quinta-feira, abril 20

O Dia em que a Cobra me mordeu

Fonte : Revista Seleções
Data : junho de 1973
Autora : Jean Bell Mosley

Emocionante narrativa, em que a autora recorda as velhas superstições de seu tempo de menina do interior, a propósito de mordidas de cobra.

Foi em outubro. Eu e minha irmã, Lou, voltávamos do colégio para casa. As montanhas, com sua folhagem de outono, colorida como roupa de ciganos, guardavam ainda um suave encanto. Tínhamos percorrido um quilômetro e meio, mas ainda havia o dobro essa distância pela frente. “Vamos cortar caminho pelo monte Gillman”, disse Lou.
As crianças que vivem em zonas montanhosas aprendem a ter cuidado com cobras venenosas. Mas, em outubro, já estava passando a época das cobras, e os nossos olhos estavam voltados para cima, para as espirais avermelhadas no alto das acácias e o brilho dourado das nogueiras.
A meio do percurso pelo monte Gillman, avistamos uma galinha-do-mato, cruzando o caminho. Á nossa volta, ouvíamos o ruído característico dos esquilos, o palrear dos gaios e o som das bagas de carvalho caindo. De repente, alguma coisa ferrou meu tornozelo, firme, com um característico arrastar de corpo. Era uma cobra! Suas presas estavam enfiadas na minha meia. Tive que torcer e sacudir violentamente a perna para soltá-las.
Lou, que ficara paralisada momentaneamente, logo voltou à realidade, e começou a apedrejar a cobra. O animal deslizou por entre as folhas. Olhamos uma para a outra. Lou, mais velha e mais experiente do que eu, estava pálida e trêmula. Houve um momento de calma, como a que se pode experimentar em meio à tempestade. A não ser pelo barulho dos frutos caindo, o bosque tinha ficado silencioso. Agora, aos poucos, ouviam-se novamente os esquilos, os gaios. Corremos para casa.
Ao nos aproximarmos, Lou disparou na frente, para avisar a família. Papai, o primeiro a chegar, amarrou o lenço em volta da minha perna, acima do joelho, e, enfiando um pedaço de pau entre o nó das pontas, torceu-o fortemente. Com o canivete fez um corte em cruz sobre as duas marcas dos dentes da cobra. O corte doeu mais que a mordida, mas eu não gritei nem perdi os sentidos. Não era nosso hábito. Então, ele me tomou nos braços, e já estávamos na metade do caminho de casa quando chegaram os outros – mamãe, vovó, vovô, a minha outra irmã, Lillian, e mais um vizinho, que estava nos visitando. “Vou avisar os outros”, disse, passando por nós.
Em nossa casa, o primeiro socorro sempre foi a aguarrás. Dessa vez não foi poupada. Despejaram o garrafão inteiro na panela, e ali meti meu pé de molho. Vovó lembrou-se de que cataplasma de fumo era muito bom para mordida de cobra. Encheu a boca com fumo de rolo, e começou a masca-lo; entregou outro tanto a vovô, com um olhar de quem pedia urgência. Vovô acatou, não antes de lembrar que uma cataplasma de barro vermelho era também bom. E enquanto mascava o fumo, saiu à procura de barro.
Alguém disse à mamãe que uma galinha recém-morta, aberta ao meio, posta sobre o ferimento, tinha efeito de “puxar” o veneno. Mamãe correu ao galinheiro. Lillian começou a folhear avidamente um almanaque, em busca de modernos conselhos médicos. Papai tentava uma ligação interurbana, para chamar um médico. Lou correu ao sótão, à procura de uns pedaços de pano branco para a cataplasma.
Havia uma confusão de sons: galinha grasnando, um rasgar de panos, um farfalhar de páginas de almanaque, vacas berrando no estábulo, os cães latindo, agitados. Vovó foi para a copa, mascando e rezando. Rezava alto, falando coisas que ninguém entendia, com a massa de fumo na boca. Vovô voltou com o barro, e agora havia o barulho de barro misturado à água, para atingir a consistência ideal. Deitada no banco da cozinha, lá estava eu, imaginando se ia morrer. “Nós vimos uma galinha-do-mato”, eu disse, querendo que as coisas voltassem ao normal. Ninguém ligou. Havia assuntos mais importantes a tratar.
Vovó, ainda rezando, veio da copa, tirou o fumo da boca, e estendeu a mão para receber a porção que estava com vovô. Como se tivessem ensaiado, Lou entregou-lhe um pedaço de pano. O fumo, ainda molhado e quente, foi embrulhado cuidadosamente no pedaço de pano, de tamanho apropriado. Tiraram-me o pé do banho de aguarrás e a cataplasma foi aplicada sobre as marcas da mordida.
“Alô! Alô!”, papai insistia, no telefone, que continuava mudo.
“Aqui diz...”, Lillian começou, mas foi interrompida por mamãe, que entrou, quase sem fôlego, esbaforida, pela porta adentro. A cataplasma de fumo foi retirada. E uma galinha, ainda morna, aberta ao meio, com penas e tudo, cobriu inteiramente o meu pé.
Logo que o corpo da ave esfriou, foi removido, e vovô botou-me no pé o barro vermelho e úmido.
“Aqui diz...”, Lillian começou novamente, mas foi logo sufocada pelos “alô1 alô!” de papai, muito aflito, e sem nada conseguir. De trás da porta da copa, vinha a voz de vovó, agora mais clara e compreensível. “Deus é o meu sustentáculo nas dificuldades... Caminharei com a sua ajuda...”
A essa altura, tinham chegado sete ou oito vizinhos. Entraram calmamente, com determinação. Havia uma batalha, e eles estavam prontos. Lonnie Britt, uma mulher grandona, de muita força, chegou até o banco, levantou meu pé e disse, com naturalidade: “Está começando a inchar.”
Bessie Stacy, que estivera ocupada na cozinha, tomou toda agitada um pedaço de pano, e nele deitou ma mistura estranha. “São carrapichos fervidos em leito doce”, disse. “Apanhei-os quando vinha para cá.” Tirou a cataplasma de barro, e aplicou no meu pé os carrapichos quentes.
Vovó Weaver foi a última a chegar. Teve que descer todo o caminho pelo Monte Simons, à luz de lanterna, com suas pernas trêmulas e reumáticas. Sem dizer uma palavra, foi direto á copa, pegou uma caçarola, apanhou um bocado de sal e levou-o ao fogo. Quando estava quente, Lou deu-lhe um pedaço de pano branco, e o sal tomou o lugar dos carrapichos, enquanto Bessie preparava uma cataplasma final – de carne salgada de porco, com cebolas.
“Continua a inchar, e está ficando roxo” alguém observou. O som era da voz de Bessie, mas para mim parecia provir dos lábios de Tom Alexander. Outras coisas estranhas começaram a acontecer. Cabeças mudavam de lugar. Até a minha parecia estar no pescoço de Lillian e a de Lou no de vovô – uma coisa engraçada – e, a cabeça de vovô Weaver pareceu-me no lugar do relógio, na viga. Tio Matt MacGee entrou com um jarro na mão, que , no meu delírio, logo se transformou na cabeça da velha Star, nossa vaca Jérsei. Ele derramou qualquer coisa avermelhada do jarro na minha boca, e disse: “Beba!”
Eu bebi, e foi como se uma tora na lareira se quebrasse em duas e as brasas caíssem pela minha garganta. Parecia estar numa ponte oscilante, só que, em vez de estar andando, eu era jogada para cima e para baixo, ora perigosamente perto das águas vertiginosas, ora tremendamente alto, perto do sol escaldante. De vez em quando, ao subir, podia ouvir vozes...
Luz muito fraca... claridade intensa... luz muito fraca... claridade intensa. E então, a sensação de estar subindo, até uma nuvem macia. Eu me esforçava para arrumar as palavras que estava ouvindo, em uma espécie de ordem lógica.
“Mamãe?”, minha voz era fraca e trêmula.
Mamãe, vovó, papai, Lou, Lillian e todos os vizinhos, que tinham estado naquela vigília de dois dias, pularam das cadeiras e rodearam o banco. Nada diziam, mas o alívio, a alegria estava nos seus olhos. Papai baixou as mangas da camisa, e abotoou os punhos. Vovô puxou o relógio, acertou-o e deu corda. Mamãe enxugou o suor da minha testa, e suspirou aliviada. Os piores momentos já tinham passado.
“Bem!”, disse Tom Alexander, como se tivesse acabado de chegar para uma visita de amigo. “É melhor eu ir andando. Tenho milho para guardar.” Outros se lembraram de que havia trabalho em casa. Vovô pôs o chapéu e foi para o celeiro. Papai seguiu-o . Mamãe começou a fazer um bolo. Vovó mexia e panela da sopa. Lou e Lillian arrumavam tudo na cozinha, varrendo, esfregando, jogando fora as cataplasmas servidas, como se estivessem querendo se livrar do passado.
Uma semana depois, Tia Grace, que morava um pouco longe e foi a última a saber, veio nos visitar. Olhando para a minha perna, ainda inchada, mas em franca recuperação, perguntou à mamãe: “Que foi que você fez, Myrtle?”
“Oh, fizemos apenas o de costume, com o que tínhamos à mão”, respondeu mamãe, com um ar casual. E não perdeu mais tempo com o caso. Não era nosso hábito.

O Gigante Egoísta

Fonte : Revista Seleções
Data : junho de 1973
Autor : Oscar Wilde

Toda tarde, quando saíam da escola, as crianças iam brincar no jardim do Gigante. Era um grande e belo jardim, com grama macia e lindas flores que pareciam estrelas. Havia também doze pessegueiros que, na primavera, se abriam em botões de rosa e pérola, e que, no outono, davam saborosos frutos.
Os pássaros, nas árvores, cantavam de forma tão harmoniosa que as crianças interrompiam suas brincadeiras para ouvi-los.
“Como somos felizes aqui”, diziam uns aos outros.
Um dia, o Gigante regressou ao castelo. Tinha ido visitar um amigo, o ogre da Cornualha, e ficara por lá sete anos. Quando chegou, viu as crianças brincando no jardim.
“O que fazem aqui?”, gritou zangado. “Este jardim é só meu. Todo mundo sabe que só eu posso brincar nele!”
Então, construiu um muro alto ao seu redor, e colocou um aviso: ENTRADA PROIBIDA. Era um gigante muito egoísta mesmo.
As pobres crianças não tinham, agora, onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas era muito poeirenta e cheia de pedras, e por isso, não gostaram. Na volta da escola, costumavam passear em volta do muro alto, e falavam sobre o lindo jardim que havia lá dentro: “Como éramos felizes quando estávamos lá!”
Quando chegou a primavera, todo o campo se encheu de pequeninas flores e pássaros. Mas ainda era inverno, no jardim do Gigante egoísta. Os pássaros não gostavam de cantar lá, porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florir. Certa vez, uma linda flor ergueu a cabeça do canteiro, mas, quando viu o cartaz, sentiu tanta pena das crianças que se escondeu de novo e foi dormir.
Os únicos que estavam contentes eram a Neve e o Gelo. “A primavera se esqueceu deste jardim”, disseram. “Por isso vamos viver aqui o ano inteiro!” A Neve cobriu o gramado com seu grande manto branco, e o Gelo pintou de prata todas as árvores. Convidaram então o Vento Norte para lhes fazer companhia, e ele veio.
O Vento rugiu o dia todo, através do jardim e derrubou as chaminés. “Este lugar é maravilhoso”, disse ele. “Temos que convidar o Granizo para uma visita.” E veio o Granizo. Todo dia, durante três horas, ele castigava o telhado do palácio até quebrar quase todas as telhas. Depois, correu pelo jardim tão depressa quanto pôde, com o seu hálito gelado.
“Não posso compreender porque a primavera está custando tanto, dizia o Gigante Egoísta, sentado á janela”, e olhando o seu jardim branco e frio. “Espero que o tempo venha a mudar.”
Mas a primavera não veio, nem o verão. O outono deu frutos dourados em todos os jardins, menos no jardim do Gigante. “Ele é muito egoísta”, dise o outono. Por isso sempre era inverno lá.
Certa manhã, o Gigante estava deitado na cama, acordado, quando ouviu uma belíssima canção. A música era tão doce aos seus ouvidos que pensou fossem os músicos do rei, de passagem por ali. Na verdade, era só um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora da janela, mas há tanto tempo nenhum pássaro cantava em seu jardim que o canto lhe pareceu a música mais linda do mundo. Então, o Granizo parou de dançar por cima de sua cabeça, e o Vento Norte deixou de rugir, e um delicioso perfume entrou pela janela aberta.
“Acho que a primavera finalmente chegou”, disse o Gigante, e, saltando da cama, olhou para fora.
O que viu era maravilhoso. Através de um pequeno buraco no muro, as crianças tinham se esgueirado, e estavam sentadas nos ramos das árvores. Em cada árvore à vista, havia uma criancinha. E as árvores estavam tão contentes por terem as crianças de volta, que se cobriram de flores, e agitavam suavemente os braços sobre suas cabeças. Os pássaros voavam por toda parte e cantavam felizes, e as flores espreitavam através da grama e riam.
Era uma cena adorável, mas num canto do jardim continuava inverno. Era o recanto mais distante do jardim e nele havia um menininho tão pequeno que não conseguia alcançar os ramos das árvores, e vagueava em volta delas, chorando amargamente. A pobre árvore ainda estava coberta de neve e gelo, e o Vento Norte soprava e rugia por cia dela. “Suba menininho”, dizia a árvore, e abaixava os ramos o mais que podia; mas o menino era pequeno demais.
E o coração do Gigante enterneceu-se quando olhou para fora.
“Como tenho sido egoísta!” disse ele. “Agora sei porque a primavera nunca chegava. Vou colocar este pobre menininho no alto da árvore, e depois vou derrubar o muro, e o meu jardim será aberto às crianças.” Estava muito arrependido com o que havia feito.
Desceu devagarinho, abriu a porta da frente com muito cuidado, e saiu para o jardim. Quando as crianças o viram, ficaram tão assustadas que fugiram todas, e o inverno voltou ao jardim. Somente o menininho não fugiu, porque tinha os olhos tão cheios de lágrimas que não viu o Gigante aproximar-se. O Gigante chegou perto dele, tomou-o gentilmente nas mãos e colocou-o no alto da árvore. A árvore imediatamente floriu, os passarinhos vieram cantar e o menino estendeu os braços ao redor do pescoço do Gigante e o beijou. E as outras crianças, vendo o que se passava, vieram correndo outra vez, e com elas voltou a primavera.
“Agora o jardim é de vocês, meninos!”, disse o Gigante, e apanhou um grande machado e derrubou o muro. E quando as pessoas passavam por lá, em direção ao mercado, admiravam o Gigante brincando com as crianças, no mais lindo jardim que já tinham visto.
Durante todo o dia as crianças brincavam, e, à noite, se despediam do Gigante. “Mas onde está o pequeno companheiro de vocês – o menino que eu coloquei em cima da árvore?”, perguntava o Gigante.
“Não sabemos, respondiam as crianças. “Foi-se embora.”
“Digam-lhe para vir amanhã, sem falta”, pedia o Gigante. Mas as crianças diziam que não sabiam onde ele morava, e que nunca o tinham visto antes. O Gigante sentia-se muito triste.
Todas as tardes, depois das aulas, as crianças vinham, e brincavam com o Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais apareceu. O Gigante era muito carinhoso com todas as crianças, mas tinha saudades do seu primeiro amiguinho. “Como eu gostaria de vê-lo!”, costumava dizer.
Passaram-se os anos, e o Gigante ficou velho e fraco. Já não podia brincar, sentava-se numa enorme poltrona, via as crianças nas suas brincadeiras, e admirava o seu jardim. “Tenho muitas flores bonitas”, dizia ele, “mas as crianças são as mais lindas de todas as flores.”
Numa manhã de inverno, enquanto se vestia, olhou pela janela. Já não odiava o inverno, pois sabia que a primavera estava apenas dormindo, e que as flores descansavam. De repente, esfregou os olhos, admirado, e viu uma coisa maravilhosa. No canto mais distante do jardim, havia uma árvore coberta de botões brancos. Seus ramos eram dourados, e deles pendiam frutos de prata, e sob ela estava o menininho que ele amava.
Cheio de alegria, o Gigante correu para o jardim e aproximou-se do menininho. Quando chegou perto dele, seu rosto ficou vermelho de raiva. “Quem se atreveu a machuca-lo?”, gritou. Pois, nas palmas das mãos da criança, havia a marca de pregos, e também nos pés havia a mesma marca.
“Quem se atreveu a machuca-lo?”, gritou outra vez o Gigante. “Diga-me, que eu pegarei minha espada e irei mata-lo!”
“Não”, respondeu a criança. “Estas são as feridas do Amor.”
“Quem é você?”, perguntou o Gigante. E, um temor estranho o invadiu, e caiu de joelhos diante do menino. O menino sorriu para o Gigante, e disse: “Você me deixou brincar uma vez no seu jardim. Hoje, virá comigo ao meu jardim, o Paraíso!”

“É dever de todo pai escrever contos de fadas para os seus filhos”, disse uma vez Oscar Wilde a um amigo. Fiel a suas próprias palavras, em 1888, quando tinha trinta e poucos anos, casado e pai de dois meninos pequenos, Wilde publicou O Príncipe Feliz e outros contos.
O volume continha cinco histórias, inclusive o terno clássico que é o Gigante Egoísta, que você acaba de ler.

Nas Pegadas de Pete

Haverá algo mais perigoso (ou mais precioso) do que a curiosidade de um garoto?

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1973
autor : George P. Morrill

Numa tarde fresca e cinzenta de abril, estacionei meu jipe a um quilômetro e meio da montanha que se avista de nossa casa. Queria dar uma olhada em algumas pegadas, deixadas por umas botas, na neve recém-caída que se estendia a minha frente, e que pareciam ter sido, caprichosamente, deixadas ali por alguém.
Elas ziguezagueavam como o rastro de um alce. Primeiro numa única linha, assim . . . . . . . ; depois . ¨. ¨. ¨. ¨. ¨. ¨. ; depois : : : : : : : : : : :: : : . Achei graça. Traduzidos, esses sinais diziam que meu filho Pete, que uma hora antes saíra da escola para casa, tinha:
1) se equilibrado numa corda, como no circo, sob milhares de aclamações;
2) se transformado num avião que mergulha sobre o deserto ártico;
3) imitado um coelho correndo numa campina.
Durante todo o inverno, Pete, que tem sete anos, vinha fazendo este percurso, antes que eu chegasse do meu trabalho, a 20 quilômetros. Para suas brincadeiras, tinha sempre que procurar alguma coisa: uma bola de neve amassada contra uma árvore, ou pedras equilibradas num tronco, como um pagode chinês.
Minha mulher Phyllis e eu não nos preocupávamos com Pete, apesar de ser ele muito pequenino e andar sozinho. Todos gostavam dele. Os lenhadores o cumprimentavam. Caçadores paravam para conversar. E ele foi avisado de que não podia subir nos montes de neve que protegem os bordos de uma elevação da estrada, formando uma espécie de garganta.
Pondo o jipe em marcha lenta, espreitei por cima do capô. Os sinas de botas distanciavam-se subitamente. Pete estava correndo. Apareceram rastros de esquilo. O animal e o menino convergiam para um grande carvalho. Então, as marcas das botas circundavam a árvore – o menino tinha perdido a corrida.
E assim continuava. Uma vareta arrastada imitava as circunvoluções de uma cauda de peixe. Um retângulo na neve mostrava onde ele tinha pousado sua merendeira para investigar um lugar isolado da estrada.
E sempre os sinais voltavam a : : : : : : : : :: . Pete estava pulando. De repente, na fazenda Dow, pisei no freio e saltei. Os sinais se dirigiam para o monte de neve e para dentro da garganta.
Estritamente proibido.
Precipitei-me para a corrente borbulhante do rio. As pegadas levavam diretamente à passagem subterrânea, feita de pedra, onde a água corria sob a estrada. Entrei – e meu coração, quase parou.
Entalada entre duas rochas, com as tampas semi-abertas, boiava a merendeira vermelha do Pete.
Um calafrio me assaltou. Então, olhei para trás, e vi as marcas das botas subindo, a salvo, para o lado oposto da corrente. Ele tinha pulado de uma margem para a outra, saltando sobre as águas revoltas, mas perdendo sua merendeira na corrente.
Enfraquecido pelo susto, segui as pegadas estrada acima, e depois para baixo, na direção de outra extremidade. Elas circundavam a abertura..
Alguns galhos partidos mostravam onde ele tinha tentado, desesperadamente fazer uma vara para pegar a merendeira... sem conseguir.
Depois disto, as pegadas mantinham melancólica semelhança em todo o caminho, colina acima, até nossa porta . ¨. ¨. ¨. ¨. ¨. ¨.
“Temos que puni-lo”, disse eu a Phyllis, na cozinha. Ela concordou. Nenhum de nós ousava pensar no que poderia ter acontecido. Na primavera, a corrente tinha destruído toda a estrada, deslocando blocos de granito do tamanho de barricas. A água também podia ser essa coisa apavorante.
Por favor, não lhe diga nada, até depois do jantar, disse Phyllis.
Pete foi poupado até a hora de sua sobremesa favorita – torta de maçã assada numa travessa funda. Ele não mencionou a perda da merendeira. Olhando para seu nariz torcido e olhos baixos, imaginei uma avalanche de argumentos difíceis de contestar:
Não é natural que os jovens tenham espírito de aventura? Que espécie de covardes criaríamos se os impedíssemos de explorar regiões inóspitas?
Depois do jantar, o Sol se inflamou em riscas de coral nas colinas a oeste.
Os pais costumam ser excessivamente superprotetores. Será que nós somos assim?
Então eu disse:
“Está ainda bastante claro para voltarmos à procura da merendeira, Pete. Apanhe a machadinha.”
Seus olhos se dilataram. Silenciosamente, esquivou-se para a garagem, e minha mulher me olhou de maneira significativa, como se dissesse:
“Você está amolecendo, não?”
“Vou passar-lhe um pito no próprio local”, respondi.
Saímos com o carro, na tranqüilidade do crepúsculo. A primavera pairava sobre as árvores e os campos degelados. A terra parecia esperar ansiosamente por um dia cálido, para fazer brotar pequeninos botões e espalhar incenso pelo ar.
Pete só resmungou essas palavras ressentidas, “os pais sabem tudo”, e mergulhou em silêncio. Momentos mais tarde, surpreendemos uma corça, e Pete se mexeu no assento para vê-la desaparecer por cima de um muro. Mordi os lábios. A doce curiosidade da juventude – uma coisa a ser incentivada e não sufocada.
Então, minha mente se desviou para um pequeno garoto acometido de terror, rolando desamparado por uma torrente branca...
Sentindo-me meio infeliz, meio justo, parei na passagem subterrânea de Dow. Minha boca formou as palavras: Agora, olhe aqui, você deliberadamente desobedeceu nossas ordens estritas – portanto, até junho, você não irá ao cinema. Mas a frase saiu assim: “Corte uma árvore novinha, de três metros, Pete. Vamos ver o que é possível fazer.”
Gastamos bem meia hora pescando a merendeira perdida. Agachamo-nos numa pequena saliência que se inclinava para a passagem subterrânea, e empurramos com a varinha. A água cristalizada pelo gelo borbotou e se quebrou. Esta passagem tinha sido construída há uns 50 anos, e lajes soltas de granito tinham se formado no alto, penduradas como seixos enormes. Era um túnel comprido, escuro e de musgo fétido. Apavorante e lúgubre.
A merendeira se mexeu, rodopiando loucamente. Manobrei-a de jeito que pudesse fisgá-la.
“Muito bem, papai. Muito bem!”
Olhamos um para o outro – obstáculo ridículo que tinha sido domado. Em pouco tempo, nosso triunfo comum afastou o estúpido relacionamento entre julgador e culpado.
Subimos para o jipe, com água pingando de nossas botas.
No carro, de volta para casa, cantarolei uma alegre melodia. O anoitecer acetinado tinha escondidos as sebes de arame farpado. Quando os faróis iluminaram nosso portão, Pete disse hesitante.
Mamãe também vai achar que está tudo bem.”
Seus olhos me procuraram, numa espécie de súplica desesperada. Parecia dizer: Por favor, deixemos as coisas como estão.
E então, num tom de homem para homem, declarou:
“Puxa, aquela passagem subterrânea é apavorante. Não desço lá nunca mais!”, confessou, assustado.
“Eu também não”, completei.
Pouco depois, estacionei o jipe na nossa alameda de vidoeiros brancos. A mão de Pete escorregou para a minha, macia como veludo. Quando nos aproximamos de casa,, vi que Phyllis colocava as canecas para o chocolate quente sobre a prateleira do fogão. Essa era sua tradicional oferta de paz, depois de um desentendimento familiar.
Quando é que se deve se severo, e quando se deve ser flexível? Como e que os jovens pais podem saber? Só pela intuição, talvez....
Do lado de fora da casa, Pete começou, de novo, sua gritaria infernal. Olhamos através dos galhos nus, onde manchas de diamante piscavam no cobertor noturno que envolvia o céu.
“As estrelas são duras ou moles?”, perguntou ele, com ingenuidade.