quarta-feira, maio 31

Nossa cachorrinha portátil

Fonte: Revista Seleções
Data : Agosto de 1981
Autor : Jocelyn Reichel

Nossos quatro filhos já eram adultos e viviam longe de casa. Eu ensinava inglês; Everett, meu marido, trabalhava de noite, e eu me sentia muito só. Vai daí um dia voltei para casa carregando uma chihuahua de 680g na bolsa. Everett resmungou: Isso é um projeto de cachorro.”
“Ela vai crescer”, respondi. “Só tem seis semanas.”
“Antes disso vai ser sugado pelo aspirador”, profetizou ele. “De que raça é ela?”
“É uma chihuahua de pêlo comprido. Vamos receber o pedigree dela dentro de poucos dias.”
“E o pêlo comprido? Quando vai chegar?”
“Dentro de uns seis meses começa a crescer.”
“Bem, até lá é melhor a gente arranjar uma peruca para ela. Está tiritando de frio.”
Eu tinha de desculpar a falta de entusiasmo de Everett. Os homens gostam sempre de se imaginar caminhando orgulhosamente com uma manilha de setters ruivos pulando em volta. Não se pode amarrar uma trela em 680g de cachorro e caminhar com dignidade.
Mas eu havia pesquisado exaustivamente as possibilidades. Para pessoas da nossa idade, que moram num apartamento durante a semana e num trailer o resto do tempo, uma cachorrinha portátil era o animal de estimação mais indicado.
Na manhã seguinte, tentei despertar o interesse de Everett. “Temos de batizar nossa cachorrinha”, lembrei-lhe. “Deveria ter um nome especial. Afinal, ela é de origem mexicana.”
“Que tal Tortilha? Enchilhada? Taco?” sugeriu ele, inspirando-se na sua única incursão a um restaurante mexicano. “Não ria! Você também não sabe espanhol!”
“Sei poquito”, admiti.
“Poquito....”, repetiu ele. “Já que essa cachorrinha é mesmo minúscula, acho que é um nome perfeito para ela!”
Poquito, sabendo tanto espanhol como nós e querendo nos agradar, aprovou imediatamente esse nome. Também atendia quando Everett chamava “Èi, você aí”, ou simplesmente “Psiu”. Para ele, a bichinha era uma espécie de enfeite, uma cachorrinha da madama. Procurava não a pisar, mas eu não devia esperar que ele fizesse mais nada além disso.
Um dia perguntei-lhe se a levaria ao veterinário para ser vacinada. “Foi você quem a comprou”, respondeu. “Você que a leve”.” Evitou cuidadosamente olhar para Poquito enquanto pronunciava esse ultimato. Ela estava enroscada sobre o pé dele, abanando a cauda.
“Não posso, Everett. Não suportaria ver o veterinário dar injeção na bichinha.”
“Está bem, mas é só desta vez”, retrucou ele.
Quando voltaram, notei entre os dois uma camaradagem da qual eu estava excluída. Everett, entretanto, jamais admitiria isso; simplesmente largou Poquito no meu colo e recomeçou a ler o jornal.
Dias depois, Everett pendurou um ursinho de pelúcia no abajur, para Poquito pular e bater no brinquedo. Respondeu aos meus elogios com um simples comentário: “Ela andava chateada e sempre me seguindo para subir no meu colo.”
Na semana seguinte, descobri que uma plataforma fora instalada no peitoril da janela da sala de estar, de modo que Poquito pudesse tomar sol e latir para os passantes. Uma rampa acolchoada facilitava o acesso à plataforma.
“Não vou continuar me levantando toda vez que esse animalzinho quiser olhar pela janela”, explicou meu marido.
Quando a primavera chegou, pegamos nossas bicicletas, Everett atou uma correia numa cestinha e amarrou-a ao guidão da bicicleta dele. “Ela fica mais segura comigo”, explicou. Em pouco tempo, Poquito apaixonou-se pelo esporte. Debruçando-se contra o vento, com os olhos semicerrados, as orelhas dobradas para trás, ela parecia um desses enfeites de capô de carro.
No entanto, não era apenas decorativa. Com Poquito na vanguarda, nós estávamos livres de cães perseguidores de bicicletas. Eles até fugiam, assustados com os latidos histéricos da nossa mexicana temperamental.
Deve ter sido o ardente coração asteca de Poquito que quebrou as últimas resistências de Everett. Quando sugeri que a deixássemos com um dos nossos filhos enquanto partíamos para uma viagem de férias pelo Arizona, ele disse logo: “Não é preciso, ela é uma boa companheira de viagem.”
Construiu para a cadela uma assento acolchoado e montou-o entre nós dois, de modo que ela pudesse ter uma bela vista da auto-estrada durante todo o percurso, enquanto eu via Everett apenas quando parávamos para encher o tanque e comer. Ela deliciava-se com as latas de comida de cachorro e apreciava muito os quartos dos motéis. Everett descobriu que todas as moças achavam Poquito muito simpática, e levava-a a passear até ela ficar exausta.
Poquito já estava conosco havia cinco anos quando caiu e fraturou o joelho. Teve de ser operada e ficou 11 dias hospitalizada. Everett e eu nos re-descobrimos, como nos primeiros dias depois que nosso último filho sair de casa. Começamos a conversar em tête-a-tête em vez de através de Poquito (“Poquito, que é que mamãe está preparando para o jantar?” ou “Poquito, vá dizer ao papai que nós gostaríamos de um passeio”). Descobrimos que nos sentávamos mais juntos no sofá agora que não tínhamos de deixar lugar para ela.
“Por onde andou você estes últimos anos?” caçoou Everett.
“A uma cachorra de distância”, respondi.
“Você quer dizer que Poquito estava se intrometendo entre nós?”
“É mesmo. Eu acho que sim. De cada vez que sentia necessidade de afeto, você acariciava Poquito.”
“De agora em diante, declarou Everett, “manteremos as coisas na devida proporção. Poquito irá para a cama mais cedo. Contrataremos uma babá e assim poderemos sair mais à noite.”
As promessas de Everett duraram até o dia em que nossa convalescente voltou do hospital. Ela estava mais magra, e sua perna raspada e cicatrizada sobressaia horrivelmente. Eu fui para o lado direito do carro, mas Everett me fez parar e tirou Poquito dos meus braços.
“Você dirige”, ordenou ele. “Eu seguro a pobrezinha.”
Nessa noite, levantei-me para verificar o estado da paciente. Eu a instalara na sua cestinha sobre uma almofada depois de envolve-la num cobertor de flanela, mas ela não estava lá. Fui descobri-la ao lado de Everett, profundamente adormecido no sofá. Enquanto eu admirava o espetáculo, Poquito piscou lentamente os olhos.
“Sua sabidona!” murmurei, ajeitando a coberta em torno dos dois. Já dizia São Bernardo: “Qui me amat, amat et canem meum” (“Quem me ama também ama o meu cão”).

terça-feira, maio 30

Mas que mancada!

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1999
Autor : Christopher Buckley

Ninguém está livre de cometer uma grande gafe

Prazer em revê-lo – cumprimentei o cavalheiro, empresário conhecido e amigo da família, que eu não encontrava havia bastante tempo. – Como está sua mulher?
Ele manteve o sorriso afável, mas percebi que uma nuvem passou brevemente por seu rosto.
- ela faleceu há três anos – respondeu.
Que é que se faz depois de uma gafe dessas? Comenta-se sobre o tempo? Fui cegamente até o banheiro masculino e bati com a cabeça nos azulejos.
Faux pas, a expressão francesa para esses constrangimentos, significa “passo em falso”. Já não se ouve muito essa frase, o que é uma pena. No momento em que o homo se tornou erectus, começou a dar passos em falso, e isso vem ocorrendo desde então.
Um passo em falso nos lembra que, mesmo que se vista com elegância, a raça humana ainda não está livre dele. No entanto, o que pode ser mais gratificante do que ver um prepotente descer do pedestal por causa de uma tremenda derrapada? Foi esse bálsamo que procurei, após a gafe que descrevi, quando me propus a colecionar histórias de faux pas.
Uma das súditas da rainha Elizabeth recentemente foi manchete dos tablóides por não lhe fazer reverência. A transgressora, em trajes sumários, foi Geri Halliwell – na época, a Ginger das Spice Girls. Ocorre que os americanos e a realeza britânica nem sempre concordam sobre o que constitui uma gafe. Em 1981, Leonore Annenberg, chefe de protocolo do governo americano, causou sensação ao fazer uma reverência para o príncipe Charles, quando lhe deu as boas-vindas oficiais ao país. A senhora Annenberg, mulher afável, estava apenas tentando ser gentil. O problema é que os Estados Unidos travaram uma guerra dois séculos antes justamente para conquistar o privilégio de não precisar comportar-se de modo obsequioso perante a realeza.
E há ainda os equívocos desastrosos. Uma noite, o espirituoso escritor Robert Benchley, ao sair alcoolizado de um restaurante elegante, viu um homem uniformizado que supôs fosse o porteiro e pediu-lhe que chamasse um táxi. O homem, porém, respondeu-lhe secamente.
- Acontece que sou contra-almirante da Marinha dos Estados Unidos.
- Nesse caso – disse Benchley -, consiga-me um couraçado.
Os trajes podem mesmo induzir a confusões. Numa recepção diplomática a que compareceu na década de 60 – alguns dizem que em Viena, outros no Brasil – o chanceler britânico George Brown aparentemente havia apreciado bastante o vinho. Ao ouvir a orquestra começar a tocar certa melodia, dirigiu-se a uma refinada criatura de veste vermelha ao seu lado e perguntou:
- Senhora, vamos dançar?
Conta-se que a refinada criatura de veste vermelha lhe respondeu com toda clareza:
- não senhor Brown, e por três razões. A primeira é que esta é uma recepção e não um baile. A segunda é que, mesmo que estivéssemos num baile, o que estão tocando ainda seria o hino nacional e não uma valsa. E a terceira é que, mesmo que isto fosse um baile e não uma recepção, e que estivessem tocando uma valsa e não o hino nacional, eu não deixaria de ser o cardeal-arcebispo.

Mais gratificante do que uma gafe só uma “volta por cima”. O ator David Niven estava certa vez numa festa elegante, de pé junto a uma escadaria, conversando com um homem a que acabara de conhecer. Duas mulheres no alto da escadaria começaram a descer.
Niven comentou com o homem:
- Aquela é a mulher mais feia que já vi!
O homem empertigou-se e disse::
- Aquela é a minha esposa.
- Eu me referia à outra.
- Aquela é a minha filha.
Niven fitou o homem calmamente e exclamou:
- Eu não disse nada!
Talvez eu tente essa desculpa da próxima vez.

segunda-feira, maio 29

Acredite, se quiser !....

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1973
Autor : William Allen

Apesar da morte de Robert Ripley, em 1949, sua famosíssima coluna ilustrada continua a sair, graças a um pesquisador veterano cuja extraordinária atividade é, digamos, inacreditável.


O sapo-verde-das-árvores é VENTRÍLOQUO. Emite a voz de tal maneira que as espécies predatórias nunca conseguem localiza-lo pelo coaxar!

Se todos os chineses do mundo marchassem em colunas de quatro, eles NUNCA ACABARIAM DE PASSAR POR UM DETERMINADO PONTO, MESMO QUE MARCHASSEM ETERNAMENTE!

O NERVO DENTAL de um elefante pode pesar até CINCO QUILOS E MEIO!

Numa recente entrevista na televisão, o apresentador mostrou uma brochura do Acredite se Quiser!, de Ripley, citou parágrafos como estes, observou brincando que não acreditavam em nenhum, e disse que, apesar de Robert Ripley estar morto, alguém ainda estava produzindo a coluna para os jornais. Ele não sabia ao certo quem.
Na verdade, a seção Acredite se Quiser! De Ripley, com itens quais os acima citados, vem sendo publicada há quase tanto tempo sem Ripley quanto com ele, graças aos esforços contínuos e anônimos de seu notável pesquisador, Norbert Pearlroth. Apesar de a coluna já não atrair a atenção do público como antigamente, ainda é publicada em 330 jornais em 32 países, e sua 21ª edição em forma de livro encontra-se em preparo.
É difícil, para os mais jovens, imaginar como foi popular o Acredite se Quiser!, há tempos. As pesquisas demonstravam que a seção atraía o maior interesse do leitor, só perdendo para as fotos da primeira página, em qualquer jornal, em qualquer lugar. As cartas dirigidas a Ripley atingiram, em determinada altura, um milhão por ano, a maior quantidade de correio já recebida por um indivíduo no mundo inteiro.
Um desenho, em particular, parece ter levado o desenhista norte-americano a atingir o sucesso. Algumas semanas após o histórico vôo de Charls Lindbergh, em 1927, Ripley publicou um desenho do Spirit of St. Louis, com a legenda: LINDBERGH foi o 67º homem a atravessar o Oceano Atlântico, num vôo sem escalas!
A afirmação desencadeou uma tempestade de indignação. Cerca de três mil telegramas e cartas chegaram a casa de Ripley num só dia. Mas ele já tinha a resposta preparada. Lindbergh tinha realmente sido precedido por 66 homens – dois num avião, 32 num dirigível inglês e 32 num zepelim alemão. Sem dúvida, Lindbergh tinha sido o primeiro a fazer a viagem sozinho, mas Ripley nunca afirmara o contrário.
Naquela época, o Acredite se Quiser! era publicado por apenas trinta jornais, mas o item sobre Lindbergh chamou a atenção nacional para seu criador. Logo passou a ganhar mais de cem mil dólares por ano, só com a coluna ilustrada. Assinou um contrato de 350 mil dólares com a Warner Brothers, para fazer 26 filmes curtos e, por volta de 1930, tinha seu próprio programa de rádio. Os presidentes lhe escreviam. As universidades lhe prestavam homenagens. Ele passou a ser, naquela época, um dos conferencistas mais bem pagos do mundo.
Como conseguiu Ripley tudo isso:? O mais importante foi a idéia da coluna ilustrada – o que lhe ocorreu, por acaso, quanto tinha 25 anos, e era desenhista esportivo no Globe de Nova York. Em 1918, num dia fraco para notícias esportivas, ele juntou alguns desenhos e legendas sobre difíceis façanhas atléticas – como, por exemplo, a do homem que atravessou o continente andando de costas, usando um espelho retrovisor. Pensou em chamar a seção de Champs and Chumps ( Campeões e Tolos ), mas, no último minuto, mudou para Acredite se Quiser! No dia seguinte, o sucesso da coluna foi tão grande que Ripley começou a desenterrar mais fatos desconhecidos, não se limitando apenas ao esporte, mas mantendo o formato básico de um desenho e de uma legenda incisiva para cada item.
Ao longo do tempo, foram introduzidas variações, assim como um truque ocasional ( exemplo: o item sobre Lindbergh) e os jogos e adivinhações. O Acredite se Quiser! Não descobria somente fatos pouco conhecidos da história; algumas vezes, fazia história. Em 1929, por exemplo, a coluna informou corretamente os seus leitores de que a música do hino nacional norte-americano era calçada numa velha canção de bêbados inglesa, To Anacreon in Heaven. A reação, é claro, foi de relutância geral em acreditar. Ripley foi mais adiante, e disse que o Congresso nuna havia oficializado The Star-Spangled Banner como hino nacional do país. No espaço de uma semana, mais de cinco milhões de americanos haviam escrito aos deputados, e, pouco tempo depois, o Congresso aprovava a oficialização devida.
O homem que tem sido o pesquisador do Acredite se Quiser! Durante cinqüenta anos, Norbert Pearlroth, tem muito para contar. Diz Norbert: “A seção satisfaz a elementar necessidade humana de fugir da rotina do dia-a-dia para o reino do inacreditável. Oferece ás pessoas uma história de fadas, que é espantosa, mas absolutamente verídica. Acredite se Quiser! Mostra que a vida não é previsível e monotonamente igual. Há algumas gloriosas exceções, e ela as apresenta.”
Apesar de desconhecido para a maior parte dos milhões de leitores do Acredite se Quiser! Pearlroth é a própria razão do sucesso inicial e continuado da coluna. Os dois se encontraram há cinqüenta anos, quando Ripley se queixou a um amigo de que vinha tendo dificuldades em encontrar material aproveitável. Preocupava-o particularmente a sua ignorância das línguas estrangeiras. Podia olhar os livros em outros idiomas, e descobrir fotografias interessantes, mas nunca conseguia entender os mistérios ali descritos. O amigo, um gerente de banco, disse-lhe que tinha como empregado um jovem austríaco, chamado Norbert Pearlroth, que falava treze idiomas. Ripley entrou em contato com Pearlroth, e pouco depois o jovem poliglota foi trabalhar com ele, como pesquisador, em tempo integral. Depois disso, Ripley pode se dedicar todo o tempo à ilustração, até que morreu de um ataque de coração, em 1949.
Hoje em dia, o processo de Ripley continua em três ativos escritórios no edifício da King Features, na cidade de Nova York. A equipe é composta por um gerente ( Helen Kish Monahan ), dois artistas (Paul Frehm e seu irmão, Walter ) e, evidentemente, o espantoso Norbert Pearlroth, agora com 76 anos de idade. Pearlroth tem de arranjar 24 assuntos por semana – três para cada dia útil e seis para a edição dominical. Trabalha com vários meses de antecedência. Às vezes, acontece passar dois dias sem encontrar nada, mas, no fim-de-semana ( procurando melhor porque está se atrasando ) consegue por o trabalho em dia.
As sugestões dos leitores são cuidadosamente lidas, mas alta percentagem desses itens constitui matéria muito “cruel” para o público em geral. No escritório existem, por exemplo, recortes de jornais, já amarelados, que falam de um homem, cortado acidentalmente ao meio por uma máquina, e que ainda conseguiu sobreviver por cinco horas, sem perder a consciência.
Norbert Pearlroth tem seu segundo quartel-general de trabalho na Biblioteca Pública de Nova York. Ali, ele é cumprimentado por quase todos os funcionários que encontra. Vai para a sala das fichas, vê uma gaveta delas em cima de uma mesa, e senta-se sem se preocupar em ler a etiqueta. Não faz diferença nenhuma. Apanha sempre uma gaveta qualquer, percorre-a rapidamente, escolhe cerca de dez livros que lhe parecem interessantes e depois, com um entusiasmo de colegial, folheia-os durante o resto da tarde.
Enquanto está anotando números de fichas em seu pequeno caderno, um jovem de cabelos compridos senta-se perto dele. “Sr. Pearlroth, um bibliotecário me disse quem é o senhor. Poderia me dizer qual foi o mais inacreditável Acredite se Quiser! De todos os tempos? Na sua opinião, claro.”
Pearlroth coça a careca, fingindo refletir, depois inclina-se para frente, e fala num murmúrio confidencial: “O mais estranho Acredite se Quiser! Da história aconteceu no cimo de uma montanha, na Colômbia. Num educandário existente lá, dirigido por frades, o poço havia secado, e os fades corriam o perigo de ter de fechar a escola. Desesperados, escreveram para um certo Padre Aléxis Mermet, famoso vedor ( pesquisador de nascentes de água) da Suíça.
“O Padre Mermet respondeu-lhes dizendo que não podia viajar, mas que se os frades lhe mandassem um mapa detalhado da área, ele teria muito prazer em dizer-lhes se havia lá alguma água. Mandaram-lhe o mapa, e no seu escritório ( a dez mil quilômetros de distância ) ele balançou um pêndulo sobre o mapa, e marcou um ponto com um X. Devolveu o mapa com uma carta, dizendo que, no lugar marcado com o X, eles encontrariam água a uma profundidade de 27 metros e cinco centímetros, com um caudal de quinhentos litros por minuto. Os frades cavaram, e a água estava lá, exatamente como ele havia previsto, até mesmo no que se referia ao caudal.” A voz de Pearlroth sobe de tom: “Como? A dez mil quilômetros de distância! Num pedaço de papel!”
Pearlroth balança a cabeça, outra vez espantado. Depois toca o braço do rapaz. “Há ainda outro detalhe, relativo a isto, que não é do conhecimento geral: um P. S,. da carta do Padre Mermet. Ele dizia pressentir a presença de metal na montanha, e marcou o lugar onde este deveria estar. Os monges cavaram no lugar indicado e encontraram vários frades mortos – todos enterrados em caixões de metal!”
Pearlroth deixa o jovem boquiaberto, e recolhe a pilha de livros que vai ver naquele dia. Leva-os para uma mesa junto a uma das amplas janelas da biblioteca e, como muitas vezes faz, apaga a lâmpada para gozar a luz do sol. Depois de olhar pela janela durante um minuto, começa a folhear um livro. Nada ali. Abre outro. Tem feito isto durante a maior parte de sua vida. E vai continuar a faze-lo enquanto houver alguém que se interesse pelos fatos peculiares que ele descobre, acreditem ou não neles.


Instantâneos Pessoais

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1981
Autor : Stan Isaacs

Quando Kaye Stevens esteve, há 15 anos, no Vietnam com Bob Hope, atirou para os soldados na platéia 800 pares de longas luvas brancas. Cada luva continha o autógrafo de Kaye e esta mensagem: “Quando você voltar para casa, esta luva vale um jantar, com aperitivo, onde quer que eu esteja me apresentando.” A primeira luva apareceu em janeiro de 1966; a última, em 29 de janeiro de 1980, quando Kaye era a estrela de um show no hotel Diplomat, em Hollywood, Flórida. Diz ela que até agora isto já lhe custou 21 mil dólares, “mas valeu a pena saber que tantos jovens voltaram sãos e salvos”.

sexta-feira, maio 26

Sensibilidade

Fonte : Revista Seleções
Data : outubro de 1989
Autor : Sra. M. Fenn

No início da década de 50, compareci a um concurso de leitura em Braile realizado na presença da Rainha-Mãe.
Minha atenção voltou-se para uma menina cega que segurava o buquê de flores. Enquanto esperava para presentear as flores no fim da leitura dos jovens, a menina passou os dedos suavemente sobre cada uma das pétalas antes de lhes cheirar o perfume.
Durante a leitura dos adultos, olhei para a Rainha-Mãe e me surpreendi ao vê-la fechar os olhos. Depois, notei suas mãos. Exatamente como fizera a menina cega, seus dedos tateavam as flores. Ela também percebera o gesto da menina e tentava descobrir ela própria como era a experiência de sentir a beleza das flores pelo tato.

Mais precioso que pérolas

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1973
Autor : Mel Ellis

Eram espantosamente lindas – mas o seu verdadeiro valor estavam em tê-las perdido.

Estou sempre voltando lá para ver se as grandes ostras negras ainda se amontoam ao longo do leito barrento do sinuoso Rio Rock, na esperança de encontrar uma com uma pérola luminosa como a Lua. É algo que nunca termina, que lateja em mim como uma febre de ouro desde o dia em que, garoto de 10 anos, queimado de sol, apalpando com o polegar ávido uma massa de carne e suco de ostra, toquei o primeiro nódulo duro de uma pérola e vi-a cintilando em tons de rosa-pálido, branco e azul-claro contra a luz do sol ardente.
Naquele instante, caí prisioneiro de uma promessa de riquezas como as que devem povoar os sonhos de todos os mineradores. Fiquei febril de ansiedade, e era capaz de compreender as visões que levavam mineradores a morrer atravessando desertos e montanhas em busca de tesouros.
Há 50 anos, apanhar ostras era um grande negócio – os sintéticos ainda não haviam substituído os botões de pérola feitos das conchas. Bandos itinerantes de mulheres desmazeladas, grosseiramente vestidas, e homens de macacão, andavam de rio em rio à cata da grande pérola, mas geralmente contendo-se com as pequeninas, vendidas para jóias de fantasia. Ganhavam com isso apenas o suficiente para o pão e o uísque; embora jamais o alcançassem, andavam em busca do arco-íris.
No começo, eu não sabia nada sobre pérolas nem sobre as pessoas que as pescavam. Certa noite, já deitado, ouvi um barulho estranho, ergui-me apoiado no braço, e, olhando pela janela, vi focos de lanternas percorrendo a clareira. Na manhã seguinte havia uma tenda erguida, e descobri que se tinham mudado para ali, durante a noite, uma mulher e dois homens, embora não imaginasse para que, pois não tinham varas de pescar. Mantive-me só observando de longe durante todo o dia, e esperei até à noite para perguntar ao meu pai o que estariam fazendo.
“Devem estar catando pérolas”, respondeu-me.
Pérolas! Pérolas no meu Rio Rock! Não dormi nessa noite. Na manhã seguinte, saí no meu botezinho atrás deles, levando as varas de pesca bem à vista, para não perceberem que os espreitava. Os homens andavam com água até ao peito, procurando ostras com os pés, mergulhando de vez em quando para recolhe-las. Quando tinham o barco cheio, remaram para terra e começaram a abri-las e a procurar as pérolas.
Guardei as minhas varas e meti-me por uma curva do rio, para não ser visto. E saí apanhando ostras. Quando já tinha um bom monte delas, remei de volta para casa, peguei uma faca e fui abri-las. Quanto mais força fazia mais as ostras se fechavam. Experimentei esmaga-las entre duas pedras. Assim abriam-se, mas a polpa esmagada e o suco espalhavam-se pelas minhas pernas nuas. Fique todo arranhado, machucado, os dedos cortados, e não encontrei uma única pérola.
Os homens não tinham a menor dificuldade em abrir as ostras, e, quando vi que estavam de novo debruçados sobre um monte delas, esgueirei-me através do mato e fui olhar. Vi logo como faziam – metendo a faca num ponto logo acima da articulação e girando-a de um lado para o outro. Bati em retirada e voltei para o meu próprio monte de ostras. Aí, sim, mal atingia o músculo, a ostra amolecia e eu podia abri-la sem dificuldade. Em seguida revistava cuidadosamente a carne.
Passei dias sem encontrar uma pérola que fosse. Finalmente, numa hora em que os homens haviam saído para o rio, enchi-me de coragem e acerquei-me da mulher, que ficava no acampamento e cuidava da comida. Era gorda, calçava sapatos de homem se meias e, sem me aproximar muito, pude sentir o cheiro do uísque barato. Estava sentada num toco de árvore, tomando café numa caneca de folha, e ficou algum tempo só olhando para mim. Preparava-me para virar as costas e fugir, quando ela perguntou: “Que foi, garoto?”
Sua voz era tão estranhamente maravilhosa, profunda e gutural, que me fez parar. Embora tivesse dito apenas três palavras, percebi instantaneamente que se sentia triste e só. Fitei-a durante muito tempo, e, quando dei por isso, murmurei, para disfarçar: “Posso fazer-lhe umas perguntas?”
Ela deu rum risinho, e o som do seu riso era tão calmo como o da voz.
“Pode, claro que pode”, disse ela.
“Não sou obrigada a responder se não quiser.”
Expliquei-lhe então que gostaria de aprender a procurar pérolas, que sabia abrir as ostras, mas não sabia como examinar a carne, a não ser deitando-a num balde e apalpando-a toda.
A mulher levantou-se e foi até um monte de ostras abertas. Um ciclone de moscas se ergueu quando ela se abaixou para apanhar uma. Voltou para junto de mim e mandou-me prestar atenção enquanto ela corria os polegares ao longo dos lados da concha, sob a carne, até nos pontos onde as pérolas, quando existem costumam estar. Explicou-me que a gente sentia as pérolas antes de vê-las, e que era melhor até fechar os olhos enquanto se apalpava sob a carne, para nos concentrarmos no sentido do tato.
“Quando você sentir uma, saberá o que é”, acrescentou. “Pegue-a então entre o polegar e o indicador e coloque-a sob o lábio superior. Depois de limpa-la bem na boca, cuspa-a dentro de um vidrinho.”
Parou de falar. Passados momentos, atrevi-me a olha-la e a perguntar: “É só isso?”
Com um movimento brusco, ela despejou a caneca, espalhando borras de café no campi, ficou olhando o fundo da caneca, como se houvesse ali uma pérola, e depois disse: “É só isso. Você não precisa mais nada.” Levantou-se pesadamente e suspirou.
“Obrigado”, agradeci, e dei as costas para me afastar.
Pelo canto do olho, vi-a voltar-se de novo para mim. Levou a mão ao rosto e disse, muito serena: “Não me agradeça, menino. Isto não é vida, acredite. Esqueça as pérolas. Vai morrer de fome tentando encontra-las.”

No dia seguinte, senti o primeiro nódulo sob o polegar e trouxe à luz a minha primeira perolazinha. Eram bem pequenina, e, embora não fosse completamente redonda, a sua cor deixou-me sem fôlego. Apressei-me a mete-la na boca, chupei até limpa-la e cuspi-a num frasquinho de remédio. Brilhava como um raio de sol aprisionado! Nesse dia achei outras duas pérolas pequenas, e até a minha família ficou entusiasmada com a minha descoberta. Ficamos à volta do lampião de querosene até muito depois da hora de me deitar, admirando as pérolas e falando delas.
Depois disso, deixou de haver tempo para mais nada. Buck, o meu cachorro, andava abatido e triste, porque eu não tinha tempo para caçar nem andar com ele, e os pescadores que me viam procurar com os pés ostras no leito do rio perguntavam-se que andaria tramando aquele garoto maluquinho. Andava com grandes olheiras, por me levantar muito cedo e ficar abrindo ostras muito tempo depois de os mosquitos terem reclamado a noite como sua.
Mas, quando calcei sapatos de novo e voltei para a escola, tinha um cálice cheio das mais belas pérolas que uma pessoa pode sonhar. Nenhuma era redonda o bastante para valer muito, eu sabia, mas isso não tinha a menor importância, porque eu não queria mesmo vende-las.
Até que chegou o dia em que fui à casa ao lado mostrar as pérolas ao novo hóspede da minha avó. Espalhara-as sobre a mesa de jogo, quando Buck irrompeu correndo pela sala e virou a mesa. As pérolas caíram e rolaram todas pela saída de ar quente da fornalha da minha avó.
Quase morri. Às vezes, ainda penso que uma parte de mim morreu mesmo naquela hora. Enfrentei o calor insuportável re remexi as cinzas e a fuligem que se tinha acumulado durante anos na velha fornalha, mas não encontrei uma única das minhas preciosas pérolas. Todo o meu verão estava perdido.
Mas agora, recordando, compreendo que não foi um verão perdido. Hoje sei que o verdadeiro valor não estava nas pérolas, mas no sonho. Jamais voltei a ter sonhos tão grandiosos, em todos estes anos, tampouco voltei a envolver-me numa aventura de forma tão absorvente e determinada. Ao perder as pérolas, aprendi a mais cruel de todas as lições: tudo na vida passa, só os sonhos perduram.

Dá de ti quanto puderes

Fonte : Revista Seleções
Data : 1959
Autor : David Dunn

Como a maioria das pessoas, acostumei-me desde criança a considerar a vida como um processo de obter coisas. A idéia de dar de vez em quando veio-me por acaso. Uma noite, deitado em um leito no luxuoso expresso Nova York – Chicago, conhecido como Twentieth Century Limited (Século Vinte Limitado ), pus-me a pensar em que ponto os dois expressos daquela companhia se cruzariam no meio da noite. “Isso daria bom assunto para um anúncio da Estrada De Ferro Central de Nova York”, pensei, “Onde os Séculos se encontram.” Na manhã seguinte escrevi à companhia expondo a minha idéia e acrescentando: “Ofereço-lhes esta idéia incondicionalmente. Não quero nada em troca.” Recebi uma resposta corres, e a informação de que os Séculos se cruzavam nas imediações de Athol Springs, Nova York.
Alguns meses depois recebi uma segunda carta informando-me que a minha idéia seria o tema da folhinha da Estrada De Ferro Central de Nova York para o ano seguinte.
Naquele verão eu viajei muito, e em quase toda estação, hotel ou agência de turismo que entrava, até na Europa, eu via a minha folhinha: uma visão noturna da locomotiva de um expresso se aproximando, e a plataforma de observação do outro, uma cena rica em colorido e romantismo ferroviário. Essa folhinha nunca deixou de me dar um certo prazer íntimo.
Foi então que eu fiz a importante descoberta de que tudo o que nos dá esse prazer íntimo está acima de considerações monetárias neste mundo, onde há tanta sofreguidão por dinheiro e tão pouca exultação íntima.
Passei a fazer experiências de dar e descobri que isto é muito divertido. Se me ocorre uma idéia capaz de melhorar a arrumação de uma vitrina, entro na loja e faço a sugestão ao proprietário. Se presencio algum incidente cujo relato possa interessar do padre católico de minha diocese, procuro-o e lhe conto o caso, muito embora eu não seja católico. Se descubro algum artigo que possa interessar a algum estadista, mando-lhe o artigo pelo correio. Às vezes até mando livros a estranhos quando me parece que uma ‘descoberta’ feita por mim possa interessa-los. Muitas amizades boas começaram assim.
Mas o processo de dar precisa ser cultivado, da mesma forma que o processo de obter. As oportunidades nesse setor são tão passageiras como as oportunidades de obter lucros. Mas a concepção do abrir as mãos é como certas variedades de flores – quanto mais as colhemos mais elas florescem. E o dar torna a vida tão interessante que eu o recomendo decididamente como passatempo. Não é preciso dinheiro para isso. De todas as coisas que uma pessoa pode dar, o dinheiro é a menos permanente no prazer que produz e a que é mais passível de dar resultados contraproducentes. Teve muita razão o filósofo quando disse que “o melhor presente é uma parte de ti mesmo”.
Cada um de nós tem uma coisa diferente para dar. Alguns tem tempo, energia, competência, idéias; outros tem aptidões especiais. Todos nós podemos dar apreciação, interesse, estímulo – coisas que não requerem gastos em bens materiais, salvo um selo de correio ou uma chamada telefônica.
Às vezes seremos tentados a conter-nos. Uma dia ocorreu-me uma idéia que me pareceu poder interessar alguma loja de departamentos. “Mas esta idéia vale dinheiro”, pensei. “Vou experimentar vende-la”.
“Não vais fazer nada disso”, objetou o meu segundo eu. “Não vais gastar tempo apregoando uma idéia: vais dá-la de graça e livrar-te dela”.
Escrevi então a uma das mais famosas lojas de departamentos do mundo, expondo a minha idéia e oferecendo-a de graça. Foi imediatamente aceita, e hoje tenho uma grande loja como amiga.
O simples elogio é uma das formas mais aceitáveis de dar. Descobri que os escritores, os atores, os conferencistas, os funcionários públicos – mesmo os maiores – vivem famintos de expressões de aprovação genuína. Costumamos pensar que eles vivem sufocados de elogios, quando na verdade vivem de migalhas. A publicidade dirigida, que funciona para mantê-los na ordem do dia, não os aquece. O que eles desejam ardentemente é a apreciação espontânea, humana, cordial, do povo ao qual procuram servir.
Outro dia estive no refeitório de um hotel onde tocava uma orquestra. Era uma boa orquestra, com um bom repertório, bem executado. Ao passar pelos músicos, na saída, parei e disse:
- Senhores, apreciei imensamente a música.
Por um segundo eles ficaram espantados, mas depois todos se abriram em sorrisos, e deixei-os satisfeitos com seus instrumentos. Devido a isto o meu dia também correu muito melhor.
Descobri também que é quase impossível dar qualquer coisa neste mundo sem receber alguma coisa em troca – contanto que a pessoa nada espere obter. Geralmente a recompensa vem de uma forma inesperada, provavelmente meses ou anos depois.
Por exemplo, um domingo pela manhã o correio do meu bairro entregou-me uma carta expressa importante em minha residência, embora estivesse endereçada para o meu escritório. Escrevi ao chefe da agência elogiando-o pela iniciativa. Mais de um ano depois precisei de uma caixa postal para um novo negócio que eu estava iniciando. Disserem-me no guichê que não havia caixas vagas, que o meu nome teria que ficar aguardando a vez numa longa lista. Eu já ia saindo quando o agente apareceu à porta. Ele tinha ouvido a conversa.
- Não foi o senhor que nos escreveu há um ano mais ou menos sobre uma carta expressa que foi entregue em sua residência?
Confirmei.
- Pois o senhor vai ter a sua caixa postal, nem que eu tenha de fazer uma. O senhor não sabe o valor que uma carta daquelas tem para nós. Geralmente só nos escrevem para reclamar.
Deram-me uma caixa na mesma hora.
Depois de anos de experiência, eis como me sinto a respeito do meu passatempo: tenho um emprego que me dá para viver; porque vou então regatear com o mundo as idéias e impulsos que me vêm? Que o mundo os utilize, se tiverem algum valor. A minha recompensa está em sentir que sou parte da vida do meu tempo, que estou fazendo o que posso para tornar as coisas mais interessantes para outras pessoas. E isso torna a minha vida mais interessante e a minha mente mais viva.
Como se isso não chegasse, verifico que os amigos se multiplicam, quê as coisas boas vem a mim de todas as direções. Estou convencido de que o mundo insiste em compensar os que dão – desde que a ele não estendam as mãos para receber recompensas.

terça-feira, maio 23

O colar de pérolas

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1972
Autor : Katsura Morimura

Foi um gesto de amor... um talismã que reuniu mãe e filha

“Por que esse colar de pérolas? Você não é a noiva”, disse o meu marido, quando apareci na sala toda vestida para o casamento dos nossos amigos. “E, por falar nisso, quem foi que lhe emprestou?”
“Mamãe. Foi presente meu, há muito, muito tempo”, respondi, com uma pontinha de orgulho na voz.
“Mas há muito, muito tempo, você não tinha dinheiro. Além disso, você o teria usado no nosso casamento.”
“Pois é, mas acontece que àquela altura eu não podia usa-lo”, disse eu, sorrindo feliz. E meus pensamentos recuaram 10 anos, ao tempo em que comprara aquele lindo colar de pérolas cor-de-rosa, e recordei a história por trás da sua compra e a sorte que viera com ele.

Eu tinha 19 anos e estava no segundo ano de faculdade, quando, em 1959, perdi meu pai, o escritor Saburo Toyota. Eu simplesmente o adorava, e ele vivia só para mim. Com mamãe, não me dava muito bem. Era de saúde muito delicada e sofria de insônia. Vivia se queixando de dores e problemas, histérica, freqüentemente, e parecia preferir livros e gatos às crianças e nossas exigências de afeto.
A morte de papai foi uma tragédia para nós duas, mas, tenho de admiti-lo, não foi uma cura instantânea para o que separava mãe e filha. Reparar anos de incompatibilidade não era coisa fácil. Nós mal nos comunicávamos, e não era raro minhas tentativas desajeitadas não encontrarem eco. Feriados como Ano Novo, eu preferia passa-los com amigos.
Quando voltara para casa, encontrava mamãe sozinha junto da lareira, praticamente como a deixara pela manhã. Embora jamais me dissesse uma palavra de recriminação, eu tinha uma sensação de culpa. Apesar de tudo, simplesmente não conseguia exprimir junto dela meus pensamentos mais íntimos.
Pelo que eu tinha observado, parecia-me que, quase sempre, as mães recuperavam-se do choque inicial da perda do marido e, com o tempo, assumiam a chefia da família. Com mamãe isso não aconteceu. Ela praticamente vivia num outro mundo, e eu dava graças aos Céus por ela não se suicidar. Só falava em papai e morria de medo do que ainda teria de viver. Às vezes, em autocomiseração, dizia: “Os caracteres japoneses que representam a palavra “viúva” significam também ‘aquela que ainda não morreu’.”
Seria eu jamais capaz de fazer mamãe deixar de pensar em papai? pensava, desesperada. Para piorar as coisas, a companhia onde meu irmão trabalhava transferiu-o para Toyohashi, no Oeste do Japão, e fiquei sozinha com mamãe. Tentava agrada-la trazendo-lhe doces e carne, gastando nisso o dinheiro que ganhava lecionando nas horas vagas. Certa vez, comprei polvos, porque sabia que ela adorava bolinhos de polvo fritos. “Eu resolvi não comer mais bolinhos de polvo”, disse-me ela, “porque era uma das coisas que seu pai mais gostava.”
Ela simplesmente não conseguia dizer duas palavras sem falar em papai! Eu explodi: “Ficar chorando eternamente a morte de papai não vai faze-la mais feliz. Você tem de se convencer de que ele não está mais aqui. Tem de pensar no futuro!”
“Para você está tudo muito bem”, retrucou ela. “É jovem. Mas seu pai era tudo o que eu tinha na vida. Você vive me criticando, Katsura. Que quer que eu faça?”
Assim mesmo, eu não desistia de tentar fazer que mamãe olhasse a vida com outros olhos. Aconteceu que, por sorte, na primavera seguinte um livro de poesias publicado por mamãe e mais cinco amigas ganhou um prêmio, e haveria uma festa para celebrar. Certo dia, pouco antes da festa, cheguei em casa, e mamãe estava experimentando o vestido listrado, cor de violeta, clarinho, que usaria no dia.
“Ficou lindo”, exclamei.
Olhando-a, senti um aperto no coração. Papai sempre tivera tanto orgulho da sua mulher tão linda, de pele tão clara. Se estivesse vivo, tinha a certeza de que daria jeito de arranjar um dinheirinho e comprar-lhe uma jóia que combinasse com o vestido novo. Por que não eu no lugar de papai? pensei.
Mas apenas 10 dias dos separavam da festa, e eu só tinha guardados 3.000 yens – o que mal daria para comprar um broche barato ou um colarzinho de pérolas artificiais. Mas eu achava que tinha de comprar para mamãe um lindo colar de pérolas cor-de-rosa! E queria que ela o tivesse enquanto ainda era jovem e bonita, para aproveita-lo. Mas como?
Depois de quebrar a cabeça, resolvi escrever ao presidente das Pérolas Mikimoto. Para dar as melhores pérolas, pensei, tinha de compra-las na melhor loja do Japão... e o dono da Mikimoto compreenderia o meu drama. Escrevi então: “Minha mãe tem de ir a uma festa em comemoração a um prêmio de poesia que ela ganhou. Se estivesse vivo, tenho quase a certeza de que papai lhe daria um colar de pérolas, e eu gostaria de adquirir-lhe um em seu lugar. Entretanto, disponho de apenas 3.000 yens. Seria possível a sua firma vender-me um colar a prestação? Se esperar até juntar o dinheiro, será tarde demais para a festa. Além disso, gostaria de dar o colar enquanto mamãe ainda é jovem e bonita. Por favor, perdoe-me a ousadia de escreve-lhe. Espero apenas que o senhor seja generoso o bastante para atender ao meu desejo.”
Três dias depois, recebi uma carta expressa do próprio punho do Sr. Yoshitaka Mikimoto: “Acho que o seu desejo de dar à sua mãe um presente no lugar do seu pai é uma coisa linda. É minha firme convicção que pérolas devem ser oferecidas com o coração cheio de amor. Mostre esta carta a qualquer funcionário da nossa loja na Ginza. Você poderá comprar o que quiser, a prestação.”
Senti-me no sétimo céu! Embora já estivesse escurecendo e eu vestisse caças compridas, pretas, e um suéter velho, saí correndo e fui direta para a elegante loja Mikimoto. Meio encabulada no meio daquelas freguesas bem vestidas, japonesas e estrangeiras, cheia de hesitações, mostrei a carta ao homem que parecia ser o gerente.
“Ah, sim”, disse o homem. “Recebi instruções para atende-la. Que tipo de colar gostaria de ver?” Era muito formal, mas seus olhos estavam cheios de bondade.
“Qual é o preço do colar de pérolas cor-de-rosa mais barato?”
“Dez mil yens.”
“Quero esse”, acabei resolvendo, apontando um colar da cor que eu queria. Era pequeno, mas eu não conseguia tirar os olhos dele. Era exatamente o que tinha imaginado. Na escola primária, tinha aprendido que as pérolas cor-de-rosa eram as melhores. Além disso, a cor era a que ia melhor com o tom de pele da mamãe.
“Vamos fazer 9.000 yens para a senhorita. Em três pagamentos está bem?”
era mais do que esperava conseguir, e eu não parava de agradecer. Observando-o arrumar o colar numa caixinha forrada de veludo vermelho, quase desmaiei de alegria.
Fiz o possível para esconder meus sentimentos até ao dia da festa. Esperei que mamãe se aprontasse, e entreguei-lhe a caixa, dizendo: “Por que não põe isto?” Havia tanta coisa que queria dizer-lhe... mas só consegui entregar-lhe a carta do Sr. Mikimoto e sair correndo da sala.
Quando voltei, mamãe tinha a carta amassada na mão e chorava baixinho. Depois depositou a carta no oratório budista da nossa família, e só então pôs o colar.
“Você está maravilhosa!” exclamei. Mamãe sorriu, encabulada. “Se soubesse que iria ganhar um colar de pérolas, teria mandado fazer um vestido decotado”, disse ela, dando risada. Havia muito eu não a ouvia rir com tanta felicidade.
“Muito, muito obrigada, Katsura querida. Estou tão feliz, tão feliz”, repetiu ela mil vezes.
Desse dia em diante, mamãe tornou-se realmente, verdadeiramente, minha mãe. Nunca deixou de lamentar a morte de papai, é certo, mas agora sabia que eu estava ao seu lado. Não apenas era minha mãe, mas minha amiga. Descobrira a alegria de viver e a de amar sua filha.
Até hoje, nunca vi nada tão bonito como esse colar de pérolas cor-de-rosa, a varinha mágica que eliminou o que separava mãe e filha. Por essa razão, jamais pedi o colar emprestado... nem no dia do meu casamento. Queria que mamãe soubesse que o comprara apenas para faze-la feliz. Havia-me feito compreender.
Muitas vezes me pergunto se o Sr. Mikimoto ainda se recorda desse seu gesto de bondade que fez uma menina muito, muito feliz. Dizia a verdade, sem dúvida, quando escreveu que as pérolas foram feitas para serem oferecidas com o coração cheio de amor. E, nesse sentido, a mim parece-me que o de mamãe é o mais bonito colar de pérolas do mundo.

segunda-feira, maio 22

A odisséia de um salvamento

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1978
Autor : Timothy Hall


Um pesadelo de pântanos e correntezas, cobras e crocodilos na noite escura e no dia escaldante.

Os acontecimentos que originaram a fantástica odisséia do policial Graham Robson, de Queensland, Austrália, registraram-se no dia 19 de fevereiro de 1976 no posto da polícia em Mount Isa. O inspetor Jack Vaudin ouviu atentamente quando Jessie Brown explicou como alugara um pequeno avião e, na companhia de sua nora, havia localizado seu filho Dennis, de 29 anos, que se encontrava encurralado num caminhão completamente cercado pelas águas da inundação que se estendia por vários quilômetros em todas as direções.
A sra. Jessie Brown apontou a Vaudin no grande mapa na parede o local onde exatamente Dennis se achava isolado: na estrada de Cvamooweal a Burketown, a 150 km ao sul do golfo de Carpentária.
“É aqui que ele se encontra”, disse-lhe absolutamente convicta, “e a água vem subindo rapidamente por todos os lados.”
“Não se preocupe”, tranqüilizou-a Vaudin. “Nós vamos fazer tudo para trazê-lo de volta.”
A ODISSÉIA de Dennis Brown principiara quatro dias antes quando ele partiu de sua pequena fazenda de gado, Frenchman’s Gardens, tentando fugir a uma tempestade tropical que começava a formar-se na região de Mount Isa, 250 km ao sul. Era a estação das chuvas, e os serviços meteorológicos já haviam registrado naquela área índices de precipitação pluviométrica de 550mm em apenas 24 horas. Os cursos de água, transbordando de seus leitos, muitas vezes isolavam remotas povoações do interior. Se ele não quisesse f içar ali retido durante dois ou três meses teria de partir imediatamente.
Dennis já ia dirigindo há sete horas quando, subitamente, seu caminhão de tração nas quatro rodas deu uma violenta guinada e as rodas da frente afundaram na estrada. O rapaz pulou para fora e imediatamente ficou mergulhado até a cintura em lama borbulhante com cheiro de enxofre que lhe sugava as pernas como se fosse areia movediça. Ele levara seu caminhão precisamente para dentro de uma das mais perigosas armadilhas que um motorista desavisado pode encontrar no interior da Austrália. Um estrato de rocha dura a uns quatro ou cinco metros abaixo do nível da estrada evita a infiltração das águas que escorrem das montanhas, com isso pouco a pouco o subsolo vai ficando saturado de água, mas a superfície do terreno, ressequida pelo Carlo do sol, forma uma crosta dura. Essa crosta é resistente o bastante para agüentar o peso de um homem ou mesmo o de um cavalo, mas qualquer veículo que passe por ali se perde irremediavelmente.
Dennis sabia que nunca seria capaz de sair dali a pé: sua perna esquerda fora afetada pela paralisia infantil e o jovem tinha dificuldade em caminhar. A povoação mais próxima, o lugarejo de Gregory Downs onde viviam apenas 12 pessoas, ficava a cerca de 67 km: e, como havia principiado a estação das chuvas, era muito pouco provável que qualquer outro veículo passasse por ali nos dois meses seguintes.
Naquela noite caíram 100mm de chuva em menos de uma hora, e os córregos transbordantes haviam cercado o rapaz. Durante todo o dia seguinte ele pelejou para tirar dali o caminhão, mas quando a noite chegou o veículo estava ainda mais atolado que antes. Não havia outra possibilidade senão esperar que fosse socorrido.
Na quarta-feira estava reduzido à sua última lada de carne. A temperatura subiu a 42º C, e o calor e a umidade iam minando suas energias. Na quinta-feira de manhã ele começou a se sentir fraco e mole. Então o avião Cessna que andava nas buscas roncou sobre sua cabeça e os tripulantes lançaram comida. Por alguns momentos o desespero de Dennis diminuiu.
De seu posto em Mount Isa o inspetor Vaudin dera instruções a dois dos seus mais competentes auxiliares: o sargento Ray Brand, de 39 anos, e o guarda Graham Robson, de 23. “Façam tudo que for possível!”, foi a ordem para salvar Dennis Brown. Seguindo as instruções, Ray e Graham meteram rações de emergência num carro da policia equipado com tração nas quatro rodas e rapidamente partiram de Camooweal, a cerca de 150 km a sueste do local onde Dennis se encontrava.
O caminho que tomaram transformou-se num autêntico pesadelo. Nos últimos 50km Ray e Graham avançavam quase como se fossem a passo ou mais lentamente ainda, aos solavancos em fundos buracos, atravessando caudalosos riachos e traiçoeiros areais, derrapando quase fora de controle em lamaçais negros. Numa extensão de centenas de metros a estrada estava submersa.
Só às 21:15, seis horas depois de terem saído de Camooweal, é que finalmente localizaram Dennis Brown, de pé ao lado de seu caminhão atolado. “Eu pensava que já tinha presenciado grandes emoções”, recordaria Ray mais tarde, “mas naquele momento foi que vi de fato a absoluta sensação de alivio e felicidade estampada no rosto de Dennis. Só isso valeu todo aquele esforço.”
Essa alegria dos três homens, porém, em breve iria descambar para o desespero. Quando a viatura de polícia começou a puxar o cabo amarrado ao caminhão de Dennis, abateu mais um pedaço do pavimento da estrada, e agora havia outro carro irremediavelmente atolado ali. Durante quatro horas eles escavaram e colocaram troncos por baixo das rodas, mas então, tal como acontecera com Dennis três dias antes, verificaram que a única coisa que haviam conseguido fora enterrar o caminhão ainda mais no lamaçal.
No meio daquele anfiteatro formado pelas montanhas circundantes, o rádio transmissor-receptor que haviam levado praticamente não funcionava, e com outra tempestade iminente os três corriam o perigo de serem engolfados por uma enxurrada. Então, mais ou menos à uma da madrugada, Grahan sugeriu que, sendo ele o que tinha melhores condições físicas e nascera e fora criado naquela região do interior, deveria tentar percorrer a pé os 67 km até Gregory Downs, para pedir auxilio. Em qualquer outra circunstância isso teria sido uma idéia quase suicida, mas aquela situação não era normal. Um pouco contrafeito, o sargento Ray Brand concordou, e Graham sem hesitar sumiu rapidamente dentro da noite.
Nos primeiros 10 km conseguiu progredir bem através da vegetação cheia de espinhos. Foi quando ele percebeu um som de água correndo violentamente. Na densa escuridão podia ouvir os ramos de árvores arrancadas quebrando e sendo arrastados pela correnteza do córrego agora turbulento e caudaloso. Graham calculou que aquele rio tivesse pelos menos uns 100m de largura e talvez 3 m de profundidade.
Entrou na água revolta, mas logo retrocedeu quando ouviu a jusante o ruído surdo de um crocodilo. Durante toda a sua vida ele sentira pavor desses répteis, e sabia que o rio Gregory, no qual aquele córrego desaguava uns quilômetros mais abaixo, era um refúgio dos crocodilos. Poucas semanas antes lera a notícia de que um caçador fora comido vivo por um crocodilo de 7 m um pouco mais ao norte naquela região.
Durante uns 10 minutos ficou na margem apurando o ouvido para tentar localizar o animal. Nisto sentiu vergonha: tinha prometido ir buscar ajuda e agora ali estava amedrontado, sem coragem de enfrentar o seu primeiro grande obstáculo.
Suspendendo a respiração, Graham entrou resolutamente no rio. Quando estava com água pelo peito murmurou uma prece e mergulhou. Embora fosse um excelente nadador ia sendo rapidamente arrastado pela corrente... em direção ao crocodilo. Ramos e troncos, muitos com peso suficiente para deixa-lo inconsciente, chocavam-se contra ele. A meio caminho ergueu-se para afastar aquilo que pensava ser um tronco comprido, mas, horrorizado notou que “a coisa” mexia: era uma enorme cobra-d’agua píton. Passado o susto, deixou que a água arrastasse a grande cobra, roçando a pele fria pelo seu rosto. Depois, com a água escorrendo das roupas, engatinhou pela margem.
Sua odisséia, na verdade, mal havia começado e ele já se defrontara com dois dos maiores perigos dos sertão australiano: os crocodilos e as cobras. As pítons não são venenosas, mas logo Grahan se fez consciente de outra ameaça que talvez fosse encontrar nos campos alagados mais adiante – cobras venenosas que tal como ele estariam procurando pontos mais altos ainda não inundados. Durante toda a noite ele se arrepiou só de pensar na possibilidade de pisar num bicho desses.
Durante os 15 km seguintes Graham andou a maior parte do tempo na água, muitas vezes com ela pela cintura. Tirou as sandálias, que na lama não lhe serviam para nada, e, quando seus shorts úmidos começaram a lhe esfolar a pele, tirou-os também. Escorregava e caia constantemente, arranhando-se e cortando-se nas pedras aguçadas. Era atacado por nuvens de mosquitos, as sanguessugas agarravam-se aos seus pés e tornozelos; lacraias enormes subiam-lhe pelas pernas e pelo corpo.
Por três vezes, quando atravessava o rio com água pela cintura, o chão cedeu subitamente debaixo de seus pés e ele ficou se debatendo com água até o pescoço enquanto a lama viscosa lhe sugava as pernas. Em todas as vezes conseguiu agarrar-se a tufos de vegetação e penosamente se soltou, já quase sem poder respirar e o coração batendo como louco. Apesar de tudo isso continuava dizendo para si: “Tenho de ir em frente. Preciso buscar ajuda.” E, pingando, tremendo e morrendo de medo, continuava seu caminho.
Começou a chover no memento em que ele avançava com dificuldade através do denso e negro lamaçal entre os tufos de mato que lhe batiam pela cintura. Suas virilhas estavam tão esfoladas que ele tinha de caminha de pernas abertas, como se fosse a cavalo. A chuva tornou-se torrencial e ao longe ele via os imensos riscos de fogo dos relâmpagos cruzando o céu – sinal de que outras tempestades vinham chegando e de que o perigo aumentava para o sargento Brand e para Dennis Brown.
Às cinco da manhã os primeiros alvores do dia devem ter salvo a vida de Grahan Robson: uns cinco ou seis passos à frente, no meio da picada, estava uma das maiores cobras que ele jamais tinha visto. Com bem mais de 2 m de comprimento e tão grossa como um pulso, a terrível cobra venenosa levantava a cabeça e oscilava de um lado para o outro preparando o bote. Durante segundos que pareceram uma eternidade o rapaz e o réptil fitaram-se mutuamente. Então, muito cautelosamente, Graham foi recuando sem tirar os olhos da cobra e, quando estava fora do alcance de um bote, correu.
Quando a temperatura alcançou 31º C e a umidade se tornou sufocante, Graham olhou para o relógio. Passara algum tempo e, portanto, ele devia ter percorrido certa distância. Seus instintos, porém, lhe diziam que tinha estado sempre no mesmo lugar. Abutres e urubus esvoaçavam lá no alto e isso trazia algo de sinistro à mente de Graham.
Avançando com dificuldade, quase mecanicamente, de cabeça baixa, o jovem começou a ter alucinações e caiu numa grande poça onde ficou por alguns minutos,. Prosseguindo em seu caminho, a princípio não se deu conta do ruído de um motor uns metros à sua frente. Então, levantando os olhos semicerrados, viu uma máquina de terraplenagem conduzida por um homem. Lentamente, ajoelhou-se na orla da trilha lamacenta e cingiu a cabeça com as mãos numa atitude de exaustão e alívio.
O motorista da máquina notou que Graham apresentava extensas queimaduras do sol, que as esfoladuras de suas pernas estavam sangrando e que todo o seu corpo era uma confusão de ferimentos e de picadas de moscas e mosquitos.
Não podia acreditar quando constatou que, em nove horas, Graham havia caminhado, rastejado e nadado por 67 km num terreno tão agreste como aquele. Levou o rapaz para Gregory Downs, onde rapidamente se reuniram a uma equipe de salvamento. Às 16:30 de sexta-feira, 20 de fevereiro, Graham encontrava-se de novo no local de onde partira para sua épica jornada, levando consigo através dos campos inundados uma pequena caravana para a difícil missão de resgatar Dennis Brown e o sargento Ray Brand.
Nessa noite, já em Camooweal (depois de 42 horas em permanente atividade), Graham murmurou para o sargento algo como sentir-se “um pouco cansado”. Dormiu mais de 12 horas.
Dennis Brown, que achou impossível expressar por palavras sua gratidão, recusou a oferta de Ray Brand de uma cama para essa noite. Telefonou à mulher para lhe dizer que estava salvo e que o que pretendia era chegar em casa sem demora. ÀS 5:00 da manhã ele estava em Mount Isa – seis dias depois de ter iniciado sua viagem.
Cartas e mensagens começaram a chegar ao posto da policia. O Departamento de Policia de Queensland conferiu a Graham Robson sua mais alta condecoração por coragem e dedicação ao serviço. A Real Sociedade Humanista da Austrália deu-lhe a sua medalha de prata por heroísmo, e em fevereiro de 1977, um ano depois de sua incrível odisséia, foi galardoado com a Medalha de Ouro Stanhope, a mais distinta condecoração da Sociedade Humanista da Grã-Bretanha, premiando o seu serviço como o maior ato de bravura registrado no ano anterior em toda a Comunidade Britânica.
Dennis Brown sente grande satisfação por todas as honrarias com que o jovem policial foi acumulado, mas acrescenta: “Enfrentar todas aquelas dificuldades para salvar uma pessoa que nunca se viu antes é o que define realmente um verdadeiro herói.”

sexta-feira, maio 19

O marquês, a porca e eu.

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1978
Autor : James Herriot

Em certos momentos, a vida de um veterinário vale mais que a de um rei

Eu tinha combinado começar o teste de tuberculina no gado de Lorde Hulton às 9:30 e, ao contornar os fundos da mansão elisabetana, em direção ao curral da fazenda, senti apreensão: não havia nenhum animal à vista. Apenas um homem com calças esfarrapadas construía um cercado provisório ( uma passagem delimitada por uma cerca mais estreita numa das extremidades) na saída do curral.
Virou-se ao ver-me e acenou com o martelo. Quando me aproximei, olhei admirado para a pequena figura com o cabelo alourado liso caindo sobre a testa, o casaco esburacado e as botas cobertas de esterco.
“Herriot, meu caro”, disse ele, “sinto muitíssimo, mas acho que ainda não estamos prontos para você iniciar seu trabalho.” E começou a remexer em sua bolsa de fumo.
William George Henry Augustus, 11º marquês de Hulton, sempre trazia na boca um cachimbo que estava invariavelmente enchendo, limpando ou tentando acender. Nas horas de tensão, tentava fazer tudo ao mesmo tempo.
“Estou muito triste, velho amigo”, disse ele espalhando palitos de fósforos em volta e deixando cair flocos de tabaco no piso de pedra. “Eu realmente prometi estar pronto às 9:30, mas esses malditos animais não cooperam.”
Tentei sorrir. “Ora, não tem importância, Lorde Hulton, hoje não estou com tanta pressa assim.”
Se eu fosse um marquês e um par de reino, pensei comigo, ainda estaria na cama, ou talvez tivesse entreaberto as cortinas para ver como estava o dia, mas lorde Hulton trabalhava o tempo todo, tanto quanto seus homens. Certa manhã, encontrei-o na tarefa sumamente prosaica de “juntar o esterco”; estava num monte de estrume com uma forquilha atirando as porções poeirentas sobre sua carreta. E se vestia sempre de farrapos. Naturalmente tinha roupas mais convencionais no guarda-roupa, mas nunca as vi.
Meus pensamentos foram interrompidos pelo trovão de cascos e mugidos selvagens; o gado de lode Hulton estava se aproximando. Em poucos minutos o curral ficou repleto de animais movendo-se em círculos, com a poeira levantando-se de seus corpos em redemoinhos.
“Guie a primeira para o cercado!” gritou o marquês para Charlie, capataz da fazenda. Uma vez confinada na estreita estacada, a vaca ficaria acessível para mim.
Ofegando, ansioso, o marquês apoiou-se nas bordas pregadas enquanto os homens do lado de dentro abriam o portão do curral. Não teve de esperar muito. Um peludo monstro castanho arremessou-se do interior, apareceu brevemente na apertada passagem e disparou a 75km/h pela outra extremidade com pedaços da obra de carpintaria do lorde pendurados nos chifres e no pescoço. O resto do gado seguiu logo atrás.
“Detenha-s! Acabe com isso!” gritou o pequeno par, mas foi em vão. Uma torrente cabeluda atravessou a abertura e, num instante, todo o rebanho corria para as montanhas num estouro selvagem. Os homens o seguiram, e em poucos minutos lorde Hulton e eu estávamos sozinhos como antes. “Veja só”, murmurou desapontado, “não funcionou muito bem, não foi?”
mas ele era feito de pedra. Segurando o martelo, começou a bater com o mesmo entusiasmo e nas hora em que os animais voltaram o cercado estava refeito e uma firma barra de ferro pressionava a parte da frente para evitar novas ultrapassagens.
O problema parecia definitivamente resolvido uma vez que a primeira vaca, quando se defrontou com a barra, ficou quieta e eu não tive dificuldade em raspar o pêlo do pescoço por uma abertura entre as traves, antes de injetar a tuberculina.
Tudo corria bem até que vimos a vaca que havia arrebentado a cerca. Apresentava um pequeno arranhão no pescoço.
“Vejam só aqui!” gritou o marquês. “Vai sarar?”
“Claro, isso não é nada”, concordei, para tranqüiliza-lo.
“Ah, bom. Mas você não acha que devíamos passar alguma coisa? Aquela pomada...”
Esperei. Lorde Hulton era fanático pelo creme Propamidine da May & Baker. Ele o adorava. Infelizmente jamais conseguia dizer “Propamidine”. Na verdade, ninguém mais em toda a fazenda conseguia dizer o nome, a não ser Charlie – que aliás pensava ser capaz de faze-lo. Ele dizia “Propopamide”, mas o marquês tinha toda a confiança nele.
“Charlie!” vociferou o marquês. “Você está aí, Charlie?”
o capataz apareceu e pôs a mão no chapéu. “Estou, milorde.”
“Charlie, aquele remédio maravilhoso que o Sr. Herriot nos deu – você sabe, para cortes e arranhões. Pro... Pero... Que diabo! Como é que se chama aquela coisa?”
Charlie fez uma pausa. Era o seu grande momento. “Propopamide, milorde.”
O marquês, imensamente satisfeito, deu um tapa no joelho das calças surradas. “È isso mesmo, Propopamide! Maldição, não consigo destravar esta minha língua direito. Muito bem, Chjarlie, você é fantástico!”
“Obrigado, milorde.” Charlie tinha a expressão convencida do especialista, quando levou o gado.
Apenas uma semana depois, quando toda a região estava silenciosa com o inverno implacável, o telefone ao lado de minha cama tocou, tirando-me do sono às 5:30.
“Alo!’ grunhi.
“Herriot... Alo, Herriot.... é você?” A voz estava tensa.
“Sim, sou eu, lorde Hulton.”
“Ah, ótimo.... ótimo.... Escute, peço mil desculpas. É realmente imperdoável acordá-lo assim.... mas algo de especial aconteceu.” Ouvi um suave tamborilar que imaginei serem fósforos caindo perto do aparelho.
Uma das melhores porcas de lorde Hulton, que tinha acabado de dar à luz 12 belos leitõezinhos, estava com um prolapso uterino*. Não adiantava eu dizer que não tinha atendido a mais de cinco casos de porcas com um prolapso assim e falhara em todos. Tinha que tentar. “Vou logo para aí”, murmurei.
Não havia lua e o tênue brilho da porta do chiqueiro era a única luz entre as negras linhas dos prédios. Lorde Hulton estava esperando e achei necessário avisa-lo de que provavelmente a porca teria que ser sacrificada.
Os olhos do homenzinho se arregalaram e os cantos da boca caíram. “Ora, não me diga! Que aborrecimento... um dos meus melhores animais. Eu.... eu gosto muito daquela porca.” Ele vestia um suéter de gola alta tão usada que a bainha pendia em longas franjas de lã quase até os joelhos e tremia ao tentar acender o cachimbo; parecia muito perturbado.
“Vou fazer todo o possível”, apressei-me a acrescentar. “Sempre há uma chance.”
“Ora, que bom homem!” Mais aliviado, o marquês deixou cair a bolsa e, ao curvar-se, a caixa de fósforos aberta derramou em volta de seus pés.
A realidade era tão ruim como eu pensava. Debaixo da única e fraca lâmpada elétrica do chiqueiro, uma inacreditavelmente longa massa vermelha de tecido animal muito sólido saía de trás de uma enorme porca branca deitada, imóvel, de lado. Enquanto tirava a camisa e enfiava os braços num balde fumegante, veio-me a idéia de que era ridículo tudo aquilo entrar de volta num buraco tão absurdamente pequeno. A impressão foi reforçada quando comecei a empurrar. Não aconteceu nada. Deitado, com o peito nu contra o concreto frio, lutei contra aquela coisa até que meus olhos se esbugalharam e minha respiração faltou, mas não consegui coisa nenhuma. Acabei tomando uma decisão: tinha de lhe dizer.
Voltei-me e olhei ofegante para o marquês, esperando tomar fôlego para falar. Mas, antes que minha boca elaborasse as palavras, o homenzinho fitou-me suplicante como se soubesse o que eu ia dizer. Tentou sorrir, olhou ansiosamente para mim, para a porca, para mim de novo. Da outra extremidade do animal um leve grunhido sem lamentação lembrou-me de que eu não era o único envolvido.
Deitei-me de bruços novamente, apoiei os pés contra a parede co chiqueiro e recomecei. Não sei por quanto tempo fiquei lá, deitado, empurrando, descansando, empurrando mais uma vez, ofegando e gemendo, com o suor a escorrer pelas costas. Foi aí que, sem motivo aparente, o monte de carne em meus braços pareceu diminuir. Concentrando o máximo de minha energia para um esforço final, empurrei. E, por milagre, o grande órgão desapareceu de vista.
“Que bravo rapaz! Veja só, maravilhoso! Mas que rapaz forte!” Ele estava quase dançando.
Rapidamente dei alguns pontos na vulva para impedir que o útero saísse novamente, e, exausto, apoiei-me na parede. Os olhos do homenzinho estavam cheios de preocupação. “Herriot, meu caro, você está esgotado! Vai acabar pegando uma pneumonia se continuar assim, seminu. Você precisa de uma bebida quente. Faça o seguinte: limpe-se que eu vou lá em casa pegar uma coisa.”
Eu estava abotoando o casaco quando o pequeno par voltou. Trazia uma bandeja com uma caneca de café fumegante e dois grandes pedaços de pão e mel. Colocou-a sobre um fardo de palha e usou um balde virado como banco. “Os criados ainda estão dormindo, meu caro”, disse ele. “Então eu mesmo preparei esta refeição ligeira para você.”
Sentei-me no balde e tomei um longo gole de café. Estava forte, escaldante, estimulante e espalhou-se como fogo por dentro de meu corpo cansado. Mordi um pedaço de pão feito em casa, fartamente coberto com manteiga de fazenda e uma generosa camada de mel de urza. Fechei os olhos em veneração, enquanto mastigava; depois peguei a caneca de café novamente, olhei para a pequena figura ao pé do cercado e desabafei: “Deixe-me dizer-lhe, milorde, que isto não é uma refeição ligeira, é um banquete!”
Sua face se iluminou com um contentamento maroto. “Bem, não me diga... Você acha realmente? Fico tão satisfeito! Mas você é que foi maravilhoso, meu rapaz. Não sei como expressar minha gratidão.”
Continuei a comer em êxtase, sentindo a energia voltar. Sentado ali no balde, entre os aromas misturados de porco, farinha de cevada e café, podia sentir um prazer que me atravessava em ondas. Olhando para dentro do chiqueiro, senti-me recompensado. Os leitõezinhos estavam de volta para sua mãe, lado a lado numa longa fila cor-de-rosa, enquanto as pequenas bocas procuravam as tetas. Um velho sentimento começou a borbulhar dentro de mim, um profundo senso de realização que vem depois de qualquer triunfo, mesmo dos menores.
Foi quando um outro pensamento começou a se insinuar em minha mente como um delicioso e impertinente zunido. Naquele momento, quem mais em toda a Grã-Bretanha estava comendo um café da manhã preparado – e depois servido – por um marques?

*Prolapso é a saída de um órgão ou de parte dele para fora de seu lugar.

A Volta do Mundo de Júlio Verne

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1978
Autor : George kent

Em 1978 comemoram-se os 150 anos do nascimento do inventor da ficção científica.

Na penúltima década do século passado, um homem de barba ruiva visitou um dia o ministro da Educação da França. O funcionário que o atendeu olhou para o cartão e seu rosto iluminou-se.
“Sr. Verne”, disse ele, oferecendo-lhe uma cadeira, “queira sentar-se. Quem viaja tanto como o senhor deve estar cansado.”
Júlio Verne, o escritor, devia estar exausto. Dera muitas vezes a volta ao mundo... uma vez em 80 dias. Percorrera 60 mil milhas submarinas, transportara-se à Lua e explorara o centro da Terra. Conversara com canibais na África, com indígenas no Orinoco. Com efeito, havia muito pouco da geografia do mundo que ele não conhecesse.
Mas o próprio Júlio Verne, como homem, era do tipo caseiro. Se sentia cansaço, só poderia ser entorpecimento de escritor. Durante 40 anos vivera sentado num pequeno quarto da torre vermelho-tijolo de sua casa em Amiens, escrevendo a mão, anos após ano, um livro de seis em seis meses.
Verne foi o grande idealizador de coisas do futuro. Concebeu a televisão antes de ser inventado o rádio: chamou-lhe fonotelefoto. Imaginou o helicóptero meio século antes de o homem aprender a voar. Poucas são as maravilhas do século XX que esse homem da era vitoriana deixou de prever: os submarinos, os aeroplanos, as luzes de gás néon, as calçadas rolantes, o ar-condicionado, os arranha-céus, os mísseis dirigidos, os tanques. Foi ele sem dúvida alguma o pai da ficção científica.
Verne escreveu sobre as maravilhas do futuro com tamanha riqueza e precisão de detalhes que sociedade de sábios o discutiam e matemáticos levavam semanas examinando seus cálculos. Quando foi publicado seu livro sobre a viagem à Lua, 500 pessoas se apresentaram voluntariamente para a expedição seguinte.
Aqueles que mais tarde foram inspirados por ele, prazerosamente lhe renderam homenagem. Ao regressar de seu vôo ao Pólo Norte, o almirante Byrd declarou que o seu guia fora Júlio Verne. Simon Lake, pai do submarino, escreveu no começo de sua autobiografia: “Júlio Verne foi o supremo orientador da minha vida.” August Piccard, aeronauta e explorados das profundezas do oceano, Marconi, celebrizado pela invenção do telégrafo sem fio – estes e muitos outros confessam que Júlio Verne foi o homem que impulsionou seu pensamento. Lyantey, o famoso marechal da França, disse uma vez na câmara de deputados em Paris que a ciência moderna se limitava a traduzir em realizações práticas o que Verne Imaginara.
O autor assistiu à realização de muitas de suas fantasias, e dizia com naturalidade: “Tudo o que alguém é capaz de imaginar, outro homem pode fazer.”
Quando Verne nasceu, perto de Nantes, em 1828, Napoleão acabava de morrer: Wellington era primeiro-ministro da Inglaterra; a primeira estrada de ferro não contava mais de cinco anos; os vapores que então cruzavam o Atlântico eram ainda providos de velas para auxiliar a pouca força das débeis máquinas.
Por insistência de seu pai, que era advogado, Júlio Verne foi para Paris, aos 18 anos de idade, a fim de estudar direito, mas interessava-se mais em escrever poesias e peças teatrais. Era espirituoso, atrevido, descuidado.
Uma noite, aborrecido com um sarau elegante a que assistia, saiu bruscamente e desceu pelo corrimão abaixo, indo cair sobre a pança de um corpulento cavalheiro que se dispunha a subir a escada. Júlio balbuciou a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “O senhor já jantou?”
O outro respondeu que sim. Jantara esplendidamente uma omelete à moda de Nantes.
A isso retorquiu Verne: “Ora, em Paris ninguém sabe fazer omelete à moda de Nantes!”
“O senhor sabe?” indagou o senhor corpulento.
“Mas é claro... eu sou de Nantes”, respondeu Verne.
“Muito bem, então vá jantar comigo na próxima quarta-feira... e faça a omelete.”
Assim começou a amizade de Júlio Verne com o autor de Os Três Mosqueteiros. O conhecimento com Alexandre Dumas confirmou no jovem o desejo de escrever. Ele e Dumas escreveram de colaboração uma peça que alcançou certo êxito. Depois, estimulado pelo mais velho, Júlio concebeu o projeto de fazer pela geografia o que Dumas tinha feito pela história.
Seu pai, descontente com a negligência do rapaz com os estudos, cortou-lhe a mesada. Júlio arranjou um modesto emprego num teatro, mas os anos que se seguiram foram difíceis. “Eu como bifes que poucos dias antes estavam puxando carroça em Paris”, escreveu à mãe. “Minhas meias”, referiu ele a um amigo, “parecem uma teia de aranha em que houvesse dormido um hipopótamo.”
Petulante, bem parecido, Júlio enamorou-se. Numa festa ele ouviu a moça dizer a uma amiga que suas “barbatanas de baleia” a estavam matando. Júlio observou: “Como eu gostaria de mergulhar e brincar com as baleias!” O pai da jovem ouviu-o, ficou furioso e enxotou imediatamente o escritor. Ele tornou a se enamorar, mas desta vez acabou casando.
Com a ajuda de seu pai, tornou-se então corretor de fundos públicos. Sua situação financeira melhorou, mas ele continuou morando numa água-furtada e escrevendo. Às seis hora da manhã estava à sua escrivaninha redigindo artigos científicos para uma revista infantil. Lá pelas 10 horas envergava a roupa de trabalho e ia para seu escritório na Bolsa.
Seu primeiro livro foi Cinco Semanas em um Balão. Quinze editores o devolveram. Num acesso de cólera, Júlio atirou o original ao fogo. Sua esposa salvou-o e fê-lo prometer que tentaria mais uma vez. O 16º editor finalmente aceitou –o .
Cinco Semanas em Um Balão, um sucesso de livraria, foi traduzido para todas as línguas civilizadas. Em 1862, com a idade de 34 anos, seu autor era famoso. Desistiu de ser corretor e assinou então um contrato pelo qual se obrigava a produzir dois romances por ano.
Seu livro seguinte: Viagem ao centro da Terra, principia com a descida de suas personagens à cratera de um vulcão, na Islândia. Passam por mil aventuras e finalmente saem deslizando sobre uma corrente de lava na Itália. Havia nesse livro tudo o que a ciência sabia ou podia conjeturar sobre o que se passava nas entranhas da Terra, e a que o autor adicionara o condimento da aventura. O público não se fartava de o ler. Ferdinand de Lesseps, que acabar de concluir o canal de Suez, ficou tão entusiasmado que usou sua influência para que Júlio Verne fosse agraciado com a Legião da Honra.
Quando tiveram um filho, os Vernes mudaram-se de Paris para Amiens. O dinheiro jorrava, Júlio comprou um iate, o maior que havia. Construiu uma casa com uma torre que continha um quarto que parecia cabina de capitão de navio. Ali, cercado de mapas e livros, passou os últimos 40 anos de sua vida.
Talvez o mais conhecido dentre os livros de Júlio Verne seja A volta ao mundo em oitenta dias. Enquanto ia sendo publicado por capítulos em Lê Temps de Paris, a marcha de seu herói, Phileas Fogg, que empreendia uma corrida contra o tempo a fim de ganhar uma aposta, despertou tamanho interesse que correspondentes de jornais de New York e Londres enviavam cabogramas diários informando sobre o lugar onde se encontrava o imaginário Fogg.
Faziam-se apostas num sentido e noutro – se ele chegaria ou não a Londres dentro do prazo a que se propusera. Habilmente, Verne mantinha vivo esse interesse: seu herói salvou da morte uma viúva hindu prestes a ser imolada na fogueira, apaixonou-se e por causa dela quase perdeu de vista seu objetivo. Atravessando as pradarias da América do Norte, foi atacado por peles-vermelhas e, quando chegou a New York, viu reduzido a um ponto no horizonte o navio que devia transporta-lo à Inglaterra.
Todas as companhias de navegação transatlântica ofereceram a Verne Grandes somas em dinheiro para que ele fizesse Phileas Fogg embarcar em um de seus navios. O autor recusou; o seu herói fretou um barco. Faltou-lhe combustível e, enquanto o mundo aguardava com a respiração suspensa, a equipagem queimava a estrutura de madeira do tombadilho e a mobília do camarote. Fogg alcançou Londres e o Reform Club poucos segundos antes da hora marcada. A conclusão é digna de citação: “Aos 57º segundo, abriu-se a porta da sala de visitas e, antes que o relógio de pêndulo marcasse o 60º segundo, Phileas Fogg apareceu e, com sua voz calma, disse: ‘Aqui estou eu, senhores’”
Foi isto em 1872. dezessete anos mais tarde, um jornal de New York contratou uma repórter chamada Nelly Bly para bater o recorde de Phileas Fogg – ela fez a volta ao mundo em 72 dias. Viajando por conta de um jornal inglês, o coronel Burnley-Campbell desceu essa marca para 68 dias. Posteriormente, graças à construção da Estrada de Ferro Transiberiana, que Verne sugerira muitos anos antes, um francês fez o mesmo em 43 dias.
Em Vinte Mil Léguas Submarinas, Verne inventou o submarino, o Nautilus, que não só era dotado de duplo casco e propelido a eletricidade, mas também era capaz de fazer o que dois cientistas ingleses conseguiram experimentalmente na década de 1950 – extrair eletricidade do mar. Podia fazer também o que o submarino atômico da Marinha dos Estados Unidos, o Nautilus, só em nossos dias foi capaz de fazer na realidade: permanecer submerso indefinidamente.
Um dos prescientes e menos lidos dos romances de Júlio Verne é o Diário de um Jornalista Norte-Americano no Ano de 2890. New York, chamada Cidade Universal, é a capital do mundo. Avenidas de 100m de largura são ladeadas por arranha-céus que alcançam a altura de 300m. o clima é controlado e há plantações no Pólo Norte. Os anúncios são projetados nas nuvens. O herói de Verne edita um jornal chamado Earth Herald, que conta 80 milhões de leitores. Os repórteres do Earth Herald transmitem pela televisão suas notícias de Júpiter, Marte e Vênus, e em suas próprias salas de estar os assinantes vêem o que vai pelos mundos. Custa crês que os livros de Júlio Verne tenham sido escritos há um século.
Os derradeiros anos do escritor não foram felizes. Os círculos intelectuais zombavam dele. Apesar de ser o escritor francês mais lido de sua geração, não foi eleito para a Academia Francesa. Acumularam-se os infortúnios. Ele foi acometido de diabetes e começou a sofrer da vista e dos ouvidos. Profeticamente sus últimos livros eram cheios de temos ante o advento de tiranos e totalitarismos.
Júlio Verne morreu em 1905. o mundo acompanhou os funerais – inclusive aqueles que o haviam escarnecido e ridicularizado, 30 dos membros da Academia Francesa, o corpo diplomático e representações especiais de reis e presidentes. Dos milhares de palavras de louvor, as que Júlio Verne mais teria apreciado foram estas duas frases de um jornal parisiense: “O velho contador de histórias morreu. É como a morte de Papai Noel.”

terça-feira, maio 16

Brincadeiras dos bichos

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1995
Autor : Douglas Harbrecht

Enquanto os cientistas estudam a fundo o comportamento lúdico dos animais, estes deitam e rolam.

Por todas as razões científicas, a tartaruga Pigface, que morreu de velhice em outubro de 1993, não devia ter jeito para jogar basquetebol. Afinal, o enorme animal africano era, por volta dos 50 anos, velho demais para ficar dando voltas pelo aquário com uma bola na ponta do focinho. Além do mais, brincar, que é coisa comum entre os mamíferos e aves, não é propriamente o forte dos répteis, animais de sangue frio. Quando postos em cativeiro, por questões de sobrevivência, logo ao nascerem, raramente exibem aquilo a que os cientistas chamam comportamento lúdico.
Pigface, porém, não sabia disso e todos os dias, durante horas, costumava deliciar os visitantes do Zôo Nacional de Washington. Os tratadores começaram por lhe atirar uma bola como distração temporária. Não esperavam que a tartaruga brincasse com aquilo, mas ela pareceu apreciar o exercício diário. Quem o conta é Gordon Burghardt, biopsicólogo da Universidade de Tennessee que prepara um ensaio que vai certamente provocar controvérsia no campo da ciência do divertimento. As tartarugas estão entre as espécies mais antigas do planeta e Burghandt acha que o comportamento “mamífero” delas pode ser devido à herança de seus antepassados, que se contavam entre as espécies de sangue quente semelhantes aos répteis.
Muito interessados recentemente em tartarugas que batem uma bolinha, macacos que jogam água uns nos outros e alces que correm atrás de folhas arrastadas pelo vento, os cientistas vêm procurando passar da anedota a estudos mais aprofundados, a fim de determinar as razões pelos quais os animais brincam. Mas o assunto permanece complexo e enigmático.
A primeira vez que o biólogo Robert Fagen, da Universidade do Alasca, observou corças de cauda branca correrem dentro da água, sacudindo o corpo e a cabeça, confessa: “Minha reação imediata foi pensar que elas tinham enlouquecido ou que eu estava tendo visões. Só mais tarde percebi que elas brincavam ali.”
Os pesquisadores apontam geralmente três modos básicos de os animais realizarem seus jogos: perseguição e luta simulada, repetição de destrezas locomotoras e uma tendência dos animais jovens de correr riscos em que haja perigo incluído.
Muitas cabriolices dos animais imitam brincadeiras infantis. Os macacos pulam carniça, as hienas jovens entretêm-se brincando de cabo-de-guerra e os morcegos vampiros jovens brincam de pegador, batendo com as asas uns nos outros.
Num mesmo nicho ecológico, aves e mamíferos parecem partilhar suas brincadeiras. Pica-paus, papagaios e warblers ( certo pássaro canoro) divertem-se perseguindo-se uns aos outros. Os falcões jovens, as corujas e as águias muitas vezes brincam com sua presa morta, tal como o fazem os gatos, as martas e os ursos.
Mas as brincadeiras dos animais nem sempre são coisas divertidas. Na vida selvagem podem ser perigosas. Os animais jovens não só constituem presas fáceis para os predadores, como podem ferir-se seriamente. Na África, os babuínos ficam à espera de que os macacos jovens apareçam para os agarrarem e comerem. O cabrito-montês siberiano, quando jovem, chega a se ferir mortalmente nas travessuras em terrenos rochosos. Apesar de tais perigos, a brincadeira pode ser uma forma de desenvolver técnicas de sobrevivência.
John Byers e outros zoólogos da Universidade de Idaho encontraram provas seguras de que é quando as células do cérebro animal e seu sistema nervoso se desenvolvem mais rapidamente que os bichos brincam mais. A propensão para a brincadeira parece estar mais interiorizada nos animais com cérebros maiores e ciclos de maturação mais longos. Assim, as baleias e os chimpanzés entregam-se a jogos mais elaborados e longos do que, por exemplo, os ouriços-cacheiros e os musaranhos.
Segundo Byers, 90% das brincadeiras das espécies mamíferas reproduzem um dos três comportamentos diferentes mais tarde usados na vida – a captura da presa, a fuga à captura e a luta com outros membros da mesma espécie. O fato de a maior parte dos animais passar um tempo tão significativo ( 100% da juventude) em brincadeiras “implica em que a natureza está tirando o máximo partido com o mínimo custo”, conclui Byers.
Para muitos animais, porém, a brincadeira representa também elaborada função de relações e estabelecimento de regras sociais. “Os animais que brincam juntos permanecem juntos”, observa Mark Bekoff, da Universidade do Colorado, em Boulder. De fato, estudos recentes demonstram que, através das brincadeiras, os animais aprendem a negociar com suas próprias espécies e a saber até onde podem avançar.
Vejam-se as focas das enseadas, as quais, por razões que só elas conhecem, não gostam de ser tocadas. John W. Lawson, etologista do Departamento de Pesca e Oceanos, em St. John’s, na Terra Nova, passou anos observando colônias dessas focas nas ilhas próximas. Quando os animais descansavam, reparou ele, faziam-no sempre separados uns dos outros. Uma vez, inadvertidamente, ele deixou cair um saco plástico que rebentou e roçou em uma cria. “O animal ficou enraivecido”, conta Lawson. “Correu para um adulto, que o mordeu e o atirou para o outro. O grupo acabou todo correndo para a água.”
Ele descobriu que o mesmo se vê nas brincadeiras das crias dessas focas. Os jovens reúnem-se na água e vão-se empurrando para terra, borrifando os adultos com a espuma do mar. O truque consistem em parar pouco antes de tocar em algum adulto, evitando com isso serem por ele mordidos. “Os animais pareciam estar aprendendo até onde podiam ir”, diz Lawson.
Maxeen Biben, zoólogo que estudou nos Institutos Nacionais de Saúde, de Washington, os jogos de primatas, diz que a brincadeira é para os jovens macacos uma forma de ganhar experiência das funções sociais “sem ser ferido ou morto”. Chamemos-lhe conceito de espírito esportivo da seleção natural.
Os animais jovens escolhem deliberadamente os parceiros que podem dominar na luta e permitem-lhes que eles os dominem uma vez. Estes jogos trazem experiência a ser usada na idade adulta, permitindo que ambos os participantes refinem os movimentos e as destrezas sociais de que precisarão mais tarde.
Tais brincadeiras de cunho social são assinaladas por uma variedade de formas. As doninhas indicam que é hora de brincar andando aos pulinhos, de pernas esticadas, dorsos arqueados e caudas erguidas. Os coiotes e os lobos curvam-se nas quatro patas e empinam os traseiros, como os cães quando pousam aos pés do dono algo que apanharam. Os papagaios da Nova Zelândia deitam-se de costas e balançam pequenos objetos nas patas, depois atiram-nos e correm atrás deles, aparentemente numa tentativa de atrair outros papagaios para a brincadeira.
Um das questões que mais intrigam os cientistas é aquela cuja resposta é dada pelo riso encantador de uma criança num playground. Sentir-se-ão gratificados os animais com suas brincadeiras? Pigface, a tartaruga jogadora de basquetebol, soltaria alguma exclamação de júbilo a cada encontrão dado nos nenúfares?
Alguns cientistas se mostram relutantes em classificar qualquer comportamento animal como brincadeira sem o terem estudado exaustivamente. Entre os gatos, verifica-se um fenômeno a que alguns pesquisadores tem chamado de “jogo de distensão”, em que um jovem felino molesta com selvageria sua presa durante uma hora ou mais. Há quem considere essa atividade uma celebração. Mas será ela mais que uma mera brincadeira? Terá alguma coisa a ver com os mecanismos impressos de sobrevivência no cativeiro do predador, forçados a uma sobrecarga?
Do mesmo modo, estarão as lontras que deslizam repetidamente por uma vertente nevada simplesmente se divertindo? Ou será esse ato uma reação ao terreno embutida em seu cérebro como um truque locomotor de sucesso numa espécie que de outro modo viveria em condições inferiores na Terra?
Os biólogos de campo pensam muitas vezes que a distinção entre divertir-se e reagir é extremamente tênue. Uma lontra dentro da água desliza de um modo análogo a, por exemplo, uma criança correndo alegremente pelo recreio de sua escola. Mas, definindo o que é brincar, diz Marc Bekoff: “Você pode dar-lhe o nome que quiser, mas não há como se enganar com a coisa.”

segunda-feira, maio 15

O que Anne Frank nos legou

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1995
Autor : Lawrence Elliot

Há 50 anos, uma adolescente anônima pareceu num dos campos de extermínio de Hitler, mas o diário que deixou continua a comover milhões de pessoas por todo o mundo.

De manhã cedo, na invernosa e úmida Amsterdam, um grupo de pessoas se abriga debaixo de guarda-chuvas, à porta de um incaracterístico edifício, de quatro andares, no nº 263 da Prinsegracht. Com bom ou mau tempo, ao longo do dia há sempre visitantes formando-se às vezes uma fila dupla que chega à esquina da rua. Esperam vez para subir a escada íngreme que dá acesso ao anexo secreto onde, há pouco mais de 50 anos, uma menina chamada Anne Frank escreveu o diário que conquistou os corações de todos.
O anexo fica nos fundos do edifício e tem quatro pequenos quartos dispostos em dois andares, com um sótão por cima. As almas desesperadas que ali se esconderam dos nazistas morreram há muito, mas meio século após terem sido denunciadas e capturadas por eles, sua história, graças aos escritos de Anne, ainda permanece viva.
Eram oito, duas famílias e um outro adulto, os que estiveram confinados neste espaço durante 25 meses, dia e noite cheios de medo, implicando uns com os outros e passando intermináveis horas de aborrecimento, interrompido apenas por acessos de terror paralisante.
Mas o ânimo de Anne nunca desfaleceu. Apenas três semanas antes do fim, ela explicou, com uma espantosa percepção, a razão por que mantinha intactas todas as suas convicções:
Ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas no fundo tem bom coração. É me completamente impossível construir minha vida sobre alicerces de caos, sofrimento e morte. Vejo o mundo se transformar a pouco e pouco num deserto. Ouço aproximar-se o trovão da tempestade. Sinto o sofrimento de milhões. E, contudo, quando olho para o céu, pressinto que esta crueldade terminará e que voltarão a reinar a paz e a tranqüilidade.
Quando o diário foi publicado, seu impressionante sim à vida, diante da morte suscitou a compaixão de milhões de pessoas por toda a parte. Desde sua primeira publicação em holandês, o texto foi traduzido em 55 idiomas e dele se venderam 25 milhões de exemplares.
Nada revela mais a importância duradoura de Anne do que a quantidade de pessoas (9.000 em 1960, 600.000 no ano passado) que visitam esta casa sossegada.
Anneliese Marie Frank nasceu a 12 de junho de 1929, em Frankfurt, na Alemanha, no seio de uma família judia que ali vivia há muitas décadas. O pai, Otto Heinrich Frank, fora oficial do exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial, mas, quando Hitler subiu ao poder e atribuiu aos judeus a responsabilidade pelas dificuldades por que passava a Alemanha, decidiu mudar-se com a família para Amsterdam. Em dezembro de 1940, abriu nessa cidade uma loja de especiarias e ervas no decrépito edifício do século XVII nº 263 da Prinsengracht, junto a um canal ladeado de árvores. Seus poucos empregados apreciavam-no por ser um patrão correto e cheio de consideração.
Os primeiros anos em Amsterdam foram felizes para Anne. No bairro agradável em que viviam os Frank, o passado alemão foi-se esfumando, e ela começou a se sentir cada vez mais holandesa. A opinião geral era de que a irmã Margot, três anos mais velha, era mais bonita e mais inteligente, mas Anne, com seu espírito alerta e seu encanto, era mais dada e extrovertida. Gostava de cinema, mitologia grega e meninos.
Em maio de 1940, os exércitos de Hitler assolaram a neutra Holanda. Nove meses depois, começaram as perseguições da polícia aos judeus e, em setembro de 1941, Anne e Margot tiveram de ser transferidas para uma escola só para judeus. Em abril do ano seguinte, estes foram obrigados a andar com uma estrela amarela de identificação cosa à roupa.
A 12 de junho de 1942, Anne começou a escrever seu diário. Era um volume fino, com uma capa de xadrez vermelho e branco, que lhe foi oferecido pelos pais nesse dia, em que fazia 13 anos. As primeiras páginas estavam cheias de pequenas e confusas bisbilhotices da escola, mas, passada uma semana, ela já escrevia:
20 de junho. Os judeus foram intimados a entregar umas bicicletas. Os judeus não podem andar de ônibus nem de automóvel, mesmo que tenham um. Os judeus estão proibidos de circular na via pública entre as 20 e as 6 horas e estão impedidos de se sentarem em seus jardins depois das 20 horas.
O pai de Anne vinha fazendo preparativos para esconder a família nesses quatro quartos abandonados, por baixo do sótão do 263 da Prinsengracht. Aos domingos, Otto passava para o anexo secreto utensílios caseiros, mobília e caixas de comida enlatada. Sabendo que seria essencial ajuda externa, confiou nos quatro empregados – Johannes Kleiman, Victor Kugler e duas jovens secretárias, Miep Gies e Bep Voskuijl.
Conta Anne: 5 de julho. Há dias, papai começou a falar em nos esconder. Parecia tão sério que senti medo. “Não se aflija”, me disse ele. “Limite-se a gozar sua vida despreocupada enquanto puder.” Oxalá estas palavras sombrias se concretizem o mais tarde possível.
Poucas horas depois de Anne redigir esta entrada no diário, uma ordem de chamada das SS foi entregue a Margot Frank, de 16 anos. Tinha de se apresentar na tarde seguinte, para ser transportada para um campo de trabalho na Alemanha. A família não podia esperar mais. Na madrugada seguinte, todos os Frank desapareceram simplesmente. Margot foi a primeira. Descoseu a estrela amarela e, numa bicicleta emprestada, dirigiu-se, na companhia de Miep Gies, para o esconderijo, sob uma forte chuvarada de verão. Anne e os pais seguiram atrás, a pé, cada um de nós com uma saca de escola e um saco de compras bem cheios com variada quantidade de objetos.
Afastaram-se de tudo quanto amavam no mundo, exceto uns dos outros. Dias depois, conforme anteriormente combinado, foi ter com eles no esconderijo uma família de judeus também em perigo, Hermann Van Pels, um comerciante colega de Otto, a mulher e Peter, o filho de 15 anos. Nessa época, já corria o boato de que os Frank haviam fugido para a Suíça.
11 de julho. É como estar de férias numa pensão estranha.Aqui pode ser úmido e desconjuntado, mas não deve haver esconderijo mais confortável m toda a Holanda. Até agora, o nosso quarto, de paredes brancas, estava muito nu, mas, graças a papai, que trouxe minha coleção de astros do cinema, cobri as paredes de fotografias.
Esse quarto comprido e estreito onde dormiam Anne e Margot ficava ao lado do de seus pais; a família Van Pels ocupava os outros dois cômodos. Uma estante amovível, feita especialmente, ocultava a única entrada para o anexo secreto, e todas as janelas estavam cobertas com cortinas de proteção.
Ali dentro, observavam-se as precauções mais rigorosas no que dizia respeito aos cozinhados, à descarga do lixo e ao uso do banheiro único. Todos falavam em voz baixa durante o dia, com medo de serem ouvidos pelos empregados da loja da firma, que nada sabiam sobre o fato de viverem ali em cima aqueles fugitivos. Andavam pela casa de meias e só quando era absolutamente necessários.
O verão de 1942 passou-se numa seqüência de dias entediantes. Em novembro, Miep veio contar-lhes que o dentista deles, Fritz Pfeffer, estava desesperado para encontrar um esconderijo. Margot mudou-se para o quarto dos pais e, passado pouco tempo, Anne partilhava suas acomodações com o recém-chegado.
Os quatro fiéis empregados os visitavam depois de os outros terem saído do edifício, levando-lhes comida e produtos difíceis de obter – sabonete, pasta de dentes, aspirina. Também forneciam-lhes livros e revistas.
Nunca disseram uma palavra sobre o encargo pesado que deveríamos representar para eles, escreveu Anne.
Ela pedia notícias sobre amigos e suas famílias, mas nunca eram boas. As emissões clandestinas de BBC, davam nota de deportações em massa. Quando Pfeffer chegou, contou-lhes que os alemães andavam de casa em casa à procura de judeus.
Quando escurece, costumo ver filas compridas de pessoas boas e inocentes numa marcha interminável. Todas são encaminhadas para a morte. Sinto-me tão egoísta, dormindo numa cama quentinha, e assusto-me quando penso em meus amigos mais chegados, nesse momento à mercê desses monstros cruéis como nunca houve outros na face da Terra. E só porque são judeus! Mais tarde, escreveu: Mas não direi mais nada sobre esse assunto. As próprias idéias que me ocorrem causam-me pesadelos!
Tais pesadelos eram bem reais. Uma vez, a loja foi arrombada por ladrões, e a polícia veio dar uma busca no edifício, enquanto os oito se agarravam uns aos outros no anexo secreto. Passos na escada, depois alguém batendo na estante. “Agora estamos perdidos!” penso eu. Depois os passos se afastaram. Estávamos fora de perigo – por enquanto!
Quando Anne deixou de ter páginas livres no diário, Miep trouxe-lhe do escritório folhas soltas e livros de contabilidade em branco, e ela continuou a escrever. O diário era seu melhor amigo, conforme ela deixou registrado, e nele Anne dava largas à imaginação, já que fisicamente estava cercada. Sinto-me como um pássaro cujas asas foram arrancadas e que continua a atirar-se contra as grades da gaiola escura. Dois meses depois de escrever estas palavras, perguntava-se: Será que alguma vez compreenderão que sou apenas uma adolescente simplesmente necessitada de me divertir como deve ser?
A princípio, ela não se interessou por Peter Van Pels, o menino de 15 anos tímido e desajeitado, cuja companhia não é lá grande coisa. Mas, na primavera de 1944, quando estava quase fazendo 15 anos, os dois jovens apaixonaram-se. Costumavam encontrar-se no sótão, onde havia uma janela que dava para o azul do céu.
16 de abril. A data de ontem é memorável. Não é importante para todas as meninas o dia do primeiro beijo? Papai não quer que eu suba tantas vezes as escadas, mas gosto de estar com Peter. Confio nele.
Anne lia muito – Ah, ainda tenho tanta coisa para descobrir e aprender! – e aspirava escrever um livro que se chamasse O Anexo Secreto, com base no diário. Jornalista, é isso que quero ser um dia! Sei que sou capaz de escrever. Quero continuar a viver mesmo depois da morte! E é por isso que me sinto tão agradecida a Deus por ter me dado este dom, que posso utilizar para exprimir tudo quanto trago dentro de mim!
Às 20 horas de 6 de junho de 1944, o noticiário da BBC informava sobre o desembarque dos Aliados na Normandia. A esperança percorreu o anexo. Seria esse o ando da vitória e da liberação? Anne fantasiava: seria possível estar de volta à escola no próximo período? Dias depois, comemorou o 15º aniversário.
O fim chegaria na manhã de sexta-feira, 4 de agosto, depois de passarem 761 dias escondidos. Por volta das 10:30, um automóvel parou diante do 263 da Prinsengracht e policiais à paisana, conduzidos por outros fardados, entraram correndo no edifício. Com as armas apontadas, forçaram Victor Kugler a leva-los até a estante falsa e ordenaram-lhe que a deslocasse. Momentos depois, os oito judeus estavam presos. Apareceu um caminhão coberto que os levou, juntamente com Kugler e Johannes Kleiman.
As duas secretárias, Miep Gies e Bep Voskujl, esperaram até o fim do dia antes de entrarem no anexo secreto. Os nazistas tinham revirado tudo. Miep começou a recolher papéis espalhados no chão. Passado pouco tempo, tinha nas mãos um valor bem maior que o dinheiro e jóias saqueadas – o diário de Anne.
Um mês depois, os oito fugitivos da Prinsengracht foram metidos no último trem de transporte de prisioneiros da Holanda para Auschwitz. Lá, os homens e as mulheres foram separados, para nunca mais se encontrarem.
Levaram Anne e Margot para Bergen-Belsen, na Alemanha central, onde, como dezenas de milhares de outras pessoas, ela foi vitimada pelo tifo. Anne tratou de Margot até o fim e morreu depois da irmã, em março de 1945, semanas antes da entrada das tropas inglesas no campo.
Quem os traiu em Amsterdam? Possivelmente, quem terá cobiçado o resgate pago pelos nazistas por cada judeu entregue terá sido um empregado novo na loja, curioso a respeito dos andares superiores. Mas, embora ele tenha sido submetido a investigações por duas vezes, nunca chegou a ser acusado.
Kleiman e Kugler ficaram presos na Holanda, mas por fim voltaram ao trabalho na 263 da Prinsengracht.
Otto, Frank o único dos oito judeus a sobreviver, foi libertado de Auschwitz pelos soviéticos, em janeiro de 1945. Acabou voltando a Amsterdam, onde foi viver com Miep Gies e o marido, Jan. Quando souberam da morte de Anne, Miep entregou-lhe o diário, dizendo: “Esta é a herança que lhe deixou sua filha;”
Otto Frank levou muito tempo até acabar de ler o manuscrito. Depois, lentamente, dolorosamente começou a datilografar uma cópia para dar a ler a amigos e parentes. Passado um anos, o diário foi publicado com o título escolhido por Anne, O Anexo Secreto, e assim se cumpriu seu desejo de vir a ser escritora.
A prosa vigorosa e simples de Anne, escrupulosamente revista por ela e incendiada pela tensão própria de uma narrativa de qualidade, será sempre uma recordação amarga do que podemos quando sua vida foi ceifada. Como alguém escreveu num dos livros de visitantes do 263 da Prinsengracht: “Se eu só pudesse ter dois livros até o fim da vida, escolheria a Bíblia e o Diário de Anne Frank.”
Não tardou muito para as pessoas começarem a bater à porta do nº 263, pedindo para ver o anexo secreto. Anos depois, o local foi destinado a demolição, para se construírem novos prédios. Só a indignação da opinião pública pode impedi-lo. Criou-se uma fundação de recolha de donativos para a reconstrução do edifício, em que estaria incluída uma área para exposições. A 3 de maio de 1960, a Casa de Anne Frank foi oficialmente aberta aos visitantes.
Hoje, a pessoa que se esgueirar pela estante amovível entra logo no quarto dos Frank. Ainda pendurada na parede, vê-se o mapa da Normandia onde Otto assinalou o avanço dos exércitos aliados. Ao lado do mapa, estão as linhas traçadas a lápis com que ele registrava o crescimento das três crianças que nunca chegaram à idade adulta.
O quarto de Anne é a seguinte. As fotografias das estrelas de cinema ainda estão coladas na parede, fotos desmaiadas que, naquela prisão, lhe proporcionaram alegria e ilusão. É difícil não se sentir aqui a presença de Anne. Muitas pessoas saem do quarto com lágrimas nos olhos.
Um estudante universitário americano que viajou de Londres especialmente para conhecer a Casa de Anne Frank, disse: “Ela enfrentava aqui a morte e mesmo assim fez transparecer o seu sentido de humor no diário, e sonhou com uma vida depois da guerra. O que demonstra que não é a forma ou o memento em que se morre que contam, mas sim a maneira como se vive.”
Otto Frank morreu em 1980, com 91 anos. De todos os que presenciaram o drama do anexo secreto, só Miep Gies está ainda viva. Atualmente com 85 anos, afirmou que todos os dias lamenta que as coisas não tenham sido diferentes, “que, mesmo que o mundo não viesse a conhecer o diário de Anne, ela e os outros tivessem se salvado.”
Ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas no fundo tem bom coração, escreveu Anne. Até os dias de hoje, ela continua a ser, para todos nós, uma luz que ilumina a escuridão.