sábado, janeiro 6

Um tigre de papel

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1971
Autor : Condensado de Frontiers Allen Rankin

Parece uma das criaturas mais ferozes da Terra. Mas essa aparência ameaçadora de King Kong não passa de uma fachada que esconde um dos cidadãos mais mansos e pacíficos do reino animal.

Ele é o monstro desajeitado de pesadelos e histórias horripilantes, o terrível assassino que se diverte fugindo com jovens voluptuosas ou arrancando pedaços de exploradores das selvas. Essa é a aterradora fama do gorila, o mais poderoso dos grandes maçados, nosso parente mais próximo do reino animal. Pois tudo isso está muito longe da realidade, afirmam zoólogos contemporâneos, que nesta última década finalmente descobriram a verdade. Sob aquele tórax gigantesco, aquela carranca feroz e presas ameaçadoras esconde-se um temperamento afetuoso. Deixados em paz em seu habitat natural, as úmidas florestas da África Equatorial, os gorilas são as criaturas mais dóceis e pacatas do mundo. Vivem despreocupadamente em tribos até de 30 indivíduos e passam os dias se empaturrando de plantas e raízes tenras, entregando-se a longos cochilos e gozando a vida de maneira inocente. Mesmo quando seu território é invadido, preferem tomar uma atitude de convivência harmônica.
Boas maneiras. Em 1970 Dian Fossey, valente pesquisadora que trabalhava para a Sociedade Nacional de Geografia dos Estados Unidos, regressou sã e salva da África Central. Relatou ela que em 2.000 horas de observação direta, de seus anfitriões peludos – freqüentemente de tão perto que dava para toca-los – eles tiveram “menos de cinco minutos do que se poderia chamar comportamento agressivo”. Certa vez cinco enormes machos adultos chegaram a atacar juntos a pobre dama indefesa. Quando o gorila chefe avultou à sua frente, a um metro de distância, ela abriu os braços e gritou como se grita aos cavalos, para faze-los parar: “Oôôõa!” Espantada, a tropa de assalto se deteve – e os cinco reassumiram suas maneiras corteses.
Isso confirma o que verificou George B. Schaller, da Sociedade Zoológica de Nova York, que em 1959 empreendeu o primeiro estudo científico completo já feito sobre esses animais até então envoltos em mistério.
Com pouco menos de dois metros de altura e pesando de 175 a 225 quilos, o macho adulto tem 10 a 14 vezes mais força do que o mais forte dos homens. De pé, com os braços maciços atirados para o alto, ele se parece muito com King Kong, o monstro de 15 metros de altura criado pela ficção. No entanto, Schaller verificou que os gorilas preferem usar sua força e sua aparência ameaçadora não para procurar briga, mas para evita-la. Muitas vezes quando ele se aproximava, a tribo se retirava em ordem enquanto o rei dos macacos ficava firme no lugar enfrentando o “inimigo”, ele arrancava e arremessava montões de vegetação rasteira, batia no peito, produzindo a ressonância de bongôs, e dava um medonho espetáculo, mostrando os dentes e soltando urros horrendos, que assustavam até os elefantes dos arredores. Às vezes lançava-se ao ataque, mas sempre parava pouco antes de atingir o alvo.
“Tudo aquilo não passa de um blefe magistral”, concluiu Schaller.
“Aqueles grandalhões parecem oscilar entre o dever de defender sua tribo e o desejo de fugir do perigo. Assim, para aliviar a tensão e amedrontar seus inimigos, batem no peito e atiram coisas.”
À medida que os animais foram-se acostumando à presença do naturalista, suas ameaças serenaram, dando lugar a grunhidos de desagrado ou curiosidade. Em 20 meses de pesquisa, Schaller teve 314 encontros com gorilas, alguns dos quais se aventuraram até a um metro e meio dele. Uma fêmea curiosa chegou a sentar-se ao seu lado, no mesmo galho de árvore.
A vida no paraíso. Desde que o homem e o gorila, partindo de ancestrais comuns, começaram a ramificar-se, há cerca de 26 milhões de anos, o gorila, em certos aspectos simples, foi mais bem sucedido do que nós. Comida? Os gorilas conseguem toda a verdura suculenta que quiserem sem sair muito do seu caminho. À custa de satisfazer seu apetite de gastrônomo, tornaram-se exímios botânicos, capazes de localizar grande variedade de plantas alimentícias, que dissecam com uma habilidade de cirurgião. O âmago macio das bananeiras lhes é de todo irresistível, o que pode levar muitos donos de bananais a jurar vingança contra os culpados. Abrigo? Sua cama tosca é um monte de folhas que juntam ao seu redor, nele se aconchegando.
Paz e tranqüilidade? Isso eles tem – ou tinham antes que o homem invadisse seu paraíso. Nenhum outro animal os ataca. Se forem molestados a ponto de perderem a paciência, é claro, são capazes de liquidar – e liquidam mesmo, um homem, ou até um possante leopardo, com um só apertão ou uma dentada igual à de um leão. Não precisam combater uns aos outros por qualquer necessidade e não fazem guerra entre si. É comum vários grupos viverem no mesmo território, reunirem-se amigavelmente e até se misturarem.
Seu governo é democrático. O chefe de uma tribo é sempre menos um Hitler do que um jeitoso político. Às vezes faz valer seu direito à melhor comida, à fêmea mais receptiva ou ao lugar mais seco quando está chovendo. Mas, de modo geral, é tolerante e não faz grandes objeções, mesmo se outro macho rapta uma de suas concubinas diante do seu nariz. Inteligência e jeito para vencer na vida parecem contar tanto quanto força muscular para se chegar à posição de chefe e nela permanecer. Observações de espécimes em cativeiro levam a concluir que os gorilas não tolerariam um chefe excessivamente despótico.
“Sempre que o grande chefe aqui se mostra demasiado autoritário, os outros elementos do grupo, fêmeas, indivíduos jovens, todos enfim, saltam sobre ele – que não reage – e o obrigam a moderar-se”, conta o Dr. Richard Faust, diretor do jardim Zoológico de Frankfurt, Alemanh.
Papais condescendentes. Enquanto o velho rei conserva seu posto, os súditos esperam que ele decida tudo – quando ir procurar comida, onde acampar. A comunicação é feita por meio de sinais vocais: os gorilas manifestam satisfação por meio de resmungos e grunhidos baixos, e soltam grunhidos e latidos agudos quando se dispersam na vegetação densa, latidos ásperos quando estão irritados e gritos e rugidos quando estão com raiva ou alarmados. Schaller contou cerca de 20 vozes diferentes.
Pais e tios indulgentes, os machos estragam as “crianças”. Até o chefe permite que elas lhe puxem os cabelos, lhe belisquem o nariz e caçoem de seu modo de bater no peito. O trabalho de cuidar e disciplinar os filhos é confiado exclusivamente à mãe, que o desempenha com maestria. Ela deixa os pequenos se divertirem com seus brinquedos favoritos, imitarem uns aos outros, balançarem-se e fazerem acrobacias em cipós e deslizarem pelas costas montanhosas e pela barriga dos adultos. Mas com um só olhar severo ela pode, de um momento para outro, fazer as crianças irem correndo, obedientes, para a cama. Como cada filhote depende quase completamente dela durante cerca de três anos, ela pratica um admirável controle de natalidade, só tendo um novo filhote aproximadamente de três em três ou quatro em quatro anos. (O macho não é nenhum maníaco sexual: na realidade, por padrões humanos, parece quase indiferente ao sexo.)
Acreditava-se que os gorilas não fossem tão inteligentes como os chimpanzés. Contesta-o o Dr. Ernst Lang, autoridade no assunto, diretor do jardim Zoológico de Basiléia, Suíça: “Não é que os gorilas não saibam fazer as coisas que os chimpanzés fazem”, diz ele, “mas é que eles são suficientemente sabidos para fazer só o que querem. São todos individualistas, independentes e superiores.”
O mundo dos gorilas, contudo, está longe de ser um mar de rosas. Sofrem das mesmas moléstias que atacam o homem, sobretudo resfriado e doenças das vias respiratórias; a duração média de sua vida em estado selvagem é apenas de 20 anos. Atualmente a caça ao gorila é proibida por lei na maioria das áreas, mas a caça clandestina continua a ser praticada, e algumas tribos africanas ainda os matam para comer, atacando-os com redes e lanças.
Além disso – o que é muito pior – cada vez mais as fazendas e rodovias estão avançando sobre o habitat dos gorilas, ameaçando-os de gradual extinção. “Se suas florestas continuarem a ser devastadas no ritmo atual”, afirma Schaller, “não tardarão a chegar ao ponto final de sua evolução.”
Símios urbanos. Refúgios para a fauna agreste, como o grande Parque Nacional Albert, do Congo, são a esperança de salvação para os grandes símios. No entanto, os jardins zoológicos estão desempenhando papel cada vez mais importante na conservação da espécie. Durante décadas todos os gorilas em cativeiro morriam antes de alcançar a idade madura. Aos poucos, porém, a situação tem melhorado, graças em parte ao emprego de antibióticos e de alimentos ricos em proteína. Atualmente 332 desses exigentes animais prosperam em 101 coleções zoológicas, alguns vivendo muito mais tempo do que seria de esperar em seu ambiente selvagem natural. (Massa, do Jardim Zoológico da Filadélfia, o gorila cativo mais velho do mundo, ainda está forte aos 39 anos de idade.)
Por motivos óbvios os gorilas em cativeiro são tratados com extremos cuidado. Os mais conceituados administradores de jardins zoológicos, porém, concordam com o Dr. Lang, segundo o qual. “o grande segredo de manter gorilas vivos e satisfeitos consistem em trata-los como gente, e gente mimada”. Os bons tratos tem compensado. Em 1956, no Jardim Zoológico de Columbus, Ohio, Baron e Christina finalmente fizeram o que casais de gorilas em cativeiro até então ainda não tinham conseguido: procriar. Desde então nasceram mais 29 gorilas em jardins zoológicos.
Esses feitos provocaram novos e espantosos problemas, que até agora vem sendo solucionados da maneira mais satisfatória pelo Jardim Zoológico de Basiléia. Quando, em 1959, Achilla, admirável fêmea de 12 anos, teve o primeiro filhote de gorila nascido na Europa, o minúsculo macaquinho teve de ser separado dela, pois Achilla não sabia o que fazer com o filho. Adotando Goma, o Dr. Lang e Trude, sua esposa, passaram a tratar o gorilinha exatamente como se fosse uma criança – berço, fraldas, mamadeira e tudo o mais. Na realidade aquela criança requeria mais cuidados do que um bebê, apegando-se aos Lang com a mesma tenacidade com que se teria agarrado à sua mãe nômade nas selvas. Graças em parte às experiências dos Lang, a maioria dos filhotes de gorila nos jardins zoológicos são atualmente entregues aos cuidados de amas, que durante os primeiros seis meses, o período crítico, passam com eles 24 horas por dia.
Tudo acabou bem, pois a mãe de Goma, depois de algum adestramento por seus guardadores, adquiriu eficiência em seus deveres maternais. Quando ela teve o segundo filho, Jambo, tratou-o como uma profissional. Desde então o Jardim Zoológico de Basiléia tornou-se o primeiro a possuir uma grande família de gorilas, vivendo juntos e se reproduzindo quase tão naturalmente como na vida selvagem.
Atualmente tudo faz prever um futuro feliz para a realeza símia urbana. Nos jardins zoológicos modelos dão-se aos gorilas espaçosos conjuntos, com abrigos fechados e áreas arborizadas, que imitam o melhor possível seu habitat natural. Mais à vontade e satisfeitos, muitos dos letárgicos introvertidos estão se comportando de maneira surpreendentemente alegre, pouco própria de gorilas. No Jardim Zoológico de Barcelona, Floco de Neve, com sete anos de idade, já é celebridade mundial, não só por ser o único gorila albino puro que já se viu, mas porque brinca perante a platéia humana em frente à sua jaula com a alegria afetada de um palhaço profissional. E no Jardim Zoológico de Antuérpia um extraordinário gorila da montanha, adulto, chamado Kaisi, vive para o momento em que, todas as tardes, ele pode apresentar seu espetáculo de caretas ameaçadoras, flexão muscular e batidas no peito, a uma platéia que o aplaude entusiasmada.
Mas esses “terríveis” gorilas das lendas continuariam a atrair multidões mesmo se não fizessem outra coisa além de bocejar e dormir. Assim, tal como outros astros de primeira grandeza nos jardins zoológicos, prestam um serviço vital à causa da conservação.
“Fascinando a gente da cidade”, explica Bill Conway, diretor da Sociedade de Zoologia de Nova York, “os animais dos jardins zoológicos contribuem da melhor maneira possível para despertar nessa gente o interesse pela sorte dos animais selvagens e faze-la compreender a necessidade premente de salvar pelo menos certo número de nossas criaturas selvagens antes que seja tarde – para elas e para nós.”

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