quarta-feira, maio 3

Uma amiga para Josie

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1972
Autor : Jean Lucchesi

Duas menininhas, uma branca, a outra aborígene, acreditavam que a sua amizade duraria para sempre.

O pátio de recreio da minha primeira escola parecia o mesmo que havia 35 anos, quando Fairfield era um lugar quietinho, ainda não absorvido pelos subúrbios de Sidney. Havia lá uma porção de prédios novos, mas a escolinha de tijolos escuros, com a data 1888 inscrita no alto da porta, continuava ali a um canto, perto do portão dianteiro. As árvores também continuavam ali como sempre, os eucaliptos enormes, de folhinhas tenras, caídas, tentando fugir ao sol, e os arbustos retorcidos e esparramados.
Ansiosa pela grande aventura – o primeiro dia de aula – minha filha rapidamente misturou-se à paisagem. Olhei-a durante algum tempo, sentindo-me triste e desnecessária, transportando-me aos meus dias de escola. Mesmo sem querer, lembrei-me com carinho e penda da minha melhor amiga, Josie, a aborigenezinha, e de como acreditáramos que nossa amizade jamais terminaria. Parecia-me ver as duas ali paradas, sob uma árvore ou no fundo do recreio, e era como olhar uma velha fotografia, familiar mas estranhamente remota...
“Por que está chorando?”, Josie perguntou-me no meu primeiro dia.
“Perdi o meu lenço.”
“Use o meu.”
O lenço de Josie era um pedaço de pano cortado de uma saia velha e embainhado; aceitei-o, agradecida. Com seus grandes olhos castanhos, Josie olhava-me solenemente – uma menina de cinco anos, gorducha, sardenta, num vestido velho, sapatos do tipo que o Governo dava aos pobres e um capote que fazia as vezes do blazer do colégio. Ambas havíamos feito a nossa primeira amizade.
Fomos reunidas pela pobreza. Em 1936, a Austrália começava a sair da Depressão, mas a divisão entre os que tinham muito e os que tinham quase nada era penosamente aparente nas escolas públicas. De mãos dadas, Josie e eu entramos na fila que se encaminhava para as salas de aula. Sentamo-nos juntas e, cheias de inveja, vimos outras crianças erguerem os tampos das suas mesas e guardar bonecas, brinquedos de corda e sacos de bolinhas de gude.
No lanche, sentadinhas num banco sob os eucaliptos, dividimos nossos sanduíches, tímidas, olhando os meninos e meninas correndo, fugindo aos redemoinhos que o vento oeste fazia girar pelo empoeirado pátio de recreio. Cheia de coragem, perguntei: “Podemos brincar também?” As crianças pararam e olharam-nos fixamente: “Você pode. Ela não.” Uma delas gritou. “Ela é suja.”
Josie não disse nada, mas seus olhos castanhos ficaram parados e ela voltou o rosto. “Ela não é suja!”, gritei. “Não é, não!” Tomei-a pela mão e arrastei-a para um canto do recreio, por trás das quadras de tênis.
Daí em diante, Josie e eu sentávamos juntas na aula, tomávamos lanche juntas e brincávamos de coisas que só precisassem de duas pessoas – necessariamente solitárias. Mortas de vontade de fazer parte daquele grupo alegre e barulhento, éramos tímidas demais para tentar de novo.
Tínhamos também a mesma dificuldade de aprender. Era uma espécie de miragem que perseguíamos e não conseguíamos pegar, porque o medo era maior que a necessidade de pedir esclarecimentos, o medo de sermos ridicularizadas pelas outras crianças. Passou-se mais de um ano, e nós duas percebemos que os professores cada vez mais nos deixavam de lado. O ritmo da classe era marcado pelas crianças mais espertas; os professores não podiam ficar esperando pelas mais lentas.
Para passar o tempo, fazíamos desenhos nos cadernos ou nos quadros-negros. Eu desenhava naves espaciais, inspirada pelas histórias de Buck Robers. Josie desenhava principalmente pássaros – umas asas estranhas e incorpóreas, bem desenhadas, cheias de expressão, que transmitiam uma extraordinária sensação de vôo e um desejo de liberdade, de escapar àquela árida sala de aulas. Perguntei por que suas asas não tinham corpo, mas nunca obtive uma resposta satisfatória. Percebi que associava corpo com pessoas; ela não confiava em corpos.
Era com impaciência que esperávamos, todos os dias, a hora do lanche, na qual, pelo menos durante uma hora, podíamos entrar num mondo que entendíamos – um mundo da nossa própria invenção, cheio de coisas maravilhosas. Nuvens tornavam-se cachorros e gatinhos, cavalos e castelos de fadas, e nós ficávamos tristes quando mudavam de forma ou eram carregadas pelo vento. Quando o céu estava luminosamente limpo, dizíamos que eram as planícies do interior australiano, populadas apenas por nós e por animais maravilhosos. Com uma vara, Josie desenhava cobras arrastando-se por entre coalas e ursinhos; em seguida, eu assumia o papel de uma caminhante perdido nos enormes areais azuis, morto de sede, que ela vinha salvar aos saltos, numa imitação maravilhosa de um canguru falante.
Durante uma hora por dia, a vida era isto, as duas brincando sozinhas, desenhando com uma vara na areia do chão e trocando sanduíches, porque trocados eram mais gostosos.
Mas havia sempre, mesmo no nosso pequeno reinado de faz-de-conta sob as árvores, a noção da presença de outras crianças, aquelas figuras que passavam correndo, os seus risos, os seus gritos.
Embora nós disséssemos que não fazia mal, continuávamos querendo participar dos jogos animados, brincar com as bonecas que falavam, com os brinquedos de corda, partilhar dos segredos sussurrados, saber o que ia escondido nos bolsos das túnicas.
Aniversários eram as nossas grandes festas. Não tínhamos dinheiro, normalmente, mas, quando uma de nós fazia anos, os pais davam umas moedinhas para comprar presente, em geral, um saquinho de caramelos. Para mim, a moedinha de prata com que comprei o presente de Josie parecia a coisa mais rara do universo. A caminho da escola, gastei-a mil vezes mentalmente. Mas só quando cheguei à confeitaria em frente à escola foi que começaram realmente o planejamento e os cálculos – as somas, multiplicações e divisões para determinar o maior número possível dos caramelos mais desejáveis que podiam ser comprados com a pratinha. De uma garota que tirava as piores notas da classe em aritmética, olhando so vidros de caramelos transformei-me num gênio financeiro. Os caramelos eram de todas as qualidades, cores, formas e sabores.
Mais tarde, sentadas num daqueles bancos baixos sob as árvores, Josie e eu executávamos as cerimônias de dar e receber presentes. Josie fazia uma mágica, para que o momento durasse o mais possível, até não conseguirmos agüentar mais; o presente, o saquinho de caramelos fechado com um laço, era então entregue. A que estivesse de aniversário escolhia primeiro, e a cabeça inclinava-se sobre os caramelos em pura agonia de indecisão. Não se dizia palavra, e ficávamos ali chupando os caramelos duros e redondos, dos que duravam mais, tirando-os da boca de vez em quando para ver se tinham mudado de cor. Os problemas da aula eram esquecidos; éramos amigas e tínhamos pela frente uma vida inteira de aniversários.
Dois ou três dias por ano, as outras crianças esqueciam suas antipatias por Josie. Ela era a melhor corredora da sua idade, e ninguém a derrotava nas competições escolares. Com suas longas perninhas voando, levantando a poeira, ela disparava até à fita de chegada – e ganhava.
Nesses momentos, as outras crianças reuniam-se à volta de Josie, dando vivas e batendo palmas, fazendo festas e dando palmadinhas nas costas. Josie murmurava agradecimentos, mas os olhos castanhos ficavam parados, não demonstrando alegria ou triunfo – nem gratidão. Saltando orgulhosa à sua volta, com minhas sardas brilhando, eu ficava pensando na razão de as outras crianças serem tão cruéis. Josie não apenas ganhava as corridas para nós, como era boazinha, delicada, inventava jogos fantásticos e fazia mágicas. E não era suja!
No ano do nosso oitavo aniversário, tivemos dois professores que, por motivos bem diferentes, nos aproximaram ainda mais. Miss Johnson era uma jovem entusiástica, cheia de teorias sobre inteligências lentas: ela acreditava no uso da régua. Quando me pedia que soletrasse alguma palavra, e eu não sabia, lá vinha a régua nas minhas pernas. “Vá ficar de pé diante da classe”, ordenava. “Agora use a cabeça! Pense!” Mas minha cabeça estava sempre vazia, e eu ficava ali, odiando os que se riam, odiando Miss Johnson.
O outro era o Sr. Wilson – magro e zangado, rápido com a bengala, mas justo, que costumava tirar a dentadura inferior, embrulhá-la num lenço e guardá-la numa caixa. As outras crianças tinham-lhe medo, mas, sem dentes, para mim e para Josie, ele parecia tão vulnerável como nós. Era um homem raro, um professor dedicado, que se preocupava igualmente com os alunos atrasados e com os mais inteligentes. Mandava-me resolver um problema, e eu ia lá para a frente da classe e resolvia sem medo.
“O seu desenho é muito interessante, Josie”, ele dizia. “Você desenha muito bem. Vamos ver agora se melhoramos a sua letra. Segure a caneta assim.”
Um dia, na hora do lanche, o Sr. Wilson liberou a classe e saiu. Ainda nas nossas carteiras, Josie e eu olhamo-nos espantadas: “Ele esqueceu os dentes”, disse Josie. “Não vai conseguir comer o sanduíche dele.” Sem temor, abrimos a sua pasta, apanhamos o lenço dobrado e corremos atrás dele. “Olhe aqui, Sr. Wilson, aqui estão eles! Agora o senhor pode comer os seus sanduíches.” Sem se embaraçar, ele recebeu a dentadura, riu e nos agradeceu.
Foi pouco depois da chegada do Sr. Wilson que Josie começou a fazer corpos nos seus pássaros.
Antes de Josie levar-me à sua casa, certa tarde, depois das aulas, eu sabia que éramos diferentes das outras crianças; mas jamais me dera conta, completamente, de como éramos diferentes uma da outra. Fiquei esperando no portão, enquanto minha amiga entrava na velha casa em ruínas e pedia licença para entrar com uma visita. Depois de longos e enervantes minutos, a mãe de Josie apareceu na varanda e olhou para mim através do gramado. Não deu um sorriso, não disse uma palavra. Seus olhos refletiam desconfiança, hostilidade. Enquanto me afastava, experimentei uma emoção completamente nova, misto de ressentimento e confusão. Josie jamais tornou a convidar-me para casa, mas nossa amizade continuou a mesma, por meses.
O fim foi rápido e cruel. Um grupo de meninas brincava, gritando e rindo alto. Josie e eu olhávamos, cheias de inveja, loucas para brincar.
Finalmente, pedi: “Podemos brincar?”
Veio a temida resposta: “Você pode, ela não.”
Subitamente dava-me conta de que, enquanto fosse amiga de Josie, não faria parte da turma, ficaria à parte durante os longos anos de escola que tinha pela frente. A idéia era insuportável. Corri para as meninas que esperavam a vez de saltar a corda, dizendo para mim mesma que isto era o que eu queria fazer e desesperadamente tentando afastar o olhar de profunda desolação dos olhos escuros e fundos de Josie.
Depois de todos eses anos, aquele olhar continua presente. Ali, no pátio do recreio, eu continuava vendo aquela figurinha pobremente vestida, sozinha num canto, desenhando na areia os estranhos pássaros sem corpo. Olhando minha filhinha correndo com as outras crianças, com suas feições e cores variadas mostrando como a imigração modificara o povo australiano, tive a esperança de que ela jamais teria de fazer a escolha cruel a que eu fora submetida.

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