sexta-feira, junho 15

A arte de negociar

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autora : Loretta Murphy

Uma canadense aprende que vender um carro no Brasil não é tarefa simples

Há pouco tempo decidi vender meu carro, um Fiat Uno Mille 1994. O interessante não foi o resultado, mas o meio: o processo de negociação.
Pus anúncio nos jornais locais e logo recebi telefonemas interessados. O Fiat Uno Mille é conhecido no Brasil por ser um carro confiável, econômico e prático. Algumas pessoas foram dar uma olhada, inclusive o Sr. Oswaldo, que, depois de uma rápida inspeção, confessou que não entendia nada de automóveis, mas que voltaria no dia seguinte com um amigo especialista. No Brasil, todo mundo é especialista ou tem um amigo ou parente que é.
No dia seguinte, o Sr. Oswaldo surgiu com o especialista, que testou as marchas, bateu nos pneus e anunciou que meu carro valia R$ 5.800,00. Eu, como boa estrangeira que sou, havia escrito no anúncio R$ 6.500,00 porque eu queria R$ 6.500,00.
Obviamente eu não sou uma negociadora brilhante e já estava a ponto de dispensar os homens quando meu marido chegou em casa. Meu marido é um brasileiro autêntico, em todos os sentidos da palavra: dinâmico, expansivo, sociável. E sabe entrar no jogo.
Chegou animado, apertou a mão dos homens e desatou a falar com eles sobre o dia estressante que tivera. Fiquei um pouco irritada, porque não queria conversar com eles. Se não estavam dispostos a pagar meu preço, para que?
A partir do relato de meu marido sobre o dia de trabalho, os dois homens descobriram que ele era dentista.
“Ah! Meu primo é dentista. Você conhece Fulano de Tal?”
“Claro!”, exclamou meu marido. “Ele era da turma um ano abaixo da minha na faculdade! Ótimo sujeito, o Fulano. Por onde ele anda?”
Meia hora depois, após saber o paradeiro, a situação familiar e até que tipo de carro o Fulano dirigia, eu já batia o pé no chão e me perguntava por que meu marido perdia seu tempo. De repente, ele solta:
“Então, Oswaldo, por que você não paga R$ 6.400,00 e leva o carro?”
“O carro precisa de muitos reparos. Dou R$ 6.000,00.”
“Que tal R$ 6.200,00?”
Olhei para meu marido, incrédula. Ele estava baixando demais o preço. Os homens devem ter notado minha surpresa, porque riram e disseram:
“Dona Loretta não quer fechar negócio. Tudo bem. Pensem na oferta e me telefonem.”
“Ah, deixe de ser pão-duro!”, brincou meu marido. “O que me diz de R$ 6.200,00?”
“Não, sinto muito, minha oferta é de R$ 6.000,00.”

Durante todo esse tempo de brincadeiras, eu observava a postura e a posição dos homens. Havíamos começado os quatro num pequeno círculo, com meu marido se movimentando, ansioso. Os outros dois davam passinhos para a esquerda. No fim da conversa, nosso círculo havia girado 180 graus. Se eu não tivesse acompanhado a rotação, teria acabado de costas pra o Círculo de Negociação!
“Pague R$ 6.100,00. São só cem a mais”, sugeriu o especialista.
Mais interjeições e hesitações. Mais falatório sobre o Fulano de Tal. Por fim, o Sr. Oswaldo concordou em depositar R$ 6.100,00 na minha conta no dia seguinte e voltar na segunda-feira para pegar o carro, com o recibo do depósito. O negócio estava fechado, resolvido nos últimos cinco minutos de uma conversa de uma hora sobre nada!

Fiquei aliviada por vender o carro e perplexa com o misterioso labirinto do processo de negociação brasileiro. Segundo Gilberto Freyre, um dos mais famosos sociólogos do país, uma das características chave do povo brasileiro é o “personalismo”. O termo se refere à sociedade baseada nas relações pessoais e à ênfase na sensação de proximidade e afeto nas relações interpessoais. Isso explica por que o processo de negociação do carro começou com a alusão a um conhecido comum.
É de praxe que, quando os brasileiros se conhecem, tentem estabelecer algum tipo de terreno comum: parentes ou amigos de amigos. Em outras palavras, se alguém que eu conheço conhece alguém que você conhece, você deve ser digno de confiança e, se não for, pelo menos sei a quem reclamar, e essa pessoa vai ficar constrangida pela sua quebra de confiança. Mas eu, uma canadense, aprendi que todos deveriam ser tratados de igual maneira, independentemente de quem conhecem.
A experiência partilhada pode criar algumas regras implícitas de comunicação verbal e comportamental. Então “leia nas entrelinhas”, jogue direito e evite perder oportunidades, como eu quase perdi!

A canadense Loretta Murphy chegou ao Brasil (em Nova Friburgo, RJ) como aluna de intercâmbio do Rotary, em 1987. Viajou bastante pelo país e desde 1997 mora em Salvador, Bahia. Há pouco tempo concluiu a monografia intitulada “Diferenças culturais entre organizações brasileiras e canadenses”, no qual este artigo se baseia.

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