Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1943
Autora : Mary Medearis
Foi a campanha para drenar Balck Hollow
que levou meu pai ao termo dos seus dias. “Seu doutor”, como lhe chamavam os
seus clientes do interior do Arkansas, sabia perfeitamente que seriam sempre
vãos os esforços que fazia para debelar
a malária, enquanto os pântanos da região fossem autênticos viveiros dos
mosquitos.
O Black Hollow era o resultado do
alastramento das águas de um novo projeto de irrigação. “Seu doutor” não
ignorava que a idéia, por que tanto se batia, de fazer executar as obras de
drenagem, encontraria tenaz oposição na sede do distrito, por parte de um
poderoso grupo político. Mas estava em jogo a saúde da gente, mais ou menos
desamparada, daqueles lugares rústicos, e “seu doutor” se esquecia de si mesmo,
para entrar em cheio na luta.
Durante o verão e o outono, que acabavam
de passar, arrancara à sua clínica todos os minutos disponíveis, para
emprega-los na ação, em que se revelava infatigável. Escrevera artigos,
censurando severamente as autoridades sanitárias por fazerem manobras políticas
em torno de um assunto como aquele. Fizera desenhos a um tempo cômicos e
impressionantes, de Black Hollow, com seus perigosos mosquitos, e os fazia
estampar nos jornais. Entrava pela noite em conferências e reuniões sobre o
caso; delas saía, não raro, para ficar até o amanhecer numa choupana, no campo,
a cabeceira de uma parturiente.
Em novembro, precisamente na tarde em que
o projeto em questão deveria ser posto a votos no senado estadual, Papai, ao
chegar em casa para o jantar, não podia ocultar o seu cansaço, e tinha os olhos
vermelhos pelas noites de vigília. Meses que passara a pelejar, a um tempo com
a malária e com os políticos, tinham-no visivelmente extenuado, que o esforço
fora demais na sua idade.
Como, entretanto, Mamãe se mostrasse
preocupada, ele começou a sorrir: - Ponha a comida, Myrtle. Você verá que eu
serei outro com o estômago forrado.
- Diga-me primeiro alguma coisa sobre o
resultado da votação, - pediu-lhe Mamãe, ansiosa, é bem de ver, porque o marido
alcançasse o merecido êxito.
- Não posso lhe dizer por enquanto: mas
logo que se saiba o resultado, me telefonarão.
E dizendo isto, Papai puxou e pos sobre os
joelhos, as pequeninas Ruth e Melie Kate.
-
Venham; vamos agora ajudar sua irmã a por a mesa, cantando uma coisinha para ela.
Venham; vamos agora ajudar sua irmã a por a mesa, cantando uma coisinha para ela.
Bateu os pés no chão, como marcando
compasso, e entraram os três alegremente a entoar uma inocente cantiga, enquanto
eu ia fazendo o meu serviço.
O
papagaio estava calado no seu canto
Ele bem sabe o que faz
Eu peguei numa espingarda, e
atirei nele
Ele chegou, e disse: ó moço,
me deixe em paz
Já estávamos a jantar, quando chegou o meu
irmão Roberto. Numa casa de médico da roça, o dinheiro é sempre escasso; de
maneira que Roberto, findas as aulas na escola, trabalhava numa loja, a fim de
ganhar o necessário para, em tempo, matricular-se no curso pré-médico, sua
grande aspiração.
Papai perguntou-lhe:
- Você está livre hoje?
- Sim – respondeu Roberto – Frank (assim
se chamava o patrão dele) disse que eu hoje podia vir para casa, e festejar com
você a vitória, caso o senado aprove o projeto.
- Bem. Você e sua irmã fiquem atentos ao
telefone. Eu vou ver se dou um jeito na febre do Sam Talbor. Quando voltar, nós
veremos se é vinho ou fel que temos de beber.
- Papai, fique em casa, ao menos esta
noite. Você já está tão cansado!
Ele teve um sorriso tranqüilizador, e, terminando
o jantar, observou:
- Como é que eu vou deixar de ir ver um
homem que está com febre de 40 graus?
- Mas a noite está fria, - interveio Mamãe. – E você nem imagina como
se está vendo no seu rosto a sua imensa fadiga.
- Sim. Mas Talbor precisa de mim, -
respondeu Papai firmemente. – Conservem o lume bem vivo. Lá pelas nove horas eu
estou de volta, sentado diante da chaminé.
Estendendo a mão, apanhou um pedaço de pão
de milho. Notei que fechava os olhos involuntariamente, de cansaço. Mas
procurava alegrar-nos.
- Nunca comi bolo melhor que este pão!
Ninguém faz isto como sua mãe, meninos!
Depois que o vimos sair pela porta da
frente, o capote desabotoado agitando-se ao sopro do vento, Roberto e eu
ficamos na sala de visitas, a ver no jornal da terra, que estava sobre a mesa,
um dos últimos desenhos de Papai: representava o Black Hollow, com os seus
charcos, mosquitos enormes pousados em ervas mortas, e larvas nadando
alegremente entre limos e lodo. Melie Kate e Ruth estavam na cozinha com Mamãe,
lavando os pratos.
Muitos minutos não eram passados, Roberto
me perguntou:
- Você ouviu o carro partir?
- Não.
- Pode ser que não tenha podido arrancar,
- disse ele. – Esta muito frio lá fora. Frio de gelo.
Chegou à janela, olhou para o pequeno
terreno em frente da casa, banhado então de luar, e em seguida encaminhou-se
para a porta, dizendo:
- Eu volto já.
Veio-me da cozinha um som alegre de bater
de pratos, e o crepitar das chamas na lareira espalhava no ambiente uma nota de
conforto. Entretanto, senti em torno a mim alguma coisa, um frio que me fazia
tremer.
Senão quando Roberto abriu a porta:
- Venha depressa ajudar-me, foi-me dizendo
aflito: - Papai teve um ataque do coração.
À luz da lua, vi Papai curvado, sentado no
estribo do auto, com as magras mãos sobre o peito.
- Dr. White! – murmurou, ofegante.
- Chamem o Dr. White...Coronária...
Roberto respondeu-lhe, calmo:
- Vamos primeiro levar você para dentro, e
irei chamar imediatamente o doutor.
Segurou Papai de um lado, e me pediu para
que o segurasse do outro. Naquele breve trajeto, Papai, um dado momento, olhou
para mim, e eu vi nos seus olhos a morte.
Da cozinha, ouvia-se ainda o barulho dos
pratos. Mamãe nada tinha visto.
Melie Kate e Ruth estavam rindo e
conversando.
- Digam a Myrtle, pode ainda Papai
articular – Não assustem as meninas.
Súbito, sentimos que seus braços, com que
se apoiava em nós, de um lado e de outro, num derradeiro abraço, se tornaram
inanimados.
Era um mundo que desabava. A campainha do
telefone soou naquele mesmo instante: o senado acabava de aprovar o projeto
sobre a drenagem de Black Hollow....
Na manhã seguinte, bem cedinho, começaram
a chegar carros do campo. Mal vinha o dia raiando, ouvi, em baixo da minha
janela, vozes rudes e passos de animais. Desci a ver o que era.
Encontrei à porta duas mulheres.
- Eu sou a mulher de Hank Jarvis, disse à
Mamãe uma delas. – Quem deu a notícia a Hank, foi o dr. White. Berta e eu
imaginamos que a senhora devia precisar de alguém que ajudasse na cozinha...
-É bondade da parte de vocês, agradeceu
Mamãe.
- Nós trouxemos pão, explicou Berta. –
Ovos também.
Todo aquele santo dia foram chegando carros
e mais carros, alguns de 50
quilômetros e mais, o que significava, naqueles pobres
veículos, umas quatro horas de viagem.
Um velho entregou a Mamãe uma folha de
papel. Elas nos leu, em voz alta, parte do que na mesma estava escrito:
Estávamos devendo dinheiro a “seu doutor”,
por serviços médicos, e pedimos para pagar por esta forma:
Eskar Toler: Um alqueire de
batata em cada mês, Dezembro, Março, Junho.
John Whisler: Seis dólares
devidos por pneumonia. Manteiga e queijo à ida para o mercado.
Jake Granther: Cebolas,
metade de um porco. Dinheiro quando o algodão principiar a dar.
Mamãe olhou para nós, e eu percebi o que
ela estava pensando. Aquelas provas de lealdade e afeição, que dava a gente do
campo, eram profundamente consoladoras.
Uma moça, com olhos de matrona,
apresentou-me nos braços um bebê gorduchinho: “O nome dela é Mary Kate Ruth.”
Mary, Kate e Ruth eram exatamente os
nossos nomes, meu e de minhas irmãs – as três filhas de “seu doutor”. Ele havia
acolhido em sua casa aquela jovem mãe, cujo estado já lhe não dava tempo de
chegar ao hospital. Lembro-me ainda. Era noite. Eu ajudei a preparar a mesa na
sala de visitas, onde ela devia deitar-se, e Mamãe lhe seriu de enfermeira.
“Esta mulher não gritou uma só vez.” Papai me disse depois. “Olhava para sua
mãe, e dizia: - Não se incomode, minha senhora. Eu não acordarei seus filhos! –
Quando as dores eram fortes, os ossos das mãos quase lhe rompiam a pele, de
tanto agarrar-se à mesa, mas não deu sequer um gemido.” A mesa ainda guarda os
sinais das unhadas que a pobre lhe aplicou, na sua luta para suportar
silenciosamente o sofrimento.
Fui para a sala. Em torno da lareira
estavam homens da roça. Quase todos fumando cachimbo. “Vê este dedo?” disse um
deles. “Eu não tinha mais ele aí, se não fosse o “seu doutor”. E contou, na sua
linguagem, o que lhe tinha acontecido com o dedo.
Jake Granther tinha um dos pés guarnecido
por um aparelho. “Seu doutor” ia tirando da minha perna o raio da bala, e me ensinado
uma trova,” disse Jake, e prosseguiu pensativamente, depois de ter dado uma
cusparada no fogo: “Homem bem educado, tinha de ser como aquele! A trova falava
assim:
O fumo é coisa ruim. E eu
gosto dele. Ele faz a gente ficar magro, ele estraga a saúde da gente, uma boa
desgraça é o que ele é. E eu gosto dele...”
Enquanto escutava aqueles homens simples,
subia do meu coração um canto alviçareiro, porque não era um canto de tristeza,
senão um canto de amor. Amor por aquela boa criatura que tinha sido meu pai9.
amor por aquelas terras de sertão, a que ele consagrara sua vida. Amor pelas
unhadas que deixaram o seu traço na mesa: pelo pão e pelos ovos que vieram, a
cavalo, de tão longe, e Mamãe guardara na cozinha.
Que importava que meu pai não houvesse
deixado dinheiro, para que eu estudasse música no Conservatório, ou Roberto
viesse a fazer seu curso de medicina? Iríamos de qualquer modo, para a frente.
O legado, que dele recebíamos, era a mais preciosa das heranças: a
independência, a integridade, e a afeição e a confiança da gente sã e sincera
do campo, que nele tivera um servidor dedicado.