quinta-feira, setembro 21

Como contar às crianças que o papai vai morrer

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1980
Autora : Muriel Ficher

Só há pouco tempo acendemos a vela que assinala o dia em que Jack morreu. Vendo a chama tremeluzir no tradicional copo comemorativo, maravilhei-me com a extensão do tempo. Já se passaram três anos e aqui estamos nós falando dele – meu marido, seu pai – com ternura, mas sem lágrimas.
O tempo corre. A memória fica, porém a ferida diminui com a rotina diária da vida. A penosa realidade da cadeira vazia desaparece de alguma forma com a preocupação com aparelhos odontológicos e concursos de dicção, festas, aulas de piano, aulas de direção e matrículas de colégio. Você pensa no milagre de estar sorrindo, após ter suportado o pior sofrimento possível. Talvez chegue até a amar de novo.
Certas cenas brilham diante de mim na luz da vela. Um comercial de TV pergunta de modo incisivo: “Qual foi a última vez que você teve uma conversa franca com seu pai?” – e o pequeno Charles engole em seco, pateticamente. Melissa implora: “Que é que escrevo na ficha da escola onde diz pai?” “Escreva: ‘Falecido’”, respondo e ele estremece. E Michael, o primogênito, envolto em sua visão da morte na aurora fria, me dá um beijo de despedida e se arrasta para o templo a fim de dizer o kadish (a oração judaica para os mortos) – um garoto de bochechas redondas no meio de homens velhos. Aqui estamos agora, conversando serenamente sobre dias passados e futuros.
Lembro-me de quando a morte se tornou iminente. Jack e eu sabíamos que estávamos preparados, mas nos torturávamos com o dilema de como dizer às crianças: um rapaz de 14 anos, uma menina de 13 e um garoto de 7. Como explicar a morte, faze-la aceita, compreendida? Procurava respostas e não as encontrava. Cabia a nós, pai e mãe, abrir o caminho, esperançosos de que a simplicidade e a verdade, envoltas em amor e segurança, facilitassem de algum modo a inevitável tristeza. Preferimos revelar em vez de esconder, fazendo nossos filhos participarem da rotina diária de medicamentos e visitas.
Na maior parte das vezes, foi Jack quem nos animou o espírito. Ele era de natureza calma e bom humor desmedido. Sua vida de doente fora longa e restritiva, mas ele sempre traduziu cada dia em prazer e brincadeiras. Não era fingimento. Seus dias estavam contados, mas não seriam tristes. Certas coisas tinham de ser e seriam feitas, com o sorriso e a indiferença costumeiros. Por isso ele planejou seu funeral. Estipulou uma quantia a ser gasta... e eu a cumpri ( com 10 dólares).
Tínhamos combinado que, quando fosse “necessário”, ele seria removido para um hospital, para não morrer em casa. Entrementes sentou-se na cabeceira da mesa enquanto pode, mantendo o humor da família. Sobre o meu papel ele discursava alegre e comoventemente: “Sua mãe não sabe somar, esquece as coisas, queima tudo: mas ela escreve bilhetes bonitos, cuida bem de vocês e os ama.” Ele fazia uma pausa enquanto as crianças aumentavam a lista, principalmente quanto ao meu comportamento. Depois dizia suavemente: “E ela precisa da ajuda de vocês, agora e depois.” Assim, gentilmente as sementes foram plantadas.
Quando sozinhos, estávamos livres para encarar a realidade em vez de participar de um jogo de esperança e disfarce. Contávamos várias vezes todas as coisas boas que passáramos juntos. Uma noite, como o prazo se esgotasse, Jack colocou os braços sobres os ombros do filho mais velho e disse: “Michael, você sabe o que eu tenho?” E o menino estudioso recitou o papel do pâncreas memorizado de seu livro de ciências. Jack arrematou, sério: “Você sabe que eu não vou melhorar.” O garoto negou com a cabeça, piscando. “Mas é importante que você saiba, agora.” Michael anuiu. Na hora de dormir, Michael inclinou-se sobre o pai e beijou-o . Ambos murmuraram simultaneamente: “Eu gosto de você.”
No caso de Melissa, foi um passeio para fazer compras na cidade que me permitiu tocar no assunto da gravidade de nossa situação. Com Charles, o máximo que conseguíamos fazer era implantar a mensagem de como ele era feliz por ter um irmão e uma irmã mais velhos que realmente o adoravam, e enumerar a legião de primos.
Na verdade nossas conversas sempre paravam antes de enunciar as palavras fatídicas. Ironicamente a morte de uma tia, cuja doença acompanhara a de Jack, proporcionou uma oportunidade. Assim consegui atenuar o choque para o meu caçula, contando como seria: “As pessoas vão chorar na capela e no cemitério; nós também, provavelmente. M ais tarde, em casa, as pessoas virão e falarão sobre o papai, como elas o viam, e lembrarão coisas engraçadas e começarão a rir, e você rirá também. Pode parecer estranho rir depois que uma pessoa morre, mas assim são as coisas.” E assim foram.
Jack morreu no hospital, 24 horas depois de ser internado. O rabino e sua mulher me levaram para casa. Quando estacionamos, entrei em pânico: “Que é que vou dizer?” O rabino soltou um suspiro: “As palavras sairão.”
Entramos no apartamento mergulhado em música. Melissa tocava piano e Michael e Charles vieram correndo com uma longa lista de recados telefônicos. Então os três me cercaram. Ouvi a pergunta: “Como está papai?” A voz saiu abafada quando emiti as palavras, ásperas pela rapidez: “Morreu.”
Choramos. Lembro-me vagamente do rabino murmurar que a vida continuava e que ele nos ajudaria. De repente veio a calma, seguida do sono da exaustão.
Olhando para trás agora, imagino que mais poderia ter sido dito. Meus filhos dizem que não podiam aceitar o pensamento da morte antes do fato. De qualquer forma, está tudo aí. Ofereço este artigo não como orientação, mas como a experiência de uma família. Também as conversas que o acompanharam abriram para nós mais recursos de comunicação. Houve, por exemplo, o recente diálogo.
Melissa: “Quais foram as últimas palavras dele para você?”
Pensei e respondi: “As últimas palavras, antes de eu ir para casa, foram: ‘Beije as crianças por mim.’”
As crianças sorriram e de algum modo aquilo me pareceu um final adequado.

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