sexta-feira, junho 29

Uma etiqueta para o luxo

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autora : Crystal Gromer

Ajudar pessoas que sofreram uma perda não é fácil. Eis o que você precisa saber.

Em uma quente noite de julho, há vinte anos, meu marido Mark, com 24 anos, morreu. Inteligente e espirituoso, tinha cabelos castanhos que vivia puxando da testa. Ele me amava, disso não tenho a menor dúvida. Em todas as fotos que possuo de Mark, ele olha como se tivesse acabado de dizer algo engraçado. Estávamos casados havia nove meses e meio.
Num instante, registrado no atestado de óbito, eu perdera meu mundo. Não estava preparada, como ninguém pode estar. O luto não é uma viagem para a qual nos preparamos. É um momento extremamente solitário.
“Que posso fazer?”, perguntavam-se as pessoas. “Obrigada”, replicava eu, sem saber o que dizer e tentando tranqüiliza-las. A verdade é que não podemos fazer o que desejaríamos: trazer a pessoa de volta à vida.
“O que posso fazer?”, perguntei recentemente quando, de repente, o telefone tocou e eu soube da morte de um amigo. Telefono ou escrevo? Faço uma visita? Envio flores? Alimentos? O que eu digo?
Como essas perguntas me vieram logo à mente, passei bom tempo pensando nelas. Descobri que há uma etiqueta para o luto. Não é tanto série de regras quanto maneira de ser; requer que se dê espaço para a tristeza, para algo que não tem remédio. Em conseqüência, vai de encontro a suposições culturais que devemos esquecer.
Tendemos a pensar que sempre podemos recomeçar. Consideramos o luto como condição, algo a ser tratado tranqüilamente, nos bastidores, no consultório de alguém, 50 minutos por semana, com remédios. É como se nosso modelo para o luto fosse um tratamento de canal. Primeiro é terrível, depois melhora, finalmente acaba. Ultrapassados os estágios necessários, todos podem respirar aliviados. Quando o cônjuge se casa novamente, ou o casal tem outro filho, sabemos que a tristeza passou. Isso pode ser resolvido em um filme de TV.
Essa necessidade paliativa é difícil de reprimir. Quaremos ajudar. “Você precisa sair”, dizemos. “Ir ao cinema, almoçar com um amigo, comprar algumas roupas novas.” Seria mais útil oferecer solidariedade. “Você gostaria de...?”, em vez de: “Você deveria...”
No contexto do luto, o lugar-comum é simplesmente de mau gosto. “O tempo cura todas as feridas”, um amigo repetia para mim recentemente no funeral de outro amigo. Mas se realmente pensássemos a respeito da palavra curar, saberíamos como é terrível esse processo, como é doloroso e incerto. Se dois anos após um acidente com patins meu polegar esquerdo ainda não recuperou sua mobilidade, o que dizer do estado de minha alma depois da morte de um amigo, de meu marido?
Tentamos minimizar o pesar. “Pelo menos ele não sofreu”, dizem as pessoas. “Pelo menos ele não se tornou um vegetal.” A toda a hora você ouve um “pelo menos” sair da boca de um conhecido. Pare! Criar uma possibilidade imaginária pior não torna a realidade melhor. Isso a banaliza. “Pelo menos você é jovem”, as pessoas me dizem. “Pelo menos você tem a vida pela frente.” Como? Então isso não conta? Ouvir que tenho a vida pela frente só serve para lembrar que vou ter de me esgotar talvez durante 50 anos sem Mark. Os outros precisam tomar consciência da importância do luto e deixa-lo seguir seu curso, e não tentar faze-lo desaparecer.
O tom é importante. Devemos evitar a depreciação, mas também a reverência. Depois da morte de Mark, tinha a impressão de que as pessoas me olhavam como se eu fosse uma trágica heroína. Elas tendiam a olhar para as mãos quando conversavam comigo, as vozes se tornavam suaves para mostrar que compreendiam. No entanto, pareciam estar falando apenas para a imagem que tinham de mim. Eu me sentia solitária, um ser que ninguém queria conhecer.
Uma etiqueta para o luto deveria nos dizer o que fazer. Deveríamos ir a um funeral para engrossar as fileiras, para nos tornarmos membros de uma comunidade que lastima a perda de uma pessoa insubstituível. Podemos proteger as chamadas telefônicas de modo que as pessoas não tenham desculpa – “Eu não queria perturba-la” – para não ligar. Podemos aceitar flores, alimentos. Podemos dirigir, procurar carta, criar e apresentar uma estrutura da qual o dia ou a noite possa emergir.
Você deve escrever mensagem e não simplesmente assinar um cartão de saudações. Jamais comece “As palavras não podem expressar...” Você está se servindo de palavras, portanto não as use para expressar um vago sentimento de tristeza. Escreva sobre uma lembrança da pessoa que morreu, tão clara e exatamente quanto possa. Você pode dar isso como presente, uma foto de palavras. Nunca é tarde demais, portanto não se desculpe dizendo que já se passou um mês ou mais. Escreva de qualquer modo.
Numa reunião de minha faculdade, certa mulher que conheceu Mark na escola se aproximou para conversar – apenas um minuto ou dois – sobre suas recordações a respeito dele. Ouvir as lembranças de 17 anos antes foi maravilhoso, pois às vezes penso que Mark é apenas uma fantasia. Pergunto-me se ele realmente existiu. Não consigo mais me lembrar do som de sua voz ou do contato de sua mão.
Muitas vezes evitamos dizer algo significativo porque tememos que isso possa magoar. É claro que magoa! Mas a dor não é pior. Constrangimento também não, e isso deve servir de lição para os que gostariam de ajudar. A fuga é pior. O esquecimento é pior.
Dar e receber consolo são as atividades mais profundamente humanas. Uma etiqueta para o luto deve ajudar-nos a viver com o que é difícil – e compartilhar o que é sincero.

quinta-feira, junho 28

Perca cinco centímetros em 30 dias

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autora : Tâmara Eberlein

Aprendendo a pensar como uma pessoa magra, você pode fazer as pazes com o espelho

As pessoas vivem dizendo: “Você tem tanta sorte de ser magra! Deve ser bom poder comer de tudo.” Admito que, como muita gente magra, sou abençoada com um metabolismo acelerado que me dá vantagem na batalha contra a obesidade.
Entretanto, a principal razão pela qual as mulheres magras são assim não é simplesmente sorte ou genes. Somos treinadas a pensar em comida de modo a manter afastados aqueles quilos a mais, e desenvolvemos estratégias que funcionam. São elas:

Reduza as porções.
“Freqüentemente as escolhas alimentares do gordo são as mesmas do magro”, observa Alicia Moag-Stahlberg, nutricionista da Faculdade de Medicina de Chicago. “A diferença está no tamanho da porção.”
Para exercitar o controle de quantidade, você precisa pensar na qualidade. “Prefiro degustar um cheirinho de cream cheese de verdade a me encher com aquelas imitações”, afirma Sherri Atkins (1,70 metros de altura, 63 quilos), contador de 51 anos de New Jersey. Assim, os desejos são satisfeitos sem o acúmulo de calorias.
Redefinir a palavra refeição também ajuda. Quase todos crescemos achando que uma refeição significa carne, batata, pão, vegetais e sobremesa – mais do que a maioria dos adultos necessita. Algumas noites, o jantar pode ser apenas sopa.. ou fatias de maçã com manteiga de amendoim.

Excessos.
Todo o mundo exagera na comida de vez em quando. Mas quem pensa como magro tem seus truques para ajudar a cortar os excessos. Quanto minha irmã, Bárbara (1,67 metro, 46 quilos), não consegue parar de mastigar, ela se obriga a escovar os dentes. “A pasta de dentes interrompe o domínio que as guloseimas exercem sobre meu paladar”, explica.
Adote uma atividade, como tricotar ou pintar, que não possa ser realizada enquanto se come, aconselha John Foreyt, da Faculdade de Medicina Baylor, em Houston. “Após dez minutos de distração, a ânsia por comida geralmente se dissipa.”
Mas se você realmente devorou a terceira rosquinha, não considere o dia perdido. “Mulheres magras sabem que comer com prudência 80% do tempo em geral é suficiente para manter o peso sob controle”, observa Moag-Stahlberg.

Maximize o prazer.
Dedique à comida toda a atenção. “Se você come enquanto assiste à TV, está sujeito a beliscar antes de o programa ter acabado”, adverte Nancy Rodriguez, professora assistente de Ciências Nutricionais da Universidade de Connecticut.
Em vez disso, reserve um tempo só para comer. “Pessoas que engolem os alimentos comem mais”, afirma Rodriguez, “porque são necessários 20 minutos para o cérebro receber a mensagem de que a pessoa está saciada.”
Faça das refeições uma cerimônia.”Se eu devorar enorme porção de massa no balcão, não me satisfaço, e, acabo querendo mais”, observa Andi Hessekiel (1,52 metro, 52 quilos), 30 anos, de Nova York. “Mas quando me sento à mesa com um prato bonito e arrumado, sinto como se tivesse feito agradável refeição, ainda que as porções sejam pequenas.”

Interrompa logo o ganho de peso.
Toda mulher magra que conheço tem dois números gravados na mente – o peso que considera ideal e o peso que ela nunca se permite exceder. A distância entre esses números? Cerca de 2,5 quilos.
“Pessoas magras logo percebem quando ganham uns gramas, e cortam o acréscimo imediatamente”, explica Ronette L. Kilotkin, do Centro de dieta e Boa Forma da Universidade Duke, em Durham, Carolina do Norte. “A perda de peso é rápida, pois nunca deixam chegar ao ponto de precisar perder muito.”
Então, como as mulheres esguias controlam o peso? Algumas se pesam diária ou semanalmente. Outras deixam que as roupas façam a patrulha. “Se consigo abotoar a calça, sei que não engordei”, explica Kelli Kauterman (1,70 metro, 61 quilos), 34 anos, atriz e professora na Pensilvânia.

Crie táticas ao comer fora.
Cuidado com o bufê. Experimente o método de reconhecimento de Sherri Atkins. “Examino a mesa inteira antes de por um pouquinho no prato. Assim, não vou pegando tudo o que encontro pelo caminho.”
Ao pedir, tenha em mente a “regra do molho vermelho”. Um molho à base de tomate no macarrão ou no frango é menos engordativo do que um branco, à base de creme. Peque uma fatia da cesta de pães e depois devolva a cesta ao garçom.
Outra técnica inteligente é “dividir e conquistar”. Coma apenas metade da entrada e leve o resto para casa. Divida a sobremesa com seu acompanhante.
Experimente essas estratégias de pensar magro. Logo os centímetros desaparecerão, e você ouvirá: “Você tem sorte de ser assim, naturalmente magra.”

quarta-feira, junho 27

Partilhe a alegria de ler

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autores : Janet Garden e Lora Myers

Crianças chegam à leitura de vários modos em diferentes ocasiões. Mas os pais podem fazer o seguinte para ajudar os filhos a criar e aproveitar a paixão duradoura pela leitura:

Comece pelos livros que agradam a você.
Até descobrir o que seu filho gosta de ler, escolha livros de que você gostava quando era pequeno, e novas histórias que mexam com sua fantasia. É mais provável que ele goste de um livro que já o tenha empolgado. Vá à biblioteca local e peça à encarregada dos livros infantis para sugerir autores e títulos de que as crianças gostem.

Faça da leitura uma rotina.
Para conseguir que seu filho se habitue a ler, destine uma hora todos os dias para juntos lerem um livro. Bastam de 15 a 30 minutos – ou o suficiente para ler uma história inteira ou um capítulo. Isso dá ao jovem leitor oportunidade para se instalar, focalizar – e aproveitar.

Comportamento-modelo para boa leitura.
Seu filho o observa quando você lê. Se não parece divertir-se, está enviando mensagem dizendo que a leitura não é muito agradável. Por mais cansado que esteja, procure não ser monótono. Leia com entusiasmo. Deixe surgir o ator que existe em você. Se aparentar tédio, não pode esperar que seu filho se interesse.

Revezem-se na leitura.
À medida que os filhos amadurecerem como leitores, anime-os a ler para você de modo ideal, com muita expressão. “Ler” também pode significar pedir a uma criança muito nova para lhe contar uma história conhecida enquanto você vira as páginas.

Pegue emprestado ou compre livros sempre que possível.
Cultive o hábito de levar os filhos à biblioteca. Em casa, procure encher de livros as estantes. Dê um livro de presente de aniversário e nos feriados. Encoraje os amigos e parentes a fazerem o mesmo. Quando for às compras e seu filho pedir um presente, compre um livro. É mais barato do que brinquedo e investimento muito melhor para o futuro de seu filho.

terça-feira, junho 26

O prazer de não fazer nada

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autor : Anthony Schmitz

Às vezes, profundamente mais significativo do que o turbilhão de atividades que caracteriza nosso dia.

No verão, quando minhas filhas choramingam demais, ou escrevem nas paredes, ou ainda deixam rastro de migalhas no chão que acabou de ser aspirado, peço-lhes para brincarem lá fora. Para mim, a cena está arraigada desde a infância. A voz de minha mãe ecoa em minha cabeça. Vejo-a em pé ao lado da porta aberta da cozinha, a mão com luva de borracha respingando, apontando para o jardim.
“Voltem para casa quando tocar o sino da igreja.”
Meu irmão e eu nos olhamos aparvalhados, avaliamos o purgatório castigado pelo sol diante de nós e então contestamos:
“Não tem nada para fazer!”
“Encontrem algo.”
Quando minha mãe fazia essa declaração, falava sério. Eu, pai moderno que sou, permito que minhas filhas, 12 e 15 anos, fiquem sem nada para fazer por, digamos, uns cinco minutos, antes de ser atormentado por dúvidas.
Se estão entediadas no gramado, chego a pensar que talvez pudéssemos até brincar juntos de esconde-esconde. Ou jogar futebol. E antes de me dar conta, junto-me a elas, impondo-lhes diversão.
Por que não deixa-las por sua própria conta? Por culpa e medo, os costumeiros suspeitos. Tanto minha mulher como eu receamos estar dedicando tempo demais ao trabalho. Além disso, temos medo de que, caso um de nós não esteja de guarda, as crianças possam perambular por aí e desaparecer para sempre.
Recordo-me porém de que, no passado, uma das maiores delícias do verão era enfrentar o fato de não ter nada para fazer. Na pequena cidade onde cresci, só havia três meses no ano em que se podia vadiar no ar livre sem correr o risco de hipotermia. Assim, meu irmão e eu, depois de esgotado o repertório de atividades – brincando de apanhar a bola de beisebol, explorando um desfiladeiro na vizinhança, atirando maçãs verdes um no outro -, encontrávamos um lugar à sombra onde nos instalávamos e observávamos as nuvens passar.
Não tínhamos as aulas nem os acampamentos nem os esportes para preencher o tempo em torno dos preciosos momentos desfrutados com mamãe e papai. Em vez disso, sobrava-nos tempo para sonhar e passávamos dias apenas fitando o céu por horas a fio.
A ociosidade não só era tolerada nas crianças como também era o que se esperava de todos, aos domingos. Nossas igrejas proíbem o trabalho no sétimo dia. Nem pensar em correr ao mercado, pois as lojas ficavam bem trancadas. Íamos à igreja. Comíamos. Estendíamo-nos sobre a relva. O tempo passava.
Recentemente, depois de passar um dia correndo da aula de balé para as aulas de natação e de lá para as compras, com intervalos para refeições rápidas, deixei escapar um desabafo. Minha mãe, declarei, tinha razão. O mundo não vai acabar se as crianças forem confrontadas com metade de um dia sem nada para fazer.
As nuvens ainda estão lá em cima, no céu. As crianças não precisam de mim para mostrar qual se parece a um coelho ou a um cãozinho. Além do mais, seria bom para todos nós um pouco de “nada para fazer”. É necessário um dia na semana para pararmos e nos lembrarmos de quem somos.
Minha mulher comentou que se o mundo não muda, nós podemos mudar. Podemos pedir às crianças para brincar lá fora. Poderíamos parar, respirar, conversar e pensar. E abrir espaço em nossas vidas, para...não fazer nada.
Resumindo, ela me fez entender o quanto eu estava equivocado.
É possível levarmos isso adiante, caso consigamos afastar algumas barreiras. Mais importante, teremos de nos convencer de que não fazer nada é, às vezes, mais significativo do que o turbilhão de atividades que caracteriza nosso dia.

segunda-feira, junho 25

Sob as cobertas

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autora : Marion Winik

A hora de dormir é ideal para ler

Um dos meus momentos preferidos do dia é um dos últimos – o último consciente, pelo menos. É o momento em que um cansaço violento, irresistível, toma conta de mim. Quando, depois de muito esforço para impedir que os olhos se fechem e o livro caia, sei que realmente é hora de dormir.
E assim, relutante, deixo o salão de baile da nobreza russa ou a uma região remota da Terra e vejo-me de volta à cama, as cobertas quentes e pesadas, os músculos tão relaxados que preciso mover as pernas para saber onde estão. Olho para o despertador – faltam só cinco horas para ele tocar!
Além do círculo dourado do abajur, a casa e o mundo lá fora estão silenciosos e escuros. Carinhosamente ponho o livro na cama a meu lado, sobre a colcha – meus óculos empoleirados nele como um louva-a-deus de pernas longas e olhos grandes. Apago a luz. Dormimos juntos, o livro e eu, os personagens e eu.
Ler na cama parece o tipo de hábito que atravessa gerações. A última vez que minha mãe ficou tomando conta do meu filho, cheguei em casa e encontrei tudo escuro, exceto por duas pequenas luzes. Uma vinha do quarto dele, onde descobri o aluno da terceira série metido sob as cobertas com um livro de aventura e uma lanterna elétrica. “Vá dormir”, disse com firmeza. “Ah, mãe!”, queixou-se ele. No outro extremo da casa, minha mãe já estava cochilando com um livro nas mãos.
Em algum lugar no meio estou eu, versão crescida da garota que costumava acampar sob as cobertas com um livro; futura vovó-babá que os filhos ao voltar para casa encontrarão dormindo satisfeita depois da leitura.
Em vez de arrumar meus livros nas categorias tradicionais – ficção e não-ficção, romances e contos, auto-ajuda e lazer – divido minha leitura de cabeceira em livros que me fazem dormir e livros que me mantém acordada. Ambos tem sua vez. Na noite passada pequei um volume fino, porém densamente escrito, de crítica literária, apesar de saber o nocaute que representaria. Do outro lado fica o suspense – pesados exemplares que nos deixam virando páginas durante a madrugada -, com romances policiais, histórias de amor, comédias; narradores tão envolventes que não se consegue faze-lo calar, mundos tão ricamente construídos que não se consegue deixa-los.
Quando o mundo do livro se torna mais real do que o mundo de sombras fora da luz do abajur, além do despertador, você encontra fuga mais completa do que quase qualquer outra; aquela que o prepara para mergulhar no sono, onde o mais misterioso e perfeito contador de histórias, o subconsciente, narra o obscuro mundo dos sonhos.

sábado, junho 23

Confissões de um criador de palavras cruzadas

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autor : Merl Reagle

Passatempo, arte ou esporte?

Estreita linha separa o divertimento da tortura. Sei disso. Passo a vida fazendo palavras cruzadas. No “negócio dos quebra-cabeças”, sou conhecido como criador. Venho fazendo isso há muito tempo. Vendi minhas primeiras palavras cruzadas para o The New York Times quando tinha 16 anos. Mesmo nessa época já era veterano.
Quando criança, gostava de todos os tipos de brinquedos de construção. Ao aprender o significado das palavras, passei a usa-las do mesmo modo. Fiz minhas primeiras palavras cruzadas aos 6 anos. Utilizando uma folha de papel quadriculada e lápis, comecei a escrever nela todos os nomes de meus colegas de classe, organizando-os no estilo de palavras cruzadas.
Depois de ter feito pequenas palavras cruzadas como essa durante vários dias, minha mãe disse:
“Ah! Vejo que você está escrevendo versões em Neanderthal dos nomes das pessoas no papel.
Olhei para ela entusiasmado e respondi:
“Obrigado, mamãe!”
Depois fui procurar o significado de Neanderthal.
Ainda guardo a carta que recebi em 1966 da primeira editora de palavras cruzadas do The New York Times, Margaret Farrar. Na carta ela explicava por que duas das três palavras cruzadas que lhe enviara não foram aprovadas.
Uma delas tinha as chaves Mortinho da Silva e Podre em dinamarquês -, “expressões não muito agradáveis”, justificou ela. O outro usava edema e estertor (a última é “respiração de um moribundo, nada agradável também”). Na carta ela dizia: “As palavras cruzadas são divertimento. Evite referir-se a morte, doença, guerra e impostos. O passageiro do metrô que tenta soluciona-las já encontra material suficiente sobre isso no resto do jornal.”
Divertimento? Preencher palavras cruzadas no metrô? Essas idéias nunca tinham passado por minha pobre cabeça. O terceiro quebra-cabeça, porém, estava bom. Foi assim, não sendo inconveniente, que vendi as primeiras palavras cruzadas ao jornal.
Atualmente trabalho para vários jornais. Nem todas as palavras cruzadas são criadas do mesmo jeito, mas a maioria delas, pelo menos as de jornais, segue regras. E há grande número de normas.
As palavras cruzadas foram inventadas em 1913 por Arthur Wynne, editor do antigo World, de Nova York. Tornaram-se verdadeira mania no início da década de 20 quando outra editora, Margaret Petherbridge, assumiu o cargo.
Em 1924 Petherbridge foi apresentada a Richard Simon, que desejava fundar uma empresa de publicações com seu amigo Max Schuster. Simon pediu-lhe que o ajudasse a publicar o primeiro livro de palavras cruzadas. O livro obteve sucesso surpreendente e a Simon & Schuster nasceu.
Logo Petherbridge deixou o World, tornou-se a senhora Farrar e continuou a editar livros de quebra-cabeças. Em 1942, quando o Times decidiu publicar uma seção de palavras cruzadas, Farrar foi chamada. Ela é responsável por praticamente todas as regras de criação de palavras cruzadas que os entusiastas seguem hoje.

Por exemplo:
01 – O diagrama deve ser “diametralmente simétrico”, isto é, o arranjo dos quadrados negros deve parecer o mesmo quando visto de cabeça para baixo.
02 – Os quadrados negros não devem ocupar mais do que um sexto do diagrama.
03 – Os diagramas devem ter números ímpar de quadrados em um dos lados. Isso cria um quadrado central e permite que os decifradores sigam de um lado a outro ou para baixo do centro do quebra-cabeças.
04 – Todas as palavras devem ter três letras ou mais. (Palavras de duas letras são deixadas para os principiantes.)
No início a regra era: se está no dicionário e combina, é permitido. Entradas de mais de uma palavra geralmente não são permitidas. Pode-se ter Big e Ben, mas não Big Ben.
Infelizmente, isso significa que qualquer palavra estranha ou sua variante ortográfica pode ser usada para fechar um canto.
Quanto mais esses tipos de palavras proliferam, mais as palavras cruzadas se afastam do mundo real. Tento evitar variantes ortográficas e palavras obscuras.

Para ter chance de ser chamado de cruciverbalist (termo da moda para o fã de palavras cruzadas), não há lugar igual ao Torneio Americano de Palavras Cruzadas, realizado anualmente em Stamford, Connecticut. Will Shortz, editor da seção de palavras cruzadas do The New York Times desde 1993, começou a realizar o torneio há duas décadas.
Quase sempre tenho participado como juiz. Meus deveres incluem reunir os quebra-cabeças, classifica-los e ajudar Shortz a tira-los de seu carro e carrega-los.
Entre os melhores participantes das principais apresentações desse torneio inclui-se o vencedor de 1997 e cinco vezes campeão, Doug Hoylman, atuário de 54 anos. Praticamente a única palavra que Hoylman diz durante todo o fim de semana é “feito”, quando completa o quebra-cabeças do campeonato antes de todos os outros.
Felizmente para os competidores, o presidente Clinton não participa da competição. Consegue liquidar o quebra-cabeças da edição de domingo do Times em cerca de 20 minutos – à tinta, sem erros. Para poupar tempo, usa a técnica do e minúsculo, preferida pelos melhores competidores. Uma vez que o E maiúsculo exige aqueles três movimentos da caneta consumidores de tempo e que pode haver 30 ou mais Es em um quebra-cabeça, essa técnica poupa preciosos seis segundos.
É verdade que decifrar palavras cruzadas deve ser o principal esporte sem espectadores, e que passar o fim de semana com 300 fanáticos em palavras cruzadas não deve ser a idéia que a maior parte das pessoas tem de um bom passatempo. Basta dizer que o torneio é como uma grande sabatina – totalmente verbal, sem Matemática. Mas para mim é uma reunião em que as pessoas expressam seu amor por quebra-cabeças.

sexta-feira, junho 22

A idade do gato

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autor : Adair Lara

Quando crianças viram adolescentes

Acabo de perceber que, enquanto crianças representam cães – leais e afetuosos -, adolescentes são gatos. É fácil ser dono de um cachorro. Você o alimenta, treina-o e manda nele. O cachorro apóia a cabeça em seu joelho e fica olhando como se você fosse um quadro de Rembrandt. Corre com entusiasmo quando chamado.
Por volta dos 13 anos, seu adorável cachorrinho vira um grande gato velho. Quando chamado para entrar, ele parece surpreso, como se perguntasse quem morreu e nomeou você imperador. Em vez de acompanhar seus passos, ele desaparece. Você só o verá novamente quando estiver com fome. Nesse momento, interromperá a corrida através da cozinha durante tempo suficiente para farejar o que você está oferecendo. Quando estende a mão para acariciar-lhe a cabeça, naquele antigo gesto afetuoso, ele se afasta com um tranco e oferece um olhar gelado, como se estivesse tentando lembrar onde já o viu antes.
Você, sem perceber que o cachorro agora é um gato, pensa que algo deve estar desesperadamente errado com ele. Parece tão anti-social, tão distante, talvez deprimido. Recusa-se a comparecer à reuniões familiares.
Como foi você quem o criou, ensinou-o a buscar o graveto, ficar parado e sentar-se ao ouvir o comando, supõe que fez algo errado. Afogado em culpa e medo, redobra esforços para fazer seu bichinho se comportar.
Agora você está lidando com um gato e, portanto, tudo o que funcionava antes produz hoje o resultado oposto. Chame-o, e ele fugirá. Diga-lhe que fique sentado, e ele pulará para o balcão. Quanto mais se aproximar dele, torcendo as mãos, mais ele se afastará.
Em vez de continuar a agir como dono de um cachorro, você precisa aprender a se comportar como dono de um gato. Ponha o prato de comida próximo à porta e deixe que ele volte para você. Mas não se esqueça de que um gato também precisa de ajuda e afeição. Sente-se imóvel e ele virá, procurando o colo aquecido e confortável do qual não se esqueceu completamente. Esteja lá para abrir a porta.
Algum dia, seu filho crescido entrará na cozinha e lhe dará um beijão. Dirá: “Você ficou em pé o dia inteiro! Deixe-me lavar estes pratos.” Perceberá, então, que seu gato voltou a ser um cãozinho.

quinta-feira, junho 21

Guarde este pensamento

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autor : Ron Fitzgerald

Cada pessoa tem de encontrar um santuário pessoal, para cultivar pensamentos positivos.

Eu tinha 13 anos e jogava golfe com meu pai. Para mim, era uma época de agitação adolescente, em busca de realização e reconhecimento.
A excitação dominava-me e fiquei animado quando percebi que uma terceira tacada bem dada me colocaria em ótima posição. Imagine, poderia acertar o buraco com o número esperado de tacadas, um par!
Com um pouco de sorte, poderia até acertar com uma tacada a menos do que o esperado, um birdie!
Meu taco moveu-se. A cabeça foi sem hesitação em direção à bolinha branca. Pimba! A respiração doía-me no peito enquanto a bola se elevou, ficou pendurada durante um segundo agonizante e mergulhou no fosso de água.
Não me irritei; fiquei louco. Bati com o taco na grama verde e suave. Frustrado, castiguei-a várias vezes.
Meu pai observou a cena com ar ligeiramente divertido, que se transformou em preocupação quando viu que eu não mudava de atitude.
“Acalme-se, filho. Castigar o campo de golfe não trará sua tacada de volta.”
Lentamente, ele se aproximou e colocou o braço em meu ombro. Com gentileza e calma, explicou que a fúria descontrolada é tolerância com nossos próprios desejos. Há melhores formas, disse ele, para lidar com a adversidade. Em tempos difíceis, cada um de nós tem de encontrar lugar calmo, um santuário pessoal, para cultivar pensamentos positivos.
“Você se recorda daquela grande tacada na semana passada? Lembra-se de como se sentiu quando conseguiu? Ótimo. Guarde esse pensamento.”
Coloquei nova bola e, em seguida, concentrei-me em visualizar aquela grande tacada que papai recordara. O taco zuniu, a bola decolou. Corri até o alto de uma colina, a tempo de ver a bola cair no green, rolar para a direita, bater no pau da bandeira e entrar no buraco.
Foi um dia histórico. Consegui o meu par. Mas nunca tive a chance de agradecer a papai por me ajudar a encontrar um refúgio seguro dentro de mim, onde pudesse me concentrar em pensamentos positivos e recarregar minhas baterias. Ele não viveu muito depois daquele dia.
Anos depois, quando ajudava a treinar a equipe de esgrima na escola secundária local, cheguei atrasado a uma das competições do campeonato. Minha equipe já estava perdendo de quatro assaltos a um, na rodada de cinco; mais um ponto e estaríamos derrotados. Reuni a equipe e disse que essa pontuação desequilibrada não era culpa deles. Percebera imediatamente algo suspeito no placar.
Em esgrima, um aparato eletrônico é preso ao florete de cada competidor, registrando os toques num painel. Quando um esgrimista consegue um toque, este é registrado pelo piscar da luz do outro esgrimista. Quando os dois se acertam com menos de um segundo de diferença, as duas luzes piscam simultaneamente e cabe ao diretor do torneio decidir qual equipe receberá o toque. Naquele dia, suas decisões estavam sendo parciais e favoreciam a outra equipe. Estimulei minha equipe a se concentrar em mostrar-me uma única luz; a do outro sujeito.
“Vocês se lembram daquele exercício de uma única luz que fizeram tão bem na semana passada?”, perguntei. “Recordam-se de como me atingiram tantas vezes e eu não consegui acerta-los nem uma vez? Guardem esse pensamento, relaxem e deixem fluir.”
Nossa equipe reagiu bravamente, levando o placar final para quatro assaltos contra dois, depois 4 - 3, e chegamos a 4 – 4. No último assalto, a batalha oscilava. Nenhum dos esgrimistas cedia um centímetro. No labelle, o último toque, subitamente um coupé no peito do oponente. Uma luz, assalto, partida, campeonato! O ginásio foi tomado pelas comemorações de nossos fãs.
Cada um de nós tem momentos especiais, em que obtemos desempenho muito acima de nossas expectativas. Meu pai ensinara-me a recordar esses momentos de vitória nas épocas mais difíceis da vida, e a utilizar sua energia positiva para alimentar a determinação de vencer. Um pouco afastado, observei minha equipe vitoriosa formar uma rede com os braços e girar em círculos, para comemorar. E pensei. Obrigado, papai. Essa vitória é dedicada a você.

quarta-feira, junho 20

Aquela sensação doentia

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autor : Marx Killen

Há homens que só são felizes quando pensam que estão doentes.

“Estou me sentindo meio esquisito”, anunciou Gerry, marido de Jô, certa manhã.
“Ah, de novo, não!”, gemeu Jô. “O que é desta vez?”
“Não sei”, disse Gerry, devagar. “Só sei que não me sinto bem..., uma dor estranha, atrás das têmporas...”
Os sintomas de Gerry são sempre muito vagos. Quando alguém insiste para ele consultar o médico, nega-se, dizendo que vai “aguardar para ver o que acontece.”
No dia seguinte a primeira série de sintomas é substituída por outra, apontando para um estado bem diferente.
“Bem, tenho uma boa notícia: acho que consegui vencer aquela gripe incipiente de ontem. Agora, porém, sinto dor terrível na barriga. Pode ser apenas indigestão, mas tenho a impressão de que é algo mais grave. Ui! Lá vem ela de novo. Uma agonia.”
“É bom consultar o médico.”
“Não, vou aguardar algumas horas para ver o que acontece...”
Enquanto Gerry sofre com os fantasmas de sintomas aparentes, meu marido, Giles, aguarda os fantasmas de sintomas que ainda estão por aparecer.
“´Posso parecer sadio, mas, se quer saber, é bom demais para durar. Será um milagre se eu não sucumbir a uma infecção crônica depois de sair nesse vento cortante.”
No fundo, Giles deseja a invalidez, pois isso tem para ele uma associação inconsciente com a felicidade. Quando menino, sofria de asma e passava muitas semanas de cama, sob excesso de carinhos da mãe.
“Bastava uma batida no chão com a bengala e lá vinha ela com um prato de torradas”, recorda-se com saudade. “Duas batidas e mamãe levava uma laranja, descascada e partida.”
A asma passou, porém não antes que ele aprendesse a simples equação de que doença significava amor e atenção.
Num dia quente de verão olhei para Giles depois de ter ele passado três horas impressionantes cavando buracos e plantando árvores.
“É evidente que você está forte e bem disposto”, eu disse, “do contrário nunca teria conseguido fazer isso.”
Ele não pareceu nada satisfeito.
“Acho que fiz muito. Cansei-me demais.”
“Pode ser. Pelo menos hoje não está doente.”
“Não. Hoje é o primeiro dia que me sinto bem, há meses. E sabe qual é a tragédia? Mordi a língua.”
Há pouco tempo comprei-lhe uma enciclopédia médica que ele consulta com grande interesse.
Por exemplo, descobriu que o “terçol permanente” em sua pálpebra inferior na verdade é um conduto lacrimal.
Giles certa vez foi a um ambulatório sentindo “dor de garganta clínica”. Pediu ao médico que fizesse teste de funcionamento do fígado porque achava que tinha ressacas piores do que a dos outros.
Haverá responsabilidade criminal por desperdiçar tempo de um médico?
Depois de suportar durante anos a hipocondria de nossos maridos, Jô e eu temos obtido sucesso com os diários de sintomas que começamos a escrever.
Não comentamos, mas apenas tomamos notas detalhadas das queixas. Depois, de vez em quando, temos um ajuste de contas.
Giles e Gerry: “Há algo de muito, muito errado comigo.”
Jô e Mary: “E qual é a novidade? Você está doente todos os dias.”
Giles e Gerry: “Não estou, não. Há meses eu não fico doente.”
Jô e Mary: “Fica sim (e mostramos nossos diários dos sintomas). Aqui estão as provas.”
Giles e Gerry: “Está maluca. Isso foi piada. Desta vez estou mesmo ficando doente.”
Certo dia, Gerry voltou para casa depois de ter passado três semanas na África, bronzeado e bem disposto como nunca.
“Você está incrível”, disse eu. “Uma vez na vida não pode dizer que está ficando doente.”
“É”, disse ele. “Sinto-me muito bem. Mas estou com o chapéu fantasma. Sabe..., quando você usa chapéu todos os dias, por causa do sol, fica pensando que ainda está de chapéu.”
A mãe dele continua interessada e compreensiva. Entretanto, às vezes até ela fica farta.
“Ah, bem”, gracejou ela, há pouco tempo, “pelo menos quando você morrer vai poder colocar na sua placa: ‘Desta vez ele realmente adoeceu..’”

terça-feira, junho 19

Seleção de Blogs

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autor : Vários

Voltamos a visitar centenas de páginas pessoais na Internet em busca de diamantes brutos – textos de gente que aproveita a Rede para “ensaiar” a carreira literária. Eis a seleção deste mês com o melhor dos blogs brasileiros.

Tive uma curiosidade louca e abri o dicionário para procurar a palavra “dicionário”. Quis saber se ia acontecer um paradoxo que destruiria o universo em sua totalidade...Bem, não aconteceu. Achei o verbete “dicionário”, e fiquei até decepcionado.
São 16 linhas explicando o que é, dando exemplos... Será que não poderiam simplesmente ter dado uma explicação como “livro que explica o significado das palavras”?
Se eu fosse o autor do dicionário escreveria neste verbete: “É o livro que você está segurando” ou então “Se você não sabe o que é dicionário, como é que está procurando em um?”
Guliver Lee


Descobri que sou o recheio do sanduíche! Sou a geração do meio! Enquanto minha mãe e meus filhos são as fatias do pão, eu sou a que fica espremida e amassada entre eles. Recebo exigências dos dois lados, tenho de dar satisfações, manutenção e equilíbrio – emocional e financeiro. Sou filha, mas também sou mãe e, portanto, não posso me soltar aos meus caprichos e ao apelo do meu coração. Quero carinho e quero colo, mas não posso mais me perder nos braços de meus pais.
Tudo bem, chega de reclamar. Você que é pai ou mãe com certeza está entendendo muito bem o que quero dizer aqui. O assunto é sério, mas quero pensar que sou um recheio especial. Uma mortadela bem cheirosa, com o sabor que todo mundo gosta.
Renata Germano


Hoje no carro o Matheus toca no assunto de estar perdido. Resolvi treiná-lo em algumas situações de emergência:
“O que você faz se ficar perdido?”
“Vou para uma floresta e pego um pau bem grande.”
“Que floresta, filho! O que foi que a gente combinou?”
“Ficar paradinho?”
“Isso! E o que mais?”
“O que?”
“Como é que a gente vai achar você?”
“Ah, faço assim (levantando os braços para cima) e grito: To perdido, to perdido!”
“Isso mesmo, muito bem”
Meio ridículo esse procedimento, mas ao menos pode funcionar se for necessário.
“Então me diga outra coisa: o que você vai fazer se o copo cair da sua mão e se quebrar?”
“Vou correr para trás e chamar você.”
“Muito bem, filho! Parabéns!”
“Nada de ficar perto do vidro quebrado, né?”
“É.”
Então ele fez uma pausa, e perguntou:
“Mas, pai, e se eu estiver perdido na floresta e o copo cair da minha mão e quebrar? Fico paradinho ou vou para trás?”
“Nossa filho, quanta desgraça!”
“E sem um pau para bater no lobo mau!”
Hehehe... a graça para ele é testar minhas respostas.
“Nesse caso você vai para trás, bate no lobo com o pau, volta para o lugar onde você estava e fica paradinho.”
“Tá.”
Gustavo Guimarães


Sei quando a minha vida está indo bem só de olhar minhas gavetas. Quando está tudo arrumadinho, estou bem. Mas, em crise, meus guarda-roupas e cômodas viram um desastre. Ultimamente não são apenas as gavetas que andam uma bagunça. Vou saber que a crise passou quando as gavetas estiverem arrumadinhas e eu conseguir achar a chave do carro na bolsa sem ter de tirar tudo o que tem nela.
Lílian Silva


O telefone toca. É meu pai que liga para saber como estou. Eu falo que estou bem. Mas ele vai fundo nas minhas emoções. Temos um laço que parece maior do que o mundo. Choro por sentir como ele se preocupa comigo. E digo que preciso dele, que o amo demais, que ele é parte de mim e que faz minha alma forte. Peço a ele que jamais me abandone. Eu sei que mesmo não concordando com algumas atitudes minhas, por amor, ele fica do meu lado e assume os riscos que seriam apenas meus. Desligo o telefone. Choro de saudade. Sem amor, eu nada seria.
Tammy Luciano

segunda-feira, junho 18

Como ele diz que me ama

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autora : Julie Weingarden Dubin

Não com gestos em público, mas com algo melhor

Estou bem vestida. Meu marido, Bobby, sorri e avança em minha direção. Passa por mim e pega nosso filho, Joshua, de 1 ano e 3 meses, beijando-o 20 vezes enquanto lhe diz que ele está lindo.
Joshua está de pijama sujo; eu estou com um vestido maravilhoso. Será que perdi alguma coisa? Eu gostaria de achar que sou bonita, pelo menos aos olhos de meu marido, mas ele não diz. Tampouco costuma me fazer elogios de outra ordem. E não é do tipo que gosta de ficar abraçado.
Depois de seis anos juntos, isso ainda me chateia, principalmente quando saímos com algum casal apaixonado. Ela ri, ele a abraça, e se esquecem de que estamos à mesma mesa.
Não sei por que meu marido não fica à vontade com demonstração de afeto em público. Por outro lado, não sei por que me importo. Se ele de repente botasse a mão no meu traseiro em plena loja de utilidades domésticas, isso significaria que nossa relação é mais sólida? Duvido.
Mas aposto que seria gostoso. Quanto aos elogios, às vezes fico preocupada com o fato de não ouvir um “querida, você está linda”. Ele diz que me ama...quando eu pergunto.
“Você me ama?”
“Um-hum”, responde ele.
Então, quando acho que estou vivendo com uma pedra, Bobby me surpreende. Viajei há pouco tempo e ele reformou meu gabinete. Pintou as paredes beges de vermelho e renovou a instalação elétrica do cômodo inteiro.
Não é a primeira vez que Bobby fala comigo numa espécie de linguagem silenciosa. Ele faz isso de maneiras refletidas, demoradas: preparando um jantar maravilhoso depois de um dia longo de trabalho ou saindo no frio para comprar sorvete de sobremesa para mim.
Não precisava me surpreender com o gabinete novo. Teria sido mais fácil esperar que eu o ajudasse.
“Por que você se dá a esse trabalho todo?”
“Não sei”, diz ele.
Mas eu sei. Porque me ama.

sábado, junho 16

Virando a mesa

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autora : Diane M. Goodman

Enfermeira descobre que consideração, conversa e compaixão acalmam um paciente difícil

Edna era forte, com ossos salientes e um penhoar surrado que se confundia com sua pele branca. Mas estava longe de ser invisível. Hospitalizada por causa de uma diverticulite, ela berrava pedindo café e pimenta, mesmo se contorcendo de dor no abdome. Quando recebia pílulas, ela as alinhava e perguntava à enfermeira sobre cada uma delas.
Mas isso não era nada comparado às “batalhas da mesa de cabeceira”. Edna exigiu duas mesas. Em uma delas punha canetas, o botão de alarme, os óculos, livros, lenços de papel e chinelos – organizados meticulosamente. As refeições eram servidas na outra.
“Não, não, não, você fez tudo errado!”, gritava ela quando a mesa era recolocada no lugar. Ela exigia que sua mesa fosse alinhada com precisão militar. Tínhamos medo de levar as refeições e os remédios dela.
Sue era a única da equipe que não via Edna como uma mulher amarga e rabugenta. Ela via alguém que raramente recebia visitas e ofereceu-se para levar suas refeições.
“Não sei como você gosta da mesa. Talvez você possa me mostrar?”, sugeriu Sue quando trouxe uma refeição. Edna sentou-se ereta, olhou para ela e então explicou como gostava das coisas. Quando cheguei com o remédio, as duas estavam conversando. Edna tomou as pílulas, mal notando a minha presença.
Edna e Sue tornaram-se amigas. Professora de matemática aposentada, Edna sempre foi atraída pela precisão. Mesmo assim, ultimamente sua vida tornara-se imprevisível. Depois de cuidar da irmã até a morte, seu poodle também morreu. Ela precisava afirmar seu controle em algum lugar e fixou-se nas mesas. Mas, quando encontrou a companhia de Sue, as mesas perderam a importância.
Sua saúde melhorou rapidamente e ela parou de discutir conosco. Foi preciso uma mesa, uma pessoa disposta a cuidar dela e uma dose de compaixão.

sexta-feira, junho 15

A arte de negociar

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autora : Loretta Murphy

Uma canadense aprende que vender um carro no Brasil não é tarefa simples

Há pouco tempo decidi vender meu carro, um Fiat Uno Mille 1994. O interessante não foi o resultado, mas o meio: o processo de negociação.
Pus anúncio nos jornais locais e logo recebi telefonemas interessados. O Fiat Uno Mille é conhecido no Brasil por ser um carro confiável, econômico e prático. Algumas pessoas foram dar uma olhada, inclusive o Sr. Oswaldo, que, depois de uma rápida inspeção, confessou que não entendia nada de automóveis, mas que voltaria no dia seguinte com um amigo especialista. No Brasil, todo mundo é especialista ou tem um amigo ou parente que é.
No dia seguinte, o Sr. Oswaldo surgiu com o especialista, que testou as marchas, bateu nos pneus e anunciou que meu carro valia R$ 5.800,00. Eu, como boa estrangeira que sou, havia escrito no anúncio R$ 6.500,00 porque eu queria R$ 6.500,00.
Obviamente eu não sou uma negociadora brilhante e já estava a ponto de dispensar os homens quando meu marido chegou em casa. Meu marido é um brasileiro autêntico, em todos os sentidos da palavra: dinâmico, expansivo, sociável. E sabe entrar no jogo.
Chegou animado, apertou a mão dos homens e desatou a falar com eles sobre o dia estressante que tivera. Fiquei um pouco irritada, porque não queria conversar com eles. Se não estavam dispostos a pagar meu preço, para que?
A partir do relato de meu marido sobre o dia de trabalho, os dois homens descobriram que ele era dentista.
“Ah! Meu primo é dentista. Você conhece Fulano de Tal?”
“Claro!”, exclamou meu marido. “Ele era da turma um ano abaixo da minha na faculdade! Ótimo sujeito, o Fulano. Por onde ele anda?”
Meia hora depois, após saber o paradeiro, a situação familiar e até que tipo de carro o Fulano dirigia, eu já batia o pé no chão e me perguntava por que meu marido perdia seu tempo. De repente, ele solta:
“Então, Oswaldo, por que você não paga R$ 6.400,00 e leva o carro?”
“O carro precisa de muitos reparos. Dou R$ 6.000,00.”
“Que tal R$ 6.200,00?”
Olhei para meu marido, incrédula. Ele estava baixando demais o preço. Os homens devem ter notado minha surpresa, porque riram e disseram:
“Dona Loretta não quer fechar negócio. Tudo bem. Pensem na oferta e me telefonem.”
“Ah, deixe de ser pão-duro!”, brincou meu marido. “O que me diz de R$ 6.200,00?”
“Não, sinto muito, minha oferta é de R$ 6.000,00.”

Durante todo esse tempo de brincadeiras, eu observava a postura e a posição dos homens. Havíamos começado os quatro num pequeno círculo, com meu marido se movimentando, ansioso. Os outros dois davam passinhos para a esquerda. No fim da conversa, nosso círculo havia girado 180 graus. Se eu não tivesse acompanhado a rotação, teria acabado de costas pra o Círculo de Negociação!
“Pague R$ 6.100,00. São só cem a mais”, sugeriu o especialista.
Mais interjeições e hesitações. Mais falatório sobre o Fulano de Tal. Por fim, o Sr. Oswaldo concordou em depositar R$ 6.100,00 na minha conta no dia seguinte e voltar na segunda-feira para pegar o carro, com o recibo do depósito. O negócio estava fechado, resolvido nos últimos cinco minutos de uma conversa de uma hora sobre nada!

Fiquei aliviada por vender o carro e perplexa com o misterioso labirinto do processo de negociação brasileiro. Segundo Gilberto Freyre, um dos mais famosos sociólogos do país, uma das características chave do povo brasileiro é o “personalismo”. O termo se refere à sociedade baseada nas relações pessoais e à ênfase na sensação de proximidade e afeto nas relações interpessoais. Isso explica por que o processo de negociação do carro começou com a alusão a um conhecido comum.
É de praxe que, quando os brasileiros se conhecem, tentem estabelecer algum tipo de terreno comum: parentes ou amigos de amigos. Em outras palavras, se alguém que eu conheço conhece alguém que você conhece, você deve ser digno de confiança e, se não for, pelo menos sei a quem reclamar, e essa pessoa vai ficar constrangida pela sua quebra de confiança. Mas eu, uma canadense, aprendi que todos deveriam ser tratados de igual maneira, independentemente de quem conhecem.
A experiência partilhada pode criar algumas regras implícitas de comunicação verbal e comportamental. Então “leia nas entrelinhas”, jogue direito e evite perder oportunidades, como eu quase perdi!

A canadense Loretta Murphy chegou ao Brasil (em Nova Friburgo, RJ) como aluna de intercâmbio do Rotary, em 1987. Viajou bastante pelo país e desde 1997 mora em Salvador, Bahia. Há pouco tempo concluiu a monografia intitulada “Diferenças culturais entre organizações brasileiras e canadenses”, no qual este artigo se baseia.

quinta-feira, junho 14

Eu, tu... nós

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autor : vários

Bendito trote
Março de 1990. Eu, 19 anos; ele, 25. Ambos calouros do curso de educação física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Na primeira semana de aulas o fantasma do trote nos assombrava. Mas os dias foram passando e nem sinal da crueldade dos veteranos.
Segunda semana, terça-feira, disciplina Ginástica I. Surge o professor. Pede a todos que tirem os tênis, distribui bolinha de algodão e propõe uma corrida onde temos de soprá-las pelo chão. A brincadeira teve início. Do lado de fora o professor (na realidade um aluno veterano) ria com os outros que nos observavam pelos vidros das portas, enquanto nós, de quatro e descalços, soprávamos as bolinhas de algodão! Trote aplicado, veio o golpe final: os tênis foram devolvidos com os cadarços amarrados! Ajudei a desatar os nós até que sobraram dois pés distintos amarrados. Um era meu. Um toque no meu ombro revelou o dono do outro.
“Acho que esse tênis é meu.”
Trocamos olhares e sorrisos. Na volta para casa, dentro do ônibus, novamente o toque no meu ombro:
“Posso sentar do seu lado?”
“Claro! Você é o Mauro?”
“E você é a Manuela!”
A partir desse dia nunca mais nos separamos. Foram quatro anos e meio de faculdade. Íamos e voltávamos juntos, fizemos todas as disciplinas juntos, participando dos mesmos grupos, e nos formamos em 1994. Casamos em 2002. Não sei quanto tempo fomos amigos e depois namorados. Só sei que encontrei minha cara metade e que estamos juntos há 14 anos. Bendito trote!
Manuela Silva de Brito
Rio de Janeiro – RJ

Namoro eletrônico
Aos 36 anos, tinha minha vida estável e estava muito bem sozinha. Mas meu irmão mais novo, dizendo que eu só sabia trabalhar e ir para casa, convenceu-me a fazer minha “ficha” num site de namoro.
Descrevi-me como “intelectual que gosta de jogar xadrez, ler, ir ao cinema e ao teatro” e recebi vários e-mail de pessoas de todos os cantos do mundo. Com alguns mantive contato por certo tempo. Mas nenhum me interessou além da amizade.
No dia 16 de março de 1998 recebi um e-mail curto: “Vi seu anúncio, Netto.” Geralmente todos “alardeavam” suas qualidades físicas e intelectuais ao se comunicarem pela primeira vez. Eu nem sabia como responder a algo tão lacônico.
Retornei a mensagem informando que morava em Bauru – SP, no condomínio Flamboyants. Uma informação que não dera a nenhum outro correspondente, pois não queria ser “descoberta”.
Ele me respondeu logo no dia seguinte, enviando um cartão postal (por e-mail) com um buquê de rosas vermelhas e as seguintes palavras: “Moro perto de você. Prefiro conversar por telefone”, e acrescentou o número.
Não tive dúvidas, liguei! Era uma quinta-feira, marcamos um encontro para o sábado seguinte. E foi num chuvoso sábado, 21 de março, que estacionei meu carro na frente da casa de Netto e de lá saiu o homem da minha vida. Foi amor à primeira vista, literalmente!
Tenho em minha mente a imagem daquele homem molhado pela chuva, estendendo a mão para me cumprimentar e dizendo: “Muito prazer. Sou o Netto.”
Daquele dia em diante passamos a nos encontrar freqüentemente e no dia 6 de fevereiro de 1999 nos casamos. Hoje, cinco anos depois, continuo perdidamente apaixonada por esse homem fantástico que a cada dia me mostra algo novo e significativo da vida.
Valéria Maria Sant´ana
Bauru – SP

Tomando conta
Eu morava numa pensão na cidade de Montes Claros (MG) e costumava namorar, respeitosamente, algumas moças que passavam por lá. Certa vez, tive um namorico com uma hóspede novata que, após uma permanência de uns três meses, retornou à sua cidade de origem. Antes de partir, e já saudosa por me deixar para trás, chamou a filha da dona da pensão e lhe fez um pedido inusitado: “Estou partindo. Eu sei que você e Luiz são amigos. Pode tomar conta dele para mim? Só confio em você.” Cordial e sempre solícita, a filha da dona da casa prometeu que atenderia o pedido com muito prazer. E, fiel à promessa, está tomando conta até hoje, desde o nosso casamento, ocorrido há 41 anos.
Luiz Gonzaga de Oliveira
Prado – BA

Reaproximação
Conhecia minha cara metade desde criança. Fui ficando mocinha, mas nunca me interessei por ele, porque não gostava de homem baixinho e do interior.
Aos 18 anos fui para o Rio de Janeiro. Lá arrumei um namorado, do Rio Grande do Sul, com quem casei e tive quatro filhos. Depois de um período curto de doença do meu marido, fiquei viúva aos 25 anos com filhos em idade entre 1 e 6 anos. Voltei para perto da minha família no Nordeste.
Certo dia estava trabalhando na secretaria de um hospital quando, ao levantar a cabeça, vi um homem sorridente, vestido de branco, que não parava de me olhar. Levantei-me e, como que hipnotizada, o coração batendo mais depressa, fui até ele. Depois de 10 anos nos reaproximamos.
A família se opôs ao casamento dele com uma viúva mãe de quatro filhos. Foi preciso muita determinação e carinho, mas hoje, passados 36 anos, temos 6 filhos e nove netos. Somos uma família unida e feliz. Todos os dias agradeço a Deus por ter me dado esse marido, que, apesar dos anos vividos juntos, ainda diz todos os dias que me ama e como sou importante na vida dele.
Maria de Jesus Pinheiro Almeida
São Luis – MA

Brane, Aldo Brane
Trabalhávamos num grande banco. Quando ele passava por mim, sempre com um sorriso amável, chamava-me de “Branca de Neve”, por eu ser muito branquinha. Um dia, como ele era também muito branco, quando veio com o “Oi, Branca de Neve”, devolvi com ironia: “Como se você fosse moreno, não é Algodão Doce?”
Ele sorriu.
Com o tempo, por conta dos apelidos, criou-se entre nós uma afinidade e começamos a sair para lanchar. João era legal, mas bem diferente de mim. Era sério, caladão; eu, alegre, sonhadora. Apesar disso, gostava de sua companhia.
Eu era secretária da agência e todos os dias pela manhã conferia minha agenda, que ficava sobre a mesa. Um dia alguém escreveu ali “Aldo Brane”, e ao lado deixou uma barra de chocolate. E tornou-se um ritual diário encontrar o nome em minha agenda e, ao lado, o chocolate. Até que um dia, passando pelo João, ele olhou-me como nunca havia me olhado e disse:
“Quando a gente se casar, nosso filho vai se chamar Aldo Brane!”
“Você está louco! Que nome horrível! De onde você tirou?”
“São nossos apelidos...”, disse ele, desconcertado com minha desaprovação. “Do apelido que você me deu ´Algodão Doce´, tirei as primeiras sílabas e formei Aldo e do apelido que lhe dei, ´Branca de Neve´, deu Brane... Aldo Brane, entendeu?”
Nesse mesmo dia, antes de dormir, fiquei pensando no João, no tempo que ele ficou juntado nossos apelidos, no tempo que passou pensando em nós, no carinho que nutria por mim... E ali, naquela noite, descobri que ele estava apaixonado por mim, só não teve coragem de se declarar. Depois daquele dia, comecei a tratá-lo diferente, melhor, com mais atenção. Talvez também eu estivesse apaixonada por ele e não admitisse.
Após um ano e oito meses de namoro, casei-me com João no dia 12 de novembro de 1988 e hoje, 15 anos depois, além de Aldo Brane, de 4 anos, temos uma menina, Ana Catarina, de 7 anos, que completam nossa felicidade!
Djanira Luz Ferreira da Silva
Por e-mail

quarta-feira, junho 13

O senhor do ringue

Fonte : Revista Seleções
Data : junho 2004
Autor : Roy Wenzl

Ele era apenas mais uma pessoa em dificuldades, até um amigo lhe dar uma chance

O menino franzino de 12 anos chegou ao quintal de Johnny Papin em Wichita, Kansas, numa noite de junho de 2001. Immanuel (Manny) Thompson se encostou na cerca, observando Johnny treinar um grupo de dez meninos.
Johnny examinou o recém-chegado. Um bom garoto, pensou, mas distraído e nervoso. Do tipo que as gangues adoram recrutar.
Johnny conhecia Manny desde bebê. Sabia que o menino quase fora expulso do colégio na 6ª série. E que os pais dele tinham se separado três meses antes. A mãe trabalhava num restaurante, ganhando pouco para o sustento da família.
Johnny foi até a cerca.
“O que... você... está fazendo?”, gaguejou Manny.
“Boxe”. Johnny apontou um saco de pancadas pendurado numa árvore. “Estamos treinando para lutar.”
Manny olhou para Johnny, 49 anos, ombros largos e cabeça rapada.
“Você me ensina a lutar?, perguntou Manny.
“Pode ser”, respondeu Johnny. “Mas é um esporte, não um motivo para sair brigando por aí. Ouviu?”
Manny fez um gesto afirmativo com a cabeça.
“Vá perguntar à sua mãe se ela permite.”
Manny foi embora. Se voltar, pensou Johnny, talvez possa mantê-lo afastado dos criminosos que rondam o bairro.

Johnny trabalhava no bar do Wichita Country Club quando conheceu Bill*, em 1990. Os dois conversavam sobre golfe, as notícias, o mercado de ações. Bill era herdeiro de uma fortuna, um investidor que fazia parte de diretorias de bancos.
Johnny notou que Bill, com seus 50 e poucos anos, não ostentava sua riqueza. Era simples, atencioso e educado. Johnny costumava fazer brincadeiras sobre suas roupas elegantes e Bill achava graça. Passava horas, ouvindo o amigo contar histórias sobre seus tempos de lutador de boxe.
Logo Johnny começou a fazer confidências a Bill. Contou-lhe como fugiu de casa aos 14 anos e se tornou jogador de dados e de sinuca, e contrabandista de bebidas alcoólicas. Depois, mudou-se para Los Angeles e começou a treinar como pugilista. Venceu diversas lutas como peso-pena e peso-galo, e imaginou que se tornaria um campeão.
Um dia, porém, Johnny se machucou num acidente de motocicleta e teve de largar o boxe e o dinheiro que ele trazia, retornando a Wichita em 1981. Nos anos seguintes, mais tristezas o atingiram. Em 1984, um de seus filhos foi baleado e morreu. Johnny entendeu isso como uma punição para o que havia feito de ruim.
Começou a se envergonhar de sua vida e quis melhorar. Voltou a freqüentar a igreja e trabalhou com grupos jovens.
Na época em que conheceu Bill, estivera vagando por Wichita durante nove anos sem emprego fixo. Continuava a brincar sobre a fortuna de Bill. O ex-pugilista gostava do estilo de Bill se vestir, explicou, porque ele mesmo não agüentava mais parecer “um palhaço” – camisa florida, colarinho aberto, três correntes de ouro.
No dia seguinte, Bill apareceu no clube carregando uma sacola. “Tome”, disse a Johnny. “Pode ficar com isto.” Johnny abriu a sacola: camisas e calças elegantes, chapéus. Peças bonitas, quase novas, do armário de Bill.
Johnny aprendeu que não era incomum que seu amigo rico realizasse atos de bondade sem explicações.
Naquele inverno, quando Johnny foi dispensado do trabalho, Bill e sua mulher, Mary*, contrataram-no como caseiro.
Um dia, Bill pediu a Johnny que comentasse um artigo no jornal.
“Leia a história no caderno de economia e me diga o que acha.”
Johnny olhou para o jornal e, em seguida, para o amigo.
“Não sei ler”, admitiu ele.
Sentindo-se humilhado, contou a Bill que fingia para as pessoas. Na verdade, sabia das notícias pela TV.
O amigo olhou para ele, incrédulo.
“Vamos ver o que podemos fazer para resolver isso.”
Logo Mary encontrou um professor particular. Um dia, Johnny chorou. “Houve ocasiões no ringue em que fui tão espancado que parecia uma zebra com todas aquelas marcas”, contou. “Mas nunca havia chorado até hoje.”
Ele se levantou e afirmou: “Não vou conseguir. Desisto.”
O tutor o encorajou a continuar. Nunca fizera nada tão difícil, mas, depois de dois anos, aprendeu.
“Como poderei lhe pagar?, perguntou a Bill.
“Não se preocupe com isso”, foi a resposta.

Em maio de 1995, Bill descobriu um caroço no pescoço. O diagnóstico foi um câncer inoperável e fatal.
Não muito tempo depois, Bill estava muito fraco para subir as escadas até o quarto. Johnny sentou-se ao lado do amigo e disse: “Coloque os braços em volta de mim”. Bill assim o fez. Johnny ficou de pé e carregou-o escada acima.
Após a morte de Bill em 8 de agosto, Johnny continuou a freqüentar a casa. Disse a Mary o quanto admirava seu marido.
Mary tentou consola-lo. “Isso faz parte do baú que trazemos ao nascer. Ele vem com vida, morte e tudo o mais que colocamos nele.”
Johnny lhe disse que nunca colocara muito no baú de sua vida.

Durante anos, a loja de conveniências perto da casa de Johnny foi cenário de vários tiroteios. A alguns quarteirões de distância, houve brigas de gangues. Johnny solidarizou-se com outros homens de meia idade com relação aos adolescentes que se metiam em apuros. No entanto, sentia-se mal sempre que ele e os outros criticavam os jovens.
Ele ainda trabalhava meio expediente para Mary e resolveu, então, pendurar o saco de pancadas no quintal. Sabia que os garotos adolescentes adoravam assistir a lutas de boxe.
Logo havia uma dúzia de meninos em seu quintal. “Querem aprender?”, dizia-lhes. “Então se esforcem.” Abdominais, flexões, polichinelos, corridas de 1,5 quilômetro todas as noites.
Ele criou o Clube de Boxe e Consciência Cidade da Esperança. Seu plano? Ensinar o esporte e pregar aos garotos que não se metessem em confusão. No centro de sua mensagem estavam as “Leis do Treinador Johnny”: Não xingar
Não desrespeitar.
Não usar calças frouxas nos quadris.
Não ter atitude de bandido.
O que o fez persistir foi o que certa vez ouviu uma pessoa dizer: “Se você salvar pelo menos uma criança de uma dificuldade, já terá feito algo que vale a pena.”

Manny Thompson voltou ao quintal de Johnny. Sua mãe, Brenda, desesperada com a agressividade do menino e as notas baixas na escola, permitiu que ele fosse. Talvez, pensou ela, o boxe possa reverter isso.
Duas semanas após a chegada de Manny, Johnny o colocou para treinar com um garoto mais velho. Manny o atacou com socos alucinados, sem técnica – apenas raiva e dom natural. Por fim, desferiu uma bruta combinação de esquerda direita na cabeça do garoto mais alto, que balançou e caiu para trás.
Johnny olhou para Manny. Aquele garoto tinha talento natural. “Ouça”, disse a ele mais tarde. “Você pode ser um grande lutador – talvez, um campeão. Mas, se você quer vencer, precisa aprender a golpear, deve prestar atenção ao que digo e levar os treinos a sério. Está ouvindo?”
Manny assentiu e foi para casa tão feliz que sentia vontade de dançar.

Em setembro de 2001, Johnny levou Manny para uma luta de três assaltos em Garden City. O menino sem técnica desaparecera. Em seu lugar, restava um pugilista que mal chegava aos 45 quilos, golpeando de esquerda, aplicando ganchos e defendendo-se muito bem. Manny venceu.
Pouco tempo depois, Brenda teve uma reunião com os professores do filho e soube que ele estava faltando às aulas. Ela o advertiu sobre a necessidade de melhorar na escola, e falou em contratar um professor particular. “Melhore as notas ou vou tira-lo do boxe”, ameaçou. Johnny disse ao menino que a mãe estava certa – e mais: se Manny não melhorasse as notas, Johnny também não permitiria que ele freqüentasse o clube. Manny admitiu que odiava a escola: era difícil.
“E o professor particular que sua mãe quer arranjar para você?”
“Só burros precisam de professor particular.”
Johnny não sabia se gritava ou ria.
“É isso que você pensa? Pois saiba que só aprendi a ler aos 40 anos.”
“O que?”
“E só aprendi porque tive um professor particular. Era difícil, mas não desisti. E você pode fazer o mesmo.”
Manny começou a ter aulas com um professor de matemática. Logo estava se interessando por algumas matérias.
Johnny treinou Manny com mais afinco do que os outros meninos, mandando-o correr mais e fazer mais exercícios. Manny obedeceu e ganhou muitas competições pelo estado. E usava as medalhas de ouro no pescoço para ir à escola.
Na 8ª série, Manny chegou em casa eufórico. Estava na lista dos melhores alunos, com média excelente. Brenda ergueu os braços e gritou.
No treino daquela noite, Manny foi mostrar suas notas a Johnny.
“Treinador, veja!”
Johnny colocou os óculos e pegou o papel das mãos do garoto.
“Ai, meu Deus!”, exclamou Johnny, fazendo passos de dança.
“Eu disse que se você se empenhasse, daria tudo certo. Olhe só para isso!”

Orientar Manny é apenas o início para Johnny, que acredita dever a Deus uma vida inteira de trabalho. “Nada do que eu faça por alguém vai ser suficiente”, disse. “Desperdicei muito da minha vida e agora vou passar o restante dela retribuindo.”

terça-feira, junho 12

Por trás das letras

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autoras : Renata Pettengill e Raquel Zampil

O superlativo não está só no nome. Afinal, são quase 3 milhões de exemplares vendidos nos últimos três anos. Luis Fernando Veríssimo é um fenômeno num país onde os livros tem tiragem média inferior a 5 mil exemplares. Isso sem contar o fato de já ter sido traduzido em 13 países. No entanto, aos 67 anos, o jornalista e escritor gaúcho está longe de se considerar um fenômeno. Em uma de suas crônicas, ele conta que passou a pedir lugar nas últimas filas do teatro porque não ver o palco significa que tampouco será visto. Preocupação típica de um homem tímido.
E quem poderia imaginar que o autor de uma escrita dinâmica, irônica e “na ponta da língua” – afinal de contas, foi ele quem criou o Analista de Bagé, quem assumiu a autoria das Mentiras que os homens contam e quem organizou as Comédias da vida privada em livro! – seria um tímido de carteirinha?
E foi com esse jeito quieto que Luis Fernando falou a Seleções sobre a família e o ofício de escritor, jornalista, músico, desenhista...

Seleções
Seu pai, Érico Veríssimo, era um escritor famoso...Isso fez com que suas primeiras experiências literárias fossem precoces?
Veríssimo
Ainda garoto, eu, minha irmã e um primo, o Carlito, fazíamos um jornal que prendíamos ao lado da privada, para que a pessoa que estivesse sentada ali pudesse ler. Chamava-se O Patentino, porque lá no sul privada é chamada de “patente”. E era só sobre a família. Principalmente críticas. O jornal anarquizava com todo mundo, não livrava ninguém. Nem o pai.

Seleções
Qual foi o primeiro livro do seu pai que você leu?
Veríssimo
Foi Caminhos Cruzados, que eu li escondido. Ele era considerado, como se dizia na época, um livro forte, com cenas de sexo e tal.

Seleções
Qual idade você tinha?
Veríssimo
Devia ter uns 11, 12 anos. Nessa época eu lia muito quadrinhos, livros de aventura, mas esse foi o primeiro livro adulto. E o engraçado é esses livros e outros que na época eram considerados fortes, comparados ao que se publica hoje, parecem infantis até... No entanto, mesmo os livros de sua primeira fase eram importantes em termos de técnica literária. Ele lia muito a respeito de teoria do romance. Depois, com O tempo e o vento, sua obra ficou mais densa.

Seleções
Outros escritores freqüentavam sua casa?
Veríssimo
É, lá em casa iam muitos escritores, não só brasileiros, mas também estrangeiros. Eu me lembro do americano John dos Pasos, por exemplo, que era amigo do pai. E outros. Mas principalmente os brasileiros. Eu me lembro de Jorge Amado na época em que estava fugido por causa da política, e ficou meio que asilado lá em casa. A minha irmã, Clarissa, brincava de cabeleira com os cabelos do Jorge Amado. E ele, por alguma razão, achou que eu tinha cara de João, e não de Luis Fernando. E só me chamava de João. Eu era pequenino na época.

Seleções
E você atendia por João...
Veríssimo
João, é....

Seleções
Você é escritor, jornalista, desenhista e saxofonista. Quando vai preencher uma ficha e perguntam sua profissão, como você se define?
Veríssimo
Como jornalista. O trabalho de escritor é eventual. Minha profissão mesmo é jornalista.

Seleções
E o saxofone?
Veríssimo
Aprendi a tocar sax nos Estados Unidos, quando eu tinha 16 anos. Na verdade, queria aprender trompete, porque era fã do Louis Armstrong. Mas eles não tinham trompete para emprestar no curso e acabei aprendendo a tocar sax, que toco até hoje na banda Jazz 6.

Seleções
Você faz uma participação especial na banda?
Veríssimo
Sou membro permanente da banda. O grupo é composto por cinco músicos e um metido a músico: eu. Os cinco músicos são muito bons. Eles vivem da música. Enquanto me tolerarem lá eu continuo...

Seleções
De todas essas atividades, qual você considera mais prazerosa?
Veríssimo
Ah, certamente a música. Na verdade, escrever não me dá muito prazer. É o meu trabalho.

Seleções
E o desenho? Como surgiu a tira das cobras?
Veríssimo
Gosto de desenhar também. Só que sou péssimo desenhista, não tenho pretensão. As Cobras eu comecei a fazer quando tinha um espaço no jornal. Às vezes faltava assunto para texto e eu fazia um desenho. Porque as cobras são muito fáceis de desenhar, não é? Cobra é só pescoço, não tem detalhe. Mas parei porque estava fazendo coisas demais. E também já estava com 60 anos. Um homem de 60 anos fazendo cobrinha não ficava bem...

Seleções
Quando você começou a trabalhar como jornalista? Você se formou em jornalismo?
Veríssimo
Não, eu não me formei em nada. Fiquei até os 20 anos nos Estados Unidos e completei o secundário lá. Quando voltamos para Porto Alegre, eu não quis estudar e comecei a trabalhar na Editora Globo, no Departamento de Arte. Mas, como não estava dando certo, vim para o Rio. Isso foi em 1962. Então conheci a Lucia, que é carioca, nós nos casamos e nossa primeira filha, Fernanda, nasceu aqui. No entanto, sem perspectiva, a situação difícil, fiz a coisa sensata: voltei a morar com o pai, na casa em que vivera desde os 5 anos. Em Porto Alegre, convidaram-me para fazer uma experiência num jornal, o Zero Hora. Comecei como estagiário e acabei ganhando um espaço assinado. Aí descobri minha vocação. Até então não tinha escrito nada.

Seleções
Você tinha quantos anos quando voltou a morar na casa de seu pai?
Veríssimo
Eu já tinha 30 anos.

Seleções
Qual era a atitude dele?
Veríssimo
Ele sempre foi muito tolerante. Não havia cobrança. Mas obviamente ele se preocupava um pouco comigo, porque eu não encontrava o meu caminho na vida.

Seleções
Ele chegou a ver seus textos no jornal? Fazia comentários?
Veríssimo
Ele dizia que gostava. Acho que todo pai gostaria não é?

Seleções
Os seus filhos escrevem?
Veríssimo
Os três tem jeito para escrever. A Mariana está fazendo roteiro para televisão e cinema. O Pedro, o mais moço, é cantor, e escreve letras de música. Escreve muito bem. A Fernanda, a mais velha, que é historiadora e jornalista, mora em Paris e também escreve.

Seleções
E os netos? Já chegaram?
Veríssimo
Isso é um assunto delicado na família, porque ninguém se manifestou ainda. Eu faço parte do Movimento dos Sem-Neto. Ele foi lançado por Moacyr Scliar e eu me afiliei. Nós já estamos pensando até em ações radicais, como invadir berçários, roubar nenéns... Os filhos não estão dando conta...

Seleções
Você acha que a sua timidez ajuda a canalizar o humor para o texto escrito?
Veríssimo
Conheço vários humoristas que são humoristas tanto falando espontaneamente quanto escrevendo. Mas, no meu caso, a dificuldade que tenho de me expressar verbalmente, acho que compenso um pouco escrevendo. Escrevendo a gente tem tempo para pensar no que vai dizer. Então é muito mais fácil.

Seleções
Esse seu lado humorístico se manifesta desde a infância?
Veríssimo
O gosto pelo humor, sim. Nunca fui de saber contar piada, mas, quando comecei a escrever, já tinha lido muito. Sempre gostei de humor como consumidor, como leitor.

Seleções
Hoje, o humor de quem você lê?
Veríssimo
Ah, muita gente. Acho que nosso grande humorista continua sendo Millôr Fernandes. Ele é mais do que humorista, é um pensador. Mas temos muita gente boa. Temos o Ivan Lessa, tem o pessoal que está fazendo quadrinhos. O Angeli, o Laerte. Lá do Sul, tem o Santiago. E o pessoal do Cartum. Os Carusos, o Paulo e o Chico.

Seleções
Você tem um livro ou um personagem preferidos?
Veríssimo
Acho que o Analista de Bagé, meu primeiro livro que teve repercussão, que vendeu muito. Na verdade, o Analista começou como um personagem que eu fiz para o Jô Soares na televisão, um garçom gaúcho num restaurante francês, fino. E aí, como o Jô não usou muito esse personagem e eu tinha gostado de fazer, transformei-o em psicanalista, mantendo a mesma idéia da incongruência entre o personagem e a sua profissão, o seu meio.

Seleções
É você quem escolhe sobre o que vai falar na coluna?
Veríssimo
A escolha é minha sempre. Tem assunto que a gente parece que se obriga a comentar – um acontecimento que está no ar, a gente tem quase a obrigação de incluir na pauta. Determinados assuntos – política, futebol e religião – sempre dão problemas. Às vezes invento uma história. Crônica tem isso. Ela dá uma liberdade completa. Qualquer coisa pode ser crônica. Pode ser uma ficção, pode ser às vezes quase um ensaio.

Seleções
Como é a avaliação dos críticos em relação ao seu trabalho?
Veríssimo
Olha, não tenho nenhuma pretensão a ter qualquer qualidade literária. Eu acho que meu trabalho é um meio termo entre literatura e jornalismo. A gente não sabe se a crônica é literatura jornalística ou jornalismo literário, não é? Acho que o valor ou o não valor que me dão é justo.

Seleções
Três milhões de exemplares vendidos em três anos. Isso surpreende você?
Veríssimo
É surpreendente porque crônica não é um gênero que vende tanto assim.

Seleções
Mas é um gênero que combina com o momento.
Veríssimo
É, é uma leitura mais fácil, mais rápida. São textos curtos, geralmente. Mas não deixa de ser surpreendente. No entanto, isso é tudo passageiro. A gente não deve se deslumbrar demais...

segunda-feira, junho 11

Aula de direção

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autor : Anthony Head

A viagem de carro com minha filha tomou um rumo inesperado

Eu e minha filha, Sidney, viajávamos de Los Angeles para o Grand Canyon num minúsculo carro alugado quando tudo aconteceu.
Estávamos na estrada havia quase oito horas sem incidentes. A noite estava nublada, tranqüila e coberta de névoa – linda. Exatamente como eu imaginara que seriam as noites no Arizona quando comecei a planejar a viagem. Estávamos a apenas 20 minutos do hotel quando atropelei o cervo.
Como um fantasma à luz do luar, ele surgiu de relance, saindo do abrigo de um bosque na encosta e vindo na direção dos faróis.
Depois de frear derrapando por uns 30 metros – e depois de começar a respirar novamente -, ouvi Sidney perguntar do banco traseiro: “O que aconteceu?” Aquelas foram as primeiras palavras que eu a ouvia pronunciar em quatro horas.

Nossa viagem aconteceu nas férias de fim de ano de Sidney, que marcam a metade da 6ª série. Não viajávamos assim de carro fazia mais de dois anos e aquelas provavelmente seriam nossas últimas férias juntos – só pai e filha – antes de eu me casar de novo.
Na última vez em que pegamos a estrada, Sidney tinha 9 anos e tagarelara durante toda a viagem, sobre a escola, filmes e livros. Agora ela estava com quase 12 anos e hesitava em revelar seus pensamentos. Ainda falava durante horas, mas não comigo. Com os amigos e, sobretudo, pela Internet.
Portanto, depois de carregarmos o carro com as bagagens, ela pulou no banco traseiro, colocou os fones de ouvido e enterrou a cabeça num livro. Eu havia imaginado as longas conversas que teríamos sobre seu futuro.
“Aqui vamos nós”, eu disse, mas Sidney não ouviu uma única palavra em seu ninho no banco traseiro. O estoque de CDs prendia sua atenção.
Mesmo quando paramos para almoçar no Lago Havasu e ver a Ponte de Londres, ela permaneceu quieta. Expliquei como a magnífica ponte de pedra que costumava atravessar o Rio Tamisa em Londres tinha ido parar no oeste do Arizona, mas seus olhos estavam colados num grupo de adolescentes que dançava e gritava. Ela seria capaz de sair da própria pele para se juntar a eles.
De volta à estrada, de quando em quando eu a olhava pelo retrovisor e a via cantando discretamente ou refletindo sobre o livro. Quando surpreendia meu olhar, perguntava: “O que foi?”
A distância que separava os bancos dianteiro e traseiro do carro parecia tão grande quanto um abismo.
Peguei a Arizona 64, um trecho tranqüilo de auto estrada que levava direto ao hotel. Os pinheiros da floresta de Kaibab se enfileiravam ao longo da estrada como mudas sentinelas. De vez em quando a lua e um punhado de estrelas brilhavam através das nuvens. Meus sentidos se elevaram com a beleza ao redor. Diminuí a velocidade.
Foi então que, daquele bosque escuro, o cervo de repente saltou diante do carro. O impacto acordou Sidney.

O carro rodava lentamente enquanto procurávamos algum sinal do cervo na estrada e na floresta, mas nada se movia na escuridão.
Devo ter ficado murmurando sobre o que fazer, pois Sidney perguntou: “Você está mais preocupado com o cervo ou com o carro?”
Olhei pelo retrovisor e vi o rosto dela. Era uma pergunta sincera.
“Com o cervo”, respondi, lembrando-me de que havia recusado o seguro da locadora.
Se o carro ainda estava funcionando, e incrivelmente estava, e não estávamos machucados, minha preocupação se voltava para o cervo.
Sidney deve ter percebido que eu me perdia em meus pensamentos na tentativa de elaborar o que estava acontecendo. No entanto, fui trazido de volta à realidade ao sentir sua mão se estendendo na escuridão, atravessando o abismo de nosso pequeno carro e apertando meu ombro. Levei uma hora inteira para vencer os vários quilômetros que faltavam, mas sua mão permaneceu ali até chegarmos ao hotel.
Depois de nos registrarmos, fomos verificar os prejuízos do carro. O espelho do motorista havia sido arrancado do suporte, o pára-brisa tinha uma aparência gótica com sua teia de vidro rachado e um farol dianteiro havia sido estilhaçado. Praticamente todo o lado esquerdo do carro estava amassado. Retirei do batente da porta um chumaço de pêlos que tremulava na brisa fria.
Estaria mentindo se dissesse que o restante do tempo que passamos juntos foi o que eu havia imaginado para nossas férias. As ligações para seguradora, locadora de carros e administradoras de cartão de crédito acabaram com qualquer diversão a que eu teria direito. Sidney, porém, passou grande parte da viagem de volta empertigada no bando da frente, procurando cervos pela área e curvando-se para buzinar em intervalos de 20 segundos. Conversamos mais sobre banalidades antes que ela retornasse de mansinho para o banco traseiro. Mas eu sabia que ela estava lá comigo dessa vez. É incrível como a graça pode ser alcançada nos lugares mais estranhos; basta você abrir os olhos e ver.
Sei que o medo e a culpa, além da imagem daquele cervo rompendo a névoa e surgindo à luz dos faróis, ficarão para sempre impressos em minha memória. Mas também guardarei comigo a sensação reconfortante da mão de Sidney em meu ombro. Cheguei a pensar que ela estava fugindo de mim e que eu a havia perdido. No entanto, ela estava lá o tempo todo, tão real quanto seu reflexo no retrovisor.

sexta-feira, junho 8

O dentista das estradas

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autora : Michelle Guimarães

Na estrada há dois dias, o caminhoneiro Sandro Lotte, 34 anos, entra no Posto Pé da Serra, a dois quilômetros de Vitória da Conquista (BA). Às 8h45 daquela manhã de 28 de agosto de 2003, o sol já está quente. Depois de estacionar seu caminhão azul na sombra, ele desce para tomar um banho.
Quando volta do vestiário, vê um homem vestido de branco sentado numa cadeira ao lado de um caminhão preto.
“Quem é aquele ali?”, pergunta ao rapaz que trabalha no posto.
“É um dentista. Está atendendo aqui de graça. Se quiser, eu o apresento a ale.”
Com um sorriso, Cássio de Melo, 44 anos, aperta a mão de Sandro e o convida a entrar no consultório. Depois de subir a escada que leva à carroceria fechada do caminhão, ele se acomoda na cadeira inclinada. É bonito por dentro. Tudo branquinho, limpinho, observa Sandro. Seu corpo todo treme de medo. É a primeira vez que entra em um consultório de dentista. Cássio lhe estende uma revista para que se distraia enquanto ele se prepara para seu atendimento de número 9.787 a caminhoneiros.
O dentista começou seu trabalho voluntário em 1986, quando dedicava pelo menos uma manhã por semana ao atendimento em favelas de São Paulo, onde mora. “Vi que as pessoas ali não tinham informação sobre nada de saúde e que os serviços de odontologia a que tinham acesso eram mutiladores”, conta ele.
Em 1995, prestando assessoria à Secretaria de Saúde de São Paulo, ele começou a viajar para municípios do interior do Brasil. “Se a situação em São Paulo era precária, no interior, então, nem se fala”, conta ele. Segundo estimativas do IBGE, 18% da população brasileira nunca foi ao dentista. Entre a população rural, esse percentual sobe para 32%. Constatada essa realidade, Cássio começou a estudar uma forma de levar seu serviço a diversos cantos do país e a procurar empresas que pudessem dar apoio.
Em 1999, uma empresa de planos odontológicos lhe cedeu uma van equipada com um consultório onde o dentista passou a viajar oferecendo tratamento gratuito de prevenção.
Em suas viagens, sempre que chegava a postos de gasolina e via motoristas de caminhão conversando em rodas, Cássio se apresentava e ficava ouvindo suas histórias. Assim, constatou que os caminhoneiros não tem o hábito de ir ao dentista. Se surge algum problema, eles não podem abandonar a estrada e entrar na cidade mais próxima em busca de um consultório. Bochechos com água de bateria, fluido de freio e diesel – substância altamente cancerígenas – são estratégias contra a dor. “Vi que precisava fazer algo”, conta ele.
Em abril de 2000, uma montadora de caminhões lhe cedeu um veículo com uma unidade móvel odontológica acoplada. Desde então, o dentista já percorreu mais de 120 mil quilômetros em 21 estados do Brasil, atendendo , gratuitamente, mais de 12 mil pessoas, sendo 90% delas caminhoneiros. Em 2004, ele pretende passar 188 dias nas estradas, longe da família e de seu consultório particular em São Paulo.
Em 40 minutos, Cássio termina a revisão de dentes de Sandro e a remoção de placa bacteriana. “Ninguém vai acreditar quando eu disser que fui ao dentista”, diz o motorista.
“A proposta de Cássio é importante, pois as dificuldades dos caminhoneiros para ir a um dentista são muitas”, diz o Dr. Norberto Francisco Lubiana, presidente nacional da Associação Brasileira de Odontologia. “Se cada um de nós der sua parcela de contribuição, podemos transformar a realidade da saúde bucal em nosso país.”

quinta-feira, junho 7

Mente tirana

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 2002
Autor : Mark Bowden

O mundo distorcido de Saddam Hussein, o presidente com 100% de aprovação.

O tirano precisa se esconder para dormir. Passa de um esconderijo a outro, variando locais e horários. É muito perigoso ser previsível e, sempre que cerra os olhos, seu punho de ferro cede. Conspirações se solidificam nas sombras. Durante essas horas, precisa confiar em alguém e, para o tirano, não existe nada mais perigoso do que confiar.
Saddam Hussein, presidente do Iraque, marechal de campo de seus exércitos e “Grande Tio” de todos os seus povos, desperta por volta das três da manhã, depois de apenas cinco ou seis horas de sono. Desperta e vai nadar. Todos os seus numerosos palácios tem piscinas. A água é símbolo de riqueza e poder em um país do deserto, e Saddam a espalha por toda parte – em chafarizes, piscinas e regatos internos.
Nadar o mantém em boa forma física. Isso satisfaz sua vaidade, que é desmedida. A boa forma, porém, é vital por outras razões. Ele está hoje com 65 anos, mas, como o medo é o sustentáculo de seu poder, não pode se permitir ficar alquebrado, frágil e grisalho. Fraqueza atrai desafio, golpes de Estado. Pode-se imaginar Saddam esforçando-se para manter o ritmo das braçadas a cada manhã. Ele tinge de preto os cabelos grisalhos e não usa óculos de leitura em público. Como um problema nas costas o faz mancar, evita ser visto caminhando mais do que alguns passos.
Alimentos frescos lhe são trazidos de avião duas vezes por semana – lagostas, camarões, carne magra e laticínios. Os carregamentos são enviados a seus cientistas nucleares, que os passam por raios X e os testam em busca de radiação e veneno. Sob a supervisão da guarda pessoal de Saddam, a refeição é preparada por chefs treinados na Europa.
Ele aprecia vinho nas refeições, mas cuida para que ninguém – além de seu confiável círculo de parentes e assessores – o veja bebendo. O álcool é proibido pelo Islã e, em público, Saddam é fiel seguidor da fé.
O presidente vitalício lê vorazmente e nutre especial paixão por livros sobre história militar e grandes homens, em especial Winston Churchill. Todos os dias passa longas horas em um de seus gabinetes, escolhido por ele e sua segurança. Solitário por natureza, o poder o isolou ainda mais. Fechado nos palácios e cercado de ministros que quase nunca ousam lhe dizer o que não quer ouvir, tornou-se desinformado sobre sua terra e seu povo. Existe apenas para preservar a riqueza e o poder. A sobrevivência é sua suprema paixão.

Tomada do poder.
Saddam cresceu em uma cidadezinha pobre da região centro-norte do Iraque, membro de um clã conhecido por sua violência e astúcia. No fim dos anos 50, filiou-se ao Partido Socialista Baath. O objetivo do partido era reconstruir o mundo árabe, compartilhando propriedades e riqueza, buscando uma vida melhor para todos.
Para os companheiros revolucionários, Saddam era dotado de uma impressionante combinação: um homem truculento que era também culto, bem articulado e aparentemente de mente aberta – um líder nato que poderia guiar o Iraque a uma nova era.
Quando o Partido Baath subiu ao poder em 1968, Saddam se tornou o verdadeiro poder nos bastidores do novo conselho de Comando Revolucionário. Durante a década de 70 – período relativamente auspicioso para o Iraque – Saddam foi vice-presidente do conselho. Orquestrou um projeto de alfabetização nacional e construiu escolas, estradas, casas populares e hospitais.
Sempre planejara assumir o controle formal das principais posições no país. Alguns membros da liderança do partido pensavam diferente: em vez de simplesmente entregar-lhe as rédeas, passaram a defender uma eleição no partido. Então Saddam agiu, encenando sua supremacia de forma teatral.
Em 22 de julho de 1979, convidou membros do conselho e centenas de líderes do partido a uma sala de conferências em Bagdá. Fardado, caminhou lentamente até a tribuna. Ocorrera uma traição, anunciou ele, uma conspiração. Havia traidores entre eles.
Muhyi Abd al-Hussein Mashhadi, o secretário geral do conselho, surgiu na sala e confessou seus envolvimento. Preso e torturado dias antes, agora começava a revelar nomes. Enquanto apontava membros da platéia um a um, guardas armados agarraram mais de 60 “traidores” e os arrastaram dali. Quando um homem gritou que era inocente, Saddam ordenou: “Itla! Fora daqui!”. (Mais tarde, mandou que tapassem a boca dos acusados com fita adesiva para que não pronunciassem, à guisa de últimas palavras, qualquer impertinência diante dos pelotões de fuzilamento.) Entre os acusados naquela noite, 22 foram executados, inclusive Mashhadi. Vídeo-tapes do expurgo circularam por todo o país.
O espetáculo horripilante surtiu o efeito desejado. Todos ali entenderam que um único homem passara a controlar o destino daquela nação.
Dois anos depois da tomada total do poder, as ambições de Saddam se voltaram para a conquista. Do exílio, seus antigos aliados de partido hoje consideram o apoio que deu aos programas de bem estar social um elaborado logro.
“No início”, comenta Hamid al-Jubouri, ex-secretário geral interino do Conselho de Comando que hoje mora em Londres, “Saddam era encantador e admirável. Ele nos enganou a todos. Estava escondendo sua verdadeira personalidade, acumulando poder silenciosamente. Ele possui enorme habilidade em ocultar suas intenções; talvez seja essa sua maior qualidade.”

Vaidade.
A raiz da busca sangrenta e obcecada pelo poder parece ser simplesmente a vaidade. O que Saddam mais deseja é ser admirado, lembrado e reverenciado. Sua biografia oficial de 19 volumes é leitura obrigatória para os funcionários do governo. Saddam afirmou a seu biógrafo que não está interessado no que pensam dele hoje, apenas no que irão pensar dele dentro de 500 anos.
Num dia de 1989, Saad al-Bazzaz, então diretor geral da Rádio e Televisão do Iraque, foi convocado à presença de Saddam. O ditador foi direto no ponto. Era costume que poemas e canções compostos em seu louvor fossem transmitidos diariamente pela TV. A maior parte das obras era amadorística – versalhada ridícula criada por poetas incompetentes. Nas semanas anteriores, al-Bazzaz havia insistido com seus produtores para que fossem mais seletivos.
“Soube que você está impedindo a veiculação de algumas canções que falam sobre mim”, disse Saddam.
Al-bazzaz ficou atônito e amedrontado.
“Sr. Presidente”, disse ele, “As canções continuam no ar, apenas suprimi algumas por serem de má qualidade.”
“Olhe aqui”, retrucou Saddam, “você não é juiz. Como pode impedir que as pessoas expressem seus sentimentos a meu respeito?”
Al-Bazzaz temeu ser preso e fuzilado. Seu coração batia disparado.
“Agora está bem claro para você?”, Saddam perguntou.
“Sim, senhor.”
Com isso, Saddam despachou o aterrorizado al-Bazzaz. Naquela noite, o programa completo dos tributos dedicados a Saddam foi retomado.

Crueldade.
Saddam costuma estudar a crueldade e a adota. Culpa ou inocência são irrelevantes, pois não há lei nem valor além da vontade dos tiranos; se deseja que alguém seja preso, torturado, julgado e executado, isso é o bastante. Compaixão, justiça, preocupação com o devido processo legal, tudo é sinal de fraqueza. A crueldade assegura a força.
No início da década de 80, vários burocratas do Ministério da Habitação foram acusados de aceitar subornos e condenados à morte.
“Todos nós do Ministério recebemos ordem de assistir ao enforcamento”, conta um ex-burocrata que hoje mora em Londres. Eles viram e ouviram os acusados implorar, chorar e protestar inocência. Um a um, foram todos enforcados.
Estima-se que mais de 3 mil iraquianos foram executados em 1981 e 1982. Entre as atrocidades de Saddam, há pequenos atos que revelam sua personalidade. Alguém ouviu o general de divisão Omar al-Hazzaa falar mal de Saddam em 1990. Então o general não foi apenas condenado à morte – Saddam ordenou que, antes da execução, sua língua fosse cortada. De quebra, também mandou executar o filho de al-Hazzaa e demolir as casas do general, deixando sua mulher e os outros filhos na rua.

Erro crasso.
Em 1990, a guerra de oito anos contra o Irã havia deixado centenas de milhares de iraquianos e iranianos mortos, e custado ao Iraque bilhões de dólares. Apesar das imensas perdas, Saddam entusiasmou-se com a vitória.
Encorajado por seu poderia militar, planejou invadir o vizinho Kuwait, com seus depósitos de petróleo. Apostou que o mundo não se importaria. Foi um dos grandes erros de cálculo militares da história moderna. Os Estados Unidos e seus aliados começaram a reunir uma das maiores forças bélicas já vistas na região.
Era evidente para todos do setor militar iraquiano que não poderiam fazer frente aos Estados Unidos. Saddam, no entanto, não se deixou intimidar. Seu plano era capturar soldados americanos e amarrá-los em torno dos tanques iraquianos, usando-os como escudos humanos. “Os americanos jamais atirarão em seus soldados”, afirmou ele. Então, suas tropas se moveriam livremente para o lesta da Arábia Saudita, forçando o recuo dos aliados.
Wafic Samarai, chefe da inteligência militar iraquiana, sabia que o plano de Saddam era absurdo. Numa reunião no gabinete de Saddam, Samarai engoliu em seco e proferiu sua avaliação pessimista, baseada em fotos, notícias e estatísticas. Os iraquianos não deveriam esperar nada além de uma derrota rápida, afirmou ele.
Depois de escuta-lo, Saddam disse “Nossas forças vão reagir com mais vigor do que você pensa. Vão lutar por um longo tempo, e haverá muitas perdas dos dois lados. Só que nós estamos dispostos a sofrer perdas; os americanos não vão aceitar muitas baixas em suas fileiras. O povo americano é fraco.” Samarai ficou estupefato.
Pesados ataques aéreos começaram em três dias. Cinco semanas depois, teve início a ofensiva por terra, e as tropas de Saddam se renderam ou debandaram. Milhares foram mortos. A guerra se desenrolou exatamente como Samarai havia previsto.
Desde então, Saddam vem reagindo com maquinações ainda mais absurdas, profetizando vitória no confronto decisivo com os Estados Unidos. Com esse objetivo em mente, deu início a programas secretos de desenvolvimento de armas biológicas, químicas e nucleares.

Destino.
No decorrer dos anos, Saddam escapou diversas vezes da morte, fortalecendo cada vez mais sua convicção de que seu caminho é divinamente inspirado e que seu destino é a grandeza. Ordenou a genealogistas que criassem uma árvore genealógica plausível ligando-o a Fátima, filha do profeta Maomé.
Se Saddam tem uma religião, esta consiste na crença na superioridade da cultura e da história árabes, uma tradição que, ele está convencido, vai ressurgir e abalar o mundo. Sua noção de história não tem nenhuma relação com o progresso, avanço do conhecimento, evolução de liberdades e direitos individuais, questões de maior importância para a civilização ocidental. Tem a ver simplesmente com poder. Para Saddam, o atual domínio do Ocidente sobre o mundo é apenas uma aberração histórica, conseqüência das suas vantagens tecnológicas. Não deve perdurar.
Ele acredita que, quando a Arábia – a fonte da civilização – se erguer novamente, vai ser considerado o grande líder nato, de um tipo que seu mundo não vê há 13 séculos.
“O objetivo dele é governar o Iraque enquanto viver”, diz Samarai. “Isso é difícil, mesmo sem os Estados Unidos em seu encalço. Os iraquianos são um povo dividido e implacável. Para exercer seu domínio, Saddam derramou sangue demais.”
É por essa razão que Saddam vai fracassar. Sua crueldade criou ondas de ódio e medo. Seus discursos não encontram mais eco nem mesmo no mundo árabe, onde é desprezado tanto por liberais leigos quanto por conservadores muçulmanos. A lealdade daqueles que o protegem fundamenta-se em medo e interesse próprio, e pode mudar de lado, se e quando surgir alternativa.