sexta-feira, junho 8

O dentista das estradas

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autora : Michelle Guimarães

Na estrada há dois dias, o caminhoneiro Sandro Lotte, 34 anos, entra no Posto Pé da Serra, a dois quilômetros de Vitória da Conquista (BA). Às 8h45 daquela manhã de 28 de agosto de 2003, o sol já está quente. Depois de estacionar seu caminhão azul na sombra, ele desce para tomar um banho.
Quando volta do vestiário, vê um homem vestido de branco sentado numa cadeira ao lado de um caminhão preto.
“Quem é aquele ali?”, pergunta ao rapaz que trabalha no posto.
“É um dentista. Está atendendo aqui de graça. Se quiser, eu o apresento a ale.”
Com um sorriso, Cássio de Melo, 44 anos, aperta a mão de Sandro e o convida a entrar no consultório. Depois de subir a escada que leva à carroceria fechada do caminhão, ele se acomoda na cadeira inclinada. É bonito por dentro. Tudo branquinho, limpinho, observa Sandro. Seu corpo todo treme de medo. É a primeira vez que entra em um consultório de dentista. Cássio lhe estende uma revista para que se distraia enquanto ele se prepara para seu atendimento de número 9.787 a caminhoneiros.
O dentista começou seu trabalho voluntário em 1986, quando dedicava pelo menos uma manhã por semana ao atendimento em favelas de São Paulo, onde mora. “Vi que as pessoas ali não tinham informação sobre nada de saúde e que os serviços de odontologia a que tinham acesso eram mutiladores”, conta ele.
Em 1995, prestando assessoria à Secretaria de Saúde de São Paulo, ele começou a viajar para municípios do interior do Brasil. “Se a situação em São Paulo era precária, no interior, então, nem se fala”, conta ele. Segundo estimativas do IBGE, 18% da população brasileira nunca foi ao dentista. Entre a população rural, esse percentual sobe para 32%. Constatada essa realidade, Cássio começou a estudar uma forma de levar seu serviço a diversos cantos do país e a procurar empresas que pudessem dar apoio.
Em 1999, uma empresa de planos odontológicos lhe cedeu uma van equipada com um consultório onde o dentista passou a viajar oferecendo tratamento gratuito de prevenção.
Em suas viagens, sempre que chegava a postos de gasolina e via motoristas de caminhão conversando em rodas, Cássio se apresentava e ficava ouvindo suas histórias. Assim, constatou que os caminhoneiros não tem o hábito de ir ao dentista. Se surge algum problema, eles não podem abandonar a estrada e entrar na cidade mais próxima em busca de um consultório. Bochechos com água de bateria, fluido de freio e diesel – substância altamente cancerígenas – são estratégias contra a dor. “Vi que precisava fazer algo”, conta ele.
Em abril de 2000, uma montadora de caminhões lhe cedeu um veículo com uma unidade móvel odontológica acoplada. Desde então, o dentista já percorreu mais de 120 mil quilômetros em 21 estados do Brasil, atendendo , gratuitamente, mais de 12 mil pessoas, sendo 90% delas caminhoneiros. Em 2004, ele pretende passar 188 dias nas estradas, longe da família e de seu consultório particular em São Paulo.
Em 40 minutos, Cássio termina a revisão de dentes de Sandro e a remoção de placa bacteriana. “Ninguém vai acreditar quando eu disser que fui ao dentista”, diz o motorista.
“A proposta de Cássio é importante, pois as dificuldades dos caminhoneiros para ir a um dentista são muitas”, diz o Dr. Norberto Francisco Lubiana, presidente nacional da Associação Brasileira de Odontologia. “Se cada um de nós der sua parcela de contribuição, podemos transformar a realidade da saúde bucal em nosso país.”

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