segunda-feira, maio 8

A última proeza de Bendog

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1973
Autor : Vivian Cunnington
Ele viveu conosco onze anos, e posso dizer sem pejo e sem reservas, que eu o amava

Até que a Tia May chegou de Adelaide para morar conosco, minhas relações e as de minha mulher com nosso buldogue Ben eram, a nosso ver, honestas. Tínhamos de berrar coisas como: “ande, ou lhe dou um chute!”, para faze-lo reagir, mas já nos resignáramos com o fato de que Bendog era estúpido. Se eu quisesse um cachorro vivo e inteligente, teria adquirido um cão-pastor ou talvez um fox-terrier.
Comprei Ben quando minha mulher e eu nos mudamos de um apartamento conjugado para nossa primeira casa. Tornar-me proprietário de uma casa me fez lembrar nostalgicamente os dias prósperos em casa de meu pai, quando criávamos buldogues por prazer. Daí, ter escolhido Ben. Ele mostrou, no entanto, que nada tinha a ver com os buldogues vivos e inteligentes como os que meu pai costumava criar.
Originários de uma raça de mastins treinados para lutar conta touros, os buldogues, em combate verdadeiro, são animais de extrema ferocidade e de incrível resistência, enfrentando o inimigo com uma coragem, que só a morte pode dominar. Isto é, a maioria deles. Se Jack o Estripador tivesse irrompido em nossa casa, com a intenção de nos liquidar, Bendog o teria recebido agitando a cauda, para expressar sua alegria pela visita.
Mesmo com os outros cães, Ben era um fracasso. Perto de casa, vivia um cão-pastor chamado Blue. Era costume dos dois cachorros latir ameaçadoramente um para o outro através da cerca. Isto continuou até que apareceu uma pequena abertura na cerca. Bendog meteu o focinho achatado pela abertura e fez alguns “comentários” de fanfarrão. Blue o pegou pelo focinho, e o mordeu com força.
Bendog recuou tropegamente, chegando a ficar quase vesgo para ver o que sucedera a seu focinho. Ele estava ainda lá, mas uma boa parte tinha sido cortada e estava pendurada por um pedaço de pele.
O Dr. Pinkeville, o veterinário, cortou o pedaço de pele, aplicou um antissético sobre a carne viva, e disse que não nos preocupássemos porque cresceria de novo. Com o tempo, cresceu.
Houve depois os problemas sexuais de Ben. Quando minha irmã me falou sobre Florence, uma cadela buldogue de propriedade de um vizinho, Sam Samuels, decidimos que era tempo de nosso cachorro ter família. Pus Ben no assento do carro, a meu lado, e partimos para o iniciar na realidade da vida.
Para Florence, foi claramente amor à primeira vista. Ela saltou alegremente para a frente, querendo beija-lo. Ben deu um grito estridente, nada masculino e pouco cavalheiresco, e mordeu-a no beiço. Ela recuou ferida – física e espiritualmente. Sam arregalou os olhos para Ben, e para mim.
“Olhe, Ben”, tentei convence-lo, “ela é um amor, uma doçura!” Mas ele continuava babando, com cara de poucos amigos.
Fiz uma mordaça para Ben, com um pedaço de corda. Seu focinho ficou de um pálido violáceo e os olhos se esbugalharam. Florence se sentou em desespero, e parecia que ia chorar.
Ben e eu chegamos em casa esgotados. Minha mulher nos recebeu ansiosamente. “Então, ele se divertiu com a namorada?”
“Não, não fez nada”, respondi sombriamente. “Tentou assassina-la.”
“Oh, pobrezinho!”, disse Jô. “Deve estar com sede ou com fome”. Ela se afastou depressa e eu olhei espantado, ponderando sobre as singularidades das mulheres.
Olhei mal humorado para Ben, a causa da minha vergonha, o traidor de meu sexo. Estava roncando profundamente. Mas Ben era uma criatura que inspirava afeição. Posso dizer sem pudor, sem reservas ou restrições, que eu o amava. Assim, perdoei-o . Pouco depois do casamento fracassado de Ben, Tia May apareceu. Estávamos levando suas malas para dentro quando Ben se aproximou, farejando como um lobo. Tia May, uma mulher alta e magra, na casa dos cincoentas, quase gelou de terror.
Mais tarde, tomando chá, nós lhe falamos sobre a natureza amável de Ben e o trouxemos para uma apresentação formal. Cautelosamente, Tia May lhe ofereceu um pedaço de biscoito; ele aceitou delicadamente. Depois sentou-se e colocou a cabeça em seu colo, erguendo os olhos enormes para ela, e deu um profundo suspiro. Depois disso, ela se animou a levar Ben para seu passeio noturno.
Um dia, Tia May anunciou que ia ensinar Ben a dar a mão. Caí na gargalhada: “Ele é muito estúpido!”
Três semanas depois, Tia May disse a mim e Jo: “Vejam!” Ben estava sentado na frente dela. Tia May estendeu a mão, com a palma para cima.
“Como vai você?”, perguntou ela. Com um cuidado infinito, Ben levantou a pata direita e colocou-a na mão dela. Ela o apertou ligeiramente e depois a largou.
“Isto é que é um cachorro bom”, disse ela. “Agora, Ben vai se fingir de morto”, declarou Tia May, olhando para o cachorro. “Benny, vamos rapaz. Vamos. Caia morto”” Ele virou de lado e se esticou satisfeito.
Pouco tempo depois, Tia May anunciou: “Ben vai aprender a sentar nas patas traseiras e pedir.”
“Ben!”, chamei. Ele caminhou desajeitadamente em minha direção, ofegando alegremente. “Olhe para o tamanho do peito deste cachorro”, disse eu a ela. “Olhe para seus ombros, note o tamanho da cabeça. Como espera que todo esse peito, ombros e cabeça se equilibrem nisto?”, perguntei apontando para o estreito traseiro de Ben.
Mas Bendog aprendeu a se sentar nas patas traseiras, e a pedir, e esperava-se que ele exibisse esta proeza pelo menos duas vezes para cada visita de casa.
O trabalho final de Tia May foi o caso do “caia-morto... vá passear”.
“Caia morto”, ordenou Tia May. “Vamos rapaz. Caia morto!” Ben virou resignado e obedientemente se deitou. Falando num cochicho, Tia May o engabelou. “quer dar uma passeio?” Num movimento rápido, Ben deu um salto para trás e ficou de pé. Tia May ria e ria. Ben se dirigiu para onde estava pendurada a coleira. Tia May chamou de volta: “Não, não, querido, caia morto agora. Vamos, rapaz. Caia morto, agora!...”
No fim de um quarto de hora de ordens, Ben estava tremendo e inteiramente confuso. Pus de lado minha covardia e ordenei: “Tia May, leve o cachorro para passear e acabe com isto!”
Tia May, ofendida, pegou a coleira. “Vou leva-lo”, disse ela. Ben correu para a porta da frente.
Houve um baque surdo, um grito, barulhos confusos do lado de fora. Corremos para a rua. Tia May estava sentada na sarjeta, segurando uma perna quebrada. Ben tinha enrolado a coleira em volta dos tornozelos dela e corrido, atirando-a numa confusão de braços, pernas, saia, caça e um chapéu antigo particularmente horrível.
Assim que a fratura se recompôs, Tia May voltou para Adelaide. Muito tempo depois de ela ter ido embora, duas proezas de Bendog permaneceram. Quando, por uma razão qualquer, queríamos que ele se deitasse, dizíamos simplesmente: “Caia morto!” A outra proeza era apertar a mão, mas ele só a realizava no alto de nossa escada dos fundos. Bem sentava-se ali para tomar sol. Quando alguém subia a escada, ele afavelmente estendia uma pata, como um ricaço cumprimentando um hóspede de fim-de-semana em sua casa-de-campo.
Foi assim que descobrimos a doença de Ben. Quando subi as escadas, Ben estendeu uma pata, caiu de cara no chão e ficou deitado, piscando confuso.
O Sr. Pinkerville diagnosticou a doença de Bendog como “um aumento maligno da glândula tiróide”. Cirurgia, disse ele, estava fora de cogitação. Ben era muito velho, a anestesia o mataria.
Ben não parecia velho para nós. Brincava e corria para junto da lareira, a fim de se aquecer. Dormia um pouco mais, realmente, e seu ressonar majestoso tornou-se mais profundo, mais sonoro que em outros tempos.
Porém, daí a três meses, eu pescoço tinha inchado tão grotescamente e o corpo encolhido tanto que ele quase parecia um embrião. Passou a espumar quando respirava. O pobre Bendog era um arremedo do animal magnífico que vivera conosco durante onze anos.
Chamamos o Dr. Pinkerville. Se Ben tinha de morrer, morreria num ambiente seguro e familiar. Na varanda dos fundos, ao sol, no lugar favorito de Ben, o Dr. Pinkerville pegou a injeção.
“Seria melhor se ele ficasse deitado”, disse o veterinário.
“Vamos, Ben”, disse eu, “caia morto!” Imediatamente ele virou de lado. E eu compreendi a hipocrisia de minhas palavras.
Em todos os anos que ele vivera conosco, tiramos apenas uma fotografia, pouco nítida, de Bendog. Mesmo assim, temos uma lembrança dele. Em meu trabalho, uso com freqüência um gravador. Com respeito ao ronco de Bendog, adquiri aquilo que é chamado, às vezes, de “surdez doméstica”. Eu não o ouvia.
Ouço agora. Uma vez ou outra, toco uma fita para verificar alguma coisa. E, no fundo da gravação, Bem está roncando. Ele está comigo, agora, neste momento, nesta sala.

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