamente. Um sorriso nostálgico se delineava nos seus lábios.- Era eu quem lia o menu quando você era pequeno - disse-me.- Então é hora de relaxar e me permitir devolver o favor - respondi.Durante o jantar tivemos uma agradável conversa; nada extraordinário, só colocando em dia a vida um para o outro.Falamos tanto que perdemos o horário do cinema.- Sairei com você outra vez, mas só se me deixar fazer o convite disse minha mãe quando a levei para casa. E eu concordei.- Como foi o seu encontro? - quis saber minha esposa quando cheguei naquela noite.- Muito agradável... Muito mais do que imaginei... Dias mais tarde minha mãe faleceu de um enfarte fulminante, tudo foi tão rápido, não pude fazer nada.Depois de algum tempo recebi um envelope com cópia de um cheque do restaurante de onde havíamos jantado minha mãe e eu, e uma nota que dizia:"O jantar que teríamos paguei antecipado, estava quase certa de que poderia não estar ali, por isso paguei um jantar para você e para sua esposa.Você jamais poderá entender o que aquela noite significou para mim. Te amo".Nesse momento compreendi a importância de dizer a tempo: "TE AMO" e de dar a nossos entes queridos o espaço que merecem. Nada na vida será mais importante que Deus e as pessoas que você ama, dedique tempo a eles, porque eles não podem esperar.

quinta-feira, janeiro 25

Minha Moby Dick

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1985
Autor : William Humphrey

O inverno havia sido longo. Passei grande parte dele lendo o livro de Herman Melville sobre a grande baleia branca chamada Moby Dick e seu perseguidor, o louco capitão Ahab; talvez eu tivesse amado demais esse livro, porque era inacreditável aquilo que estava vendo naquele tranqüilo rio da Nova Inglaterra.

Chamo-me Bill. Há alguns anos (não sei exatamente há quantos) resolvi ir pescar, para me animar um pouco, depois do inverno passado nas montanhas; eu estava bastante deprimido. Sempre que, entre outras coisas, fico rabugento com as crianças, saio para pescar o mais rapidamente possível.
Isso não significa que eu tenha a obsessão das regiões remotas, que sinta atração pelos mares distantes e pelos misteriosos monstros das profundezas. Pescar agulhão-vela no golfo do México ou peixe-espada na Patagônia custa caro e nunca tive muito dinheiro.
Pescar é para mim um ato tão pessoal quanto rezar. Sou exigente em relação a pescarias: tem de ser pouco dispendiosas, não me obrigar a caminhar grandes distâncias, e ser num local pouco freqüentado, um rio de montanha ou um regato no campo. Uma vez que pescando eu procuro algo mais do que fisgar peixe, quero que ele seja astuto, irrequieto, valente quando capturado. Quero um peixe que não seja apenas comestível, mas delicioso e que não precise de ser escamado. “Você não é nada exigente!” dirão os leitores. “O peixe que quer deve ser tão raro como a baleia-branca.” Sou difícil de contentar, mas há, ente todas as espécies de peixes, uma, precisamente uma, que preenche todos os meus requisitos.
Não sou o único que aprecia trutas. Existem muitos pescadores como eu (demasiados, até), e estou certo de que todos pensam como eu.
Isto são só divagações, mas, como disse, passei aquele inverno nas montanhas. Não muito longe da minha casa há um regato, um afluente do rio Housatonic, que tem interesse histórico e literário apenas. Durante todo aquele rigoroso inverno, fui várias vezes à biblioteca em Lenox, onde ia buscar os livros de Nathaniel Hawthorne e de Herman Merville, que me fizeram companhia até a primavera. A família de Hawthorne vivera num pequeno chalé vermelho perto do rio, ao qual deram o nome de riacho das sombras.
Montado na sela do seu cavalo, escrevendo durante o inverno de 1850 o seu Moby Dick, Herman Melville ia lá de visita e contava, segundo as palavras do jovem Julian Hawthorne, “histórias tremendas sobre os mares do Sul e sobre a pesca da baleia.” Parecia-se, quando estava inspirado, com as coisas que descrevia – capitães do mar, selvagens e até mesmo com a terrível Moby Dick.
Um dia em junho, quando eu voltava para casa vindo da biblioteca, tive um pneu furado; uns meninos estavam pescando no riacho, num pequeno lago por trás da ponte. Observei-os da estrada, enquanto mudava o pneu. Estavam apanhando peixinhos, mas nem os devolviam à água. Sempre que um deles pegava um peixe, pisava-o para não se ferir enquanto tirava o anzol; depois jogava-o para o lado. Estavam muito entretidos; nenhum deles se dava ao trabalho de arruma-los num cesto. No entanto, eles deviam era matar os peixes rápido, e não deixar que rabeassem até morrerem.
Desviei os olhos daquela cena, e notei algo que boiava na água rasa perto da margem, a jusante do local onde estavam os meninos; parecia um tronco cortado, ou uma pedra comprida e estreita. A mais ninguém, não ser a um fanático da pescaria como eu, teria ocorrido outra hipótese.
Fui buscar um binóculo no carro. O que vi então foi uma truta de 1m de comprimento. Não cabia no campo de visão das lentes, tinha de ser observada em partes separadas. Suas manchas eram enormes e faziam que parecesse um submarino com o casco camuflado.
O peixe que eu observava devia medir de 90cm a 120cm. Respirei fundo. Eu estava olhando um prodígio da natureza.
Vendo-me de binóculo apontado para eles, os meninos pararam de pescar, abandonaram os peixes e fugiram de bicicleta, como se tivessem sido apanhados pescando ilicitamente.
Desci até a beira da água, caminhando cautelosamente para que o peixe não notasse a minha presença. Alguns dos peixinhos largados na margem ainda davam pequenas sacudidelas; outros estavam mortos e secos. Nenhum deles tinha olhos. Uma barbaridade incrível. Perto, encontrei um emaranhado de linhas e um anzol, cuja isca era um olho de peixe. Além de atroz, parecia não fazer sentido, pescar um peixe e tirar-lhe os olhos para com eles pescar outro peixe, e depois jogar tudo fora? Quando os meninos fugiram, sabiam que estavam cometendo um ato condenável.
A grande truta boiava, quase tocando a margem. Arrastei-me cautelosamente até ela. Não precisava de faze-lo: o olho direito do peixe era cego – opaco, branco, sem pupilas, como a vista de um peixe assado. Isso também me entristeceu; é horrível ver um ser maravilhoso com um defeito físico.
Ocorreu-me então uma explicação para o comportamento dos meninos: eles só estavam pescando para conseguirem os olhos dos peixes que usavam como isca para pescar a truta. Deduzi que pensavam que a truta gostasse de comer olhos de peixes, devido a ter perdido seu próprio olho.
Resolvi pegar aquela truta; os meninos tinham perdido todos os direitos sobre ela devido á sua atitude cruel. E resolvi também passar a pescar só com isca artificial, apesar de ser mais difícil. Só o mais desportivo de todos os métodos era digno daquele peixe único.

Medindo o gigante.

Como não tinha grande esperança de conseguir apanhar a enorme truta, comecei por medi-la. Era possível faze-lo, porque estava sempre boiando no local onde se alimentava, com o lado cego quase tocando a margem. Fui para o lago ao romper do dia, na manhã seguinte à da descoberta; levei comigo uma régua de carpinteiro, desdobrável, e a minha mulher, para ser testemunha. Estendemo-nos na margem e medimos o peixe: tinha pouco mais de 1m de comprimento!
Não tentei medir a sua grossura com a fita métrica, mas comparei-a com a da minha própria coxa. Quando se conhecem o comprimento e a largura de um peixe, é possível calcular o peso aproximado. Calculei que a velha truta zarolha teria cerca de 15kg.
Nunca poderia ter atingido este tamanho prodigioso naquele charco. Devia ter descido, e não há muito tempo, de um lago das proximidades. Também não podia atingir aquele tamanho sendo cega de um olho; a perda desse olho devia ser bastante recente.
Ora, um peixe tão grande não pode ser apanhado. O fato de não ter sido ainda pescado era a prova de que era impossível faze-lo. Era também muito prudente. O tempo máximo de vida de uma truta (que só uma pequena parte delas atinge) é de sete anos e, com essa idade, o seu comprimento é de 55cm. Aquele peixe gigantesco media quase o dobro; teria também o dobro do tempo médio de vida? Por outro lado, um peixe daquele tamanho é demasiado grande para não ser pescado, pois atrai as atenções.
Eu sabia que a pesca da truta com isca artificial é perigosa. Destrói casamentos e carreiras; aqueles que nela se iniciam muito cedo nunca casam nem trabalham: tornam-se celibatários, ficam velhos e sem amigos. O perigo de me deixar absorver por esse tipo de vício me aterrava. Desprezo quem transforma um passatempo numa paixão. Acredito firmemente na moderação.
Eu penso assim, mas na prática sou excessivo em tudo que faço; há muito que suspeitava de que a minha pouca vontade de pescar com isca artificial era uma benção. Agora, a providência colocava no meu caminho um peixe capaz de perturbar um homem equilibrado como eu, e modificava meu método de pescar, pondo ali aqueles meninos, que cometiam um crime contra a natureza que nada podia justificar. Mas eu queria aquele peixe e desejava nunca lhe ter posto os olhos em cima.
Resolvi procurar informações sobre o assunto nos livros; há muitíssimos escritos sobre a pesca desse gênero.
Para resolver o problema básico (qual a isca artificial a utilizar), consultei o Perito Eficiente, que aconselha a aproximação com uma rede, uma garrafa de formaldeído e um microscópio, o mais potente possível. Coloca-se a rede no rio, como uma rede de arrasto esticada, de uma margem à outra; então, a gente se vira no sentido oposto ao da corrente, atira algumas pedras no rio, volta para junto da rede, arranca as pequenas libélulas que aí ficam presas e as identifica com a ajuda do microscópio; depois, com um engenhoso equipamento de iscas artificiais, anzóis de 20 tamanhos diferentes, pedaços de linha de todas as cores, penas de todas as aves e pêlo macio faz umas iscas artificiais parecidas com as libélulas. Muito simples, como se vê.
Acabei resolvendo o problema sozinho. Encontrei a solução brilhante: descobri que deveria aprender com o peixe. Quem podia conhecer melhor os hábitos das trutas senão a maior truta do mundo? Estava ali, numa concavidade do lago, cega de uma vista; sem que ela me visse, podia estudar todos os seus movimentos e hábitos.

Estudando a vítima

Fui para o lago. Quando lá cheguei, encontrei de novo aqueles meninos perversos, fazendo a mesma coisa. Havia me esquecido completamente deles. É evidente que fugiram logo que me viram.
Estudei todas as idas e vindas da truta zarolha, tal como um assassino estuda a rotina da vida de sua vítima. Depois de ter descoberto a que hora saía da toca por baixo da ponte, ia sempre me colocar, deitado de borco, perto do local onde ela ia boiar. Era infalivelmente pontual e não me ligava a menor importância.
Era um ser nervoso, sempre alerta, como se compreendesse que vivia num meio hostil. A sombra de uma nuvem lá em cima era o bastante para que ele corresse para debaixo da ponte, buscando proteção.
Seria de esperar que um monstro daqueles, um verdadeiro fenômeno, fosse desajeitado, com hipertrofia muscular, mole, com pouco fôlego, mas a sua corpulência não impedia que fosse gracioso e forte.
Dominava completamente o seu corpo. Sem mover um único músculo, podia manter-se imóvel como uma pedra; enchendo ou esvaziando de ar as guelras, podia emergir ou mergulhar como um submarino. Observava suas vítimas logo que entrava no lago. Então, vinha ligeiro, com a barbatana dorsal cortando a água como um periscópio, o focinho aerodinâmico fazendo ondular silenciosamente a superfície, e um gafanhoto ou uma lagarta eram engolidos. Missão cumprida, mergulhava silenciosamente.

Contratempos e problemas.

Não me limitei a estudar o animal. Era igualmente importante familiarizar-me com o seu ambiente, aquela pequena área onde ele se ia alimentar e onde poderia ser apanhado de surpresa.
O fato de que o pequeno caudal que a alimentava tinha menos de 1m de largura e águas poucos agitadas permitia que a minha isca artificial flutuasse livremente á superfície, o que poderia levar à conclusão de que a minha tarefa estava facilitada. Mas não era assim. A própria pequenez do leito do riacho exigia um lançamento exato, e a tranqüilidade da superfície implicava em que a minha isca devia cair na água de modo extremamente suave.
Ainda havia outro contratempo: existia (e existe sempre, mesmo no menor curso de água) mais do que uma corrente. Isso acaba sempre causando problemas. A isca artificial deve deslizar na corrente, arrastando insetos e levando-os até junto do peixe, que está escondido. Entretanto, a isca bóia na corrente ou correntes adjacentes. Duas correntes de um rio, embora paralelas, não fluem com a mesma velocidade. Uma delas levará a linha mais rapidamente do que a outra. Passados alguns segundos, a linha curva-se e ondula cada vez mais depressa para a corrente onde está a isca artificial. Isso é totalmente diferente do modo com o um inseto natural flutua; todas as trutas sabem disso. O tempo de que o pescador dispõe para enganar o peixe é o intervalo entre o momento em que a isca cai na água e o começo do seu arrastamento.
Havia ainda outro problema. O campo de visão de uma truta normal é exatamente 97,6 graus. A isca artificial deve cair dentro dessa estreita área; para que o peixe a morda, precisa de vê-la primeiro. Eu só dispunha de metade dessa área para atrair e enganar a velha truta zarolha. Lançar a isca de uma distância de cerca de 12m, naquele pequeno alvo, é como pedir que um oficial de artilharia atinja uma ponte estreita de uma distância de 8km. Resolvi pescar a truta gigante no fim de agosto. A estação da pesca estava chegando ao fim. Era agora ou nunca.
Foi aí que descobri que não estava sozinho com a truta. Eu vinha sendo observado.
“Vai tentar pegar a truta velha?”
Eu estava recuando, de rastos; olhei por cima do ombro e vi um menino louro e sardento, que veio ter comigo; via-se que ele sabia onde a truta estava.
“Não se aproxime tanto”, disse-lhe. “Vai assusta-la.”
“Assusta-la? De que é que ela pode ter medo se é maior que eu? O senhor está perdendo seu tempo, tentando apanhar a velha truta zarolha.”
O menino ficou olhando, enquanto eu preparava a minha vara de pesca. De um bolso, tirei uma das muitas caixas de iscas artificiais e escolhi uma.
“Que é isso?”, perguntou ele.
“Uma isca artificial. Um anzol com penas amarradas para parecer um inseto vivo.”
“O senhor acha que vai apanhar um peixe com essa coisa?” Para ele, eu estava completamente louco.
“Olhe”, acrescentou, “só há um engodo que pode levar aquele peixe a morder. Sabe qual é?”
“Penso que sei a que você se refere”, disse eu.
“É....”
“Deixe para lá! Você faz as coisas á sua maneira, eu à minha.”
Encolhendo os ombros e abanando a cabeça, o menino foi embora.
Entrei na água, logo atrás do peixe. Só me atrevi a aproximar-me até cerca de 11m; atirei a linha para trás e para diante, em falsos lançamentos, para aumentar o seu comprimento. Quando achei que estava no comprimento indicado, deixei-a cair. Tocou a água exatamente no local onde eu desejava e, segundo me pareceu, fê-lo suavemente. Contudo o peixe voltou para a ponte – para gáudio do menino, que me observava da margem. Eu havia ignorado a regra principal da pesca com isca artificial.
Nesse tipo de pesca, como a isca é muito leve, o pescador só lança o peso da linha, senão ela fica demasiado óbvia. O pescador é obrigado a colocar entre o fio da linha e a isca um pequeno peso. É a sedela, um pedaço de nylon acrescentado à linha, ao qual está presa a isca.
O diâmetro da sedela é medido com um micrômetro, em décimos de milímetro. A sua espessura varia entre a de um fio de tapete e a de uma teia de aranha. Na pesca á truta, uma sedela com 3m de comprimento é a menor que geralmente se usa; só ela poderá levar a linha para perto do peixe. Não há comprimento máximo. Varia de peixe para peixe. No fim da estação, com a água límpida movendo-se lentamente, e o peixe estando grande, astuto e cauteloso, a linha deve ser mais comprida, mais fina, suficientemente delgada para enganar o peixe, mas com força suficiente para o trazer para terra.
Atualmente, uma truta com 1kg é uma grande truta. O meu gigante tinha 15 vezes aquele tamanho e era seguramente 15 vezes mais prudente. Assim, paradoxalmente, para aquele peixe enorme, eu era obrigado a usar uma linha muito fina.
Comecei com uma de 0,3mm de diâmetro, podendo suportar 4kg. O peixe nem ligou, e até pareceu ofendido.
As semanas passavam e eu ia aumentando contrafeito o comprimento da sedela, enquanto diminuía a sua robustez; mas aprendi a lançar aquela coisa desajeitada (é complicado), e tive a alegria de notar uma mudança no comportamento do meu adversário.
Consciente de que me restava pouco tempo, e sob a orientação da truta, fui-me aperfeiçoando. Um lançamento descuidado falhando ligeiramente a pontaria ou pousando com o mínimo ruído... e lá se ia o peixe! Como eu me havia enganado ao pensar que apanharia aquela maravilha da natureza! Esse sentimento era certamente compartilhado pelo menino sardento.
Meu estilo ia melhorando regularmente, mas continuava muito distanciado da perícia necessária para atrair um peixe à minha isca. Continuava sempre cedendo na batalha do aumento da sedela, que atingia já 5m, estando fina como teia de aranha. Reparei que a truta começava a mostrar sinais de interesse. Era tão grande que, mesmo de longe, eu podia ver machas ondulantes que provavam que ela estava tensa, preparando-se para se precipitar sobre a presa que se aproximava.
No último instante, porém, ela mudava de idéia e mergulhava, deixando a isca passar. Tão depressa eu a amaldiçoava pela sua invulnerabilidade como me sentia feliz por ter tido o privilégio de conhecer um ser tão notável e raro. Ia me dando uma grande ajuda na técnica de pesca à truta (trutas menores do que ela) e eu deveria ter-me contentado com isso. Mas não. Ela era o peixe que eu queria apanhar, e, esquecendo-me de que lhe devia todos os meus progressos, acreditava cada vez mais em que o conseguiria. Continuei convencido disso até o dia em que findou a estação da pesca.
“Hoje é o último dia”, anunciou o menino sardento, quando nos encontramos perto do lago. “Vejo que continua utilizando a isca artificial. Ela mordeu alguma?”
“Não mordeu coisa nenhuma.”
“Então, por que é que o senhor pensa que vai conseguir agora?”
“Não estou pensando que ela vai morder a isca, estou só querendo que o faça.”
Mas a verdade é que o rapaz destruíra as minhas últimas esperanças. À meia-noite, o Departamento de Pesca e Vida Natural estenderia sua proteção sobre as trutas; ela ficaria ali no pequeno lago. Entrei na água pela última vez, desejando que a truta levasse a melhor.
Como às vezes acontece, depois que desisti passei a lançar o anzol muito melhor. Consegui por quatro vezes jogar a isca por cima do peixe, sem que ele desse por isso. O quinto lançamento deveria cair no mesmo lugar, 1m à frente do peixe, tal como os outros, mas isso não aconteceu. Saltando fora da água, o peixe apanhou a isca no ar, 30cm acima da superfície. Por que reagiu assim com aquela e não com as outras é coisa que nunca saberei. Então ela foi fisgada pelo anzol.
Pulou, caiu e pulou de novo. Parecia mais uma ave que um peixe; como que pairava acima da água. Sua umidade emprestava-lhe uma espécie de iridescência; quando batia o sol, suas manchas brilhavam como jóias. Então ela vergou toda, deu um salto enorme e mergulhou, cortando a água com violência.
Meu anzol levou um puxão fortíssimo, como eu nunca experimentara na vida.
A truta pulou novamente da água mais alto que anteriormente. Havia exuberância nos seus saltos, alegria de lutar, uma total autoconfiança e uma singular grandeza. Acreditei que ela agarrara minha isca atraída pelo perigo. Quase me convenci de que aquele superpeixe, sabendo que era o último dia da época da pesca e que estava no fim da vida, quis mostrar ao mundo que aquilo de que era capaz, apesar da idade e da deficiência visual.
Deu outra corrida e mergulhou novamente; os dois saltos anteriores haviam sido só de treino. Então ela subiu e ficou esplendorosa ao sol, desafiando a lei da gravidade; como se o tempo parasse, ficou suspensa. Depois deixou-se cair a todo o comprimento. A água que espalhou tornou-se um autêntico arco-íris em miniatura. Enquadrada na auréola de suas próprias cores, ela deu uma última sacudidela com a cabeça, partindo a linha com um à vontade insolente, deu um pulo e caiu na água, com uma violência tal que as ondas, apesar da distância, vieram bater nas minhas pernas trementes e enfraquecidas.
“Bolas!”, gritou o menino. “Você a pegou e deixou que fugisse!”
Desgostoso e decepcionado por ter perdido aquele peixe único. Hoje, contudo, pergunto-me se, na realidade, eu preferiria que aquele peixe estivesse pendurado na minha parede, ou recorda-lo exibindo seu poder e grandeza, projetado no seu próprio arco-íris. Muitas vezes, quando estou deprimido, lembro com nitidez os pormenores; fico contente por ter essa imagem dele. Foi o único peixe da minha vida que não ficou maior ao ser lembrado.
As histórias de pesca terminam sempre com o peixe fugindo, mas esta não. Esta, amigo leitor, é uma história na qual foi o pescador quem foi embora, pois a velha truta zarolha me transformou num homem diferente. A partir daquele dia, apanhei e perdi peixes grandes, mas fui sempre capaz de lhes dizer: “Segue o teu caminho. Conheci um melhor que tu; nunca haverá outro como ele. Tu, por maior que sejas, comparado com a minha Moby Dick, não passas de um mero pigmeu.”

quarta-feira, janeiro 24

Salvador dos que sofrem

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1986
Autora : Deborah Cowley

Num país assolado pela seca, um missionário canadense consegue alimentar muita gente, e ainda toma conta de mais de 20 crianças abandonadas.

Num dia de junho de 1981, em Masvingo, uma cidade do Zimbabwe, uma notícia no jornal chamou a atenção do missionário canadense Danny Curle: um hospital local estava à procura de um lar para um recém-nascido que havia sido encontrado numa lixeira. Nem o hospital nem os orfanatos tinham possibilidades de ficar com a criança.
E muito menos Danny Curle, de 44 anos, pai de três filhos e viúvo de Sharon, que morrera há 14 meses num desastre de carro. Ele estava sobrecarregado de trabalho, cuidava da casa com a ajuda de uma governanta e dirigia um programa de auxílio aos famintos, que contava com 15 refeitórios espalhados pelo país assolado pela seca.
“Bebê descartável”. Duas semanas depois, idêntico pedido era publicado no jornal. Seria o mesmo bebê? Curle telefonou para perguntar. Sim, era. O hospital suplicou-lhe que ficasse com a criança – ele era a única pessoa que tinha telefonado. “Imagine!”, comenta ele. “Ninguém queria aquela pobre criaturinha!”
Curle não conseguia esquecer o bebê. Quando falou sobre o assunto com os filhos, cujas idades variavam entre os 6 e os 11 anos, “eles ficaram radiantes com a idéia de terem um novo irmão”. A reação dos garotos convenceu-o de vez.
Quando viu o bebê levou um susto. “Era uma menina! Eu não sabia como cuidar de meninas!” Mas, assim que a pegou no colo, sentiu-se cativado. Danny, David, Steven, Timothy e Jonathan levaram a criança para a sua pequena casa de três quartos e se revezaram para alimenta-la e mudar-lhe as fraldas, além de terem passado muitas noites em claro quando ela choramingava. Eles lhe deram o nome de Faith.
Ela era uma daquelas crianças que Danny chamava de os “bebês descartáveis”, do Zimbabwe, vítimas da onda de infanticídios que, nos últimos tempos, assolava aquela ex-colônia britânica, antes chamada Rodésia. A tragédia aumentara em 1980, quando fora proclamada a independência: a migração da população rural para as cidades quebrara a união característica da vida tribal, na qual todos os bebês, inclusive os filhos de mães solteiras, eram protegidos.
Mas a gravidez indesejada de uma mulher solteira reduz o seu lobola (preço da noiva) e pode acarretar um castigo por parte do pai ou mesmo a morte. Por isso, às vezes a mulher é levada a esconder a gravidez e a abandonar a criança às agruras da natureza e à fome ou a ser, talvez, salva por alguém que a encontre.
Faith tornou-se a primeira das muitas crianças que encontraram proteção junto de Danny Curle e de seus filhos. A sua atual e ampla casa de campo, de 26 cômodos, situada nos arredores de Harate, a capital, está repleta de crianças abandonadas: Danny tem hoje mais de 20 crianças sob o seu teto.
Todas foram vítimas do que veio a ser conhecido por “dumping de recém-nascidos”. Hoje, elas são saudáveis, tem a oportunidade de crescer em condições normais e na companhia de quatro irmãos mais velhos, e de um pai dedicado, a quem um dos amigos chama “um verdadeiro santo.”
Nada na vida de Danny o tinha preparado para vir a ser guardião de um exército de crianças. Filho de pai operário e mãe enfermeira, ele e o irmão cresceram em Windsor, no Ontário. Na adolescência, queria ser missionário.
Freqüentou o Seminário Pentecostal, em Peterborough, no Ontário, e, em 1962, logo após completar 21 anos, foi mandado para a Libéria. Viveu durante dois anos numa missão, bem no coração da selva, e “apaixonou-se pela África”. Depois tirou um curso de teologia em Nashville, no Tennessee, e ficou como pastor adjunto numa igreja pentecostal de Brampton, Ontário. Em 1967 casou-se com Sharon, uma professora de Burlington. Três anos mais tarde, já com dois filhos, foram morar em Fort Victoria ( atualmente Masvingo), cerca de 300km a sul de Harare. Ao longo dos anos, Danny e outros pastores protestantes fundaram 85 igrejas e formaram pastores locais para as dirigirem. Mas à medida que Danny percorria o país, armando e desarmando a sua tenda, realizando cerimônias religiosas, a seca ia-se tornando uma ameaça séria: em 1983, as chuvas rarearam, o nível das colheitas baixou e as reservas de comida começaram a desaparecer. “De repente”, recorda Danny, “começamos a ouvir com freqüência as palavras ‘fome’ e ‘inanição’.”
No fim desse ano, Danny foi de carro até uma paróquia situada na longínqua vila de Chibi, para avaliar a gravidade da seca. Quando se aproximou, viu que as pessoas se aglomeravam sob uma árvore. Era o enterro de Tirus, o filho do pastor, um bebê de quatro meses que morrera de fome nos braços da mãe, na noite anterior. Depois das orações, pediram a Danny que colocasse o corpo na pequena sepultura.
“Foi a coisa mais dolorosa que fiz em toda a minha vida”, diz. Ele só pensava que,se tivesse chegado com comida um dia antes, poderia ter salvo aquela criança.
A partir da morte do pequeno Tirus, Danny Curle passou a encarar o seu sacerdócio de maneira diferente.
“Agora, alimentar os famintos é tão importante quanto pregar o Evangelho.” Sharon e ele venderam alguns dos seus haveres para comprar comida e escreveram para o Canadá pedindo ajuda. Depois de terem passado férias lá, em 1975, voltaram ao Zimbabwe já com o apoio da Associação Evangélica Cristã. Pouco tempo depois, e juntamente com outras paróquias, Danny já tinha criado 15 refeitórios, onde, diariamente se distribuíam milho e refeições à base de cereais a 15 mil pessoas, a um custo de 10 centavos de dólar canadense per capita.
Mas, dois anos depois, a tragédia bateu-lhe à porta. Em abril de 1980, durante uma noite muito escura, Sharon, então com 34 anos, dirigia o carro por uma estrada estreita, a sul de Masvingo, para visitar uma amiga que estava doente. Ao tentar desviar-se de um caminhão que vinha na contramão, perdeu o controle do carro e chocou contra uma árvore. Teve morte instantânea.
Amargurado, Danny tentou consolar os filhos. Mas só a chegada da pequena Faith, meses depois, lhes trouxe de volta a alegria de viver.
O irmão. Um dia, passado pouco tempo da vinda de Faith, alguém bateu à porta. Do lado de fora estava um polícia, segurando nos braços um bebê que havia sido lançado num rio infestado de crocodilos, mas acabara por vir dar a um campo de juncos, onde tinha sido encontrado por um pescador. Danny tinha já ficado com uma criança; aceitaria ficar com outra?
“A minha primeira reação”, recorda Danny, “foi: nem pensar! É melhor não confiar demais na sorte. Mas depois refleti: talvez este seja o menino que faltava; vai ser bom para Faith ter um irmãozinho. Se já tinha de me levantar no meio da noite por causa de um bebê, dois não iam dar muito mais trabalho. Por isso respondi: Está bem!”
Família aumenta. À medida que a história se ia tornando conhecida, aumentava o número de crianças abandonadas que lhe eram entregues. No final de 1981 já tinha sete. Dois dos berços estavam ao lado da sua cama, outros na sala de jantar, na sala de estar e no corredor.
Donativos do reverendo Ron Hembre e da antiga paróquia de Danny em Brampton possibilitaram a conversão da garagem num berçário. Mas todos os meses chegavam mais crianças, e a família de Danny logo se tornou demasiado grande para a casa de Masvingo. Em 1983 mudaram-se para a casa de campo.
Todas as crianças tinham uma história triste. Uma havia sido abandonada num ponto de ônibus, e pregado na sua roupa estava um bilhete que dizia: “Criança à venda.” Outra fora abandonada numa vala: o seu choro foi ouvido por um homem que parara para trocar um pneu furado. Um menino havia sido salvo de ser enterrado vivo sob um monte de pedras. Chipo, agora com seis anos de idade, fora vendida pela mãe por 12 dólares a um homem que a queria para sua mulher. Era comum ele tranca-la em casa, sem água nem comida. Por isso os vizinhos haviam chamado a policia, que arrombou a porta e a entregou a Danny; seu corpo estava coberto de feridas e queimaduras de pontas de cigarros.
Nem todas as crianças a quem Danny deu abrigo estão ainda hoje com ele. Duas foram adotadas por uma família africana, outra vivem com uma família em Bulawayo e uma quarta está numa escola para cegos.
Danny também conseguiu um lar para cinco crianças, já mais velhas, que haviam ficado órfãs durante a guerra da independência. Um ministro de uma igreja batista levaou-as para sua casa, a fim de orienta-las na idade escolar. Danny ajuda a custear as despesas, entregando-lhe todos os meses 30 dólares por criança. Se este projeto piloto der resultado, Danny vai procurar outras famílias africanas para tomarem conta de crianças em idade escolar. “Desse modo, podem crescer no seio de uma família que fala a mesma língua e tem a mesma cultura que elas.”
A casa de campo, pintada de um alegre tom verde maçã, fica no alto de uma colina de onde se podem ver 35 hectares de um terreno levemente acidentado, coberto por arbustos e flores, e um grande gramado onde as crianças brincam. Quando as visitei, os quatros filhos de Curle brincavam com três das crianças mais velhas, rolando no chão, dando cambalhotas, levantando-as no ar e carregando-as nas costas; as sete menores comiam com apetite, sentadas em suas cadeirinhas altas; outras quatro estavam passando férias em casa de famílias africanas.
Quatro mulheres ajudavam a tomar conta das crianças, sob o olhar vigilante de Eileen Charema, de 32 anos, uma tímida e carinhos mãe de dois filhos, que Danny tinha convencido a cuidar da sua prole. Mulher de um dos pastores, Eileen se dedica de corpo e alma a essa atividade. Conhece todos os garotos, um por um, e é com orgulho maternal que acompanha o crescimento deles.
Heila van Tonder, a governanta, é uma simpática senhora que Danny contratou depois da morte da sua mulher; dirige a casa quando Danny não está, às vezes durante dois ou três dias seguidos. Ela também trabalha num programa de alimentação e prega numa das igrejas de Danny. Edith, a mãe de Danny, conhecida por todos como a vovó, foi já seis vezes ao Zimbabwe, e todos os anos passa grande parte do tempo com a sua enorme família – “ajudando no que posso e dando o meu carinho a estas crianças adoráveis”. Os cuidados com a família não diminuíram, em nada, o empenhamento de Danny em alimentar os que tem fome. No segundo trimestre de 1983, soube-se que estavam chegando ao Zimbabwe refugiados moçambicanos em busca de comida. Na fronteira, Danny encontrou 250 mil pessoas esfomeadas; muitas morriam ali mesmo.
De volta a Harare, ajudou a organizar um programa de alimentação, o Solidariedade dos Pastores Protestantes, que conta com o apoio de oito igrejas. Trabalhando em conjunto, os pastores distribuíram comida, cobertores, pratos e xícaras. Alguns dos refugiados voltaram já a suas casas, outros permanecem nos quatro campos construídos pelo governo. “Esse trabalho com os refugiados”, diz Danny, “me fez compreender que o meu sermão mais eloqüente não foi feito no púlpito, mas sim quando eu estava de joelhos, ajudando aquelas pessoas, alimentando-as pessoalmente.”
Com o fim da seca no Zimbabwe, Danny terá mais tempo para a família. Em maio de 1985, sua casa foi oficialmente registrada no conselho Municipal de Harare, com permissão para albergar, nas presentes instalações, até 30 crianças. A fim de fazer face ao aumento dos custos, Danny espera encontrar ajuda financeira para todas as crianças.
Recompensa. Seu sonho é que um dia o governo do Zimbabwe o autorize a colocar os órfãos junto de famílias canadenses. Numa recente viagem de recolha de fundos no Canadá, recebeu 500 pedidos de adoção. Mas as autoridades do Zimbabwe acham que a ida das crianças para outro país lhe seria prejudicial. Para Danny, qualquer família é melhor do que não ter família. “Foi determinação divina que todas as crianças tivessem um pai e uma mãe. Eu faço o melhor que posso, mas é difícil ser ambas as coisas para 23 crianças.”
Na sua modéstia, ele se recusa achar seu trabalho algo especial. “Ele não se vê como um santo”, diz Ron Hembre, “mas como uma pessoa comum, que ao se dar conta de um problema tenta fazer alguma coisa para resolve-lo.”
Danny Curle tem dado muito ao povo do Zimbabwe, mas acha que recebeu muito mais em troca. “Algumas pessoas dizem que terei uma grande recompensa no céu. Mas quando olho para os rostos daqueles a quem estamos dando comida e, quando chego em casa, vejo as minhas crianças saudáveis, limpas e felizes, eu me pergunto que melhor recompensa poderia querer?”

terça-feira, janeiro 23

Super Dicas

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1986
Autora : Moyra Bremner

Gosto de ver as coisas bem feitas, mas sou muito preguiçosa. Fico sempre perguntando às pessoas que encontro a maneira mais rápida de executar as tarefas domésticas, com os melhores resultados e um mínimo de esforço. Minha coleção de sugestões é (não tenho vergonha de dize-lo) dedicada a tornar a vida mais fácil.

Ajudas domésticas
Para improvisar uma escova de roupa, umedeça as mãos e esfregue com força o tecido. A umidade agarra a maior parte da sujeira.
A vovó sabia o que estava fazendo quando colocava vinagre na água da última lavagem da roupa; é que a acidez do vinagre ajuda a remover da roupa o sabão alcalino.
Para tirar o cheio do recipiente de lixo vazio (desde que seja de metal, e não de plástico), enfie dentro dele uns jornais amarrotados e coloque fogo; o calor remove todos os cheiros. Aquele odor desagradável do banheiro desaparecerá se você riscar um fósforo. ( Eu não acreditava, mas dá mesmo resultado.)

Limpeza
A melhor maneira de tirar o pó de bibelôs frágeis é calçar luvas de algodão e, com cuidado, enfiar os dedos pelas reentrâncias.
A parafina é ótima para limpar banheiras, lavatórios e torneiras; retira a espuma de sabão e o calcário e dá um brilho muito bonito. Depois de a aplicar, lave muito bem, para evitar que fique o cheiro. Em áreas onde a água seja muito calcária, as manchas dos pingos das torneiras e os riscos amarelados nas banheiras que marcam o nível da água podem ser tirados com uma mistura de sal e vinagre, em partes iguais. Passe essa mistura nas manchas, e deixe ficar durante alguns minutos, antes de lavar muito bem.
Um pouco de amônia diluída em água é bom para limpara metais cromados, tanto em casa como no carro. Depois, lave e seque bem o metal, para dar polimento. O verdete, que por vezes se forma em objetos de latão e cobre, sai imediatamente com uma mistura de sal e amônia. Lave bem e enxugue.
Jarras de vidro para flores ficam brilhando em poucos minutos, se você as encher com água, à qual houver acrescentado um pouco de branqueador.
Tenha sempre em casa um pouco de cinza de cigarro ou de charuto, misturada em partes iguais com óleo vegetal; serve para tirar marcas de copos em superfícies de madeira envernizada; se a madeira for clara e encerada, as manchas saem bem com óleo de castanha do Pará. (Para separar das cascas os miolos das castanhas do Pará, inteiros, coloque-as no congelador durante algumas horas.)

Na cozinha
Os tomates congelam bem com casca e tudo; basta coloca-los debaixo da torneira de água quente, ainda congelados, e a pele sai facilmente.
Algumas espécies de batatas costumam ficar escuras depois de cortadas; isso pode ser evitado juntando-se à água um pouco de vinagre ou de suco de limão. Limão espremido na água embranquece o arroz; se juntar uma colher de azeite, os grãos ficam mais soltos. Para o arroz não ficar empapado, o melhor é, depois da cozedura, cobrir a panela com um pano, para absorver o calor.
O curry e outros temperos, como o açafrão da índia, o cominho e os coentros, dão outro sabor à comida se forem fritos antes de utilizados.
Se não tiver muitos ovos em casa e quiser fazer um bolo, pode substituir um dos ovos por uma colher de vinagre, desde que o bolo tenha fermento.
A melhor maneira de conservar um bolo fofinho por muito tempo é guarda-lo numa caixa bem fechada, que tenha dentro uma fatia de pão; as fatias precisam ser substituídas à medida que forem endurecendo. Em vez de fatias de pão, certas pessoas usam pedaços de maçã.
Os morangos ficam com mais sabor se conservados dentro de folhas de couve; coloque as folhas de couve por baixo e por cima dos morangos, e depois deixe tudo várias horas embrulhado em plástico. Os morangos são mais saborosos com creme de leite acidificado do que com creme adocicado. Espalhar pimenta preta moída sobre os morangos cortados dá-lhes um sabor muito especial.

Animais e seus parasitos
Se quiser um periquito australiano palrador, escolha um que não tenha um anel branco em volta do olho, ou riscas pretas na garganta; isso quer dizer que ainda não tem três meses.
Se comprar um cão, lembre-se de que um cachorrinho, normalmente, se afeiçoa com mais facilidade. Entre os cães de caça ou de guarda, os machos costumam afeiçoar-se mais a uma só pessoa, enquanto as cadelas confraternizam com todos os membros da família. Se um cachorrinho tem a mania de afiar os dentes nos pés dos móveis, esfregue a madeira com óleo de eucalipto ou alho; o nariz sensível do animal não gostará desse cheiro.
Uma mulher que criava cães de raça ensinou-me como deixar lustroso o pêlo de um animal. Depois da limpeza habitual, passe com força um pedaço de seda pelo dorso, ao correr do pêlo.
Consta que os Cruzados teriam notado que as roupas dos árabes não eram atacadas pelas traças, pois suas arcas de guardar a roupa eram de madeira de cedro. Os fundos das gavetas das cômodas também eram de cedro, e, ainda hoje, as traças não querem nada com móveis desse tipo. Se souber de uma carpintaria onde haja serradura de madeira de cedro, peça uma pequena porção e pendure-a dentro de saquinhos, no guarda-roupa. Não será muito estético, mas o melhor recipiente ainda é uma meia de nylon.

Trabalhos em casa
Antes de iniciar um trabalho de pintura, proteja dos pingos de tina os seus óculos, colocando sobre as lentes uma película de plástico aderente. Os pingos de tinta nas vidraças das janelas podem ser evitados colando-se pedaços de jornais molhados nas vidraças, antes de pintar.
Se uma serra não corta bem, passe nos dentes da lâmina um pouco de cera de polir móveis. Antes de serrar uma peça de madeira envernizada em ambos os lados, trace a linha de corte na parte inferior da peça e vinque-as bem com uma lâmina afiada, assim, os dentes da serra não farão estalar o verniz.
Pregos e parafusos entram mais facilmente se as pontas forem untadas com cera de móveis, vaselina ou mesmo manteiga. Um parafuso frouxo pode ficar mais apertado se o retirarmos e introduzirmos no furo um taco de madeira com cola, tornando a roscar o parafuso.

No jardim
Fazer germinar sementes de salsa tem os seus segredos; eu coloco as minhas uma noite inteira numa garrafa térmica com água muito quente. Outro processo é derramar água fervente nos sulcos, depois de plantadas as sementes; isso tem a vantagem de matar as ervas daninhas que estão começando a nascer.
Para levar uma muda, em segurança, de um jardim para outro, coloque-a num saco de plástico, sopre um pouco de ar, torça a boca do saco e feche-o rodeada de ar ligeiramente úmido, a muda não seca, e o ar protege-a de choques.
Cortados em anéis, os cilindros de papelão dos rolos de papel higiênico ou das toalhas de papel da cozinha dão ótimos “vasos” para colocar mudas. Ponha-os numa bandeja, encha-os de terra e plante as sementes. Quando chegar a época de transplanta-las, enfie por baixo uma velha espátula de cozinha e coloque a muda, com vasinho e tudo, no buraco que fez na terra. O papelão enterrado vai apodrecer.
Plante os bulbos de plantas de jardim, de qualquer espécie, a uma profundidade três vezes superior ao seu tamanho. Assim, ano após ano, eles irão recebendo a umidade de que necessitam.
Para manipular produtos químicos tóxicos de jardinagem, improvise um funil, cortando o fundo de uma garrafa de plástico e virando-a de boca para baixo. Depois, por questão de segurança, jogue-a no lixo.
Para lubrificar o cortador de grama sem aproximar os dedos das lâminas, aplique o óleo com um esfregão de pratos, já velho; desliza entre as lâminas mais facilmente que um pano.
Algumas das melhores sugestões são as mais simples. Disse-me, certa vez, um velho jardineiro: “Deixe sempre o carrinho de mão vazio virado na direção para onde você quer ir.” Com isso, pode evitar um mau jeito nas costas, ao fazer uma curva com um carrinho de mão carregado.

segunda-feira, janeiro 22

Meu escirtório, meu mundo

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1985
Autor : Alain Rémond

Uma história de mistério e romance, cujo herói poderia ser classificado de Homo Burocraticus.

Era um salão enorme, parecido com uma sala de aulas, só que mais assustador. Oitenta pessoas trabalhavam ali num silêncio opressivo. Eu era arquivista, e arquivava. Ao chegar pela manhã, às 8:00, encontrava sempre uma caixa grande de fichas à minha espera. Tudo aquilo tinha de estar arquivado até as 17:00.
Às vezes havia um erro numa ficha; aí eu tinha o privilégio de pegar numa caneta e fazer uma correção no lugar adequado. Uma COR., como a chamávamos. Daí a ficha com sua COR. Partia para longe, em direção ao misterioso e onipotente Computador.
A ficha corrigida reaparecia no dia seguinte. Era uma ocasião altamente excitante, porque eu tinha então de revisar a correção, fazer uma VER. Da COR. De repente tínhamos a sensação de que realmente existíamos! Por causa da nossa VER. e da COR., o pior havia sido evitado, sabe Deus como. Foi assim que comecei a conhecer, há 15 anos, o Mundo do Escritório.
Antigamente havia fazendeiros, operários, comerciantes – e funcionários, que constituíam uma minoria e eram desprezados. Hoje existem, só na França, mais de 2.000 profissões desempenhadas dentro de escritórios. E que escritórios! No princípio do século, eram uma espécie de armários entupidos de mobília pesadona, células onde se escondiam hipocondríacos de cara de fuinha. Tudo mudou na década de 50. As indústrias de serviços entraram de repente e em força, e trabalhar numa delas passou a ser considerado prestigiante.
Em 1958, na Alemanha Ocidental, os irmãos Schenelle inventaram o “escritório paisagístico”. O espaço de trabalho foi aberto, dividido em alvéolos e módulos, com vasos de plantas e mobiliário moderno. Essa tendência aumentou com o desenvolvimento da construção de arranha-céus nas décadas de 60 e 70. Cada andar tornou-se uma espécie de planície lisa, que se deveria tornar o mais agradável possível. As palavras de ordem passaram a ser, além de modernidade, sociabilidade e qualidade de vida. Até mesmo ecologia – por estranho que possa parecer num 35º andar.
Estudar Homo burocraticus é uma questão de etnologia básica. Um escritório é uma micro sociedade governada por códigos que dão origem a incontáveis fofocas, neuroses, paixões. Grande parte depende daquilo que os sociólogos chamam de capacidade de construir o ninho, de criar um espaço vital personalizado e deixar nele marca pessoal. Pode ser com um buquê de flores, um pôster ou alguns carões postais da Bretanha ou do Taiti; mas também é muito importante o clima, a atmosfera criada pelos ocupantes, com seus rituais de grupo.
“Num escritório de designers que conheço”, conta a socióloga Anne Dellé, “14 pessoas ocupam um espaço de 150m². Num canto colocaram uma velha geladeira e um bar num armário. Por qualquer pretexto, eles estendem uma toalha de mesa, arranjam umas garrafas, uns copos e dão uma festa.”
Esse Mundo é sustentado por dois pilares: o boato e a fofoca. A menor ação ou reação é causa de interpretações, comentários, deduções. Nada é inocente. Os locais de encontro prediletos são em volta da máquina de café, nos banheiros e, sobretudo, na cantina. Nesses lugares as manobras são planejadas, os complôs, combinados: Quem vai almoçar com quem? Por que?
Praticamente tudo gira em torno da idéia de poder. Se alguém tem nem que seja um bocadinho de poder, deve fazer o máximo de esforço para não perde-lo. É devido a isso que os escritórios são bastiões do conservantismo. A menor tentativa de modificar as coisas pode conduzir ao desastre.
Na maioria deles – escritórios das grandes empresas, repartições públicas, bancos, Segurança Social – o problema pior é que as pessoas na realidade não tem a menor idéia do que estão fazendo ali. Não produzem nada. Copiam, arquivam, verificam, cobram. A máquina anda automaticamente. A própria noção da responsabilidade está completamente dispersa, pelo menos ao nível dos subchefes – pois existem os grandes chefes, gente que sabe das coisas, que fica acima dos tumultos e que pode solucionar os problemas.
O chefão também tem seu escritório, reconhecível por um certo número de sinais: é grande, das paredes pendem pinturas ou gravuras (nunca cartões postais) e a escrivaninha vive vazia, limpa, impecável. O chefão também precisa criar o seu ninho, deixar sua marca pessoal.
Alguns, inteiramente identificados com suas firmas, exibem em seu espaço as últimas maquetes. Outros enchem as prateleiras apenas com exemplares dos poucos livros que escreveram.
Existe a síndrome da porta acolchoada. Você sabe quando se encontra no andar dos executivos; as portas são recobertas de acolchoado “presidencial”, “vice-presidencial” ou “diretorial”. Rebentam crises quando os executivos são despedidos ou transferidos; isso significa que vão perder sua porta acolchoada. Fazem a mudança durante o fim de semana, quando não há ninguém por perto.
As secretárias dos patrões, circuitos inevitáveis para o centro do poder, estão por dentro de todos os segredos. São elas que organizam os complexos relacionamentos do patrão com sua mulher e a amante – porque o patrão, naturalmente, tem de confiar na sua secretária para que ela o ajude a desenvencilhar-se das confusões em que ele se mete.
Na verdade, é uma perfeita loucura a maneira como a vida pessoal de todo mundo fica misturada com a vida no escritório. As pessoas falam da família, das crianças, dos cachorros, das doenças, da decoração de suas casas e da maneira como levam a vida. Um escritório é um segundo lar.
Mexer em papeis leva no máximo cinco horas por dia. As pessoas se aborrecem o resto do tempo, e então ficam fofocando, bebendo café, passeando de um lado para o outro. Mesmo assim vão ficando, súditos leais do Mundo do Escritório. E por que? Para evitar o risco, o desconhecido, as iniciativas. No escritório, elas sentem-se protegidas e mimadas.
Parece que em breve as coisas vão mudar. Com os computadores e as tecnologias de vídeo, chegou a era daquilo que Alvin Toffler chama de “a cabana eletrônica”. Hoje em dia as telas e as consoles, os gadgets e as novas técnicas tornaram possível arquivar, verificar e cobrar sem sair de casa. Não vamos mais poder dizer: “Vou ao escritório.” Já estaremos morando nele.
Podem imaginar um pesadelo maior?

sábado, janeiro 20

Champanha: Um estado de espírito, um mito, um milagre

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Gordon Gaskill ( condensado de Signature )

Uma rolha espoca...e jorram as bolhas mais glamorosas, estrelinhas líquidas que transformam uma simples bebida em um “vinho de Deus”, “riso de mulher”, o próprio “barômetro da felicidade!”

De repente, havia tanta uva de champanha que não sabiam o que fazer com elas. Os apanhadores não tinham mais cestos. As prensas não davam conta. Para guardar a fantástica torrente de suco, os produtores de vinho apelaram para barcaças tanques, caixas de água abandonadas, até piscinas.
Foi essa cena fantástica que presenciei na região de Champanha da França durante a colheita de uvas em 1970 – o grande, incrível, fabuloso ano que bateu todos os recordes na longa história do vinho mais glamoroso do mundo. “Nunca desde Noé”, exultou um jovem francês, “houve dilúvio igual!”
Ao todo, a colheita fantástica produziu cerca de 35,5 milhões de galões de champanha – o suficiente para encher 64 piscinas olímpicas ou 170 milhões de garrafas, e para extrair dos bolsos em todo o mundo pelo menos um bilhão de dólares. Nada mau para um negócio que vive de bolhas.
Mas que bolhas! Elas transformaram o champanha de uma simples bebida em um estado de espírito, um mito, um milagre. Conferem o dom da alegria – “como o riso de uma mulher bonita”, dizem os franceses – e tornam o champanha a coisa mais apropriada para comemorar um casamento ou uma promoção, para batizar um navio ou um filho.
É totalmente francês esse líquido suave e borburante. Talleyrand chamou-o de “civilizante”. Voltaire disse que “reflete a alma brilhante da França.” O Conde Robert Jean de Vogue, o maior produtor de champanha da França, classificou-o como “o barômetro da felicidade do mundo”.
No fabuloso ano de 1970, aquele barômetro apontava realmente para bem alto. Foram vendidas mais de 100 milhões de garrafas – o dobro da cifra de há 10 anos atrás sendo que só os franceses compraram acima de 71 milhões. A Inglaterra, como sempre, foi a principal importadora, com a Itália e os Estados Unidos disputando o 2º lugar.
O que é estranho é que o grande surto nas bolhas desperta sentimentos contraditórios entre os fabricantes de champanha. “Há hoje algumas firmas que querem torna-lo um artigo de produção em massa”, explicou um especialista. “Outros querem conserva-lo como o Rolls Royce dos vinhos.” Ele franziu a testa, meio admirado e meio irritado. “Se a procura continuar a crescer, não poderemos produzir o suficiente para satisfaze-la.”
O champanha é um vinho estranho, especial, diferente de todos os outros. A maior parte dos vinhos só fermenta uma vez, o champanha tem de fermentar duas. A maior parte dos bons vinhos procede de um único vinhedo e do mesmo ano, enquanto a garrafa média de champanha pode conter uma mistura de vinhos até de 40 vinhedos...e de vários anos. A cor do champanha é um dourado muito claro, mas ele é feito principalmente de uvas pretas. “Sim”, sorriu o especialista. “O suco das uvas de todas as cores é branco; só fica vermelho se se deixar misturar com as cascas escuras por algum tempo. Para o champanha, fazemos o suco correr tão depressa que não fica manchado.”
As uvas que produzem o champanha vem de uma pequena região da antiga província de Champagne, a uns 150 quilômetros ao nordeste de Paris. Ali o tranqüilo Rio Marne serpenteia por vales suaves e a terra é ondulada, verdejante e branda. A fim de conservar as qualidades que tornam esse vinho tão especial, a lei francesa determina cuidadosamente onde as uvas de champanha podem e onde não podem ser cultivadas. A lei é tão severa que a gente pode literalmente ficar com o pé direito num vinhedo, cujas uvas podem fazer champanha, e o pé esquerdo num vinhedo onde não podem. Hoje, só perto de 20.000 hectares gozam desse privilégio, e essa terra favorecida é fantasticamente valiosa ( um hectare de excelente qualidade pode valer até 125.000 dólares).
Comecei a explorar os mistérios do champanha durante a vendange, ou vindima, e não tardei a descobrir que a mão de ferro da lei francesa vai além do uso da terra, até especificar exatamente quais uvas podem ser cultivadas – principalmente duas variedades pretas e uma branca – e exatamente como devem ser podadas as vinhas, para que dêem menos uvas, porém melhores. Logo depois de espremidas as uvas, começa a primeira fermentação. A maior parte das grandes firmas faz isso em grandes tonéis forrados de vidro, esmalte ou aço inoxidável, mas algumas casas menores ainda trabalham à moda antiga, usando tonéis de carvalho. Pode-se realmente ouvir o vinho novo “fervendo” dentro dos tonéis.
Passadas três semanas, o vinho toldado tem de ser clarificado, passando-se por ele uma substância que recolha os minúsculos fragmentos de detritos. Clara de ovo ou gelatina podem ser usados; mas a melhor e mais cara de todas é uma cola de peixe feita de certos esturjões russos. Curiosamente, nenhuma dessas substâncias dá qualquer gosto ao vinho.
Até então o produto de cada vinhedo foi conservado em separado. Agora vem o grande momento: resolver quais os vinhos a serem misturados e como. Cada casa guarda zelosamente a sua fórmula. Algumas usam provadores e misturadores profissionais, mas o chefe de uma grande casa me disse: “Nós empregamos cinco membros de nossa família, os que tem um paladar especialmente bom.” A portas fechadas, eles provam, saboreiam, discutem... e por fim decidem. Geralmente escolhem vinhos de 15 a 30 vinhedos e depois acrescentam vinhos guardados de anos anteriores. Se resolvem usar apenas o vinho daquele ano, o produto torna-se champanha de safra e custa bem mais.
O próximo passo só ocorre ao champanha – a segunda fermentação. Ao vinho já misturado, mas não efervescente, acrescentam-se fermentos e um pouquinho de açúcar (principalmente para criar o gás carbônico – as futuras bolhas) e a mistura é despejada em garrafas individuais que se tornam, na verdade, uma caldeira em miniatura. Agora as garrafas vão para as caves, grandes adegas em túneis (cerca de 200 quilômetros ao todo) cavadas no solo macio de greda. Segundo a lei francesa, tem de ficar debaixo do solo pelo menos um ano; o champanha bom é armazenado durante uns três anos e o champanha de safra durante cinco anos ou mais.
Um dia um jovem negociante de vinhos levou-me para visitar as caves da companhia dele. Dos lados dos túneis principais, nichos profundos, como salas, estavam apinhados com milhões de garrafas arrumadas em desenhos geométricos. O ar, agradavelmente fresco, estava pungente com as exalações do vinho. “Muitas garrafas explodem”, contou-me ele. “As pressões dentro delas alcançam mais de seis quilos por centímetro quadrado.”
‘Os trabalhadores usavam máscaras de ferro para proteger o rosto dos estilhaços de vidro. Mesmo hoje, com um controle severo, nossa firma perde cerca de 100.000 garrafas por ano nas explosões.”
Um pouco mais adiante chegamos aos astros – os artistas, chamados remueurs, que executam o complicado e dispendioso trabalho de clarificar as garrafas dos detritos da segunda fermentação. Cada garrafa é colocada num buraco numa estante de madeira e depois – todos os dias, durante cerca de três meses – ela é ligeiramente virada, agitada e inclinada sempre mais para cima até que por fim fica de fundo para cima tendo todos os detritos se juntado em torno da rolha. Aí vem uma etapa delicada: retirar a rolha velha e os detritos acumulados perto dela sem perder demais do gás borburante e do vinho. Isso é conseguido congelando-se rapidamente um pouquinho do vinho perto da rolha, para que esta e os detritos possam ser retirados facilmente.
Mesmo assim, uma parte do vinho, (em média uma colher de sopa por garrafa) sempre se perde e tem de ser substituída pelo que se chama de liqueur d’expédition. Ainda aqui, cada casa faz segredo absoluto daquilo que põe em sua colherada geralmente, uma mistura de vinhos novos e velhos, às vezes com um toque de conhaque, mais o açúcar. Exatamente quanto açúcar deve ser usado depende em grande parte de onde a garrafa irá ser vendida. Os gostos nacionais variam muito, desde o brut, o mais seco de todos, até o doux, “excepcionalmente doce”.
Nos mercados de hoje encontra-se o número quase inacreditável de 4.000 marcas francesas – ou pelo menos rótulos – de champanha. Mas dois terços de todo o champanha francês é feito por uma dúzia de grandes casas. A maioria são muito velhas, datando do século XVIII e muitas são dirigidas pelos descendentes, por sangue ou casamento, dos fundadores originais. A maior de todas é Moet & Chandon, que vende cerca de 17 milhões de garrafas por ano – comparadas com apenas cinco milhões de sua concorrente mais próxima.
Aprendi muita coisa com os especialistas sobre a maneira de servir champanha – muitas vezes contrariando frontalmente tudo o que é considerado correto em outros lugares. As taças, por exemplo: francês nenhum sonharia em usar aquelas altas, de haste fina, com o bojo largo e raso. Elas só contém uma pocinha de champanha, e deixam as bolhas e o buquê escaparem duas vezes mais depressa do que deveriam. Os conhecedores franceses usam um cálice muito menor, em forma de tulipa ou de cone. Outro conselho: não sirva o champanha gelado demais; o frio demasiado mata o sabor (o certo é entre 6 a 8ºC). Não sirva um champanha muito seco, um brut com doces; eles dão ao vinho um gosto ácido. E não deixe a rolha espocar como um tiro de espingarda: faz com que os gases, portanto as bolhas, escapem depressa demais. É melhor fazer deslizar a rolha suavemente. “Mas ninguém segue esse conselho”, sorriu um especialista, “porque todo mundo gosta daquele estouro.”
Acima de tudo, jamais cometa o engano de pedir a um especialista da região do champanha a opinião dele sobre champanhas feitos fora da França. Eu pedi, e a resposta que me deram foi tão gelada quanto uma garrafa pronta para servir: “Monsieur”, disse ele, “não existe champanha feito fora da França.”
E, posto de lado o chauvinismo, os conhecedores de todo o mundo concordam em que o champanha francês é realmente o melhor. Bismark, que derrotou os franceses nos campos de batalha em 1870, ao ser recebido pelo kaiser foi-lhe oferecida uma taça de vinhos espumante. Ele provou, viu que era uma marca alemã e recusou-se firmemente a beber mais. “O patriotismo”, disse ele ao Kaiser secamente, “pára no estômago.”

sexta-feira, janeiro 19

Sua Alteza, a nossa coelhinha

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1973
Autor : R. M. Lockley

Uma bolinha de pêlo castanho acinzentado acaba rainha indiscutível de um lar e de corações

Mr. X. era um gato malhado, com uma mancha no pescoço que lembrava uma gravata borboleta branca. Senhorial e preguiçoso, era um neutro muito comodista, que tinha o seu cesto particular diante da lareira e uma portinhola só para ele dando para a varanda dos fundos da nossa casa de campo. De vez em quando ele trazia para dentro um ratinho do mato, como para justificar a sua tigela de leite.
Numa manhã de janeiro, meu filho Martin entrou correndo no escritório, gritando que Mr. X. tinha apanhado um coelhinho e estava a pique de mata-lo.
A vítima era uma bolinha de pêlo castanho acinzentado, aterrorizada demais para fazer outras coisas além de ficar toda encolhida enquanto o gato a esbofeteava com a pata. Sua orelha esquerda sangrava de dois buraquinhos abertos pelas presas aguçadas de Mr. X.
“Vamos salva-lo, papai!” Martin chorava de desespero enquanto batia o pé com força, a fim de afastar o gato o bastante para eu poder pegar o coelhinho, que caiu esparramado nos meus braços, aparentemente morto de susto.
A Coelha, como foi batizada, sobreviveu apenas graças à determinação de Martin de que ela não deveria morrer. Mal respirava, mas Martin acariciou-a durante mais de uma hora. Quando finalmente saiu do estado de coma, continuou com os olhinhos fechados, recusando qualquer alimento. À noite, Martin e eu a forçamos a engolir leite com glicose e conhaque, por meio do tubo de borracha da minha caneta-tinteiro. Martin passou a noite acordado, observando a respiração irregular da bichinha, embrulhada num cobertorzinho de boneca, na cesta de Mr. X. Claro que o gato ficou furioso com a humilhação, mas Martin, com muito bom senso, obrigou-o a ficar na sala, disposto a ensinar-lhe a nunca mais magoar a Coelha.
Pela manhã, Martin bocejou alto e satisfeito. “A Coelha vai viver. Ela chegou a lamber os bigodes depois do último leite com conhaque.” Mais tarde, arranjei no jardim um punhado de dentes de leão e folhas de trevo. Justamente quando Martin comentava com tristeza que “a Coelha é muito novinha para alimentos sólidos”, ela deu um passo à frente e, lenta e pensativamente, mastigou uma folhinha. Depois de comer o maço todo, ela de repente pulou para fora da cesta, deu um salto no ar, uma piruetazinha, e voltou para a cesta, onde ficou encolhida... aparentemente com uma boa indigestão.
No nosso terreno, eu construíra alguns grandes cercados de tela, nos quais estudava, em ambiente quase natural, a estrutura social da comunidade dos coelhos selvagens. Martin, porém, recusava-se a deixar-me resolver o problema de tomar conta da Coelha, enquanto ele estava na escola, colocando-a na segurança dos meus cercados de observação. Com toda a razão, argumentava que os coelhos grandes iriam incomoda-la, mas a verdadeira razão é que ele queria conserva-la em casa como o seu animalzinho de estimação.
Foi assim que a Coelha se tornou membro efetivo da nossa estrutura doméstica, e, para espanto meu – de vez que é sabidamente difícil domesticar e treinar coelhos selvagens – exibia uma extraordinária inteligência e confiança desde o começo. É claro que havia uma predisposição nossa, mas suas reações rápidas e seu comportamento carinhos conquistaram nosso amor e estima.
A Coelha tornou-se brincalhona demais. Depois do chá, que ela tomava fraco, com açúcar, inventava sempre uma brincadeira. Uma das favoritas era brincar de pegar, que logo evoluiu para esconde-esconde. Ela desaparecia sob um móvel, mas se a gente tardava muito em descobrir, batia com a patinha revelando o esconderijo, e logo apareciam os bigodes triunfantes de trás de uma perna de sofá ou de poltrona.
Ela desfrutava de liberdade na casa toda, e freqüentemente disparava escada acima, sempre espiando dos cantos a fim de verificar se estava sendo seguida. Não fazia absolutamente nada dentro de casa, tendo rapidamente aprendido a sair para o jardim através da portinha do gato – outra humilhação para ele.
Seu sistema de comunicação conosco gradualmente desenvolveu-se numa série de sinais claramente reconhecíveis. Um “uh-huh” gutural era uma afirmativa feliz; uma batida de pata era uma negativa polida; duas ou mais batidas, um “não” definitivo, ou sinal de raiva ou medo; se girava a cabeça de lado, olhando para cima com um olho só, estava chamando a atenção; um assobio sibilante era a sua imitação dos meus freqüentes “por favor!” Este som de apelo precedia sempre suas tentativas de fazer-me brincar com ela.
Suas relações com o gato permaneceram tensas. Avisado por nós para jamais magoa-la, Mr. X saía da cesta quando ela se aproximava, o rabo chicoteando de raiva, ainda mais furioso com as tentativas da Coelha de brincar com aquele nobre apêndice. De repente, uma noite, ficamos espantados de ver Coelha e gatos juntos, deitados lado a lado no tapete. Mr. X ronronava carinhosamente, lambendo e cheirando a Coelha. Lembrei-me então de ter visto a Coelha, naquela tarde, cavando um buraco debaixo da moita de erva dos gatos. Ela ainda tinha o cheiro da planta – irresistível para quase qualquer gato. Depois disso, tornaram-se amigos, embora a Coelha dominasse a cesta.
Brincar no jardim era a alegria da Coelha, mas gastei boas horas ensinando-lhe a não comer nem amassar os canteiros de flor e a horta. Usando a sua própria linguagem de bater os pés e os “nãos” sonoros, consegui se obedecido pelo medo; mas era indispensável fazer “uh-huh” e elogia-la quando se comportava bem.
Quando não havia ninguém disponível para diverti-la, eu a confinava num cercado móvel de arame, onde ela podia exercitar-se e comer. Isso funcionou durante alguns dias; mas, certa tarde, teve de ser metida ali à força, dando no chão patadas cheias de ressentimento.
Seu ódio súbito ao cercado, descobrimos, era puro terror: naquele dia, sem que soubéssemos a doninha que vinha tentando entrar no cercado conseguira o seu intento. Paralisada de medo, a Coelha encolhera-se imóvel, conseguindo finalmente emitir um “grito” longo e apavorado. Eu estava perto, felizmente, e pude salva-la antes de a doninha se lançar sobre ela.
Horas depois, quando se recuperou do susto que a deixou de olhos vidrados, prometi à Coelha que jamais a trancaria: “Se alguma vez uma doninha correr atrás de você, corra direto para a portinhola do gato e esconda-se no escritório. A porta está sempre aberta.”
Ela compreendeu tudo perfeitamente, e passou a seguir-me por toda a parte. Nos dias de chuva, quando não tinha nada que fazer lá fora, ela deixava-se ficar ao pé da minha mesa, enquanto eu tentava tocar o trabalho.
Às vezes, depois de ficar me chamando a atenção puxando os laços dos meus sapatos, ela ignorava as minhas batidas de pé e os sonoros pedidos para que sumisse dali, e de repente pulava para o meu colo e daí para a mesa. Acabava sentada no livro que eu estivesse lendo ou na carta que estivesse escrevendo. Depois disso, que me restava além de toma-la na mão e beijar solenemente a sua macia carinha bigoduda, admirar os seus olhos lindos e corajosos e dizer-lhe que ela era de uma chatice intolerável?
Os coelhos possuem sob o queixo uma glândula que segrega gotas de um perfume com o qual assinalam seus territórios e possessões. Quando eu a acariciava, a Coelha passava o queixo em mim, marcando-me com o seu perfume; e, com esse beijo de coelho, ela afirmava e reafirmava que eu era sua propriedade particular.
Sua sociabilidade era tal que, nos nossos passeios, ela nunca se afastava demais de mim. Ao primeiro sinal de perigo, um gato, por exemplo, um cachorro ou gavião, ela vinha correndo e pulava-me nos braços, já prontos para recebe-la.
Pelo outono, a Coelha crescera e transformara-se numa criatura elegante, madura, menos brincalhona e mais independente. Já sem medo de cachorros visitantes, ela ficava firme, batia a pata dizendo o seu “não” e atacava com suas garras afiadas. Numa noite de novembro, ela demorou tanto a voltar do seu giro de alimentação que eu saí para chamá-la da varanda. Lea veio correndo para a cesta de Mr. X, onde espalhou um bocado de terra que lhe caía do pêlo. “Ela está cavando uma toca”, anunciou o meu filho, cheio de conhecimento. “Eu a vi hoje à tarde, lá na mata. E olha só a barriguinha dela.”
Não sei como, e nunca vi, mas a Coelha encontrara um companheiro. Sua primeira ninhada nasceu pouco antes do Natal: quatro filhotes emergiram da toca na mata, inteligentemente fechada com terra nos primeiros dias, enquanto eram cegos e nus. Nos meses seguintes, a Coelha e seu misterioso marido produziram mais quatro ninhadas – e a cada parto ela se tornava menos apegada a nós. Finalmente deixou de entrar em casa, mas sempre me permitia visitá-la.
Ajudada pelo companheiro, ela repovoou as matas e os campos vazios. As fêmeas da primeira ninhada estava reproduzindo naquele mesmo verão, tornando a Coelha avó, rainha e matriarca indiscutível da nova e florescente dinastia – como fora da nossa casa.