terça-feira, maio 23

O colar de pérolas

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1972
Autor : Katsura Morimura

Foi um gesto de amor... um talismã que reuniu mãe e filha

“Por que esse colar de pérolas? Você não é a noiva”, disse o meu marido, quando apareci na sala toda vestida para o casamento dos nossos amigos. “E, por falar nisso, quem foi que lhe emprestou?”
“Mamãe. Foi presente meu, há muito, muito tempo”, respondi, com uma pontinha de orgulho na voz.
“Mas há muito, muito tempo, você não tinha dinheiro. Além disso, você o teria usado no nosso casamento.”
“Pois é, mas acontece que àquela altura eu não podia usa-lo”, disse eu, sorrindo feliz. E meus pensamentos recuaram 10 anos, ao tempo em que comprara aquele lindo colar de pérolas cor-de-rosa, e recordei a história por trás da sua compra e a sorte que viera com ele.

Eu tinha 19 anos e estava no segundo ano de faculdade, quando, em 1959, perdi meu pai, o escritor Saburo Toyota. Eu simplesmente o adorava, e ele vivia só para mim. Com mamãe, não me dava muito bem. Era de saúde muito delicada e sofria de insônia. Vivia se queixando de dores e problemas, histérica, freqüentemente, e parecia preferir livros e gatos às crianças e nossas exigências de afeto.
A morte de papai foi uma tragédia para nós duas, mas, tenho de admiti-lo, não foi uma cura instantânea para o que separava mãe e filha. Reparar anos de incompatibilidade não era coisa fácil. Nós mal nos comunicávamos, e não era raro minhas tentativas desajeitadas não encontrarem eco. Feriados como Ano Novo, eu preferia passa-los com amigos.
Quando voltara para casa, encontrava mamãe sozinha junto da lareira, praticamente como a deixara pela manhã. Embora jamais me dissesse uma palavra de recriminação, eu tinha uma sensação de culpa. Apesar de tudo, simplesmente não conseguia exprimir junto dela meus pensamentos mais íntimos.
Pelo que eu tinha observado, parecia-me que, quase sempre, as mães recuperavam-se do choque inicial da perda do marido e, com o tempo, assumiam a chefia da família. Com mamãe isso não aconteceu. Ela praticamente vivia num outro mundo, e eu dava graças aos Céus por ela não se suicidar. Só falava em papai e morria de medo do que ainda teria de viver. Às vezes, em autocomiseração, dizia: “Os caracteres japoneses que representam a palavra “viúva” significam também ‘aquela que ainda não morreu’.”
Seria eu jamais capaz de fazer mamãe deixar de pensar em papai? pensava, desesperada. Para piorar as coisas, a companhia onde meu irmão trabalhava transferiu-o para Toyohashi, no Oeste do Japão, e fiquei sozinha com mamãe. Tentava agrada-la trazendo-lhe doces e carne, gastando nisso o dinheiro que ganhava lecionando nas horas vagas. Certa vez, comprei polvos, porque sabia que ela adorava bolinhos de polvo fritos. “Eu resolvi não comer mais bolinhos de polvo”, disse-me ela, “porque era uma das coisas que seu pai mais gostava.”
Ela simplesmente não conseguia dizer duas palavras sem falar em papai! Eu explodi: “Ficar chorando eternamente a morte de papai não vai faze-la mais feliz. Você tem de se convencer de que ele não está mais aqui. Tem de pensar no futuro!”
“Para você está tudo muito bem”, retrucou ela. “É jovem. Mas seu pai era tudo o que eu tinha na vida. Você vive me criticando, Katsura. Que quer que eu faça?”
Assim mesmo, eu não desistia de tentar fazer que mamãe olhasse a vida com outros olhos. Aconteceu que, por sorte, na primavera seguinte um livro de poesias publicado por mamãe e mais cinco amigas ganhou um prêmio, e haveria uma festa para celebrar. Certo dia, pouco antes da festa, cheguei em casa, e mamãe estava experimentando o vestido listrado, cor de violeta, clarinho, que usaria no dia.
“Ficou lindo”, exclamei.
Olhando-a, senti um aperto no coração. Papai sempre tivera tanto orgulho da sua mulher tão linda, de pele tão clara. Se estivesse vivo, tinha a certeza de que daria jeito de arranjar um dinheirinho e comprar-lhe uma jóia que combinasse com o vestido novo. Por que não eu no lugar de papai? pensei.
Mas apenas 10 dias dos separavam da festa, e eu só tinha guardados 3.000 yens – o que mal daria para comprar um broche barato ou um colarzinho de pérolas artificiais. Mas eu achava que tinha de comprar para mamãe um lindo colar de pérolas cor-de-rosa! E queria que ela o tivesse enquanto ainda era jovem e bonita, para aproveita-lo. Mas como?
Depois de quebrar a cabeça, resolvi escrever ao presidente das Pérolas Mikimoto. Para dar as melhores pérolas, pensei, tinha de compra-las na melhor loja do Japão... e o dono da Mikimoto compreenderia o meu drama. Escrevi então: “Minha mãe tem de ir a uma festa em comemoração a um prêmio de poesia que ela ganhou. Se estivesse vivo, tenho quase a certeza de que papai lhe daria um colar de pérolas, e eu gostaria de adquirir-lhe um em seu lugar. Entretanto, disponho de apenas 3.000 yens. Seria possível a sua firma vender-me um colar a prestação? Se esperar até juntar o dinheiro, será tarde demais para a festa. Além disso, gostaria de dar o colar enquanto mamãe ainda é jovem e bonita. Por favor, perdoe-me a ousadia de escreve-lhe. Espero apenas que o senhor seja generoso o bastante para atender ao meu desejo.”
Três dias depois, recebi uma carta expressa do próprio punho do Sr. Yoshitaka Mikimoto: “Acho que o seu desejo de dar à sua mãe um presente no lugar do seu pai é uma coisa linda. É minha firme convicção que pérolas devem ser oferecidas com o coração cheio de amor. Mostre esta carta a qualquer funcionário da nossa loja na Ginza. Você poderá comprar o que quiser, a prestação.”
Senti-me no sétimo céu! Embora já estivesse escurecendo e eu vestisse caças compridas, pretas, e um suéter velho, saí correndo e fui direta para a elegante loja Mikimoto. Meio encabulada no meio daquelas freguesas bem vestidas, japonesas e estrangeiras, cheia de hesitações, mostrei a carta ao homem que parecia ser o gerente.
“Ah, sim”, disse o homem. “Recebi instruções para atende-la. Que tipo de colar gostaria de ver?” Era muito formal, mas seus olhos estavam cheios de bondade.
“Qual é o preço do colar de pérolas cor-de-rosa mais barato?”
“Dez mil yens.”
“Quero esse”, acabei resolvendo, apontando um colar da cor que eu queria. Era pequeno, mas eu não conseguia tirar os olhos dele. Era exatamente o que tinha imaginado. Na escola primária, tinha aprendido que as pérolas cor-de-rosa eram as melhores. Além disso, a cor era a que ia melhor com o tom de pele da mamãe.
“Vamos fazer 9.000 yens para a senhorita. Em três pagamentos está bem?”
era mais do que esperava conseguir, e eu não parava de agradecer. Observando-o arrumar o colar numa caixinha forrada de veludo vermelho, quase desmaiei de alegria.
Fiz o possível para esconder meus sentimentos até ao dia da festa. Esperei que mamãe se aprontasse, e entreguei-lhe a caixa, dizendo: “Por que não põe isto?” Havia tanta coisa que queria dizer-lhe... mas só consegui entregar-lhe a carta do Sr. Mikimoto e sair correndo da sala.
Quando voltei, mamãe tinha a carta amassada na mão e chorava baixinho. Depois depositou a carta no oratório budista da nossa família, e só então pôs o colar.
“Você está maravilhosa!” exclamei. Mamãe sorriu, encabulada. “Se soubesse que iria ganhar um colar de pérolas, teria mandado fazer um vestido decotado”, disse ela, dando risada. Havia muito eu não a ouvia rir com tanta felicidade.
“Muito, muito obrigada, Katsura querida. Estou tão feliz, tão feliz”, repetiu ela mil vezes.
Desse dia em diante, mamãe tornou-se realmente, verdadeiramente, minha mãe. Nunca deixou de lamentar a morte de papai, é certo, mas agora sabia que eu estava ao seu lado. Não apenas era minha mãe, mas minha amiga. Descobrira a alegria de viver e a de amar sua filha.
Até hoje, nunca vi nada tão bonito como esse colar de pérolas cor-de-rosa, a varinha mágica que eliminou o que separava mãe e filha. Por essa razão, jamais pedi o colar emprestado... nem no dia do meu casamento. Queria que mamãe soubesse que o comprara apenas para faze-la feliz. Havia-me feito compreender.
Muitas vezes me pergunto se o Sr. Mikimoto ainda se recorda desse seu gesto de bondade que fez uma menina muito, muito feliz. Dizia a verdade, sem dúvida, quando escreveu que as pérolas foram feitas para serem oferecidas com o coração cheio de amor. E, nesse sentido, a mim parece-me que o de mamãe é o mais bonito colar de pérolas do mundo.

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