segunda-feira, maio 8

Tudo está nos óculos

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1973
Autor : John Ennis

De como um novo par de óculos pode significar um novo estivo de vida

No outro dia, fui mordido por um cachorro, até então manso, olhado estranhamente por um empregado de loja que julgava atencioso, e abordado por nosso arrecadador de dinheiro, normalmente acanhado. Culpei meus óculos novos.
De aros dourados, modernos, retangulares e estreitos, eles dão a meu rosto uma expressão irremediavelmente inofensiva. Meus antigos óculos (armação grossa e preta, como dois aparelhos de TV, e hastes largas) faziam com que eu parecesse alguém capaz de enfrentar até um vendedor de enciclopédias. Os capitães das barcas que atravessam o Canal da Mancha convidavam-me para ir até a ponte. Assoviando satisfeitos, os motoristas de táxi me levavam a qualquer lugar que eu quisesse, mesmo nas horas de movimento e de chuva.
Agora, meu savoir-faire desaparecera. Por trás dos aros dourados e inofensivos, tornei-me invisível para os garçons de bar. Ontem, quando um bando de colegiais me empurrou com suas pastas para o fim de uma fila de ônibus, fui forçado a me perguntar: por que não consigo comprar os óculos que realmente desejo?
No tempo de meu avô, havia livre escolha para o freguês. Ele comprava um jornal, perambulava por uma loja, e revirava uma pilha de óculos sobre o balcão, até desenterrar um par baratinho que, não só combinava com seu rosto, como lhe permitia decifrar os palpites da corrida de cavalos daquele dia.
As gerações anteriores usavam os óculos que não serviam mais aos parentes mortos. Sob este princípio hereditário, minha bisavó manteve os vizinhos sob um olho discreto através do pince-nez de seu falecido marido, e leu as obras completas de Charles Dickens, em voz alta, à luz de gás, com o auxílio dos óculos ovais, de aros de aço, de sua mãe. Para enviar a linha na agulha, usava os dois pares, um sobre o outro. Tais hábitos fizeram com que os médicos protestassem, mas, ao que se soubesse, nenhum deles atestou “uso de óculos errados” como causa mortis.
Quando fui convocado, em 1940, logo pensei que meus óculos redondos de aço, de soldado, me tornariam sem atrativos para as mulheres. Entretanto, tinham suas vantagens. De lentes planas, tornavam curvas as linhas retas, e transformavam os edifícios nas formas mais alarmantes, quando eu os olhava sob ângulos diferentes. As pessoas não entendiam quando eu deixava de ouvir o que diziam, e começava a fazer com que uma chaminé de fábrica se inclinasse como a torra de Pisa, pondo a cabeça de lado, contraindo um olho e apontando o outro para o nariz. (Desisti dessa mania quando um homem pensou que eu estava fazendo careta para ele e, infantilmente, revidou, pondo a língua de fora.)
Depois da guerra, comprei os óculos sem aro da década de 1950, como alguns músicos costumavam usar. Recentemente, retirei-os de minha gaveta de equívocos oculares, e coloquei-os, diante de alguns parentes. “Use isso outra vez , Sam”, ulularam, quase desmaiando de tanto rir.
Por sorte, um vendedor de óculos me forçou a comprar óculos redondos, de aros de chifre, como os dos intelectuais, e descobri que, quando os usava no Royal Court Theatre, eles me davam uma aura de beatnik, bem aceita pelas damas na ocasião. Mas aprendi a evitar contatos, no cinema, com garotas de óculos, e por uma razão muito triste. A não ser que a trilha sonora tocasse bossa-nova, aquelas batidas rítmicas de lentes contra lentes, na última fila, provocavam psius de outros espectadores.
Hoje, o vendedor de óculos, com um pingo de ciência, controla tudo, e os preços são muito mais altos. Veja-se, por exemplo, quando comprei óculos de aros dourados. Na vitrine da óptica, descobri uma armação que possibilitava tudo: o olhar atento, mas bondoso, de um homem do mar; a insinuação de um jocoso piscar de olhos; a sugestão de sobrancelhas erguidas com um encanto irresistível, porém diabólico.
Entrei, apontei para a armação e pedi: “Faça aqueles óculos com minha receita;” Fingindo não ter ouvido, a vendedora me fez sentar diante de sua secretária, e começou a fazer perguntas, destinadas a enfatizar os aspectos corretivos e profiláticos da mudança de óculos. Quando confessei que já tinham se passado seis anos, desde meu último exame de vista, seu lábio superior franzido revelou claramente que ela me considerava, não apenas uma pessoa com um descaso irresponsável por meu bem-estar oftálmico, mas também um sovina. Aconselhado a voltar três semanas depois, para ver o oculista, saí dali, não mais como um confiante comprador, mas como um trêmulo paciente.
O momento destinado a fixar minha personalidade pelos próximos seis anos ocorreu no consultório, quando minutos depois, o oculista se transformou de cientista em vendedor de óculos; mas a mudança foi muito rápida para que eu percebesse. Olhei embaraçado para o espelho, enquanto ele experimentava armações vazias, diante de olhos enevoados, que não distinguiam uma da outra. Já disposto a aceitar borboletas de brilhantes, como as usadas por senhoras de cabelo azulado, resolvi, num último esforço, lutar pelos óculos que me tinham feito entrar na loja desde o começo.
Levei o oculista pelo cotovelo e obriguei-o a me guiar na rua, com a intenção de lhe mostrar quais eram. Mas, nas semanas que tinham se passado, o arranjo da vitrine fora mudado: os óculos haviam desaparecido. De volta à loja, o oculista continuou a equilibrar armações que considerava de acordo com meu rosto. Em desespero, resolvi-me pelos tais aros dourados, sentindo-me como um homem num palco, segurando uma carta enfiada em sua mão por um prestigitador.
A resposta de como poderia enfrentar aqueles óculos dourados me veio de repente, quando olhei em minha gaveta, e deparei com meus antigos óculos sem aros, de músico. Lembrei-me de que eles me tinham dado um ar aparvalhado, até que os combinei com a época de Bebop, usando um terno cinza, camisa de botões pelo lado de dentro, gravata de crochê e uma habilidade pacientemente praticada de estalar os dedos no ritmo do contracanto.
Da mesma forma, para ficar bem com meus novos óculos de aros dourados, eu só precisaria assumir o estilo de vida que eles propunham. Ainda não tenho certeza do que será, mas me dêem tempo. Até agora, estou indeciso entre deixar crescer a barba e passar a gostar de folk-music... ou a comprar uma cadeira de balanço, um xale e um jogo de agulhas de crochê.

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