quinta-feira, maio 4

Obrigado, Dra. Vitória

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1993
Autor : Clara Pinto Correia

Não espere tempo demais para agradecer ás pessoas que ajudaram a orientar a sua vida.

A Dra. Vitória era a nossa professora de Física no último ano do ginásio. Tínhamos 16 anos e vivíamos dentro de um mundo muito especial. Às vezes, tínhamos vontade de chorar, sem razão nenhuma. As pessoas crescidas olhavam para nós e suspiravam, com saudades de quando éramos pequeninos, sem problemas nem complicações que elas não soubessem logo resolver. Havia momentos em que parecia mesmo que ninguém falava a mesma língua que nós.
Às vezes, faltávamos às aulas para namorar; outras, faltávamos só porque nessa idade achamos que já somos suficientemente crescidos para fazermos apenas o que nos apetece. Dali a pouco, poderíamos tirar a carteira de motorista, passar cheques, casar, ter um emprego a sério – e só de pensar nisso tudo dava-nos uma espécie de nervoso bem no fundo, uma pressa doida de chegar ao lado de lá, onde as coisas haviam de ser como nós queríamos que fossem. Tínhamos muito mais em que pensar que na Física da Dra. Vitória.
A Dra. Vitória já não tinha 16 anos há muitos anos. Era pequenina e velhinha. O cabelo, que ela usava curto e um bocadinho encaracolado, era todo branco. Tinha uns olhos grandes e claros e um sorriso lindo, apesar das rugas à volta da boca. Vinha sempre com uma bata impecável, bem passada a ferro, e por baixo aparecia uma faixa da saia. Depois, viam-se as meias escuras e os sapatos marrons, antigos, sem brilho.
Ela falava de Física com amor, alegria e um carinho enorme. Mas, para nós, a Física era só uma matéria muito chata que era preciso saber. Passávamos sub-repticiamente papelinhos uns aos outros, líamos livros de histórias em quadrinhos abertos sobre os joelhos, fazíamos desenhos nas capas dos cadernos, imaginávamos o que íamos vestir para ir ao cinema nessa noite, e pensávamos na nossa vida inteira que estava quase começando.
A Dra. Vitória gostava especialmente de mim. Acho que foi porque alguém lhe disse que eu queria ser cientista. Tratava-me sempre afetuosamente por Clarinha e, de vez em quando, dizia-me que tinha muita pena de eu não ter melhores notas nas aulas dela. Eu nunca dizia nada e, mal ela parava de falar comigo, encolhia os ombros e os meus amigos riam-se. Não éramos maus. Éramos adolescentes e o verão estava começando.
Mas houve um dia, lá pra o fim de maio, em que fui mesmo muito má. Já passaram muitos anos, mas a recordação desse dia ficou para sempre comigo. Tínhamos Física logo às 8 horas. Eu cheguei atrasada, como era costume, e como era costume não pedi desculpa. Entrei na sala mascando chiclete e avancei até o meu lugar sem levantar os olhos do chão. Não me apetecia passar um dia inteiro no colégio e estava cheia de sono. Comecei a mordiscar o cabo da esferográfica e preparei-me para fazer uns desenhos na cada do dossiê. Mas, nessa altura, vi a bata branca da Dra. Vitória parada mesmo ao meu lado. E senti a mão dela, muito suave e fresca, a pousar-se no meu braço.
Olhei para cima, surpreendida. Vi o sorriso da Dra. Vitória, mesmo lindo, só para mim.
- Clarinha – disse-me ela em voz baixa, como se aquilo fosse um segredo entre nós duas que mais ninguém devia ouvir. – Clarinha, esta manhã, por favor, faça um esforço e preste atenção à aula. Está bem?

Aqui inclinou-se ainda mais para mim e apertou-me o braço com mais força. Ela queria mesmo que eu ouvisse.
- Clarinha – segregou-me – não há força maior que a nossa inteligência.
- Sim, sim – disse eu, como quem sacode uma mosca.

Ainda hoje estou para saber do que foi que ela falou nesta manhã. Deve ter-nos revelado mais uma equação incrível sobre a ordem misteriosa que comanda todo o universo e que mantém tudo no seu lugar. Era para mim, era de propósito para mim que o fazia, mas eu não ouvi. E ela deve ter percebido que eu não estava ouvindo. Não me perguntou nada, não me disse nada. Naquela manhã, a Dra. Vitória tocou-me no braço e eu encolhi os ombros porque tinha mais em que pensar.
Passe o exame e entrei na Faculdade de Medicina Veterinária. A Física fazia parte do currículo. Aos poucos, as lições da Dra. Vitória foram me voltando à memória. Descobri que com o conhecimento da física, os seres humanos podem dominar as forças da natureza – coloca-las ao seu serviço. Os engenheiros construíram pontes e aviões para aproximar as pessoas. Os cientistas inventaram os raios X e o laser para salvar vidas.
As palavras que a Dra. Vitória me segredou – “Não há força maior que a nossa inteligência” – era isso mesmo que significavam. E a minha vida ganhou um novo sentido: também eu podia contribuir para o progresso do mundo se pusesse a minha inteligência a funcionar. E aquelas palavras da Dra. Vitória foram o meu incentivo, o aguilhão que me manteve acordada longas noites a estudar e a pesquisar, a fim de poder contribuir para uma melhor compreensão das coisas e para o bem-estar das pessoas.
Hoje, sei que não há nada mais importante que os segredos que as senhoras velhinhas de batas brancas querem contar-nos e devíamos sempre ser capazes de ouvi-las com a atenção que merecem, porque mesmo que aquilo pareça completamente ridículo na altura, chegará um dia em que será uma das coisa mais importantes que ficaram na nossa memória – e fizeram de nós pessoas melhores. Ela sabia que chegaria o dia em que eu iria descobrir e encantar-me com as maravilhas do universo.
Muitos anos depois dessa manhã de maio, noutras manhãs de maio, muitas vezes pensei em procura-la e pedir-lhe desculpa. Pensei que ia encontra-la num lugar qualquer com aquela bata branca impecável, o sorriso muito lindo no rosto cheio de rugas, e ia murmurar: “Dra. Vitória, desculpe, desculpe, desculpe. Não esteja triste, não chore, que alguma coisa de tudo o que nos disse, durante aquele ano em que parecia que nunca ninguém a ouviu, de uma maneira qualquer a senhora conseguiu chegar até nós, e fez de nós pessoas melhores.”
Mas quando voltei ao meu velho colégio, soube que ela já não estava entre nós. Por que esperei até ser tarde demais? Como gostaria de ter-lhe dito. “Dra Vitória, nunca me esqueci da senhora. Nunca me esqueci do seu sorriso, do seu amor pela matéria que nos ensinou e que era tão bonita, da sua paciência quando nós nos portávamos como um bando de selvagens. Dra. Vitória, sabe, eu agora sou mesmo uma cientista!”
E então, eu lhe daria um abraço muito grande, muito apertado, que seria a minha maneira de pedir desculpa e de lhe dizer que ainda gostava muito dela quando já não tivesse mais palavras. E, se ela chorasse, eu choraria também. “Não chore, Dra. Vitória, Não chora. Por favor, não fique triste. Eu também gostava muito da senhora. Ainda hoje, ao fim de tanto tempo, gosto muito da senhora.”
Hoje, sou uma mulher realizada, que se dedica à sua carreira de cientista, para o seu bem e para o bem da humanidade. Que isto seja o meu tributo para a senhora, Dra. Vitória.

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