sexta-feira, novembro 26

Orly e Virgie

Fonte : Revista Seleções

Edição : abril de 2010

Momento decisivo

Orly e Virgie

Adorei quando os órfãos vieram fazer uma visita. Então meus pais começaram a falar em adotá-los...

A primeira coisa que vi foi o topo da cabeça deles. Estava olhando pela janela do meu quarto, no segundo andar; eles vinham andando na direção da porta da frente da nossa casa em Makati City, nas Filipinas. Faltavam três dias para o Natal de 1996 e eu me sentia mais caridosa do que Madre Teresa. Depois de anos assistindo a programas de televisão sobre órfãos pobres, finalmente receberíamos dois deles em casa.

Virgie tinha 10 anos, era um ano mais nova do que eu. Era bonita e não parecia uma menina pobre. Eu não tinha irmãs e, assim que a vi, decidi que ela seria a irmã que nunca tive. No meu quarto, lhe emprestei bonecas, lhe contei segredos e lhe ensinei passos de balé. Ela assistia aos mesmos programas de TV que eu e se interessou quando falei de coisas que ela não conhecia direito.

O restante da minha família apaixonou-se por Orly. Com 7 anos, era mais bonito e mais fofo. Dormiu na cama dos meus pais junto do meu irmão Carl, de 12 anos, que em geral agia como se também tivesse 7 anos.

Com quatro crianças, houve mais risos e brincadeiras. Os passeios de carro eram apertados e as idas ao supermercado viraram quase uma aventura. Virgie e Orly logo se empolgaram com as roupas e os brinquedos novos e sua alegria com as pequenas coisas nos contagiou.

Só deviam ficar três dias. No dia seguinte ao Natal, deveríamos leva-los de volta ao orfanato. Eu e minha família tentamos acumular o máximo possível de atividade naquele curto período, mas, no fim do dia de Natal, decidimos que não era suficiente. Estávamos nos divertindo demais.

Uma amiga da minha mãe que participava do mesmo programa “divida a sua casa” nos disse que conseguira ampliar o prazo para as crianças que passaram o Natal com ela. A minha mãe telefonou para o orfanato e pediu mais três semanas. E conseguiu!

E aí começaram as conversas sobre a adoção de Orly e Virgie. Os meus pais estavam pensando nisso seriamente. Então percebi que a minha vida poderia mudar para sempre; que a família de quatro pessoas que eu conhecia desde sempre podia deixar de existir.

Comecei a notar que minha mãe abraçava mais Orly do que eu.

Quando meus pais chegavam em casa, primeiro procuravam Orly e depois a mim. E então vieram os presentes, compras que comecei a ver com inveja.

Antes que Orly e Virgie chegassem, eu recebia toda a atenção que queria. Agora, era inegável que estava com ciúmes, e toda a minha infantilidade se revelou.

Imaginei planos complicados para fazer Orly se sentir mal, desde trata-lo com indiferença até repreendê-lo por qualquer coisinha. Contei a Virgie o meu sofrimento e ela disse que também se ressentia do modo como os meus pais pareciam preferir Orly.

Olhando para trás, percebo que ela tentava me agradar, mas fiquei grata por ter uma aliada.

orlY não dava atenção aos meus planos, frustrada, escolhi outra estratégia: o afastamento. Durante os últimos dias da estada deles, eu que era a criança mais hiperativa do mundo, me transformei na mais quieta. Ficava séria quando o restante da família ria. Parei de falar com os meus pais, parei de abraça-los e me afastava quando demonstravam a mínima afeição por Orly. Fiquei satisfeitíssima com a cara de culpa, incerteza e confusão dos meus pais.

A tática havia funcionado. Meus pais pararam de falar em adoção. Ao fim da terceira semana, levamos Orly e Virgie de volta para o orfanato. Orly chorava quando nos despedimos. Eu lhe disse que logo voltaríamos para visitar e até poderíamos ficar com eles para sempre. É claro que era mentira. Não queria vê-los nunca mais.

Quando voltei para casa, senti que tinha a minha vida de volta. Dali a alguns dias, Virgie telefonou, perguntando como estávamos. Senti que queria voltar. Ela pediu o telefone do trabalho da minha mãe e, embora o soubesse de cor, não dei. Houve outros telefonemas naquele mês, que finalmente pararam.

Dez anos depois, minha mãe me contou que Virgie conseguiu o telefone do escritório dela. Eles telefonaram várias vezes, pedindo que ela os adotasse. Ela queria, mas o meu pai teve medo por mim. Se eu não conseguira aguentar algumas semanas com eles, como suportaria uma vida inteira?

Já se passaram 13 anos. Agora Orly deve ter 20 e Virgie, 23. Eu era uma menina imatura de 11 anos, tinha uma desculpa. Mas na noite em que minha mãe me falou dos telefonemas desesperados, a culpa me rasgou por dentro. Até que ponto a minha infantilidade mudou a vida deles?

Se meus pais os tivessem adotado, teriam recebido uma educação melhor, uma vida mais confortável, mais amor? Eu acabaria adorando ter mais dois irmãos? Teria odiado? Eles teriam se transformado em profissionais liberais ou em delinquentes? Salvei minha família de problemas e dores de cabeça ou neguei-lhe uma vida mais rica? Talvez o que aconteceu tivesse de ser assim. Talvez não.

Orly e Virgie desapareceram. Procurei o orfanato, mas parece que não existe mais. Liguei para os centros associados e, quando perguntaram quem eu procurava, só pude lhes dar os nomes Orly e Virgie. Só então me ocorreu que nunca me dera ao trabalho de lhes perguntar o sobrenome.

Minha única esperança de fazer contato com eles é que um dia, andando na rua, um homem tenha a vaga impressão de já ter me visto. Talvez se aproxime e me diga que me conhece de algum lugar. Vou olhar bem nos olhos dele e dizer: “Mas é claro que nos conhecemos. Sou da família que lhe prometeu a salvação mas nunca cumpriu”.

E vou lhe dizer: “Orly, sinto muito. Por favor, me desculpe”.