quinta-feira, setembro 28

Minha correspondência com Alice H.

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1987
Autor : G. Srinivas Rao

Às vezes, pequenas coisas se transformam em experiências importantes. Levei 20 anos para compreender essa verdade.
Tudo começou uma manhã em que eu, que era um estudante universitário de 21 anos, li uma coluna de uma revista popular de Bombaim, com endereços de jovens de todo o mundo, que gostariam de corresponder-se com jovens indianos. Vira colegas meus recebendo grossos envelopes aéreos de pessoas desconhecidas. Era a moda do momento. Por que não havia eu de tentar também?
Por isso copiei o endereço de uma Alice H., de Los Angeles, e comprei papel de carta cor de rosa. Uma colega minha me havia dito uma vez que adorava receber cartas escritas em papel daquela cor. Sim, eu também devia escrever a Alice em papel cor de rosa.
“Querida correspondente”, comecei, tão nervoso como um ginasiano no seu primeiro exame. Não havia muito a dizer, e a caneta corria devagar, às vezes ficava parada. Foi preciso um esforço para colocar a carta no correio.
A resposta, vinda da Califórnia Longínqua, chegou mais cedo do que eu esperava. “Não sei como o meu endereço foi parar na coluna de correspondentes do seu país, pois nunca pedi nenhum”, escrevia Alice. “Mas é bom ter notícias de alguém que nunca vimos e de quem nunca ouvimos falar. Seja como for, você quer corresponder-se comigo – e aqui estou eu.”
Não sei quantas vezes li aquele curto bilhete; achei-o uma beleza, e senti-me no Sétimo Céu!
Eu era supercuidadoso nas minhas cartas; não escrevia nada que pudesse ofender uma moça americana desconhecida. Para Alice era fácil, pois o inglês era sua língua materna, mas para mim era uma língua estrangeira, aprendida com muito custo. Eu era muito sentimental, tímido até, nas minhas palavras e frases, mas no meu coração havia um quê de romance que não ousava expressar-se. Alice escrevia longas cartas na sua bela caligrafia, mas pouco revelada de si própria.
Grandes encomendas contendo livros e revistas, bem como pequenas lembranças, chegavam-me às mãos vindas de milhares de quilômetros de distância. Não tinha dúvidas de que Alice era uma americana rica, e tão bonita como os presentes que me mandava; nossa amizade por correspondência era um sucesso.
Um pormenor, porém, me preocupava. Seria indelicado perguntar a idade a uma moça, mas que mal haveria em pedir-lhe uma fotografia:? Fiz o pedido e finalmente veio a resposta. Alice dizia que simplesmente não tinha nenhuma fotografia naquele momento, mas que um dia me enviaria uma. Acrescentava que qualquer “garota americana comum” era mais bonita que ela.
Estaria brincando de esconder comigo? Oh, as manhas femininas!
Os anos foram passando. Minha correspondência com Alice tornou-se mais irregular, mas nunca paramos de nos escrever. Continuava enviando-lhe cartões de Natal e, à minha humilde maneira, alguns presentinhos. Cresci, arranjei emprego, casei-me e tive filhos. Mostrava as cartas de Alice a minha mulher. Tínhamos todos muita vontade de conhecer Alice.
Um belo dia recebi um grande embrulho, endereçado com uma letra desconhecida, inconfundivelmente feminina. Havia sido enviado dos Estados Unidos, por via aérea, o remetente era da cidade natal de Alice. Quem seria aquela nova correspondente? Abri depressa o embrulho.
Continha algumas revistas e um curto bilhete. “Como amiga íntima de Alice Hl, que você tão bem conhecia, lamento informa-lo de que ela morreu num desastre de automóvel no domingo passado, quando voltava para casa depois de ter ido à igreja. Sendo muito idosa, pois completara 78 anos em abril último, não viu o carro que se aproximava em grande velocidade. Alice dizia-me freqüentemente como se sentia feliz por receber notícias suas. Era uma pessoa sozinha, e ajudar os outros conhecidos e desconhecidos, distantes e chegados, era para ela uma alegria.”
Terminava pedindo-me que aceitasse uma fotografia de Alice, que a havia deixado com a recomendação de que eu a recebesse somente após a sua morte.
É um rosto cheio de beleza e compaixão; um rosto que eu teria estimado, mesmo quando era um rapaz tímido e ela uma mulher já idosa.

quarta-feira, setembro 27

Nem com jeito vai

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1980
Autora : Lorraine Collins

Eu tinha justinho acabado de chegar de uma deliciosa sessão de exercícios na lavanderia, quando dei com o meu marido, Bob, sonolento, sentado à frente da televisão.
- você está vendo aí o que? – perguntei meio irritada.
- Televisão.
- Sei. E está a fim de fazer o quê, quando acabar de ver?
- A fim do que?
- É! Que é que você quer fazer?
- Que é que eu quero fazer?
- Droga! Vira a cabeça para cá! Fala comigo agora!
- Estou falando- respondeu ele.
- Olha aí, eu acho que era uma boa para o nosso casamento se a gente batesse uns papos construtivos às vezes – disse eu.
Para espanto meu, ele reagiu dizendo:
- É isso aí! – e desligou a TV.
Então ficamos assim, no lúgubre silêncio da sala de visitas de uma tarde de sábado.
- Bom – começou Bob – sobre o que é que você quer falar?
- Eu só queria saber o que é que você estava querendo fazer – gaguejei.
- Fácil – disse ele – O que eu estava querendo era ver televisão.
- Sem brincadeira, puxa! – pedi.
Então ele:
- Se você está a fim de transar uma séria, a gente podia falar da nossa conta bancária.
- Bom, deixe para lá! – respondi.
- Outra coisa (pode não ser lá muito sério), mas eu também queria lhe perguntar o que foi que aconteceu com a minha máquina de barbear. Está fazendo um barulho dos diabos e eu acho que não está mais funcionando direito.
- Isso é melhor você saber do seu filho – respondi.
- Do meu filho? Mas ele não tem barba?!
- Bom, depende da coisa que ele esteja barbeando... – disse eu.
- E eu quero lá saber o que ele barbeia?
- Pode ser – disse eu. – De qualquer modo você vai saber pelo Sr. Petersen.
- O Sr. Petersen? Não é aquele que tem um são Bernardo?
- É esse – respondi – o São Bernardo que vai ter de usar o seu pulôver este outono. Bom, tudo isso pode ser interessante, mas não me parece uma conversa muito construtiva.
- Não sei porque – disse Bob – Afinal a gente tocou em todos os pontos de interesse comum.
- Querido – disse eu – acho que a gente devia era discutir o nosso futuro. Aonde vamos...
- Aonde vamos? Tudo indica que à falência.
Sei quando o melhor é desistir.
- Amor – disse eu – por que é que você não vai ver televisão, hein?

terça-feira, setembro 26

Amor como essência

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1982
Autor : Terry Dobson

O trem resfolegava e avançava ruidosamente pelos subúrbios de Tóquio numa linda tarde de primavera. Nosso carro estava relativamente vazio – umas donas de casa com suas crianças, algumas pessoas idosas indo às compras. Eu contemplava meio ausente as casas descoloridas e cercas vivas empoeiradas.
Numa estação, as portas se abriram, e repentinamente a tranqüilidade da tarde foi quebrada por um homem que bramava pragas violentas e incompreensíveis. Com passo incerto ele veio vindo para o nosso carro. Usava roupas de trabalhador, era grande e estava bêbado e sujo. Berrando, empurrou uma mulher que segurava um bebê. O golpe a fez girar e cair no colo de um casal idoso. Só por milagre o bebê não se machucou.
Aterrorizado, o casal deu um salto e procurou refugiar-se no fundo do vagão. O trabalhador deu então um pontapé visando às costas da senhora de idade em retirada, mas errou o alvo e ela pode correr para um lugar seguro. Isto o enraiveceu tanto que ele agarrou a barra cromada que servia de amparo aos passageiros de pé no meio do vagão e tentou arranca-la da base. Pude ver que uma das suas mãos estava cortada e sangrando. O trem seguia em frente, com os passageiros tremendo de medo. Levantei-me.
Eu era jovem naquela época, há uns 20 anos, e em muito boa forma. Havia-me habituado a oito duras horas de treinamento de aikido quase que diariamente nos três anos anteriores, e gostava de briga e corpo a corpo. Eu me sentia forte. O problema era que minha habilidade marcial nunca havia sido testada num combate real. Como alunos de aikido, não nos era permitido lutar.
“O aikido”, repetira meu professor várias vezes, “é a arte da reconciliação. A pessoa que tem a cabeça feita para luta corta sua conexão com o universo. Quando se tenta dominar os outros, já se está vencido. Aqui estudamos uma maneira de resolver um conflito, não de começa-lo.”
Eu recordava aquelas palavras e obstinadamente tentava assumi-las. Já havia, mesmo, atravessado uma rua para evitar os Chimpira-punks de flippers que perambulavam pelas estações de trem -, e orgulhava-me da minha indulgência. Sentia-me forte e virtuoso ao mesmo tempo, mas no fundo eu queria uma oportunidade legítima através da qual pudesse salvar um inocente destruindo o culpado.
É isso aí! disse para mim, quando me levantei. Há pessoas em perigo. Se eu não tomar uma atitude imediata, alguém provavelmente vai sair ferido.
Vendo levantar-me, o bêbado reconheceu uma oportunidade de focar sua raiva. “Ah!”, berrou ele. “Um estrangeiro! Você precisa aprender modos japoneses!”
Segurei levemente na alça do trem acima da minha cabeça e olhei-o de vagar, com desgosto e desprezo. Minha intenção era surrar aquele grosseiro, mas ele teria de dar o primeiro passo. Eu queria que ele ficasse furioso. Franzi os lábios e mandei-lhe um beijo insolente.
“Está bem! Você vai ter uma lição!”, berrou ele, aprontando-se para a agressão.
Um milésimo de segundo antes de eu dar um passo, alguém gritou “Ei!” Era um som estrídulo. Lembro-me de que era algo estranhamente festivo, com um cantante melodioso – como se você e um amigo estivessem procurando muito uma coisa, e de repente houvessem tropeçado nela. “Ei!”
Virei-me para a esquerda; o bêbado virou para sua direita; e os dois demos com um pequeno japonês bem velho. Devia ter uns 70 anos, e jazia, mínimo, sentado, com seu imaculado quimono. Ele não me notou, mas sorriu para o trabalhador, como se tivesse o mais importante e agradável segredo para contar.
“Venha”, disse o velho, chamando para o bêbado. “Venha conversar comigo.” Acenou com a mão de leve.
O homenzarrão seguiu, como se estivesse andando numa corda. Plantou os pés à frente do velho, e berrou mais alto que o ruído das rodas do trem. “Conversar com você por que?” O bêbado agora tinha as costas voltadas para mim. Se o seu cotovelo se movesse um milímetro, eu o derrubaria com um golpe.
O velho continuava a sorrir para o trabalhador. “Que foi que você bebeu?”, perguntou ele com os olhos brilhando de interesse. “Bebi saquê”, gritou o trabalhador de volta, “e você não tem nada com isso!” Perdigotos sem conta respingaram sobre o velho.
“Ah, é maravilhoso!”, disse o velho, “simplesmente maravilhoso! Sabe, eu também adoro saquê. Todas as noites, eu e minha mulher (ela tem 76 anos, sabe?) esquentamos uma garrafinha de saquê para beber no jardim, e nos sentamos num velho banco de madeira. Vemos o por do sol e vamos olhar como nosso caquizeiro está se desenvolvendo. Meu bisavô plantou essa árvore, e nos preocupamos com ela para saber se se recuperará das tempestades de neve que tivemos no inverno passado. Nossa árvore vai melhor do que esperávamos, especialmente se você considerar que a terra é muito ruim. É delicioso a gente apreciar a noite, quando levamos nosso saquê para fora, mesmo quando chove!” Ele olhou para o trabalhador, com os olhos piscando muito.
Enquanto tentava seguir a conversa do velho, o rosto do bêbado começou a relaxar. Seus punhos descerraram-se devagar. “É mesmo” concordou ele. “Eu também adoro caqui...” Sua voz arrastou-se.
“É”, disse o velho, sorrindo, “e tenho certeza de que você tem uma esposa maravilhosa.”
“Não”, respondeu o trabalhador. “Minha mulher morreu.” Muito calmamente, balançando com o movimento do trem, o homenzarrão começou a soluçar. “Eu não tenho mulher, nem casa, nem emprego. Fico tão amolado!” As lágrimas rolaram até as bochechas, enquanto um espasmo de desespero contraía seu corpo.
Então chegou minha vez. De pé, em minha inocência de uma saudável juventude, e com meus ideais de salvar o mundo pela democracia, eu de repente me senti pior do que ele.
O trem então parou na minha estação. Quando as portas se abriram, ainda ouvi o velho. “Meu Deus”, disse ele, “é uma situação difícil, realmente. Senta aqui e me conta tudo.”
Virei-me para dar uma última olhada. O trabalhador estava esparramado no banco, sua cabeça no colo do velho, que lhe afagava suavemente o cabelo sujo e baço.
Quando o trem foi embora, sentei-me num banco. O que eu queria fazer com os músculos fora realizado com palavras amáveis. Eu acabara de ver o aikido testado em combate, e sua essência era o amor. Eu teria de praticar esta arte com um espírito completamente diferente. Teria um longo tempo diante de mim, até que pudesse falar de verdade em resolver uma briga.

segunda-feira, setembro 25

Um jantar civilizado

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1973
Autor : Thomas Bolton

Foi uma tentativa heróica, um breve e fulgurante momento de requinte familiar.

Imaginem-se, ao fim do dia, à mesa de jantar, um Gibraltar, tranqüilo no caos, assimilando, de um lado, as novidades locais contadas por Liz, minha mulher, de outro, bombardeando por perguntas de Cathy, de nove anos, e Betsy, de seis anos, reagindo aos berros do bebê, ensinando normas de boas maneiras, tentando desviar os avanços intempestivos do cachorro, que se esconde debaixo da mesa como um submarino, esperando silenciosamente as sobras de comida.
É duro, sem dúvida, mas nada que um pai mediano não possa suportar, enfiado nas prestações do apartamento até o pescoço. Mas até um rochedo tem o seu ponto de ruptura. Lembro-me da noite em que atingi o meu...

Nós jantamos numa grande mesa de madeira, na cozinha – não é exatamente uma vida elegante, mas é prático. Nessa noite, examinei o meu prato com olhos experientes, e logo previ confusão.
“Olhem só, couves de Bruxelas!”, exclamei, com um entusiasmo que não podia ter soado mais falso.
“Eu detesto couve de Bruxelas”, disse Betsy, tranqüila. “Hmmmm.”
“O fato, senhorita, é que as couves de Bruxelas são divinas.” Pretendi ilustrar a afirmativa engolindo uma, mas não consegui achar o meu garfo. Achei tudo, menos o meu garfo: peças de quebra cabeças, um biscoito meio em farelos, a perna esquerda de uma boneca, um mocassim, uma bolsa peluda.
“Eu arrumei essa bagunça toda ainda de manhã, meu bem”, murmurou Liz. “Verdade. Não sei como isso tudo aparece.”
“Aqui está ele... no mocassim.”
Quando puxei o garfo, um lápis verde rolou para o chão. O cachorro abocanhou-o, ele adora lápis e espalha um arco íris pela casa. Vêm crianças do bairro todo ver o resultado colorido da sua digestão.
“Muito bem, então”, disse eu, tentando retomar o fio da conversa. “Como foi o seu dia, Cathy?”
“Papai, vamos jogar pôquer como ontem, no jantar?”
“De jeito nenhum. Em todo o caso, não antes da sobremesa.” Estivera ensinando-lhes o jogo. Um pouco de ampliação de interesses nunca faz mal. Usamos feijões como fichas.
“Mamãe recebeu outra multa por estacionamento”, contou Betsy, muito animada.
“E a máquina de lavar pratos está com soluços”, suspirou Liz.
“Papai, que é medida do busto?” perguntou Cathy.
“Pôquer!”, insistiu Betsy. “Podemos jogar agora? Por favor!”
“Um momento!” Vinha de todos os lados, tudo caindo em cima de mim ao mesmo tempo. Senti estalar no meu cérebro algo como um lampejo de lucidez. “Ouçam, meninas. Esta é a hora do jantar... o ponto culminante de milhares de anos de civilização, uma família reunida, trocando idéias, mantendo viva a arte da conversação. Isto não significa jogar pôquer durante o primeiro prato; não significa criticar o que vem para a mesa. Amanhã começaremos um novo regime aqui. Faremos refeições civilizadas. O que significa, em primeiro lugar e acima de tudo, acabou a bagunça.”
Betsy inclinou a cabeça, de acordo comigo, e logo começou a trabalhar num retrato a lápis de um cavalo roxo de ancas bem fornidas, que imediatamente confisquei. Em matéria de extravagância, essa menina faz Picasso parecer acomodado.
“Não somos tão bagunceiros”, disse ela defensivamente. “Você devia ver a casa de Abigail.”
“Há leite achocolatado no teto da Abigail?”
Apontei para uma pequena constelação de nódoas marrons no forro. “Aposto que a nossa é a única casa do continente que tem leite achocolatado no teto!”
“Seu pai tem razão”, disse Liz, carinhosa. “De agora em diante, vamos comer na sala de jantar. E reviver a perdida arte da conversação.”
Contei-lhes como o pai dos Kennedy educou os filhos, fazendo do jantar um foro onde se discutiam as notícias do dia. “Cathy, será que você poderia preparar um relato para amanhã à noite? Algo sobre os acontecimentos atuais?”
“Um relato?” Ela não chegou a dar pulos com a idéia.
Mas eu insisti, explorando outras áreas bem sucedidas de comunicação paternal. Voltando-me para Betsy, contei-lhe como um outro pai escrevia cartas ao filho hoje famoso.
Ela pensou um pouco. “Você me escreve uma carta? Eu poderia pôr o selo na minha coleção.”
“Não tenha dúvida.” Estava começando a ficar encantado com o rumo que as nossas vidas iam tomar. Era o fim do caos ao jantar. Ordem comunicação, uma sensação de progresso pessoal. Aqui, nesta estufa de líderes feministas em botão, eu implantaria um reduto da tradição. “Afinal de contas”, continuou o chauvinista, “os valores antigos são os melhores.”
“Sim”, disse Cathy, pensativa. “Como um full hand sempre ganhará de dois pares.”
Bem, não se consegue a elegância dos salões de um dia para o outro.
Mais tarde, deitado na cama, descrevi para Liz uma cena de máximo refinamento: velas tremeluzindo, as meninas alegres como num eterno Natal com seus vestidos brancos, em divertidos debates cheios de réplicas espirituosas, os rostos voltados para mim à espera da citação de Racine que ninguém conseguia lembrar.
“Um smoking”, balbuciei. Se eu tivesse, poderia usá-lo!”
Liz resmungou e adormeceu.

Na noite seguinte, desde o começo, pressenti o desastre. Oh, a mesa de Liz estava o fino: a toalha brilhava de tão branca, cristais de luxo, velas acesas, o máximo. Mas reinava aquele silêncio. As meninas entraram enfileiradas como refugiados de guerra. A própria Liz parecia um nervoso sinologista, de olho nos pratos em perigo. O bebê estava preso na cadeira alta, esperando o momento exato de atacar, e até o cachorro parecia perdido, andando às tontas debaixo da mesa.
Brindei a todos com o meu sorriso à David Niven, e durante o primeiro prato mantive uma conversa altamente cultural – monopolizei-a, realmente porque eu acho que era o único a falar. Finalmente, disse: “Agora é o momento dos acontecimentos do dia. Cathy, pergunto-me se você nos terá preparado o seu relato.”
Cathy mexeu-se, inquieta: “Havia nos jornais essa história sobre o Egito e Israel. Bom, eu pesquisei um pouco sobre o Egito.”
“Ótimo. O explosivo Oriente Médio.”
“É sobre camelos.”
“Camelos?”
“O navio do deserto da África”, anunciou Cathy, consultando um caderninho de notas. “O camelo pode morrer se beber água demais. O camelo come tâmaras, cereais, capim, sementes, vagens e galhos.” Ela sabia quase tudo sobre os hábitos dietéticos do camelo – muito mais, vimos logo, do que pudesse interessar Betsy.
“Os camelos são uns imbecis!”, sentenciou ela. “Por que você não falou de cavalos, por exemplo?”
Essa crítica fraternal foi o bastante para desencadear uma caudalosa torrente de lágrimas.
“Você nem fez relato nenhum!”, disse Cathy, chorosa.
“E nem era para fazer!” Betsy gritou triunfante. “O papai escreveu-me uma carta. Não é verdade, papai?”
“Realmente”, disse eu, com o coração muito apertado, “não cheguei ainda a escrever, mas...”
“Você prometeu!” E lágrimas brotaram dos olhos de Betsy.
De repente, então, o bebê exibiu um lápis contrabandeado e com uma brusca meia volta da mão deixou um risco verde bem no centro da branca toalha da Liz, que deu um berro e uma palmada na mãozinha rechonchuda. O bebê desfez-se em lágrimas. E Liz fez o mesmo, examinando o seu linho violado. Um recorde tinha sido estabelecido: as quatro mulheres choravam ao mesmo tempo.
Fiquei ali sentado longamente, as torneiras abertas à minha volta.
“Minhas senhoras”, disse eu, “sugiro que passemos à cozinha para a sobremesa.”
Conduzi-as de volta à nossa humilde mesa de madeira, distribuindo beijos e lencinhos de papel liberalmente. Logo estabelecemos uma espécie de acampamento alagado, e eu comecei uma operação de salvamento. Enfiando um suéter nas costas, sob a camisa, pus-me de quatro e perguntei: “Que é que eu sou?”
“O navio do deserto da África”, disse Cathy, sorrindo um pouquinho.
Liz serviu o sorvete, enquanto eu distribuía e lápis e oferecia prêmios para os melhores desenhos de cavalos de cores diferentes. O bebê e o cachorro ficaram na maior alegria: agora um podia dar lápis ao outro à vontade.
“Vamos jogar pôquer?”, sugeriu Cathy.
“Vá buscar as cartas”, disse eu, “e os feijões.”
Liz entregou-me o seu papel. “Ninguém vai fazer um cavalo amarelo melhor que este”, disse ela. “Qual é o meu prêmio?”
“Jantar fora amanhã à noite e uma toalha nova.”
Logo estava tudo como antes, barulhento e alegre. Algumas famílias, acho eu, simplesmente não estão destinadas a uma vida de tranqüila elegância.

sábado, setembro 23

Um brinde aos brindes

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1985
Autor : Larry Collins

Skoal! Dizem os noruegueses.
Prosit! Respondem os austríacos. Num pub inglês ou num bar canadense, o que se ouve é Cheers!, enquanto na França se desejaria Santé! E na Espanha, Salud!
Seja como foir, trata-se de um brinde. Todas as terras tem o seu, assim como todas as ocasiões especiais, as suas fórmulas. Por exemplo, um para a longevidade. “Que você viva tanto quanto queira e queira o tempo todo que viver...” Esse outro é irlandês, e não deixa de ser também uma benção marota: “Que você possa estar no céu meia hora antes que o diabo perceba que você morreu.”
Seja constituído por uma só palavra ou se trate de um discurso de 20 minutos, o brinde é, em geral, a expressão de um desejo favorável, e sua história fascinante é contada em detalhe no livro Toasts, de Paul Dickson.
Por exemplo, segundo a tradição, um dos primeiros brindes registrados na língua inglesa foi o levantado, em meados do século V, por Rowena, filha de um chefe saxão, ao soberano britânico Vortigern: “Lauerd King was hael!” (qualquer coisa como “A saúde do rei!”)
O costume dos brindes, porém, já viria provavelmente da Antiguidade. Os hebreus, em cujo ritual o vinho tinha papel de relevo, erguiam suas taças dizendo Lekayyim! (“À vida!”)
A palavra inglesa para “brinde” (toast) data do século XVII, quando era hábito adicionar ao vinho especiarias ou pão torrado (toasted bread), para enriquecer seu gosto e sua sustância*.
Na Inglaterra do século XVIII, era considerado de mau tom levantar um copo de bebida sem desejar saúde a alguém. Foi assim que brindar popularizou-se como desculpa para ingerir álcool.
Muitos hábitos relativos aos brindes são coisa muito antiga. Por exemplo, ainda brindamos com a mão direita e de braço esticado, para mostrar que não temos armas escondidas. Quanto ao tinir dos copos, é provavelmente um costume que vem da Idade Média. Segundo Dickson, tratar-se-ia de “um gesto para expulsar o demônio, que se sente repelido pelo som dos sinos.”
Na Grã-Bretanha, os brindes ao soberano são sempre feitos de pé exceto quando se trate de camarotes de embarcações. Razão: Carlos II partiu a cabeça num teto baixo ao se levantar para responder a um brinde num navio. Com Guilherme IV, herdeiro do trono, aconteceu exatamente o mesmo, e, daí em diante, a Royal Navy resolveu alterar a etiqueta.
Ser convidado a brindar é tão honroso quanto ser o próprio homenageado. Se a coisa acontece de repente, o melhor é ser-se breve: “Ao Antonio, grande amigo. Deus o abençoe!”
Mas isso não impede que você se prepare de antemão para fazer bonito na hora. Eis alguns exemplos, para estimular a sua criatividade em ocasiões futuras:

· Que o dia mais triste do seu futuro não seja senão o mais feliz do seu passado.
· Que a necessidade ande sempre lá bem atrás de nós.
· Aos nossos grandes amigos, que conhecem o que temos de pior, mas se recusam a acreditar.
Brincar em geral exige um pouco de floreado. Tentar lisonjear, sem contanto cair no ridículo, vale. Quanto ao humor, às vezes pode parecer incorreto, embora caia bem, por exemplo, em festas ou aniversários de casamento.
Seja como for, é difícil bater, em matéria de simpatia, o brinde feito por Tiny Tim em A Christmas Carol, de Charles Dickens: “God bless us every one!” (Deus nos abençoe a cada um de nós!”)

sexta-feira, setembro 22

Pequeno drama no portão 67

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1981
Autor : Ray Jenkins

Não havia lugar no vôo que ele tinha de tomar e isso era uma crise terrível.

Na melhor das hipóteses, o aumento de tráfego com os feriados já teria sido demais para o congestionado aeroporto de Atlanta, Geórgia. Pois acresça-se a isto a tempestade de neve com que a natureza vinha mimoseando há uns 10 anos aqueles dias próximos do Natal e que retinha milhares de passageiros.
Do lado de fora, todos os motores a jato estavam silenciosos. Com uma regularidade deprimente, os alto-falantes anunciavam, com voz de robô, que a companhia aérea lamentava que a decolagem do vôo 421 houvesse sofrido mais um atraso. Até o café estava acabando no aeroporto por causa da procura.
Soava a meia-noite e viajantes fatigados amontoavam-se em torno dos balcões de passagens, discutindo com funcionários, cuja boa vontade havia evaporado há muito; afinal, eles também ansiavam por voltar para casa. Outros andavam para cima e para baixo em torno das bancas de livros e folheavam em silêncio revistas e livros de bolso. Havia quem conseguisse cochilar, contorcendo-se em poltronas pouco confortáveis.
Se havia um laço comum entre essa multidão diversificada, era a solidão sufocante; mas o hábito exigia que cada viajante mantivesse como que uma barreira invisível contra todos os outros. Melhor estar sozinho que envolver-se, o que inevitavelmente significaria ouvir lamentações, e Deus sabe que cada um já tinha queixas suficientes para si próprios.
O próprio Patinhas. Pairava até certa hostilidade competitiva no ar. É que havia mais passageiros que lugares disponíveis. Quando ocasionalmente um avião conseguia levantar vôo, ficava em terra mais gente do que conseguia embarcar.
“Lista de espera”, “Reserva Confirmada” e “Passageiros de Primeira Classe” eram palavras que estabeleciam prioridades e significavam dinheiro, poder, influência, previsão – ou a falta disso tudo.
O portão 67 era um microcosmo do aeroporto. Pouco mais que uma pequena sala, envidraçada, estava superlotada de viajantes esperançosos de voar para Nova Orleans, na Louisiana, Dallas, no Texas, e outros pontos no Oeste. Mais de uma vez, o aflito funcionário afixara a hora presumível da partida, apenas para anunciar mais tarde ainda um novo atraso. A multidão cresceu até só haver praticamente lugar para se ficar de pé.
Exceto entre os passageiros que viajavam acompanhados, havia pouca conversa. Um vendedor olhava com ar ausente para o espaço, como se estivesse resignado. Uma mãezinha bem jovem acalentava um bebê no colo, balançando-o e mimando-o suavemente num esforço em vão para acalmar sua irritação e mal-estar.
Havia também um homem impecavelmente vestido que parecia impermeável aos problemas coletivos. Notava-se um ar de tranqüilidade indiferente em seu jeito. Parecia muito absorvido com sua papelada – calculando lucros anuais da companhia, talvez. “Tem toda a cara de ser o próprio Tio Patinhas.”, poderia pensar alguém, de mau humor.
O embarque. De repente, o silêncio mal humorado foi quebrado por um movimento repentino. Um homem jovem, de uniforme, parecendo ter no máximo 19 anos, discutia acaloradamente com o funcionário do balcão. Exibia um bilhete de classe turística, mas implorava que precisava chegar a Nova Orleans e lá tomar o ônibus para o obscuro vilarejo de Louisiana onde ficava a sua casa.
O agente explicou-lhe exaustivamente que havia poucas esperanças para as próximas 24 horas, talvez, por mais tempo ainda.
O rapaz ficou louco. Ia ser mandado para a guerra; se não pegasse esse vôo, talvez nunca mais pudesse passar o Natal em casa.
Até o homem de negócios levantou dos seus cálculos misteriosos os olhos, demonstrando certo interesse. O agente estava visivelmente comovido, até mesmo embaraçado, mas só podia oferecer simpatia, nenhuma esperança. O rapaz andou em volta do balcão de embarque lançando olhares aflitos e ansiosos pela sala superlotada, como se procurasse ao menos um rosto amigo.
Por fim, o funcionário anunciou que estava tudo pronto para o embarque. Os passageiros ergueram-se, reuniram suas bagagens e moveram-se pelo estreito corredor em direção ao avião que os esperava. Vinte, 30, 100... até lotarem o aparelho. O funcionário virou-se para o jovem aflito e encolheu os ombros. Por um momento constrangido, parecia que o rapaz ia realmente tentar à força sua entrada a bordo.
Lufada de ar. Mas, inexplicavelmente, o homem de negócios ficara para trás. Depois, veio até o balcão. “Minha reserva está confirmada”, disse ele tranqüilamente ao funcionário. “Gostaria de ceder o meu lugar a este jovem.”
O funcionário olhou-o incrédulo. Incapaz de falar, com lágrimas escorrendo pelo rosto, o rapaz fardado apertou a mão do homem de terno cinza, que simplesmente murmurou: “Boa sorte. Aproveite o Natal. Boa sorte.”
Quando a porta do avião se fechou e os motores começaram a funcionar, o homem, sobraçando sua pasta, dirigiu-se ao bar, aberto a noite inteira.
Apenas alguns entre os milhares isolados no aeroporto testemunharam aquilo no portão 67: para estes, a tristeza, a frustração, a hostilidade, tudo se dissolveu num sorriso.
As luzes do avião que partia brilharam como estrelas, enquanto o aparelho mergulhava na escuridão da noite. O bebê dormia agora silencioso no colo da jovem mãe. Talvez um outro vôo partisse dali a muitas horas; mas aqueles que presenciaram a cena estavam menos impacientes. Uma distensão suave flutuou naquele pequeno espaço de vidro e plástico do portão. 67.

quinta-feira, setembro 21

Como contar às crianças que o papai vai morrer

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1980
Autora : Muriel Ficher

Só há pouco tempo acendemos a vela que assinala o dia em que Jack morreu. Vendo a chama tremeluzir no tradicional copo comemorativo, maravilhei-me com a extensão do tempo. Já se passaram três anos e aqui estamos nós falando dele – meu marido, seu pai – com ternura, mas sem lágrimas.
O tempo corre. A memória fica, porém a ferida diminui com a rotina diária da vida. A penosa realidade da cadeira vazia desaparece de alguma forma com a preocupação com aparelhos odontológicos e concursos de dicção, festas, aulas de piano, aulas de direção e matrículas de colégio. Você pensa no milagre de estar sorrindo, após ter suportado o pior sofrimento possível. Talvez chegue até a amar de novo.
Certas cenas brilham diante de mim na luz da vela. Um comercial de TV pergunta de modo incisivo: “Qual foi a última vez que você teve uma conversa franca com seu pai?” – e o pequeno Charles engole em seco, pateticamente. Melissa implora: “Que é que escrevo na ficha da escola onde diz pai?” “Escreva: ‘Falecido’”, respondo e ele estremece. E Michael, o primogênito, envolto em sua visão da morte na aurora fria, me dá um beijo de despedida e se arrasta para o templo a fim de dizer o kadish (a oração judaica para os mortos) – um garoto de bochechas redondas no meio de homens velhos. Aqui estamos agora, conversando serenamente sobre dias passados e futuros.
Lembro-me de quando a morte se tornou iminente. Jack e eu sabíamos que estávamos preparados, mas nos torturávamos com o dilema de como dizer às crianças: um rapaz de 14 anos, uma menina de 13 e um garoto de 7. Como explicar a morte, faze-la aceita, compreendida? Procurava respostas e não as encontrava. Cabia a nós, pai e mãe, abrir o caminho, esperançosos de que a simplicidade e a verdade, envoltas em amor e segurança, facilitassem de algum modo a inevitável tristeza. Preferimos revelar em vez de esconder, fazendo nossos filhos participarem da rotina diária de medicamentos e visitas.
Na maior parte das vezes, foi Jack quem nos animou o espírito. Ele era de natureza calma e bom humor desmedido. Sua vida de doente fora longa e restritiva, mas ele sempre traduziu cada dia em prazer e brincadeiras. Não era fingimento. Seus dias estavam contados, mas não seriam tristes. Certas coisas tinham de ser e seriam feitas, com o sorriso e a indiferença costumeiros. Por isso ele planejou seu funeral. Estipulou uma quantia a ser gasta... e eu a cumpri ( com 10 dólares).
Tínhamos combinado que, quando fosse “necessário”, ele seria removido para um hospital, para não morrer em casa. Entrementes sentou-se na cabeceira da mesa enquanto pode, mantendo o humor da família. Sobre o meu papel ele discursava alegre e comoventemente: “Sua mãe não sabe somar, esquece as coisas, queima tudo: mas ela escreve bilhetes bonitos, cuida bem de vocês e os ama.” Ele fazia uma pausa enquanto as crianças aumentavam a lista, principalmente quanto ao meu comportamento. Depois dizia suavemente: “E ela precisa da ajuda de vocês, agora e depois.” Assim, gentilmente as sementes foram plantadas.
Quando sozinhos, estávamos livres para encarar a realidade em vez de participar de um jogo de esperança e disfarce. Contávamos várias vezes todas as coisas boas que passáramos juntos. Uma noite, como o prazo se esgotasse, Jack colocou os braços sobres os ombros do filho mais velho e disse: “Michael, você sabe o que eu tenho?” E o menino estudioso recitou o papel do pâncreas memorizado de seu livro de ciências. Jack arrematou, sério: “Você sabe que eu não vou melhorar.” O garoto negou com a cabeça, piscando. “Mas é importante que você saiba, agora.” Michael anuiu. Na hora de dormir, Michael inclinou-se sobre o pai e beijou-o . Ambos murmuraram simultaneamente: “Eu gosto de você.”
No caso de Melissa, foi um passeio para fazer compras na cidade que me permitiu tocar no assunto da gravidade de nossa situação. Com Charles, o máximo que conseguíamos fazer era implantar a mensagem de como ele era feliz por ter um irmão e uma irmã mais velhos que realmente o adoravam, e enumerar a legião de primos.
Na verdade nossas conversas sempre paravam antes de enunciar as palavras fatídicas. Ironicamente a morte de uma tia, cuja doença acompanhara a de Jack, proporcionou uma oportunidade. Assim consegui atenuar o choque para o meu caçula, contando como seria: “As pessoas vão chorar na capela e no cemitério; nós também, provavelmente. M ais tarde, em casa, as pessoas virão e falarão sobre o papai, como elas o viam, e lembrarão coisas engraçadas e começarão a rir, e você rirá também. Pode parecer estranho rir depois que uma pessoa morre, mas assim são as coisas.” E assim foram.
Jack morreu no hospital, 24 horas depois de ser internado. O rabino e sua mulher me levaram para casa. Quando estacionamos, entrei em pânico: “Que é que vou dizer?” O rabino soltou um suspiro: “As palavras sairão.”
Entramos no apartamento mergulhado em música. Melissa tocava piano e Michael e Charles vieram correndo com uma longa lista de recados telefônicos. Então os três me cercaram. Ouvi a pergunta: “Como está papai?” A voz saiu abafada quando emiti as palavras, ásperas pela rapidez: “Morreu.”
Choramos. Lembro-me vagamente do rabino murmurar que a vida continuava e que ele nos ajudaria. De repente veio a calma, seguida do sono da exaustão.
Olhando para trás agora, imagino que mais poderia ter sido dito. Meus filhos dizem que não podiam aceitar o pensamento da morte antes do fato. De qualquer forma, está tudo aí. Ofereço este artigo não como orientação, mas como a experiência de uma família. Também as conversas que o acompanharam abriram para nós mais recursos de comunicação. Houve, por exemplo, o recente diálogo.
Melissa: “Quais foram as últimas palavras dele para você?”
Pensei e respondi: “As últimas palavras, antes de eu ir para casa, foram: ‘Beije as crianças por mim.’”
As crianças sorriram e de algum modo aquilo me pareceu um final adequado.

quarta-feira, setembro 20

Um amor por telefone

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1980
Autor : James Less-Milne

Aquilo era um jeito muito estranho de se apaixonar, mas afinal de contas a linguagem das palavras é mais poderosa que a dos olhos...

Em setembro de 1941, depois de ter sido ferido num ataque aéreo a Londres, tive alta do hospital. Minha carreira militar não fora nada gloriosa. Eu estava decepcionado comigo mesmo e profundamente deprimido com o rumo que a guerra tomara. Felizmente naquele período fui robustecido pela amizade mais íntima e deliciosa de minha vida.
Certa noite em Londres, já tarde, eu estava tentando telefonar para um amigo. Em vez de conseguir a ligação, minha linha cruzou com a de uma mulher que também estava tentando telefonar. “O meu número é Grosvertor 8829”, eu a ouvi dizendo à telefonista, “ e quero falar com um número em Hampstead. Em vez disso, você me ligou com Flaxman sei lá o que, em Chelsea. Esse pobre coitado não quer falar comigo, de todo!
“Ah, mas quero, sim”, interrompi eu, pois gostei imensamente da voz dela. Era harmoniosa e esperta. Em vez de estar zangada, aquela mulher mostrava-se muito bem-humorada com a trapalhada. Depois de desculpas mútuas, ambos desligamos. Um ou dois minutos depois, tornei a discar e novamente atendeu o telefone dela, se bem que não houvesse qualquer semelhança entre o número dela e o que eu estava querendo conseguir.
Como parecia que as nossas linhas estavam destinadas a se ligarem, ficamos conversando por uns 20 minutos. “Por que é que você estava querendo falar com esse amigo depois da meia-noite, afinal?”, perguntou ela. Eu expliquei o motivo, que á esqueci. “E você?”, perguntei-lhe. Explicou que a mãe, idosa, dormia mal e que ela muitas vezes telefonava para a velhota tarde da noite. Depois conversamos sobre os livros que estávamos lendo, e claro, a guerra. Por fim eu disse: “Não me lembro de ter apreciado tanto um papo, há anos.”
“Isto foi muito divertido, não foi? Bem, imagino que agora a gente deva parar”, disse ela. “Boa-noite. Durma bem.”
Passei o dia seguinte todo pensando em nossa conversa, na inteligência dela, sua espontaneidade, seu entusiasmo, seu senso de humor. Também pensei no sotaque especial dela, que era suave e sedutor, sem ser de todo insinuante. Sua modulação musical ficou me perseguindo.
Naquela noite prestei pouca atenção ao que estava lendo. Por volta da meia-noite, Grosvenor 8829 estava martelando tanto em minha cabeça que não agüentei mais. Levantei-me, e, com certa perturbação, disquei o número. Escutei o tilintar rápido e livre da campainha do outro lado. Atenderam imediatamente. “Alô!”
“Sou eu”, apresentei-me. “Desculpe se a aborreço, mas podemos continuar a nossa conversa onde a deixamos ontem à noite?” Sem dizer nem sim nem não, ela começou uma dissertação engraçada e original sobre a obra de Balzac, La Cousine Bette. Depois de alguns minutos estávamos brincando e rindo como se nos conhecêssemos há anos.
Desta vez conversamos durante três quartos de hora. Ela era encantadora. A hora tardia e o nosso anonimato absurdamente convencional que geralmente cerceia duas pessoas nos encontros preliminares depois de uma apresentação. Mas quando sugeri que nos deveríamos apresentar, ela não quis saber disso. Poderia estragar tudo, disse ela. Sua única concessão foi anotar o número do meu telefone.
Consegui extrair dela a promessa de que revelaríamos as nossas identidades quando terminasse a guerra. Soube que se casara aos 17 anos com um homem desagradável, de quem estava separada. Ela tinha 36 anos. Seu filho único fora morto, havia pouco, voando, com a idade de 18 anos. Ele era tudo para ela, e falava nele tal como se ainda fosse vivo. Como ela certa vez o descrevera como sendo belo como a aurora, e em outra ocasião dissera que ele se parecia com ela em tudo, tive uma imagem dela que nunca mudou. Quando eu lhe disse como era linda, ela apenas riu e perguntou. “Como é que você sabe disso?”
Passamos a depender um do outro. Não havia nenhum assunto sobre o qual não falássemos. As nossas opiniões sobre a maior parte deles eram idênticas, inclusive a guerra. Ela me dava conselhos e força. Passamos a ler os mesmos livros, para melhor podermos comenta-los, e, como pertencíamos ambos à Biblioteca de Londres, cada qual se comprometeu a não indagar das bibliotecárias o nome do outro. Quando estávamos ambos em Londres, não se passava uma só noite em que não nos telefonássemos, por muito tarde que fosse. Eu ficava esperando o dia todo a nossa conversa seguinte. Se eu saísse da cidade para o fim de semana e não pudesse telefonar, ela se lamentava que mal conseguia dormir, de tão só.
Por vezes eu achava insuportável não poder vê-la. Ameaçava pegar um táxi e ir encontra-la imediatamente, mas ela não cedia: dizia que se nos encontrássemos e se descobríssemos que não nos amávamos como estávamos então nos amando, isso a mataria. Sempre que havia um grande ataque aéreo noturno, eu telefonava para ela, depois de terminar, para ver como ela estava. Isso sempre a divertia. Mas notei que sempre que ela imaginava que houvera um reide sobre Chelsea, fazia o mesmo.
Durante 12 meses vivi num estado de extraordinário contentamento íntimo – notável, porque o período por que estávamos passando era triste, e o nosso amor, em certo sentido, não era realizado. Mas tinha suas compensações; nosso relacionamento era completamente isento dos baixios e recifes que perseguem a turbulência da paixão, e parecia não haver motivo para que não continuasse nesse rumo igual para sempre. Afinal a linguagem das palavras é mais poderosa e mais duradoura do que a dos olhos ou a das mãos.
O destino, porém, deu um golpe rápido. Uma noite cheguei a Londres, vindo do interior, tarde da noite. Peguei o telefone e liguei para o número dela. Em vez do tom límpido da campainha, ou o sinal repetido de “em comunicação”, houve um silvo prolongado e estridente. Nunca mais pude ouvir esse sinal sem sentir uma fraqueza. Significa que a linha está com defeito ou não existe mais.
No dia seguinte repetiu-se o mesmo som... e no outro também. Aflito, liguei para o serviço de informações para descobrir o que houvera. Implorei que me desse o endereço de Grosvenor 8829, se bem que soubesse que não constava da lista, para ela evitar as impertinências indesejáveis do marido de quem se separara.
A princípio elas não quiseram me dizer nada. Acharam esquisito que eu não soubesse nem o nome da assinante. Por fim uma telefonista concordou em desobedecer ao regulamento, uma vez na vida. “Por que não?” disse ela. “Nós todos podemos ir pelos ares a qualquer momento. E o senhor, afinal, parece preocupado. O fato é que a casa à qual pertencia esse número foi atingida por uma bomba há três dias. Não pode haver mal em lhe dar agora o nome da assinante.”
“Obrigado por sua ajuda”, disse eu. “Prefiro que não o faça. Por favor, não.” E desliguei.

terça-feira, setembro 19

A noite da nossa cachorrada

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1983
Autor : Leo Rosten

Em alguma praia elegante, vive um casal que, mal se lembra de nós, fica tremendo de horror.

Ela era a coisinha mais linda e petulantezinha que já se viu. Desfilava soberana pela frente da nossa casa de praia – a cabecinha erguida, dois grandes olhos castanhos brilhando de prazer, uma gargantilha com um diamante falso no pescoço e uma fita azul presa no pêlo cinza metálico. A única coisa horrível em Josephine era o seu latido. Aquele poodle francês tinha o ladrido mais agudo, estridente e irritante de todo o reino canino – um verdadeiro estilete sonoro.
Felizmente, ela só latia quando ficava sozinha, e isto acontecia por pouco tempo. Era adorada e mimada pelos donos, que haviam alugado a casa pegada à nossa numa estação balneária. Chamemos-lhe os Dorret.
Deveraux e Melanie Dorret eram um casal espetacular, estuante de vitaminas, um ostensivo tributo à ginástica, ao iogurte e a uma enorme fortuna herdada. Todo dia, ao entardecer, o casal dourado saía para jantar e badalar no luxuoso country club que ficava a muitos quilômetros dali. Quando eles, queimadinhos de sol, desciam a escada da sua casa, que ficava a uns seis metros da nossa, para ir até a caminhonete alabastrina (ele metido num impecável dinner jacket e ela vestida de brocado), nunca deixavam de acenar para minha mulher e eu, reclinados em nossa varanda, vestidos como marginais e entoando amenidades do tipo “Foi um dia divino, não foi?” ou (lamento lembrar) “Estão se divertindo?”
A empregada deles ficava olhando, o ritual de partida do deck dos Dorret, com Josephine ao lado. No momento em que Dorret ligava o motor do carro, Josephine empinava-se, e, enquanto ele manobrava sua reluzente carruagem à frente da casa, passando pelo calhambeque da empregada, a cachorrinha sempre latia duas vezes – dois estampidos como os de uma pistola: “Pam! Pam!” Era sua versão para “Adeuzinho”.
Raramente ouvíamos os amáveis Dorret voltarem dos seus prazeres no Paraíso, apesar de sua caminhonete passar quase embaixo das janelas do nosso quarto (uma encantadora fantasia arquitetônica, redondas, pequenas e guarnecidas de cobre, exatamente como as escotilhas de um transatlântico).
O motivo disso é que Devereaux, com máxima consideração, apagava os faróis do carro e reduzia o giro do motor ao mínimo até parar. Abria a porta, fechava-a (jamais a batia) e ia na ponta dos pés até o outro lado do veículo para repetir o mesmo circunspecto desempenho.
Num sábado à noite do mês de agosto, tendo-nos regalado ao jantar com vieiras, espadarte e creme de milho, rematando o banquete com uma garrafa de Puligny-Montrachet, minha mulher e eu fomos dormir um sono celestial. Eu disse “dormir?” Absolutamente! Anjos conduziram-nos às nuvens e depositaram-nos num leito ondulante feito para deuses. Semelhante sono (de uma pureza cristalina e opalescente) chegava ás raias da imortalidade.
De repente – impiedoso e vulgar – uma buzina metálica arrancou-nos da nossa modorra: “Au! Au! Au!”
Afastei as nuvens macias gemendo.
As buzinadas viraram tiros:
“Crek! Krek! Crek!”
Minha mulher começou a se mexer na cama.
“Kharf! Rarf! Crrak!”
Saltamos até as escotilhas. Não conseguimos ver Josephine.
“Grrock! Bark! Grark! Grrok!”
“O carro!”, gritou minha mulher.
Olhei para baixo e minha espinha gelou. Nada de calhambeque nem de empregada. Se Josephine estivesse sozinha, ia ladrar e latir até...
Vasculhamos com os olhos a avenida Beira mar, implorando aos céus para vermos luzes de um carro, mas tudo era escuridão. E o tempo todo Josephine cortava os céus com aqueles irritantes sons que sabia produzir. Os jocosos “Arfs”, os cachorrentos “Uufs!” ou os manjadíssimos “Uauuauuau!” haviam sido expurgados do vocabulário dela. Eu não podia acreditar que uma garganta, fosse de cão, pato ou diabo, pudesse sustentar tamanha fúria laringiana.
Com os nervos em frangalhos, berrei: “Chega, Josephine! Pára!”
Foi um erro terrível, pois o som de uma voz humana fez a cadela passar dos protestos desvairados para suplicantes lamentos – num timbre tão comovedor e de um pânico tão histérico que me fizeram correr até o telefone e ligar para o tal clube. A voz apreensiva de Dorret não demorou a atender: “Alo? Sim. Qual é o problema?”
“Sua cadela! Ela está se esganiçando há uma hora sem parar!... Não, sua empregada não está em casa. Não sei para onde ela foi. O que sei é que a Josephine está dilacerando as cordas vocais e a gente vai é enlouquecer!... Obrigado!” Desliguei. “Esse cara é o fino!” disse eu a minha mulher. “Já vem vindo.”
Mais animados, assumimos nossos postos nas escotilhas. Josephine, talvez sentindo através de percepção extra-sensorial canina que o dono vinha correndo para casa, passou a uivar em estilo completamente novo, numa desavergonhada pieguice de cortar o coração: “Buuu-uuu-uuu. Ou-ou-ouuuu, iauu-uu-uuu!”
“Oh, não!” Guinchou minha mulher. “Ela está chorando!”
“Não chore, Josephine!” gritei. “Papai já vem!”
A expressão de desaprovação que minha mulher me dirigiu foi, acho eu, justificável.
Não demorou muito, um par de faróis vasculhou, ao longe, a escuridão. Minha mulher e eu vibramos. E por que não? Sabíamos que o sono – cor de rosa, gostoso, celestial – voltaria logo a nos envolver.
Mas... que estava acontecendo? Quieta? Quieta? Olhamos um para o outro, perplexos. O silêncio era tal que se podia ouvir o estrídulo zombeteiro de um grilo, seguido de sarcasmo afetado de uma mosca. A terrível verdade abateu-se sobre mim como uma bordoada: Josephine já não estava latindo!
Os faróis de Dorret ardiam em nossa direção. “Ele... vai... pensar... que somos... malucos!” gemeu minha mulher.
“Temos que fazer a cadela latir!” gritei: e levei as mãos à boca, rugindo: “Bark! Uuuf! Kark!”
Minha mulher prontamente começou a uivar: “Uauuuauau! Uau! Bauuu! Oh, Bouu-uau-uauuuu!”
Interrompemos por um segundo o nosso concerto para aguçar os ouvidos. Josephine não emitia som algum. O grilo cricrilava, a mosca zumbia, mas do irritante poodle francês não saía nenhum som.
“Tente latir mais grosso!” ordenei à minha amada. “Você está parecendo uma histérica!”
“Mas eu estou histérica!” reagiu ela. “Uuuf!” Ruuf! Buuf! Gruuk!”
“Faça aquele seu uivo de lobo!”suplicou ela.
E eu ululei alto e longamente, para uma lua inadequada... e minha mulher chorava feito uma carpideira com dor de dentes.
Josephine não se deixou impressionar. Então, comecei a ganir como um coiote, e minha mulher, a gemer como se estivesse em trabalho de parto. Estas alucinadas ululações foram inúteis para ativar as cordas vocais da cachorra.
Agora em desesperado uníssono, com nossas mãos amplificando os decibéis, prorrompemos em rosnados, ladridos, grasnidos, vagidos, urros, uivos, guinchos, mugidos, relinchos e cacarejos, com o resultado final lembrando a alucinada confusão de uma floresta africana em meio a um terremoto.
Estávamos tão concentrados, tão absortos naquela cacofonia doida, que nem percebemos as luzes do carro já em frente de casa, iluminando nossas caras de fantasma.
Deus adorado, suplico-te, com tua misericórdia infinita, concede que algum dia eu possa esquecer o que vi embaixo das janelas: Devereaux Dorret, em dinner jacket, confete nos ombros, e Melanie Dorret, num lamê deslumbrante, com pedacinhos de confetes presos em sua coiffure, ambos de pé, varados, olhando para nós, para duas cabeças sem corpo enfiadas nas escotilhas, as mãos em concha em volta da boca, latindo, latindo, vítimas de hidrofobia que (tão virulenta era sua insanidade) haviam acusado uma cachorrinha calma, doce e pachorrenta de tê-los levado à loucura.

O que aconteceu à empregada nunca viemos a saber. Dizem que teria fugido com o chofer dos Doppelmeir. O que sei é que, pelo resto do verão, os Dorret não se dignaram mais uma única vez a nos dirigir um “Oi”. Sempre que percebiam nossa presença, rapidamente apertavam o passo. Pela cara que faziam, andavam muito desconfiados.
E, toda vez que saía da casa de praia, o casal sempre levava Josephine. A intenção era clara: qual é o dono de um cachorro que ia deixar o animalzinho à mercê de um par de tarados que poderiam submeter o inocente a sabe-se lá que tipo de barbaridade?

segunda-feira, setembro 18

Rápida e rasteira

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1983
Autor : John Gould

Quando eu era pequeno e pobre, lembro-me de que eram importantes os pequenos pedaços de cartolina que separavam as camadas de cereais, que comprávamos enlatados. Serviam para muitas coisas, e não se desperdiçava nenhum.
Não nos era fácil obter papel. Éramos sempre frugais com o que tínhamos e economizávamos papel o mais possível.
Lembro-me de papai uma vez ter usado uma folha inteira para mandar um recado a um amigo, dizendo “Espero você no sábado para me ajudar a trabalhar no poço”, e de mamãe o ter repreendido: primeiro, por ter usado uma folha inteira de papel para uma mensagem tão curta; segundo, por escrever um bilhete, pois esse amigo não sabia ler.
Mamãe nunca escreveu muito a não ser recados para meus professores, mas o aspecto limpo das cartolinas dos cereais enlatados inspirava-a ao máximo, e ela compunha recados dignos de atenção. A princípio, costumava escrever: “por favor desculpem John por chegar tarde; ele não teve culpa do atraso.”
Mas isso passou a obras-primas de composição, tais como: “Digno e estimado senhor: Na enorme urgência das obrigações matinais, acrescidas da relutância de uma bomba de água em funcionar mesmo com razoável persuasão, o tempo passou-se até meu filho se esquecer do horário. Por favor, seja bondoso e indulgente.”
Os negócios de meu pai obrigavam-no a ficar longe de casa uma semana de quando em quando, e enquanto estava fora os trabalhos do celeiro ficavam ao meu encargo. Eu ouvia soar a sineta da escola ao longo dos campos, enquanto estava ainda dando de beber a um bezerro. Mamãe teria pronta uma mensagem, que eu levaria para a escola e entregaria ao responsável.
Foi numa cartolina de cereais enlatados que mamãe escreveu a melhor mensagem que jamais li. Ela tinha descrito cuidadosamente ao cavalheiro a situação da nossa família e dizia que, se por um lado lamentava os meus freqüentes atrasos, por outro estava fazendo o melhor que podia e apreciava muito a compreensão do professor. Mas o diretor entregou-me para levar a mamãe um recado: “Há alguma coisa que possamos fazer para que John chegue a tempo à escola?”
Aí, mamãe utilizou uma cartolina inteira para a resposta. Dizia: “A solução é não começar as aulas antes que ele chegue.”

quinta-feira, setembro 14

Elvis Presley, o rei do rock

Fonte : Revista Seleções
Data : janeiro de 1980
Autor : Jon Bradshaw

Rei do rock, como o chamavam. Elvis o Pélvis, também. E ainda: Swivel Hips ( Quadris Giratórios), Hillbilly Cat (Gato Caipira) e Mamma Presley’s Son (Filhinho da Mamãe Presley).
Vivia em Memphis, no Tennessee, no boulevard Elvis Presley. Tinha 1,83m e pesava 105kg. O cabelo era castanho claro, mas tingido de preto e borrifado com laquê. No auge da carreira, recebia entre cinco e seis milhões de dólares por ano.
Elvis nasceu pouco depois do meio-dia no dia 8 de janeiro de 1935, num barraco de dois quartos em Tupelo, Mississipi. Seu pai lavrava a terra e entregava leite; a mãe era costureira. Teve um irmão gêmeo, Jesse Garon, mas que veio ao mundo morto.
Ensinaram-lhe a dizer “dona” e “seu” e a levantar-se quando os mais velhos entravam na sala. Aos dez anos, ganhou em sua cidade o segundo lugar num concurso, cantando, em pé numa cadeira, “Old Shep” (Velho pastor), sem acompanhamento. Sua mãe juntou dinheiro por cinco meses e comprou-lhe a primeira guitarra que teve. Preço: 12,95 dólares.
Em 1948, os pais foram para Memphis pretendendo mudar de vida. A renda total da família Presley era então de 35 dólares por semana, e o professor de música da oitava série, onde estudava Elvis, afiançou que ele era muito pouco promissor.
Diplomando-se no Ginásio Humes, de Memphis, em 1953, naquele mesmo verão foi trabalhar como motorista de caminhão, ganhando 41 dólares por semana, enquanto estudava à noite visando se tornar eletricista.
Sua primeira gravação como profissional – um disco que continha “That’s all right, mama” (Tudo bem, mamãe) de um lado, e “Blue Moon of Kentucky” (Lua triste do Kentucky), do outro, foi posto à venda em agosto de 1954 na etiqueta Sun. Quando as músicas foram para o ar pela rádio, Elvis escondeu-se num teatro de Memphis, com medo que os amigos se rissem dele. A gravação não fez sucesso e um disc-jockey disse que ele era tão country (música branca no interior dos Estados Unidos) que não dava jeito toca-lo depois das cinco da manhã.
Com tudo isso, Elvis, seu guitarrista e o contrabaixista – um grupo que se intitulava “Blue Moon Boys” – começaram a excursionar pela região rural do Sul e do Sudoeste norte-americano. Por essa época, Elvis não conseguia adormecer sem antes ligar para a mãe. Foi nesse tempo que começou a incluir o famoso gingado de ancas em suas apresentações. Os fãs ficaram siderados. “Não tenho nem consciência de que estou fazendo isso”, afirmou ele, “mas, quanto mais faço, mais eles ficam doidos.”
Apresentou-se então num famoso programa de música country-and-western – o Grand Ole Opry, de Nashville, Jim Denny, que chefiava o cast de estrelas do show, disse-lhe, depois do programa, que era melhor ele pensar em voltar de novo a dirigir caminhões. Elvis voltou a Memphis chorando o tempo todo. Num concerto que deu na Flórida, porém, a assistência de adolescentes rasgou excitada sua jaqueta cor-de-rosa e despedaçou seus sapatos brancos.
No fim de 1955, o duro coronel Tom Parker tornou-se empresário de Elvis e fez um trato com a Sun Records pelo qual a RCA compraria o contrato do cantor pela soma de 25 mil dólares. O primeiro disco dele para a RCA foi “Heartbreak Hotel” (Hotel dor de cotovelo), “Don’t be Cruel” (Não seja mau) e “Love me Tender” (Me ame com ternura), ficaram todos em primeiro lugar. Ed Sullivan, que dissera que Elvis não dava para ser mostrado às famílias, convidou-o para seu programa de televisão, e aproximadamente 54 milhões de telespectadores o viram (embora as câmaras só o focalizassem da cintura para cima).
Tal fato causou reclamações do público. Elvis foi simbolicamente enforcado em Nashville e queimado in absentia em St. Louis. Billy Graham, o famoso pregador norte-americano, afirmou não querer que seus filhos vissem Presley. A Flórida proibiu os seus meneios, e Elvis desabafou: “Todo mundo acha que sou um maníaco sexual, mas eu, afinal, estou sendo apenas natural.”
No fim de 1956, havia cerca de 78 produtos Elvis Presley diferentes no mercado: goma de mascar Elvis Presley, bermudas Elvis Presley, fotografias fosforescentes de Elvis Presley, e assim por diante. Segundo se estima, ele pôs no bolso 100 milhões de dólares só nos dois primeiros anos de estrelato.
Tinha três aviões a jato, dois Cadillacs, um Rolls-Royce, um Lincoln Continental, caminhonetes Buick e Chrysler, um jipe, um buggy, um ônibus transformado por dentro e três motocicletas – além do hábito de presentear amigos com Cadillacs e Lincolns Continental.
Provavelmente o carro de que mais gostava era uma limusine Cadillac 75 de 1960, cujo teto era revestido de Naugahyde (um plástico imitando couro) branco pérola e a carroceria pintada com 40 camadas de uma tinta especial, feita, entre outras coisas, de diamantes pulverizados e escamas de peixe. Os “Cromados” do carro eram quase todos folheados a ouro de 18 quilates; tinha discos de ouro no teto e, nas janelas traseiras, cortinas de lamê dourado. Era ainda equipado com dois telefones rajados de ouro e um estojo de ouro que continha: um aparelho elétrico de barbear de ouro, máquinas de cortar o cabelo de ouro, encerador elétrico de sapatos; e mais uma televisão folheada a ouro, uma aparelhagem de som com um amplificador multiplex, ar condicionado, sistema elétrico para usar qualquer eletrodoméstico e ainda uma geladeira que fazia gelo em exatamente dois minutos.
No fim de 1956 Elvis já era popular demais para poder sair às ruas. Passou então a alugar parques de patinação ou de diversão e cinemas por noites inteiras, e então, com seus amigos, patinava, andava de carrinhos elétricos e assistia a filmes até de madrugada.
No dia 24 de março de 1958, ele, convocado, entrou para o exército, que o considerou fisicamente bem constituído e mentalmente mediano. Ali Elvis, de 100 mil dólares mensais, passou a receber 78 dólares. Era motorista de um jipe, aprendeu caratê e foi promovido a sargento. Recebia com freqüência dez mil cartas por semana.
A 1º de maio de 1967, casou com uma garota de 21 anos, Priscilla Beaulieu, que conhecera quando ainda estava no exército. Nove meses após o dia de núpcias, Priscilla deu à luz o único filho de Presley, uma menina chamada Lisa Marie.
Por toda a década dos 60, Elvis foi o artista mais bem pago do mundo. No ano de 1960, era dele o cachê mais alto jamais pago por uma simples aparição em vídeo até então – 125 mil dólares num Frank Sinatra especial. Vendeu mais de 500 milhões de discos e fez 33 filmes. (King creole era seu favorito; do resto, em geral, ele detestava.)
Entre 1957 e 1967, doou mais de 1 milhão de dólares para fins de caridade e a conhecidos e amigos.
Entre 1961 e 1968, Elvis não apareceu em público e não teve gravações em primeiro lugar nas paradas de sucessos entre a primavera de 1962 e o outono de 1969. Divorciou-se em 1973.
Sua preocupação constante era o peso. Enquanto se assistia representando em filmes antigos, às vezes afundava-se na poltrona e resmungava: “Não, não! Gordo demais, demais!” Mas adorava manteiga de amendoim e sanduíches de banana amassada, banana splits, azeitonas e bacon torrado. Sofria de hipertensão e tinha cólon dilatado (megacolo), leve diabetes e problemas de fígado.
Seu temperamento era violento e ele ficou conhecido por destruir aparelhos de televisão e mesas de bilhar. Colecionava ursinhos de pelúcia.
Quando se apresentava em público, usava um colete a prova de balas; e quando alugava por uma noite um cinema em Memphis, exigia que se revistassem os convidados de seus amigos antes de o filme começar. Além disso, andava sempre cercado por um grupo de 12 guarda-costas. Eram conhecidos como a Máfia de Memphis.
Certa vez, Elvis pegou um resfriado e alguém de seu grupo o encontrou em sua sala de música tocando ao piano “How Great Thou Art” (Que poderoso sois).
Como está se sentindo?”perguntou o esbirro.
“Só”, respondeu o Rei.

quarta-feira, setembro 13

Estado de calamidade em Fort Wayne

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1983
Autora : Patrícia Skalka

As águas da enchente chegaram a Fort Wayne, Indiana, numa ameaça rapidamente crescente. Alimentados pelas neves derretidas, os três rios da cidade logo transbordaram. Domingo, 14 de março de 1982, as frias águas marrom-escuras com 3m de profundidade haviam desabrigado três mil pessoas. Na terça-feira, o Centro Municipal de Operações de Emergência (CMOE) promoveu a evacuação de mais nove mil dos 173 mil residentes da cidade. Uma chuva forte desabou, então. A enchente refluiu para o sistema de esgotos, arremessando longe as tampas dos bueiros. Diques de terra construídos para conter os rios ficaram encharcados e em breve se tornariam inúteis. Da parte oriental da cidade veio um informe particularmente sombrio: o dique Pemberton estava completamente encharcado.
Dois mil voluntários ajudaram a encher e colocar 100 mil sacos de areia ao longo da borda do rio de Fort Wayne. Um número 10 vezes maior de operários seria necessário para a sobrevivência da cidade. Um recurso continuava a não ser mencionado: os estudantes.
Na noite de terça-feira, o prefeito Win Moses Jr., telefonou para o superintendente das escolas da cidade, que concordou em fechar as escolas ainda em funcionamento, mas devido aos regulamentos de segurança contras riscos, ele não podia solicitar o auxílio dos estudantes. As crianças teriam de vir por vontade própria.
Todos sabiam que a cidade se achava à beira do caos: “E se as crianças não vierem?”, perguntou alguém ao prefeito Moses.

Sete horas da manhã do dia 17 de março, quarta-feira.
David J. Kiester, o homem encarregado dos voluntários do combate à enchente, foi até a escadaria do memorial Coliseum para tomar um pouco de ar. Tinha havido telefonemas frenéticos durante quase toda a noite. Edgewater precisava de socorro. Lawton Park precisava de socorro... as águas da enchente ameaçavam a usina de filtragem da água, as instalações do tratamento de esgotos e a estação principal de transformadores elétricos. Não vamos conseguir sobreviver a uma outra noite como esta, pensou Kiester.
Perscrutou através de uma cortina de neblina e seu coração deu um salto. Mal podia acreditar no quadro diante de si. Um cortejo de ônibus escolares vinha vindo pela estrada principal, em direção ao Coliseum. Um por um, os ônibus entraram no estacionamento, pararam e despejaram uma avalancha de adolescentes. Atrás dos ônibus, fila após fila de carros, caminhonetes e caminhões encostavam, com mais crianças ainda.
“Tem certeza de que está bem?”, exclamou Ruth Baker para a filha, quando ela saltou do carro.
“Estou ótima: não se preocupe”, respondeu Sarah, de 15 anos, que estava convalescendo de uma gripe. Ela acenou e saiu correndo com os seus amigos para o Coliseum.
David Kiester pestanejou sobre as lágrimas dos olhos ao inspecionar o mar de rostos cheios de animação. As crianças tinham vindo, alegres, bem dispostas, ansiosas por ajudar. Talvez consigamos vencer isso, pensou Kester.

Meio-dia de quarta-feira.
Centenas de adolescentes estão reunidos no interior do pavilhão de exposições. Montes de areia se empilhavam no chão. Com entusiasmo, as crianças enchem de areia sacos cor de rosa, verdes e brancos, depois os amarram e atiram dentro de caminhões. Saco após saco, 20 mil por hora! E ainda não era o bastante. David Kiester ordenou a colocação de um monte de areia de 6m no parque do estacionamento. “Quero 75 caminhões carregados de sacos e prontos a qualquer hora.”, disse Kiester. As crianças encheram os 75 caminhões pedidos.
Em meio à lida, uma menina pequena começou a chorar. “Que é que vai ser da minha família?”, exclamava ela. Outra garota, que ela não conhecia, abraçou-a, sentou-a numa pilha de sacos de areia e consolou-a .
Perto de State Boulevard, Mary Zieseniss, de 16 anos, e Beverly Linville, de 15, apressavam-se em direção ao Coliseum. “Isso é a coisa mais emocionante que eu já fiz!”, confessava Mary, enquanto avançavam a custo através de meio metro de água. De repente, Mary avistou uma mulher idosa, parecendo exausta, enquanto se esforçava por acondicionar seus pertences num bote.
“Olhe só aquilo”, disse Mary, passando pelo gramado, completamente alagado, da mulher. “Os diques podem esperar.”
Durante 45 minutos, Mary e Beverly trabalharam junto com a senhora, carregando seu barco, ajudando-a a tomar seu caminho, antes de rumarem novamente para o Coliseum.
Pais preocupados telefonavam para a prefeitura, atrás de seus filhos, que não apareciam em casa.
“Onde você estava?”, reclamou um pai da sua filha de 16 anos, exausta, salpicada de lama. “Estive combatendo a enchente”, disse ela tranqüilamente. Uma hora depois, o pai estava no Coliseum, de pá na mão, para ajudar também. “Vim com a minha filha.” “Vim com o meu filho.” As palavras se tornaram uma ladainha familiar para os coordenadores dos voluntários.
Adultos de carro paravam sempre que viam adolescentes reunidos. “Querem carona?” Vão para onde? Então entrem.”

Tarde de quarta-feira.
A estação de rádio WMEE transmitiu uma mensagem do presidente do conselho de estudantes, Terry Lovejoy: “Estou recorrendo a todos os estudantes de Fort Wayne para ajudar nesta crise”, disse ele. “A cidade está dependente de nós.” Ondas de novos voluntários chegavam, 200 por hora, prontos para a luta.
Os voluntários tinham recebido instruções no sentido de fazerem rodízio nas fileiras e trabalharem dentro de casa a cada duas horas, mas Betty Collins, uma supervisora adulta, viu caminhões e ônibus regressarem dos locais de trabalho com três quartas partes vazias.
“Onde estão as crianças?”, perguntou ela a um motorista.
“Elas não querem vir!”, respondeu o motorista. “Continuam trabalhando.”
Em West Brook, os estudantes ajudaram residentes idosos a livrar seus móveis das ameaçadoras águas da enchente. Surgiu um vazamento em Spy Run e uma legião de adolescentes o consertou. Quando um cano de esgoto explodiu em Perry, uma parte das crianças construiu uma muralha de sacos de areia para conter a água.
Pela primeira vez em quase uma semana, uma margem de segurança se tornou possível em toda parte, a não ser no dique de Perberton. Com cinco quarteirões de extensão, o muro de sustentação retinha uma massa de água com 3,5m de profundidade por 3km de comprimento. Se ele se rompesse, uma vaga destruiria 8km² de casas.
O dique tinha de ser reforçado. De cada lado de uma casa de vigamento de madeira, a apenas 9m da parede do dique, uma fila de adolescentes passava sacos de areia pesando de 20kg a 35kg. Tump, tump, tump. De cada braço para o outro. Pegar. Girar. Jogar para cima. Do caminhão, pela via de acesso, por cima da cerca, através do pátio. Vupt. Para o dique. Os adultos decidiam e interrogavam-se, as crianças trabalhavam.

Quarta-feira, 20:00.
O diretor de transportes da cidade, Carl E. O’Neal, percorreu o dique Pemberton. “Está vazando como uma peneira”, radiografou ele ao EOC. Uma hora depois, ao entrar na sede do EOC, O’Neal ouviu uma frenética comunicação no rádio: “O dique está se movendo!” O”Neal voltou voando a Pemberton. Cansados ou não, os voluntários teriam de reforçar mais o dique.

23:00
A polícia emitiu uma ordem de evacuação aos poucos residentes das proximidades de Pemberton que permaneciam em suas casas. “Estão em perigo iminente. Por favor, saiam imediatamente.”

Meia-noite.
Oitocentas crianças mantinham os sacos em movimento. “Este é pesado. Este é leve. Não pára!”
Enquanto o prefeito Win Moses avançava com água pelo tornozelo, em frente ao dique, um garoto de oito anos passou cambaleando. Segurava um saco de areia com as duas mãos, puxando-o . “Sr. Prefeito”, disse um homem, “olhe só o meu filho. Semana passada, nem o lixo ele queria tirar...”
Quinze fileiras de adolescentes removiam agora 25 sacos de areia por minuto cada, criando uma muralha de emergência em frente ao encharcado dique de terra. E trabalhavam cantando “Oh When the saints go marching in...” Cantando!
Cantavam para tocar para frente com ritmo, para manter os sacos de areia em movimento, sem parar. Cantavam para vencer. Cantavam porque é da natureza dos jovens voltar ao perigo uma face de bravura.

14:00 Quinta-feira, 18 de março.
O dique de Pemberton estava cedendo. Um buraco de 1m de largura se abria no dique. Um quarteirão ao norte, mais outro. A água vazava.
As sirenes e as buzinas da polícia trespassavam a escuridão. “Tirem todos daqui! Evacuem agora! Todos os voluntários saiam da área.”
“Queremos ficar”, insistiu Brett Thomas, de 18 anos, do penúltimo ano do ginásio. “Somos capazes de enfrentar isto.”
Um grupo de adolescentes, de rostos enlameados, conferenciaram entre eles e votaram contra a desistência. Ficaram parados junto a um caminhão vazio, recusando subir nele. “Vamos esperar. Vamos só esperar para ver.”
De algum modo, graças ao deslocamento de terra, graças aos sacos de areia furiosamente arremessados mas bem colocados, os buracos foram fechados. As torrentes se tornaram fios de água. Do comando, veio uma comunicação: “Se os voluntários querem ficar – façamos uma tentativa.”
As crianças trabalharam a noite inteira. Vagarosamente, a muralha de sacos de areia começou a tomar forma. Crescia mais alta e mais larga a cada hora, espalhando-se em torno de troncos de árvores, subindo em direção as casas e ocupando abrigos de carros e garagem.
Os voluntários não se importavam com braços e costas doloridos, mas a previsão de chuvas os preocupava.
“Se chover, tudo estará perdido.”
“Não podemos desistir!”
“Que poderemos fazer?”
“Rezem para que os sacos fiquem mais leves”, disseram eles rindo.

Madrugada de quinta-feira.
Reforços de adolescentes chegavam ao Coliseum. “Meu trabalho é na barragem”, cantavam eles, enquanto amontoavam areia nos sacos e esperavam sua vez para trabalhar nos diques. Em meio à manhã, cinco mil voluntários apinhavam-se ali, e mais continuavam chegando. Em Pemberton, 1.500 estudantes prosseguiam o trabalho iniciado pela indomável multidão da noite anterior. Sua represa se elevava, quase 3m de altura em alguns lugares e 4,5 de espessura. “Vamos vencer ou perder em Pemberton”, disse o prefeito Moses à cidade.
Em meio a um descanso do enchimento de sacos de areia, o diretor do ginásio de North Side, Daniel G. Howe, viu dois meninos que ele mesmo expulsara por má conduta. Ouvira dizer que se tratava de crianças que não ligavam para coisa alguma. No entanto, ali estavam elas, trabalhando duro.
“Não são formidáveis essas crianças?”, observou um homem.
“Sempre foram”, disse Howe. “É que as pessoas nunca lhes deram a oportunidade de comprova-lo.”
Naquela noite, o rio Maumee subiu a 7,90m; 5cm abaixo do limite mais elevado estabelecido em 1913. a represa de sacos de areia de Pemberton também crescia. Mias de 3m, 3,5m. Finalmente, umas 27 horas após ter começado o monumental trabalho, a tarefa estava cumprida. Às 2:00 da manhã, Mark Meister, presidente da National Honor Society do ginásio de Concórdia, arremessou o seu último saco de areia do dia. A não ser por um descanso de duas horas, ele estava trabalhando na represa desde as 7:00 da manhã anterior. Agora, coberto de lama, exausto, ele mal podia acreditar no que ouvia: eles podiam ir para casa!
A represa auxiliar estava terminada. Elevava-se a quase 4m de altura, media 9m de um lado a outro, e estendia-se por cinco quarteirões. Cada um dos seus 300 mil sacos de areia fora enchido, amarrado, arremessado e empurrado no lugar a mão. Era espantoso.
Mas ele resistiria?

Sexta-feira, 19 de março.
A chuva caía. Os voluntários encheram mais sacos de areia, observaram a chuva cair e aguardaram.
Ao meio-dia, ainda chovia, mas a represa resistia. Às 17:00, chegou a notícia de que o rio Maumee descera para 7,28m, e a represa ainda agüentava.
O departamento meteorológico emitiu uma nova previsão. Não havia expectativa de mais chuvas.

Sábado, 20 de março.
Fort Wayne voltou ao trabalho como de costume. Ao todo, se estimava que umas 50 mil pessoas haviam aderido ao esforço de controle da enchente, quase 30 mil delas estudantes. A certa etapa, oito crianças da família Hewett, de idades entre 12 e 28, tinham trabalhado nos diques com o seu pai, Gene. Rachel, de 15 anos, trabalhara 52 horas.
Na represa de Pemberton, um general do Corpo de Engenheiros do Exército inspecionou o trabalho dos estudantes. Posteriormente, comentou com Carl O’Neal que as crianças em Fort Wayne haviam realizado um milagre de engenharia.
“Elas fizeram o impossível”, disse o general. “Fizeram o que não era possível ser feito!”
Carl O’Neal chorou.

terça-feira, setembro 12

Seguro morreu de riso

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1983
Autor : Dominique Audibert

Preencher o formulário de um seguro de acidente é coisa séria, mas há quem transforme o caso numa loucura engraçadíssima.

A vida nos departamentos de reclamações das companhias de seguros é bastante rotineira. De vez em quando, porém, solta-se uma gargalhada sonora do meio daquela monotonia cinzenta de pilhas de formulários e relatórios. Eis uma amostra dessas “pérolas”, recolhidas na caixa de correio de uma grande companhia de seguros.
Mesmo simples pedidos de informação podem conter surpresas; “Sobrenome: Martin. Nome de batismo: Jules. Nascido: Sim.”
Ou: “Lugar e Tipo de ferimento: Lugar, banco da frente da direita.”
Ou então: “Quanto à data do acidente, foi na sexta, antes de terça-feira.”
A seção da “Situação familiar” também motiva respostas deliciosas, tais como: “Estou casada há 11 anos, com uma criança de seis” e “Eu gostaria de saber se o meu irmão, que não é nem minha mulher, nem nenhum dos meus filhos, pode utilizar o meu carro”.
Um outro pegou a caneta e comunicou: “Uma vez que não sei escrever, é-me impossível fazer uma declaração verbal.”
As descrições de acidentes aparecem nos estilos mais variados.
Confuso: “Eu não vi o carro chegar; quando vi, já não consegui ver mais nada.”
Conciso: “O outro entrou pelo muro, e eu entrei em coma.”
Incompleto: “Um pedestre correu em direção ao meu carro e desapareceu embaixo dele.”
Inacreditável: “O falecido saiu correndo por entre duas filas de carros parados.”
Surrealista: “No momento em que ele estava chegando em casa, vindo do trabalho, meu cachorro atravessou a rua e bateu na frente do carro do Sr. X.”
Desorientado: “Após a colisão, dei comigo sentado em frente da parte de trás do meu carro.”
Apreensivo: “Uns policiais me encontraram numa árvore. Que acha que aconteceu? Será caso de receber indenização?”

Às vezes há testemunhas. Uma delas oferecia ansiosamente os seus préstimos: “Venho testemunhar sobre este acidente que eu não vi nem ouvi.”
Outra, condenatória: “Papai estava com sede. Aí eu lhe passei o garrafão de vinho. Depois, não sei o que aconteceu: o nosso carro foi direto contra uma árvore.”

Algumas pessoas desejam alterar informações nas suas fichas.
A distraída: “Por favor, tome nota do meu novo endereço: eu agora moro mesmo ao lado da minha antiga residência.”
A enigmática: “Em referência aos estragos causados pela água, venho participar-lhes que o meu marido deixou de vez o domicílio conjugal.”
O realista: “Agradecia que segurassem o meu novo carro e que incluíssem ainda no meu seguro o pára-brisa e a minha mulher.”
A inflexível: “Solicito que cancelem imediatamente a apólice da minha moto. Ela já está arrumada e eu para lá caminho.”

Finalmente, há a enorme multidão daqueles que nunca está satisfeitos.
Um segurado confuso: “Não compreendo que sua firma se recuse a tratar do meu acidente só por eu não ter pago o prêmio. Mas eu paguei o do ano passado e não tive acidente nenhum.”
Um cliente propenso a acidentes: “Está certo, eu tive três acidentes em quatro meses, mas vocês sabem que eu sou um bom cliente. Quando a casa se incendiou, a culpa foi do vizinho, e quando o meu garoto derrubou a velhota, ela machucou-se pouco.”
Um descontente: “Depois do acidente, minha mulher piorou. Levem isso em conta.”

segunda-feira, setembro 11

Coincidências: puro acaso ou nem tanto?

Fonte: Revista Seleções
Data: Novembro de 1979
Autor : Edward Ziegler

Haverá mesmo alguma força estranha por trás disso tudo?

Vai-se ao dicionário dar uma espiada numa palavra que nunca se tinha ouvido e, nos dias seguintes, a gente esbarra várias vezes com ela em oportunidades diferentes. Escreve-se para um amigo que a gente não vê há anos, e recebe-se uma carta sua imediatamente: as duas se cruzaram no ar. Seria puro acaso ou há qualquer coisa estranha por trás disso?
A ciência ortodoxa considera que coincidências assim não passam de acontecimentos fortuitos, mas elas continuam a funcionar como um extraordinário fenômeno de todos os dias – algo que poderia ter uma significação, opina Arthur Koestler, autor britânico que vem escrevendo muito sobre o assunto.
Alan Vaughan, num recente livro intitulado Incredible Coincidence ( Coincidência Incrível), resume muito do pensamento de Koestler e lista 152 “casos” de coincidências.
Um deles é a história do jornalista Irv Kupcinet, de Chicago, que se registrou no hotel Savoy, de Londres, e quando abriu uma gaveta em seu quarto, encontrou vários pertences de um amigo seu, Harry Hannin, que então fazia parte do time dos Harlen Globetrotters.
“Passados dois dias”, conta Vaughan, “Hannin mandou uma carta a Kupcinet, do hotel Meurice em Paris, dizendo: “É incrível, mas acredite que abri uma gaveta aqui e encontrei uma gravata com seu nome nela. ‘O negócio é que Kupcinet tinha estado naquele quatro meses antes.”
Foram coisas como essa que inspiraram Koestler a tentar descobrir padrões e causas em eventos que se cruzam coincidentemente assim. O esforço rendeu umas poucas respostas, porque as coincidências não deixam resíduos laboratoriais passíveis de serem medidos e analisados – mesmo quando permitem lembranças ocasionais tão fantásticas como esta:
Richard Bach, escritor de best-sellers e piloto, exibia-se em 1966 pelo Meio-Oeste americano com um biplano incomum, um Detroit-Parks P-2A Speedster de 1929, um dos únicos oito construídos. Na cidade de Palmyra, no Wisconsin, ele emprestou o avião a um amigo que, na aterragem, bateu com o aparelho. Relembra Bach em seu livro Nothing By Chance ( Não por acaso) que os dois conseguiram dar jeito em tudo, menos no problema com uma longarina, e parecia não haver esperanças pela raridade da peça requerida. Foi aí que apareceu um homenzinho e perguntou se podia ajudar. De brincadeira Bach lhe disse: “Mas claro” Você não tem aí uma longarina asa a asa para um Detroit-Parks Speedster 1929, modelo _ 2A?
O sujeito entrou no hangar e em seguida voltou com a peça pedida! “As chances de a gente ter quebrado o biplano numa cidadezinha onde morava um homem que tinha a peça, velha de 40 anos, necessária para o conserto; o acaso de ele estar ali quando a coisa aconteceu; a casualidade de termos empurrado o avião exatinho para junto de seu hangar, a três metros da peça que queríamos”, conclui Bach, “tudo isso eram probabilidades tão contra nós que pensar em coincidências não parece lá muito inteligente.”
Os céticos, porém, rejeitam esse modo de ver. Como diz Martin Gardner, escritor especializado em assuntos científicos, trilhões de coisas, grandes e pequenas, acontecem todo dia a bilhões de seres humanos. Então é claro que é inevitável que ocorram fatos surpreendentes aqui e ali.
Sob esse ponto de vista, as coincidências são meramente uma manifestação da “lei das probabilidades” – lei essa que pôs macaquinhos no sótão dos filósofos séculos a fio, conta Koestler no livro Janus*. O grande matemático John von Neumann chegou mesmo a chamar tal fenômeno de “magia negra”. “O paradoxo”, observa Koestler, “consistem em que a teoria das probabilidades seja capaz de predizer com excepcional precisão o resultado global de grande número de acontecimentos individuais, cada um dos quais, de per si, imprevisível. Em outras palavras, temos diante de nós um vasto número de incertezas produzindo uma certeza. Paradoxal ou não, tal lei tornou-se um instrumento indispensável para a física e genética, para as companhias de seguros, para os cassinos e para as pesquisas de opinião – de modo que admitimos a magia negra.”
O exemplo mais comum é naturalmente o dos índices de mortalidade das companhias de seguros. Outro exemplo, segundo Koestler, é o do decaimento radioativo. A meia-vida do tório C é de 60 minutos e 30 segundos, e precisamente neste espaço de tempo metade de uma amostra deste material radioativo se desintegra. A ação de um átomo individualmente não pode ser predita, mas no conjunto metade da amostra decai certinho no tempo previsto. “Esta lei”, anota Koestler, “não se aplica através de forças físicas; ela flutua, por assim dizer, no ar.”
O certo, portanto, é que tudo pode acontecer, mesmo uma seqüência de fatos tão improváveis como os que aqui se seguem e foram narrados por Koestler no jornal londrino The Sunday Times.
É Vaughan quem relembra a coisa em seu livro: Em 1971 o escritor George Feifer, de Londres, acabara de publicar um romance, cuja ação se passava na União Soviética, intitulado The Girl From Petrovka (A garota de Petrovka). Um amigo dele tomou-lhe emprestado o único exemplar do livro em que o autor fizera alguns apontamentos para uso posterior, e perdeu-o em Bayswater. Em vão ele foi procurado, mesmo oferecendo-se recompensa a quem o devolvesse.
“Passados 26 meses”, conta Feifer, “fui a Viena para escrever um artigo sobre a filmagem do romance. Anthony Hopkins, que tinha um dos papéis principais da fita, contou-me então um estranho incidente ocorrido no verão anterior. Ele assinara o contrato para desempenhar aquele papel na película e fora a Londres comprar um exemplar do livro. Andou pelas livrarias e não o conseguiu, mas na volta deu de cara com um livro esquecido num banco do metrô na Leiceste Square. Virou-o para cima e era simplesmente The Girl From Petrovka. Mas ainda estava perplexo com certas anotações rabiscadas em várias páginas. ‘Será que este exemplar tem algum sentido pessoal para você? perguntou-me ele.”
Alguns cientistas sentiram-se atraídos pela idéia de haver uma qualquer força desconhecida por trás das coincidências, alguma coisa ainda não detectada. O físico e matemático britânico Adrian Dobbs, já falecido, aventou que hipotéticas forças mensageiras, os psitrons, agiam como uma espécie de radar varrendo uma dimensão em outro tempo e tomando amostras de futuras probabilidades, que depois traziam de volta ao nosso aqui e agora. Registra Koestler em The Roots of Coincidence ( Fontes de coincidência) que Dobbs levou adiante uma especulação, supondo que esses tais psitrons ultrapassavam os sentidos e deflagavam certa forma de iluminações diretamente no cérebro.
Outra teoria citada por Koestler se deve ao psicanalista C. G. Jung, que colaborou com o físico Wolfgang Pauli num livro que utilizava o termo sincronicidade em lugar de coincidência. Um dos exemplos dados por Jung foi relatado pelo astrônomo francês Camille Flammarion:
“Um certo Deschamps, quando era criança em Orléans, uma vez ganhou um pedaço de pudim de ameixas de um senhor chamado De Fortgibu. Dez anos mais tarde ele viu um desses pudins num restaurante de Paris e pediu uma fatia, mas o doce já tinha sido reservado... pelo Sr. De Fortgibu.”
Muitos anos mais tarde, Deschamps foi convidado para a degustação de outro pudim de ameixas. Enquanto o comia, pensou que a única coisa que faltava ali era por certo o Sr. De Fortgibu. Naquele mesmo instante a porta se abriu e um senhor de idade, completamente desorientado, entrou: era o Sr. De Fortgibu, que irrompia assim de sopetão naquela festa por engano.”
Pauli, colaborador de Jung e detentor de um Prêmio Nobel por haver estabelecido certo princípio fundamental da física moderna, vislumbrou que as coincidências eram vestígios de princípios não passíveis de investigação. Por seu lado Jung consignou tudo a que não podiam ser imputadas relações de causa e efeito que pudessem influencias o “inconsciente” – um reservatório subterrâneo de lembranças agregadas através das quais as mentes conseguem comunicar-se.
Jung, porém, ver-se-ia em dificuldades para aplicar sua teoria no caso do destino póstumo do ator canadense Charles Francis Coghlan. No livro Incredible Coincidence, Vaughan conta que Coghlan, natural da ilha Prince Edward, faleceu quando fazia uma tournée por Galveston, na ilha do mesmo nome, no Texas, em 1899, e foi enterrado lá, num caixão chumbado, dentro de uma câmara mortuária de granito.
Menos de um ano depois, o grande furacão de setembro de 1900 atingiu a ilha, inundando seu cemitério. O caixão de Coghlan, arrancado de sua prisão granítica, flutuou pelo golfo do México, foi levado à deriva em torno da Flórida e acabou atirado ao Atlântico. Ali a Gulf Stream carregou-o para o norte.
Pois bem, passados oito anos, em outubro de 1908, pescadores da ilha Prince Edward, no Canadá, encontraram nas águas uma grande caixa, corroída pelas intempéries. Trouxeram-na para a praia e encontraram nela uma plaquinha de metal com o nome de Coghlan gravado. Seus restos mortais vieram bater à praia precisamente a pouca distância de sua cidade natal. Com o respeito apropriado, conclui Vaughan, Coghlan foi novamente enterrado, mas desta vez junto da igreja onde foi batizado.
Puro acaso? Pode ser, mas, como observa Koestler, as pesquisas biológicas, assim como as da física, mostram uma tendência fundamental da natureza para criar uma ordem onde a desordem existe; qualquer coisa além das influências conhecidas existe em ação.
“Vivemos cercados por fenômenos cuja existência ignoramos”, prossegue ele em The Roots of Coincidence. “Se eles não podem ser ignorados, nós os desprezamos como superstições. Por séculos o homem não se deu conta de que estava cercado por forças magnéticas.” Assim, bem que se poderia pensar que vivemos imersos numa espécie de campo psicomagnético que atua sobre coisas assim como as coincidências. Por que não?

Mas como resumir o que é uma coincidência? Koeslter tem uma boa definição: “Coincidências”, diz ele, “são trocadilhos do destino.”
E o caso nº 100, dos que Alan Vaughan conta, parece oferecer uma clara confirmação de que há maus em uma sugestão de humor em muitas coincidências. Veja só o que narra Anthony S. Clancy, um irlandês de Dublin: “Nasci no sétimo dia da semana, no sétimo dia do mês, sétimo dia do ano, sétimo ano do século; fui o sétimo filho de um sétimo filho, e tenho sete irmãos – o que perfaz sete setes.”
Quando fiz 27 anos, fui às corridas de cavalos e joguei no sétimo páreo num cavalo de número sete chamado Sétimo Céu, que tinha sete pontos de handicap. As probabilidades eram de sete contra uma. Apostei então sete shillings nele:.... e o cavalo chegou em sétimo lugar.”

sábado, setembro 9

Cão que ladra...

Fonte : Revista Seleções
Data : janeiro de 1980
Autor : James Herriot

O conhecido veterinário britânico encontra um collie travesso, com resultados surpreendentes.

Pensando bem, que criatura com sendo de humor o Shep, o cachorro do Sr. Bailes! Era um cão enorme, muito maior que um collie comum. Tinha pêlo abundante, preto e branco, e havia algo de impressionante naqueles membros maciços e na cabeça nobre, meio marrom e de orelhas em pé.
Uma tarde, o Sr. Bailes me chamou à casa dele, que ficava a meio caminho de Highburn Village. Para chegar ao pátio do seu sítio, tinha-se de andar uns 20m entre muros de 1,5m de altura. À esquerda ficava a casa do vizinho; à direita, o jardim da frente da sua casa. Em geral Shep ficava por ali rondando no jardim.
Enquanto eu seguia entre os muros, ia pensando numa das vacas dos Bailes, chamada Rose. A rês tinha começado a grunhir, e seu leite a diminuir há dois dias. Prisão de ventre? Talvez uma torsão parcial do intestino? Não havia dúvidas de que ela estava com dores abdominais; e mais aquele calor danado de 39º C.... Eu lhe dera um purgante forte, oleoso. “Conserve os intestinos desobstruídos e confie em Deus”, aconselhara-me um dia um colega idoso. Havia muita sabedoria nisso.
Eu estava no meio da passagem entre os muros, quando, sem saber de onde, um barulho terrível explodiu no meu ouvido direito. Era Shep. O muro ali tinha justamente a altura certa para o bicho dar um salto e latir dentro do ouvido de qualquer incauto.
Dei um pulo dos diabos e, quando pisei a terra de novo, com o coração saltando pela boca, olhei furioso por sobre o muro. Mas só vi um vulto peludo afastando-se, aos pinotes. Aquele foi por certo o pior susto que já levei na vida.
Depois disso fiquei na melhor das formas para receber más notícias – exatamente o que me esperava no estábulo. Bastou olhar para a cara do fazendeiro para ver que a vaca tinha piorado.
“O purgante não deu jeito”, disse eu ao Sr. Bailes. “Vamos ter de tentar uma coisa mais forte.” Fui buscar no carro um equipamento para lavagem gástrica – um comprido tubo de borracha, uma mordaça de madeira e tiras de couro para prender por trás dos chifres – e bombeei nove litros de água morna cheia de formalina e cloreto de sódio no animal. Se aquilo não desse certo, nada mais daria.
Voltei ao carro pelo caminho mais comprido, atravessando um campo de capim alto. O sol estava muito quente e cada passo me fazia sentir a fragrância dos trevos e do capim quente que se erguia em volta de mim; e o silêncio era a coisa mais calmante de todas.
Aí, sem qualquer aviso, o chão sob meus pés explodiu num horrendo barulho. Por um momento terrível, o céu azul foi obscurecido por um imenso vulto peludo, e uma boca vermelha se escancarou num UUUAAAU! na minha cara. Apavorado, recuei, cambaleando, e vi Shep desaparecer rapidamente em direção ao portão. Escondido no meio do mato rasteiro do campo, ele tinha esperado até ver os meus olhos. Do ponto de vista dele, a emboscada deve ter sido muito satisfatória.

Dois dias depois tornei a volta a Highburn. Deixei o carro do lado de fora do sítio e já ia entrando pela passagem entre os muros, quando parei para olhar para uma vaca no pasto do outro lado da estrada. Era Rose. Tinha melhorado milagrosamente! Aproximei-me dela e cocei-lhe a base da cauda. Enquanto uma onda de alívio me inundava, vi o Sr. Bailes, que saltava o muro, vindo do outro pasto.
“Ah, bom dia, Sr. Bailes”, disse eu, expansivo. “Rose hoje parece estar ótima, não?”
O fazendeiro tirou o boné e enxugou a testa.
“Ah, é outra vaca, sim senhor!”
“Não creio que ela precise de mais tratamento”, disse eu, “mas foi bom eu ter feito aquela lavagem.”
“Aquele negócio da bomba?” – o Sr. Bailes ergueu as sobrancelhas. “Aquilo não teve nada a ver com a coisa.”
“Não teve? Que é que você quer dizer? Estou certo de que foi isso que a curou.”
“Não, rapaz, foi o Jim Oakley quem a curou.”
“Jim.... mas o que...?”
“É, o Jim esteve aqui ontem à noite. Ele costuma vir aqui de noite. Ele olhou para a vaca e me disse o que fazer. Disse que um bom galope pelo pasto havia de cura-la. Então levamos Rose para o pasto e fizemos o que ele disse, e, por Deus, isso a curou!”
Eu me empertiguei.
“E quem é esse Jim Oakley?”, perguntei friamente.
“É o carteiro, homem!”
“O carteiro!”
“É, mas há alguns anos ele tinha uma criaçãozinha. Jim é muito jeitoso com o gado.”
“Sem dúvida, mas posso garantir-lhe, Sr. Bailes...”
O fazendeiro ergueu uma das mãos.
“Não me diga mais nada, rapaz. Foi Jim quem a curou, e não há como negar.”
Eu estava farto. “Bom, tenho de ir andando”, disse-lhe. Enquanto atravessava o pasto, a injustiça cruel do caso cada vez me pesava mais. Fui andando como num sonho.
Ia passando pela porta da cozinha do sítio, quando, da minha esquerda, de repente ouvi um barulho de corrente. Então um monstro se lançou sobre mim, berrou uma vez, com força, na minha cara, e desapareceu.
Desta vez achei que o meu coração ia parar. Eu me esquecera de que, de vez em quando, a Sra. Bailes prendia Shep no canil. Encostei-me ao muro, o sangue trovejando em meus ouvidos. Olhei obtusamente para a corrente comprida sobre as pedras.
Aí alguma coisa estalou em minha cabeça. Toda a minha frustração estourou numa torrente de gritos incoerentes. Agarrei a corrente e comecei a puxa-la freneticamente. O canil devia estar a uns 3m dali e a princípio só senti o peso morto na ponta da corrente. Depois, enquanto eu puxava, apareceu um nariz, depois uma cabeça, depois todo o grande animal pendurado frouxo da coleira.
Fora de mim, de raiva, agachei-me, sacudi o punho debaixo do focinho dele e berrei: “Seu bestalhão! Se fizer isso de novo comigo, eu lhe arranco esse raio de cabeça!”
Shep olhou para mim assustado, rolando os olhos, e o rabo se meteu entre as pernas, desculpando-se. Continuei a berrar, e aí ele mostrou os dentes superiores num sorriso de agrado, acabando por rolar de costas, pondo-se imóvel, de olhos fechados.
Então foi que percebi tudo. Ele era um molenga. Seus ataques ferozes eram apenas uma brincadeira. Comecei a acalmar-me, mas ainda queria que ele entendesse. “Certo, meu chapa”, acrescentei, num cochicho ameaçador. “Lembre-se do que eu lhe disse!” Larguei a corrente e dei um grito final. “Lá para dentro!”
Shep, quase de rastos, o rabo tocando a barriga, correu para o canil.

Fiquei surpreso, certa de um mês depois, ao receber novo chamado para ver outra vaca do Sr. Bailes. Achava que, depois de minha atuação no caso Rose, ele havia de preferir os serviços de Jim Oakley... Mas não, a voz dele no telefone era cortês e simpática como sempre.
Deixando o carro do lado de fora do sítio, olhei desconfiado para dentro do jardim da frente antes de me aventurar entre os muros. Um leve barulho de metal me mostrou que Shep estava ali, à espreita, em seu canil. No fim da passagem parei, à espera, mas só via ponta de um focinho que se escondeu, prudentemente, enquanto eu estava ali. Portanto a minha explosão com ele dera resultado.
No entanto, no caminho de volta da consulta, não me senti bem com aquilo. Tinha a sensação incômoda de tê-lo privado de seu maior prazer. A idéia de que eu tinha arrancado algumas coisa da vida daquele cão era perturbadora.
Mais tarde, naquele verão, eu ia passando de carro por Highburn, quando vi uma coisa que me fez parar, expectante, do lado de fora do sítio dos Bailes. A rua da aldeia, branca e empoeirada, dormitava ao sol da tarde. No silêncio abafado nada se movia – a não ser um homenzinho que andava em direção à abertura entre os muros. Gordo e muito escuro, era um consertador de panelas de um acampamento fora da aldeia, carregando uma porção delas consigo.
De onde eu estava, pude ver Shep esgueirando-se, em silêncio, para sua posição por trás do muro. Fascinado, fiquei olhando. Enquanto o homem entrava sem pressa na passagem, o cão o acompanhava com a cabeça por cima do muro.
Tal como eu esperava, a coisa aconteceu quando o homem estava a meio caminho. O salto perfeitamente cronometrado, o tremendo UUUUAAAAUU!
Vi, rapidamente, braços agitados e panelas voando, acompanhados de um prolongado som de metais. Depois o homenzinho reapareceu como uma bala e fugiu pela rua. Só parou quando sumiu dentro de uma loja, no outro extremo da aldeia.
Shep, satisfeito, jogou-se numa sombra fresca, a cabeça sobre as patas, esperando confortavelmente sua próxima vítima.
Sorri sozinho. Ia parar na loja e dizer ao homenzinho que ele podia apanhar suas panelas sem o menor receio de ser esquartejado, mas minha emoção mais importante foi sentir que não havia apagado a alegria da vida do canzarrão.