terça-feira, setembro 26

Amor como essência

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1982
Autor : Terry Dobson

O trem resfolegava e avançava ruidosamente pelos subúrbios de Tóquio numa linda tarde de primavera. Nosso carro estava relativamente vazio – umas donas de casa com suas crianças, algumas pessoas idosas indo às compras. Eu contemplava meio ausente as casas descoloridas e cercas vivas empoeiradas.
Numa estação, as portas se abriram, e repentinamente a tranqüilidade da tarde foi quebrada por um homem que bramava pragas violentas e incompreensíveis. Com passo incerto ele veio vindo para o nosso carro. Usava roupas de trabalhador, era grande e estava bêbado e sujo. Berrando, empurrou uma mulher que segurava um bebê. O golpe a fez girar e cair no colo de um casal idoso. Só por milagre o bebê não se machucou.
Aterrorizado, o casal deu um salto e procurou refugiar-se no fundo do vagão. O trabalhador deu então um pontapé visando às costas da senhora de idade em retirada, mas errou o alvo e ela pode correr para um lugar seguro. Isto o enraiveceu tanto que ele agarrou a barra cromada que servia de amparo aos passageiros de pé no meio do vagão e tentou arranca-la da base. Pude ver que uma das suas mãos estava cortada e sangrando. O trem seguia em frente, com os passageiros tremendo de medo. Levantei-me.
Eu era jovem naquela época, há uns 20 anos, e em muito boa forma. Havia-me habituado a oito duras horas de treinamento de aikido quase que diariamente nos três anos anteriores, e gostava de briga e corpo a corpo. Eu me sentia forte. O problema era que minha habilidade marcial nunca havia sido testada num combate real. Como alunos de aikido, não nos era permitido lutar.
“O aikido”, repetira meu professor várias vezes, “é a arte da reconciliação. A pessoa que tem a cabeça feita para luta corta sua conexão com o universo. Quando se tenta dominar os outros, já se está vencido. Aqui estudamos uma maneira de resolver um conflito, não de começa-lo.”
Eu recordava aquelas palavras e obstinadamente tentava assumi-las. Já havia, mesmo, atravessado uma rua para evitar os Chimpira-punks de flippers que perambulavam pelas estações de trem -, e orgulhava-me da minha indulgência. Sentia-me forte e virtuoso ao mesmo tempo, mas no fundo eu queria uma oportunidade legítima através da qual pudesse salvar um inocente destruindo o culpado.
É isso aí! disse para mim, quando me levantei. Há pessoas em perigo. Se eu não tomar uma atitude imediata, alguém provavelmente vai sair ferido.
Vendo levantar-me, o bêbado reconheceu uma oportunidade de focar sua raiva. “Ah!”, berrou ele. “Um estrangeiro! Você precisa aprender modos japoneses!”
Segurei levemente na alça do trem acima da minha cabeça e olhei-o de vagar, com desgosto e desprezo. Minha intenção era surrar aquele grosseiro, mas ele teria de dar o primeiro passo. Eu queria que ele ficasse furioso. Franzi os lábios e mandei-lhe um beijo insolente.
“Está bem! Você vai ter uma lição!”, berrou ele, aprontando-se para a agressão.
Um milésimo de segundo antes de eu dar um passo, alguém gritou “Ei!” Era um som estrídulo. Lembro-me de que era algo estranhamente festivo, com um cantante melodioso – como se você e um amigo estivessem procurando muito uma coisa, e de repente houvessem tropeçado nela. “Ei!”
Virei-me para a esquerda; o bêbado virou para sua direita; e os dois demos com um pequeno japonês bem velho. Devia ter uns 70 anos, e jazia, mínimo, sentado, com seu imaculado quimono. Ele não me notou, mas sorriu para o trabalhador, como se tivesse o mais importante e agradável segredo para contar.
“Venha”, disse o velho, chamando para o bêbado. “Venha conversar comigo.” Acenou com a mão de leve.
O homenzarrão seguiu, como se estivesse andando numa corda. Plantou os pés à frente do velho, e berrou mais alto que o ruído das rodas do trem. “Conversar com você por que?” O bêbado agora tinha as costas voltadas para mim. Se o seu cotovelo se movesse um milímetro, eu o derrubaria com um golpe.
O velho continuava a sorrir para o trabalhador. “Que foi que você bebeu?”, perguntou ele com os olhos brilhando de interesse. “Bebi saquê”, gritou o trabalhador de volta, “e você não tem nada com isso!” Perdigotos sem conta respingaram sobre o velho.
“Ah, é maravilhoso!”, disse o velho, “simplesmente maravilhoso! Sabe, eu também adoro saquê. Todas as noites, eu e minha mulher (ela tem 76 anos, sabe?) esquentamos uma garrafinha de saquê para beber no jardim, e nos sentamos num velho banco de madeira. Vemos o por do sol e vamos olhar como nosso caquizeiro está se desenvolvendo. Meu bisavô plantou essa árvore, e nos preocupamos com ela para saber se se recuperará das tempestades de neve que tivemos no inverno passado. Nossa árvore vai melhor do que esperávamos, especialmente se você considerar que a terra é muito ruim. É delicioso a gente apreciar a noite, quando levamos nosso saquê para fora, mesmo quando chove!” Ele olhou para o trabalhador, com os olhos piscando muito.
Enquanto tentava seguir a conversa do velho, o rosto do bêbado começou a relaxar. Seus punhos descerraram-se devagar. “É mesmo” concordou ele. “Eu também adoro caqui...” Sua voz arrastou-se.
“É”, disse o velho, sorrindo, “e tenho certeza de que você tem uma esposa maravilhosa.”
“Não”, respondeu o trabalhador. “Minha mulher morreu.” Muito calmamente, balançando com o movimento do trem, o homenzarrão começou a soluçar. “Eu não tenho mulher, nem casa, nem emprego. Fico tão amolado!” As lágrimas rolaram até as bochechas, enquanto um espasmo de desespero contraía seu corpo.
Então chegou minha vez. De pé, em minha inocência de uma saudável juventude, e com meus ideais de salvar o mundo pela democracia, eu de repente me senti pior do que ele.
O trem então parou na minha estação. Quando as portas se abriram, ainda ouvi o velho. “Meu Deus”, disse ele, “é uma situação difícil, realmente. Senta aqui e me conta tudo.”
Virei-me para dar uma última olhada. O trabalhador estava esparramado no banco, sua cabeça no colo do velho, que lhe afagava suavemente o cabelo sujo e baço.
Quando o trem foi embora, sentei-me num banco. O que eu queria fazer com os músculos fora realizado com palavras amáveis. Eu acabara de ver o aikido testado em combate, e sua essência era o amor. Eu teria de praticar esta arte com um espírito completamente diferente. Teria um longo tempo diante de mim, até que pudesse falar de verdade em resolver uma briga.

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