segunda-feira, junho 4

Em busca da pizza perfeita

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Christopher Matthews

Vencendo barreiras culturais, a pizza tornou-se o primeiro prato verdadeiramente global.

Uma bola de pasta de 180 gramas está sobre o balcão de mármore diante de mim. Gigi Piccolo, que já fez manualmente mais de um milhão de pizzas em sua carreira, mostra-me como são feitas.
“Comprima, não esmague”, instruiu. A massa contém milhões de delicadas bolhas de ar. Um rolo para massas as danificaria, portanto – assim como faz Gigi -, uso os dedos e as saliências laterais das palmas das mãos para achatar e alargar o disco até cerca de oito centímetros.
Gigi então demonstra como estender a massa, puxando-a rápido com a mão esquerda enquanto segura o disco com o lado da direita. Em segundos surge um disco de 25 a 30 centímetros de diâmetro, com dois milímetros de espessura no centro e de seis a oito centímetros nas bordas.
Depois de três minutos, tenho um bloco inútil, em forma de ameba. Gigi suspira. Vou ter de trabalhar muito se quiser aprender a fazer uma pizza que corresponda aos padrões do mais exigente fabricante de pizzas do mundo
Penetrando pelas barreiras de língua e cultura, a pizza tornou-se o primeiro alimento realmente global. Na Índia, gostam de servi-la guarnecida com gengibre em conserva, carneiro moído e tofu. No Japão, a preferência é por enguias e lulas, na Rússia, arenque vermelho; e no Paquistão, curry apimentado. Na Costa Rica preferem pizza com coco; e no Brasil, com lingüiça. Os mais sofisticados já fizeram pedidos de pizza com dente-de-leão, ostras, lagostim e caviar.
Ninguém aprecia mais a pizza do que os americanos, que consomem três bilhões por ano e a preferem com lingüiça apimentada. Segundo a Associação Nacional de Fabricantes de Pizza nos EUA, o movimento anual de 61 mil pizzarias do país é de 30 bilhões de dólares – quase igual à quantidade vendida no resto do mundo.
As origens dessa delícia gastronômica perdem-se nas brumas dos tempos, remontando à descoberta do lêvedo e da massa fermentada no antigo Egito, há cerca de 6 mil anos.
No entanto, os eruditos concordam que as pizzas assadas diariamente em todo o mundo descendem diretamente daquilo que os padeiros começaram a preparar há cerca de 200 anos como refeições rápidas para os pobres, numa das cidades mais populosas da Europa: Nápoles. A cidade é para a pizza o que Munique é para a cerveja – base do produto original e verdadeiro. Foi assim que me encontrei na impecável cozinha de Gigi, de azulejos brancos, na Ciro a Santa Brigida, uma das principais pizzarias da cidade, inscrito num curso intensivo de fabricação de pizzas.
Para fazer a “Autêntica pizza” é preciso observar escrupulosamente as receitas vindas de gerações de pizzaiuoli (cozinheiros de pizza locais), hoje codificadas num regulamento oficial.
O regulamento determina 1,8 quilo de farinha para um litro de água. A quantidade de fermento depende do tempo que se queira dar para a massa crescer – cinco horas aproximadamente -, assim como da temperatura e umidade ambientes. Depois de medir tudo com precisão, ligo a batedeira e rezo para que minha pizza fique como a de Gigi – elástica e leve.
O pai de Gigi era cozinheiro. Gigi, quando menino, resolveu que lutar sozinho pela perfeição, com apenas alguns ingredientes básicos – farinha, água, tomates e mozarela -, seria o trabalho de sua vida. Aos 12 anos, já trabalhava como pizzaiuolo havia três anos e ajudava a fabricar quase meia tonelada de massa por dia.
Gigi calcula que já fez mais de um milhão de pizzas. E, embora os pedidos cheguem em grande quantidade e com pressa, ele nunca se atrapalha. Move-se na cozinha com os gestos precisos de um artista marcial enquanto combate o prodigioso apetite de Nápoles por pizza.
Das 20 mil pizzarias da Itália, a área de Nápoles conta sozinha com 1.200. A maioria dos napolitanos come pelo menos uma por semana e alguns dizem que comem pizza no almoço e no jantar, todos os dias.
Séculos atrás, a pizza era um disco de pasta assada sem tomates e muitas vezes comida pela manhã. Ambulantes a vendiam nas ruas, tirando-a de altos recipientes de cobre que equilibravam na cabeça. Muitas vezes os fregueses eram pobres demais para comprar mais de uma fatia, ou tinha de comprar fiado. Uma “pizza de oito dias” era a que os fregueses tinham o prazo de uma semana para pagar.
Ricas ou pobres, as pessoas dobravam as pizzas e as comiam com as mãos. Esse ainda é o teste da boa pizza. Tem de ser suficientemente macia para ser dobrada – “como carteira” – sem que a crosta rache.
Na cidade de puristas da pizza, nem pense em pedir a sua com lingüiça ou arenque, curry ou tofu. “Claro que você pode colocar abacaxi na pizza, se quiser”, diz Antonio Pace, presidente da Associação da Autêntica Pizza Napolitana, composta de 150 proprietários de restaurantes do mundo inteiro que fizeram juramento de servir a pizza autêntica. “Mas não será a pizza napolitana.”
Só existem duas pizzas napolitanas clássicas – a Margherita e a Marinara. A Margherita é a favorita da Itália e, segundo a associação deve ser guarnecida com os seguintes ingredientes: tomates San Marzano, azeita de oliva extra virgem, mozarela de leite de búfala, manjericão e uma pitada de sal. A Marinara, que deriva seu nome dos pescadores famintos que antigamente a comiam como café da manhã, é guarnecida de tomate, alho, azeita de oliva e salpicada de orégano.
Bravo! Minha massa cresceu perfeitamente e está leve e elástica. Gigi faz o teste, estendendo-a uns 30 centímetros. Ela não se rompe, confirmando que está no ponto. Então, Gigi pega um pedaço grande e o rola, fazendo um cilindro de 80 centímetros de comprimento, do qual corta pequena parte, espremendo-a entre o polegar e o dedo médio. Com essa massa pastosa faz uma bola com rápidos movimentos circulares da mão direita sobre o tampo de mármore. Depois coloca a bola numa gaveta, pronta para ser transformada na base da pizza dentro de uma hora.
As mãos de um fabricante de pizza experiente sabem avaliar o peso de uma bola com aproximação de um grama. Quando Gigi e eu terminamos, as gavetas estão cheias de 67 protopizzas, cada qual pesando em média 213 gramas.
Em 1994 Nápoles hospedou a cúpula das nações mais poderosas do mundo. Da pequena pizzaria no centro da cidade, Ernesto Cacialli observou um comboio de limusines pretas parar quase à sua porta e a figura imponente do homem mais poderoso do mundo saltar para a calçada.
Bill Clinton ia dar um passeio e o grisalho Cacialli driblou os seguranças do serviço secreto (treinados para deterem assassinos, mas não, pelo visto, fabricantes persistentes de pizza) e convidou o presidente para seu restaurante.
“Presidente, vuoi una pizza?”, perguntou, de supetão.
“Ok. Pizza”, respondeu Clinton, espantado, com um sorriso.
Num instante, Cacialli lhe preparou duas: uma clássica Margherita e a especialidade da casa, menor, frita em óleo fervente. O presidente devorou ambas. Durante as horas seguintes, Cacialli foi o cozinheiro de pizzas mais famoso do mundo.
Quando, porém, Vincenzo Pagnani soube que Ernesto Cacialli tinha “capturado Bill Clinton, logo enviou um telegrama ao presidente, no seu hotel em Nápoles. “Nós os aguardamos”, escreveu, “na pizzaria onde nasceu a pizza.” Pagnani só exagerou ligeiramente. Sua pizzaria Brandi, uma das mais antigas de Nápoles, é famosa desde o dia em que um dos cozinheiros deu nome à pizza Margherita.
No dia 11 de junho de 1889 Raffaele Esposito foi convidado a preparar uma pizza para a rainha Margherita, esposa do rei Umberto, do recém unificado reino da Itália. Dizem alguns estudiosos que a rainha desejava conquistar o coração dos súditos partilhando seu prato preferido.
Segundo os arquivos históricos, o pizzaiuolo fez três tipos de pizza, sendo o último com tomate, mozarela e manjericão - vermelha, branca e verde como a bandeira italiana. Diz a tradição que a rainha apreciou especialmente esta última, e o prato logo se tornou conhecido como pizza Margherita.
Cento e cinco anos depois a limusine presidencial chegou à porta de Pagnani. Ao saltar do carro, Bill Clinton agradeceu o convite ao sucessor de Raffaele Esposito, mas lamentou que seu programa rigoroso não lhe permitisse ficar. Em seu lugar, porém, deixou a sogra e a filha, Chelsea.
A honra estava salva! As duas mulheres, além de comerem cada qual uma pizza Margherita no local, ainda levaram duas consigo. “Ri melhor que ri por último”, diz Pagnani, sorrindo. Placar final do duelo entre os fabricantes de pizza napolitanos: Pagnani, quatro pizzas presidenciais; Cacialli, duas.
Gigi acende o forno, tocando fogo em toras bem secas. Somente madeiras que ardem por igual, fazem pouca fumaça e produzem calor intenso são usadas num forno de pizza. É possível usar carvalho, oliveira ou macieira, mas não castanheira ou pinheiro.
O teto de tijolos do forno, em forma de domo, ainda escuro, estará pronto para ser usado quando ficar branco – aquecido de 450º a 480º C. Um bom forno é essencial para fazer uma pizza perfeita, pois tem de ser suficientemente quente para cozinhar a pizza em apenas 60 segundos. Pode desistir de fazer a pizza autêntica no fogão de casa. Não vai muito além de 250º C, e o resultado ficará embolado e duro de mastigar.
Depois de algumas tentativas, afinal consigo passar uma pizza, já guarnecida com os ingredientes da Margherita, do tampo de mármore para a pá de madeira do forno. Enfio a pá pela boca do forno e puxo de forma abrupta, a fim de tira-la sob a pizza para que esta fique cozinhando lá dentro. O princípio é igual ao de puxar a toalha da mesa sob os cristais.
Devo ter puxado com força demais. A metade da mozarela e da guarnição de tomate espalha-se pelo piso de pedra! Gigi levanta os olhos ao céu. “Vamos tentar de novo”, sugere.
Dia de formatura! Será que vou acertar no exame final? Achato uma bola de pasta num disco de um centímetro de espessura, depois a alargo com as pontas dos dedos até que fique com 25 centímetros de diâmetro. Uso uma colher de pau para espalhar uma camada de tomate em lata, depois jogo mozarela picada, um pouco de manjericão e uma pitada de sal. Um borrifo de óleo completa o preparo.
Em seguida estiro a pasta de leve aqui e ali para me certificar de que esteja bem circular, e coloco-a no forno quente. Aos 30 segundos, viro-a com movimentos hábeis. Aos 55 segundos, atiro aparas de lenha sobre as toras e as chamas precipitam-se, tostando e lacrando minha criação.
Momentos depois, posto-me diante do forno e me assombro com minha Margherita. Salpicada, fofa, corada ao ponto. Tão linda que me dá vontade de chorar.
Mas então me dou conta de que não são os olhos que está cheios de água: é a boca. Num instante, uma fatia bem quente desce pela garganta. Minhas papilas gustativas vibram com o tentador trio de tomate, manjericão e mozarela.
Acho que acabei de me diplomar pela Universidade da Pizza.

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