segunda-feira, maio 15

O que Anne Frank nos legou

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1995
Autor : Lawrence Elliot

Há 50 anos, uma adolescente anônima pareceu num dos campos de extermínio de Hitler, mas o diário que deixou continua a comover milhões de pessoas por todo o mundo.

De manhã cedo, na invernosa e úmida Amsterdam, um grupo de pessoas se abriga debaixo de guarda-chuvas, à porta de um incaracterístico edifício, de quatro andares, no nº 263 da Prinsegracht. Com bom ou mau tempo, ao longo do dia há sempre visitantes formando-se às vezes uma fila dupla que chega à esquina da rua. Esperam vez para subir a escada íngreme que dá acesso ao anexo secreto onde, há pouco mais de 50 anos, uma menina chamada Anne Frank escreveu o diário que conquistou os corações de todos.
O anexo fica nos fundos do edifício e tem quatro pequenos quartos dispostos em dois andares, com um sótão por cima. As almas desesperadas que ali se esconderam dos nazistas morreram há muito, mas meio século após terem sido denunciadas e capturadas por eles, sua história, graças aos escritos de Anne, ainda permanece viva.
Eram oito, duas famílias e um outro adulto, os que estiveram confinados neste espaço durante 25 meses, dia e noite cheios de medo, implicando uns com os outros e passando intermináveis horas de aborrecimento, interrompido apenas por acessos de terror paralisante.
Mas o ânimo de Anne nunca desfaleceu. Apenas três semanas antes do fim, ela explicou, com uma espantosa percepção, a razão por que mantinha intactas todas as suas convicções:
Ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas no fundo tem bom coração. É me completamente impossível construir minha vida sobre alicerces de caos, sofrimento e morte. Vejo o mundo se transformar a pouco e pouco num deserto. Ouço aproximar-se o trovão da tempestade. Sinto o sofrimento de milhões. E, contudo, quando olho para o céu, pressinto que esta crueldade terminará e que voltarão a reinar a paz e a tranqüilidade.
Quando o diário foi publicado, seu impressionante sim à vida, diante da morte suscitou a compaixão de milhões de pessoas por toda a parte. Desde sua primeira publicação em holandês, o texto foi traduzido em 55 idiomas e dele se venderam 25 milhões de exemplares.
Nada revela mais a importância duradoura de Anne do que a quantidade de pessoas (9.000 em 1960, 600.000 no ano passado) que visitam esta casa sossegada.
Anneliese Marie Frank nasceu a 12 de junho de 1929, em Frankfurt, na Alemanha, no seio de uma família judia que ali vivia há muitas décadas. O pai, Otto Heinrich Frank, fora oficial do exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial, mas, quando Hitler subiu ao poder e atribuiu aos judeus a responsabilidade pelas dificuldades por que passava a Alemanha, decidiu mudar-se com a família para Amsterdam. Em dezembro de 1940, abriu nessa cidade uma loja de especiarias e ervas no decrépito edifício do século XVII nº 263 da Prinsengracht, junto a um canal ladeado de árvores. Seus poucos empregados apreciavam-no por ser um patrão correto e cheio de consideração.
Os primeiros anos em Amsterdam foram felizes para Anne. No bairro agradável em que viviam os Frank, o passado alemão foi-se esfumando, e ela começou a se sentir cada vez mais holandesa. A opinião geral era de que a irmã Margot, três anos mais velha, era mais bonita e mais inteligente, mas Anne, com seu espírito alerta e seu encanto, era mais dada e extrovertida. Gostava de cinema, mitologia grega e meninos.
Em maio de 1940, os exércitos de Hitler assolaram a neutra Holanda. Nove meses depois, começaram as perseguições da polícia aos judeus e, em setembro de 1941, Anne e Margot tiveram de ser transferidas para uma escola só para judeus. Em abril do ano seguinte, estes foram obrigados a andar com uma estrela amarela de identificação cosa à roupa.
A 12 de junho de 1942, Anne começou a escrever seu diário. Era um volume fino, com uma capa de xadrez vermelho e branco, que lhe foi oferecido pelos pais nesse dia, em que fazia 13 anos. As primeiras páginas estavam cheias de pequenas e confusas bisbilhotices da escola, mas, passada uma semana, ela já escrevia:
20 de junho. Os judeus foram intimados a entregar umas bicicletas. Os judeus não podem andar de ônibus nem de automóvel, mesmo que tenham um. Os judeus estão proibidos de circular na via pública entre as 20 e as 6 horas e estão impedidos de se sentarem em seus jardins depois das 20 horas.
O pai de Anne vinha fazendo preparativos para esconder a família nesses quatro quartos abandonados, por baixo do sótão do 263 da Prinsengracht. Aos domingos, Otto passava para o anexo secreto utensílios caseiros, mobília e caixas de comida enlatada. Sabendo que seria essencial ajuda externa, confiou nos quatro empregados – Johannes Kleiman, Victor Kugler e duas jovens secretárias, Miep Gies e Bep Voskuijl.
Conta Anne: 5 de julho. Há dias, papai começou a falar em nos esconder. Parecia tão sério que senti medo. “Não se aflija”, me disse ele. “Limite-se a gozar sua vida despreocupada enquanto puder.” Oxalá estas palavras sombrias se concretizem o mais tarde possível.
Poucas horas depois de Anne redigir esta entrada no diário, uma ordem de chamada das SS foi entregue a Margot Frank, de 16 anos. Tinha de se apresentar na tarde seguinte, para ser transportada para um campo de trabalho na Alemanha. A família não podia esperar mais. Na madrugada seguinte, todos os Frank desapareceram simplesmente. Margot foi a primeira. Descoseu a estrela amarela e, numa bicicleta emprestada, dirigiu-se, na companhia de Miep Gies, para o esconderijo, sob uma forte chuvarada de verão. Anne e os pais seguiram atrás, a pé, cada um de nós com uma saca de escola e um saco de compras bem cheios com variada quantidade de objetos.
Afastaram-se de tudo quanto amavam no mundo, exceto uns dos outros. Dias depois, conforme anteriormente combinado, foi ter com eles no esconderijo uma família de judeus também em perigo, Hermann Van Pels, um comerciante colega de Otto, a mulher e Peter, o filho de 15 anos. Nessa época, já corria o boato de que os Frank haviam fugido para a Suíça.
11 de julho. É como estar de férias numa pensão estranha.Aqui pode ser úmido e desconjuntado, mas não deve haver esconderijo mais confortável m toda a Holanda. Até agora, o nosso quarto, de paredes brancas, estava muito nu, mas, graças a papai, que trouxe minha coleção de astros do cinema, cobri as paredes de fotografias.
Esse quarto comprido e estreito onde dormiam Anne e Margot ficava ao lado do de seus pais; a família Van Pels ocupava os outros dois cômodos. Uma estante amovível, feita especialmente, ocultava a única entrada para o anexo secreto, e todas as janelas estavam cobertas com cortinas de proteção.
Ali dentro, observavam-se as precauções mais rigorosas no que dizia respeito aos cozinhados, à descarga do lixo e ao uso do banheiro único. Todos falavam em voz baixa durante o dia, com medo de serem ouvidos pelos empregados da loja da firma, que nada sabiam sobre o fato de viverem ali em cima aqueles fugitivos. Andavam pela casa de meias e só quando era absolutamente necessários.
O verão de 1942 passou-se numa seqüência de dias entediantes. Em novembro, Miep veio contar-lhes que o dentista deles, Fritz Pfeffer, estava desesperado para encontrar um esconderijo. Margot mudou-se para o quarto dos pais e, passado pouco tempo, Anne partilhava suas acomodações com o recém-chegado.
Os quatro fiéis empregados os visitavam depois de os outros terem saído do edifício, levando-lhes comida e produtos difíceis de obter – sabonete, pasta de dentes, aspirina. Também forneciam-lhes livros e revistas.
Nunca disseram uma palavra sobre o encargo pesado que deveríamos representar para eles, escreveu Anne.
Ela pedia notícias sobre amigos e suas famílias, mas nunca eram boas. As emissões clandestinas de BBC, davam nota de deportações em massa. Quando Pfeffer chegou, contou-lhes que os alemães andavam de casa em casa à procura de judeus.
Quando escurece, costumo ver filas compridas de pessoas boas e inocentes numa marcha interminável. Todas são encaminhadas para a morte. Sinto-me tão egoísta, dormindo numa cama quentinha, e assusto-me quando penso em meus amigos mais chegados, nesse momento à mercê desses monstros cruéis como nunca houve outros na face da Terra. E só porque são judeus! Mais tarde, escreveu: Mas não direi mais nada sobre esse assunto. As próprias idéias que me ocorrem causam-me pesadelos!
Tais pesadelos eram bem reais. Uma vez, a loja foi arrombada por ladrões, e a polícia veio dar uma busca no edifício, enquanto os oito se agarravam uns aos outros no anexo secreto. Passos na escada, depois alguém batendo na estante. “Agora estamos perdidos!” penso eu. Depois os passos se afastaram. Estávamos fora de perigo – por enquanto!
Quando Anne deixou de ter páginas livres no diário, Miep trouxe-lhe do escritório folhas soltas e livros de contabilidade em branco, e ela continuou a escrever. O diário era seu melhor amigo, conforme ela deixou registrado, e nele Anne dava largas à imaginação, já que fisicamente estava cercada. Sinto-me como um pássaro cujas asas foram arrancadas e que continua a atirar-se contra as grades da gaiola escura. Dois meses depois de escrever estas palavras, perguntava-se: Será que alguma vez compreenderão que sou apenas uma adolescente simplesmente necessitada de me divertir como deve ser?
A princípio, ela não se interessou por Peter Van Pels, o menino de 15 anos tímido e desajeitado, cuja companhia não é lá grande coisa. Mas, na primavera de 1944, quando estava quase fazendo 15 anos, os dois jovens apaixonaram-se. Costumavam encontrar-se no sótão, onde havia uma janela que dava para o azul do céu.
16 de abril. A data de ontem é memorável. Não é importante para todas as meninas o dia do primeiro beijo? Papai não quer que eu suba tantas vezes as escadas, mas gosto de estar com Peter. Confio nele.
Anne lia muito – Ah, ainda tenho tanta coisa para descobrir e aprender! – e aspirava escrever um livro que se chamasse O Anexo Secreto, com base no diário. Jornalista, é isso que quero ser um dia! Sei que sou capaz de escrever. Quero continuar a viver mesmo depois da morte! E é por isso que me sinto tão agradecida a Deus por ter me dado este dom, que posso utilizar para exprimir tudo quanto trago dentro de mim!
Às 20 horas de 6 de junho de 1944, o noticiário da BBC informava sobre o desembarque dos Aliados na Normandia. A esperança percorreu o anexo. Seria esse o ando da vitória e da liberação? Anne fantasiava: seria possível estar de volta à escola no próximo período? Dias depois, comemorou o 15º aniversário.
O fim chegaria na manhã de sexta-feira, 4 de agosto, depois de passarem 761 dias escondidos. Por volta das 10:30, um automóvel parou diante do 263 da Prinsengracht e policiais à paisana, conduzidos por outros fardados, entraram correndo no edifício. Com as armas apontadas, forçaram Victor Kugler a leva-los até a estante falsa e ordenaram-lhe que a deslocasse. Momentos depois, os oito judeus estavam presos. Apareceu um caminhão coberto que os levou, juntamente com Kugler e Johannes Kleiman.
As duas secretárias, Miep Gies e Bep Voskujl, esperaram até o fim do dia antes de entrarem no anexo secreto. Os nazistas tinham revirado tudo. Miep começou a recolher papéis espalhados no chão. Passado pouco tempo, tinha nas mãos um valor bem maior que o dinheiro e jóias saqueadas – o diário de Anne.
Um mês depois, os oito fugitivos da Prinsengracht foram metidos no último trem de transporte de prisioneiros da Holanda para Auschwitz. Lá, os homens e as mulheres foram separados, para nunca mais se encontrarem.
Levaram Anne e Margot para Bergen-Belsen, na Alemanha central, onde, como dezenas de milhares de outras pessoas, ela foi vitimada pelo tifo. Anne tratou de Margot até o fim e morreu depois da irmã, em março de 1945, semanas antes da entrada das tropas inglesas no campo.
Quem os traiu em Amsterdam? Possivelmente, quem terá cobiçado o resgate pago pelos nazistas por cada judeu entregue terá sido um empregado novo na loja, curioso a respeito dos andares superiores. Mas, embora ele tenha sido submetido a investigações por duas vezes, nunca chegou a ser acusado.
Kleiman e Kugler ficaram presos na Holanda, mas por fim voltaram ao trabalho na 263 da Prinsengracht.
Otto, Frank o único dos oito judeus a sobreviver, foi libertado de Auschwitz pelos soviéticos, em janeiro de 1945. Acabou voltando a Amsterdam, onde foi viver com Miep Gies e o marido, Jan. Quando souberam da morte de Anne, Miep entregou-lhe o diário, dizendo: “Esta é a herança que lhe deixou sua filha;”
Otto Frank levou muito tempo até acabar de ler o manuscrito. Depois, lentamente, dolorosamente começou a datilografar uma cópia para dar a ler a amigos e parentes. Passado um anos, o diário foi publicado com o título escolhido por Anne, O Anexo Secreto, e assim se cumpriu seu desejo de vir a ser escritora.
A prosa vigorosa e simples de Anne, escrupulosamente revista por ela e incendiada pela tensão própria de uma narrativa de qualidade, será sempre uma recordação amarga do que podemos quando sua vida foi ceifada. Como alguém escreveu num dos livros de visitantes do 263 da Prinsengracht: “Se eu só pudesse ter dois livros até o fim da vida, escolheria a Bíblia e o Diário de Anne Frank.”
Não tardou muito para as pessoas começarem a bater à porta do nº 263, pedindo para ver o anexo secreto. Anos depois, o local foi destinado a demolição, para se construírem novos prédios. Só a indignação da opinião pública pode impedi-lo. Criou-se uma fundação de recolha de donativos para a reconstrução do edifício, em que estaria incluída uma área para exposições. A 3 de maio de 1960, a Casa de Anne Frank foi oficialmente aberta aos visitantes.
Hoje, a pessoa que se esgueirar pela estante amovível entra logo no quarto dos Frank. Ainda pendurada na parede, vê-se o mapa da Normandia onde Otto assinalou o avanço dos exércitos aliados. Ao lado do mapa, estão as linhas traçadas a lápis com que ele registrava o crescimento das três crianças que nunca chegaram à idade adulta.
O quarto de Anne é a seguinte. As fotografias das estrelas de cinema ainda estão coladas na parede, fotos desmaiadas que, naquela prisão, lhe proporcionaram alegria e ilusão. É difícil não se sentir aqui a presença de Anne. Muitas pessoas saem do quarto com lágrimas nos olhos.
Um estudante universitário americano que viajou de Londres especialmente para conhecer a Casa de Anne Frank, disse: “Ela enfrentava aqui a morte e mesmo assim fez transparecer o seu sentido de humor no diário, e sonhou com uma vida depois da guerra. O que demonstra que não é a forma ou o memento em que se morre que contam, mas sim a maneira como se vive.”
Otto Frank morreu em 1980, com 91 anos. De todos os que presenciaram o drama do anexo secreto, só Miep Gies está ainda viva. Atualmente com 85 anos, afirmou que todos os dias lamenta que as coisas não tenham sido diferentes, “que, mesmo que o mundo não viesse a conhecer o diário de Anne, ela e os outros tivessem se salvado.”
Ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas no fundo tem bom coração, escreveu Anne. Até os dias de hoje, ela continua a ser, para todos nós, uma luz que ilumina a escuridão.

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