quinta-feira, maio 4

O capitão que não recuou

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1981
Autor : Geofrey Bocca


num dado momento sulcávamos águas azuis; no momento seguinte estávamos rodeados de cadáveres e despojos – barcos salva-vidas vazios, coletes salva-vidas, caixas... e, porto dali, um submarino alemão rompia velozmente o oceano.”

O cargueiro Agia Marina não se enquadrava nada no cenário da Segunda Guerra Mundial. Era um vetusto navio, um cargueiro de convés corrido construído na Grã-Bretanha em 1912 e vendido aos gregos em 1924. se não fosse a guerra ter rebentado, a sua velha carcaça teria provavelmente sido desmantelada em 1940.
Relegado sempre para os mais lentos comboios de navios, arrastava-se ruidosa mas zelosamente, de um lado para o outro, no Atlântico Norte. Embora eu fosse ainda muito jovem, tive a honra de prestar serviço nesse navio, na época em que os submarinos alemães levavam a cabo a sua grande ofensiva, nos anos de 1942-1943. Foi aí que adquiri o espírito filosófico que me amparou durante a guerra e que desde então me tem guiado.
O Agia Marina era motivo de chacota entre os marinheiros aliados; seu casco parecia fino como latão e, de cada vez que explodia por perto uma carga de profundidade, abria fendas. Seus proprietários gregos eram tão econômicos que proibiam até a compra de bandeiras novas; as velhas eram lavadas tantas vezes que acabavam por ficar sem cor alguma. Dado que não tínhamos câmara frigorífica, o convés estava transformado em quintal, com carneiros, porcos e galinhas.
O capitão Georgios Chrysochos, comandando do Agia Marina, como bom grego, costumava ser dado a cenas emotivas, tinha quarenta e poucos anos e era impressionantemente bem parecido, como ele próprio bem o sabia.
Sob o seu comando navegava uma tripulação poliglota extremamente excêntrica. Havia um ex-bombeiro que compartilhava o seu beliche com 15 gatos, e ainda um marinheiro que, sempre que o navio entrava num porto, tinha a mania de publicar um anúncio num jornal local, procurando casamento. Possuía uma coleção de centenas de cartas e fotos de moças quase tão bonitas como as mais famosas estrelas de cinema. Ficava sentado no seu camarote, sorrindo para elas. Nunca lhes respondeu e era um homem perfeitamente feliz.
Largamos de Halifax, Nova Scotia, numa manhã do final de outono de 1942, integrados num comboio de navios que se deslocava lentamente, à velocidade de cinco nós, em direção a Loch Ewe, Escócia. Entre outra carga, transportávamos no convés, bem visíveis, oito tanques do exército dos Estados Unidos, precisamente a espécie de carga que mais atraía os ataques dos submarinos alemães.
No segundo dia de viagem, um daqueles típicos nevoeiros cerrados da Terra Nova se abateu sobre nós. Nessas ocasiões, os comboios mantinham-se unidos mais pela força de vontade do que por qualquer outra razão. Para evitar alertar os submarinos, o único meio de comunicação entre eles eram as sirenes de nevoeiro e as bóias rebocadas por cada navio para guiar o que seguia atrás.
Passados três dias, deixamos de ouvir as sirenes e de ver as bóias. Prosseguimos a meia velocidade, tendo o nevoeiro como única proteção contra os submarinos alemães. Quando a névoa se dissipou no quarto dia, estávamos a sós no meio do Atlântico. Eu era marinheiro só desde o princípio da guerra e nunca havia navegado fora de um comboio de navios. Estar sozinho no mar pela primeira vez quase me entontecia.
O capitão Chrysochos estava encostado à amurada da ponte de comando, com o queixo apoiado nas mãos. Tinha de tomar uma decisão terrível; sabia que à distância de alguns dias de viagem, voltando atrás, estavam Halifax e a segurança. À nossa frente tínhamos uns 3.2000 km de perigos a enfrentar. Naquele momento, a norte da nossa posição, um comboio estava sendo massacrado pelos submarinos alemães; o nosso telegrafista de bordo ia ficando cada vez mais perturbado, à medida que ouvia os pedidos de socorro.
O capitão, l´na ponde de comando, endireitou-se. Repôs o desbotado boné sobre os cabelos pretos encaracolados, acendeu um cigarro e tragou o fumo longa e voluptuosamente. O momento era dramático e ele não tinha intenção nenhuma de desperdiça-lo.
“Aquilo que está ali”, declarou, apontando para os tanques amarrados ao convés, “é necessário lá do outro lado.” Apontando em direção da Europa, acrescentou: “A toda a velocidade para a Escócia!”
a maioria dos marinheiros gregos se benzeu, mas uma sensação de euforia se apoderou de nós. Redobramos de cuidado; passamos a vestir nossos coletes salva-vidas até para ir ao banheiro. Dia após dia, o velho Agia marina seguiu seu rumo, enquanto o rádio captava os sinais em código Morse enviados pelos navios torpedeados.
Se o mar estivesse encapelado, poderíamos contar com alguma proteção, mas o tempo estava ótimo: o mar tranqüilo e prateado confundia-se imperceptivelmente com o céu azul. A nossa denunciadora fumaça preta, que nenhuma brisa perturbava, jorrava na nossa esteira como um traço retilíneo, até o horizonte.
Apesar disso, a euforia da tripulação aumentava. Embora não tivéssemos consciência disso, no íntimo amávamos aquele velho e sujo barco e nos sentíamos orgulhosos pela sua nova missão.
Subitamente, aquela euforia acabou. Num dado momento sulcávamos águas azuis, mas, no momento seguinte, estávamos rodeados de cadáveres e despojos – barcos salva-vidas, escadas de madeira, coletes salva-vidas, caixas, etc. o navio afundado devia transportar um carregamento de farinha, porque o nosso estava singrando um mar que parecia de pasta pegajosa. A catástrofe devia ter ocorrido há poucas horas.
A silenciosa mensagem que esta terrível cena nos enviava não era outra senão: fujam depressa daqui! O submarino devia andar ainda rondando sob o nosso casco, em busca de mais uma vítima.
O rosto do capitão Chrysochos estava cinzento. “Navegar a meia velocidade”, ordenou. De pé, ao leme, senti as pernas moles.
Não íamos fugir. Pelo contrário: íamos ficar onde estávamos e procurar sobreviventes. Ouvimos o barulho do motor diminuindo. Todos os que não se achavam de serviço estavam encostados à amurada ou em cima de escadas, vigilantes, em busca de algum sobrevivente. Não muito longe, um submarino inimigo sulcava as águas, submerso.
De repente tive consciência daquilo por que lutava. Não foi a coragem do capitão que me inspirou; a coragem adquire-se facilmente em tempo de guerra. Não; nosso capitão estava simplesmente nos demonstrando o que era o supremo humanitarismo, que amedrontava Hitler e que este procurava eliminar da face da terra.
Somente quando já era noite e após várias horas de buscas foi que o capitão deu ordem de avançar a toda a velocidade. Não foram encontrados sobreviventes, mas nessa noite dormimos com as consciências perfeitamente tranqüilas.
Uma semana depois aportamos a Loch Ewe, com a farinha que se tinha empastado sobre o nosso velho casco ferrugento fazendo-nos parecer mais decrépitos do que nunca. Dezenas de navios hasteando bandeiras do mundo livre estavam ancorados no porto. Vimos seus marinheiros apontando para os nossos animais no convés e rindo de nós que nem loucos. Não nos importamos. A nossa desbotada bandeira drapejava orgulhosamente.
O nosso navio havia adquirido nobreza, e nós compartilhávamos dela. Ao longo dos anos que desde então se passaram, a lição de altruísmo que o capitão Georgios Chrysochos nos deu não se desvaneceu da minha memória. Perante a morte, o comandante não abandonou os seus semelhantes.

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