segunda-feira, abril 30

O que "seu doutor" nos legou


Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1943
Autora : Mary Medearis

     Foi a campanha para drenar Balck Hollow que levou meu pai ao termo dos seus dias. “Seu doutor”, como lhe chamavam os seus clientes do interior do Arkansas, sabia perfeitamente que seriam sempre vãos  os esforços que fazia para debelar a malária, enquanto os pântanos da região fossem autênticos viveiros dos mosquitos.
     O Black Hollow era o resultado do alastramento das águas de um novo projeto de irrigação. “Seu doutor” não ignorava que a idéia, por que tanto se batia, de fazer executar as obras de drenagem, encontraria tenaz oposição na sede do distrito, por parte de um poderoso grupo político. Mas estava em jogo a saúde da gente, mais ou menos desamparada, daqueles lugares rústicos, e “seu doutor” se esquecia de si mesmo, para entrar em cheio na luta.
     Durante o verão e o outono, que acabavam de passar, arrancara à sua clínica todos os minutos disponíveis, para emprega-los na ação, em que se revelava infatigável. Escrevera artigos, censurando severamente as autoridades sanitárias por fazerem manobras políticas em torno de um assunto como aquele. Fizera desenhos a um tempo cômicos e impressionantes, de Black Hollow, com seus perigosos mosquitos, e os fazia estampar nos jornais. Entrava pela noite em conferências e reuniões sobre o caso; delas saía, não raro, para ficar até o amanhecer numa choupana, no campo, a cabeceira de uma parturiente.
     Em novembro, precisamente na tarde em que o projeto em questão deveria ser posto a votos no senado estadual, Papai, ao chegar em casa para o jantar, não podia ocultar o seu cansaço, e tinha os olhos vermelhos pelas noites de vigília. Meses que passara a pelejar, a um tempo com a malária e com os políticos, tinham-no visivelmente extenuado, que o esforço fora demais na sua idade.
     Como, entretanto, Mamãe se mostrasse preocupada, ele começou a sorrir: - Ponha a comida, Myrtle. Você verá que eu serei outro com o estômago forrado.
     - Diga-me primeiro alguma coisa sobre o resultado da votação, - pediu-lhe Mamãe, ansiosa, é bem de ver, porque o marido alcançasse o merecido êxito.
     - Não posso lhe dizer por enquanto: mas logo que se saiba o resultado, me telefonarão.
     E dizendo isto, Papai puxou e pos sobre os joelhos, as pequeninas Ruth e Melie Kate.
     -
Venham; vamos agora ajudar sua irmã a por a mesa, cantando uma coisinha para ela.
     Bateu os pés no chão, como marcando compasso, e entraram os três alegremente a entoar uma inocente cantiga, enquanto eu ia fazendo o meu serviço.

     O papagaio estava calado no seu canto
     Ele bem sabe o que faz
     Eu peguei numa espingarda, e atirei nele
     Ele chegou, e disse: ó moço, me deixe em paz

     Já estávamos a jantar, quando chegou o meu irmão Roberto. Numa casa de médico da roça, o dinheiro é sempre escasso; de maneira que Roberto, findas as aulas na escola, trabalhava numa loja, a fim de ganhar o necessário para, em tempo, matricular-se no curso pré-médico, sua grande aspiração.
     Papai perguntou-lhe:
     - Você está livre hoje?
     - Sim – respondeu Roberto – Frank (assim se chamava o patrão dele) disse que eu hoje podia vir para casa, e festejar com você a vitória, caso o senado aprove o projeto.
     - Bem. Você e sua irmã fiquem atentos ao telefone. Eu vou ver se dou um jeito na febre do Sam Talbor. Quando voltar, nós veremos se é vinho ou fel que temos de beber.
     - Papai, fique em casa, ao menos esta noite. Você já está tão cansado!
     Ele teve um sorriso tranqüilizador, e, terminando o jantar, observou:
     - Como é que eu vou deixar de ir ver um homem que está com febre de 40 graus?
     - Mas a noite está fria,  - interveio Mamãe. – E você nem imagina como se está vendo no seu rosto a sua imensa fadiga.
     - Sim. Mas Talbor precisa de mim, - respondeu Papai firmemente. – Conservem o lume bem vivo. Lá pelas nove horas eu estou de volta, sentado diante da chaminé.
     Estendendo a mão, apanhou um pedaço de pão de milho. Notei que fechava os olhos involuntariamente, de cansaço. Mas procurava alegrar-nos.
     - Nunca comi bolo melhor que este pão! Ninguém faz isto como sua mãe, meninos!
     Depois que o vimos sair pela porta da frente, o capote desabotoado agitando-se ao sopro do vento, Roberto e eu ficamos na sala de visitas, a ver no jornal da terra, que estava sobre a mesa, um dos últimos desenhos de Papai: representava o Black Hollow, com os seus charcos, mosquitos enormes pousados em ervas mortas, e larvas nadando alegremente entre limos e lodo. Melie Kate e Ruth estavam na cozinha com Mamãe, lavando os pratos.
     Muitos minutos não eram passados, Roberto me perguntou:
     - Você ouviu o carro partir?
     - Não.
     - Pode ser que não tenha podido arrancar, - disse ele. – Esta muito frio lá fora. Frio de gelo.
     Chegou à janela, olhou para o pequeno terreno em frente da casa, banhado então de luar, e em seguida encaminhou-se para a porta, dizendo:
     - Eu volto já.
     Veio-me da cozinha um som alegre de bater de pratos, e o crepitar das chamas na lareira espalhava no ambiente uma nota de conforto. Entretanto, senti em torno a mim alguma coisa, um frio que me fazia tremer.
     Senão quando Roberto abriu a porta:
     - Venha depressa ajudar-me, foi-me dizendo aflito: - Papai teve um ataque do coração.
     À luz da lua, vi Papai curvado, sentado no estribo do auto, com as magras mãos sobre o peito.
     - Dr. White! – murmurou, ofegante.
     - Chamem o Dr. White...Coronária...
     Roberto respondeu-lhe, calmo:
     - Vamos primeiro levar você para dentro, e irei chamar imediatamente o doutor.
     Segurou Papai de um lado, e me pediu para que o segurasse do outro. Naquele breve trajeto, Papai, um dado momento, olhou para mim, e eu vi nos seus olhos a morte.
     Da cozinha, ouvia-se ainda o barulho dos pratos. Mamãe nada tinha visto.
     Melie Kate e Ruth estavam rindo e conversando.
     - Digam a Myrtle, pode ainda Papai articular – Não assustem as meninas.
     Súbito, sentimos que seus braços, com que se apoiava em nós, de um lado e de outro, num derradeiro abraço, se tornaram inanimados.
     Era um mundo que desabava. A campainha do telefone soou naquele mesmo instante: o senado acabava de aprovar o projeto sobre a drenagem de Black Hollow....
     Na manhã seguinte, bem cedinho, começaram a chegar carros do campo. Mal vinha o dia raiando, ouvi, em baixo da minha janela, vozes rudes e passos de animais. Desci a ver o que era.
     Encontrei à porta duas mulheres.
     - Eu sou a mulher de Hank Jarvis, disse à Mamãe uma delas. – Quem deu a notícia a Hank, foi o dr. White. Berta e eu imaginamos que a senhora devia precisar de alguém que ajudasse na cozinha...
     -É bondade da parte de vocês, agradeceu Mamãe.
     - Nós trouxemos pão, explicou Berta. – Ovos também.
     Todo aquele santo dia foram chegando carros e mais carros, alguns de 50 quilômetros e mais, o que significava, naqueles pobres veículos, umas quatro horas de viagem.
     Um velho entregou a Mamãe uma folha de papel. Elas nos leu, em voz alta, parte do que na mesma estava escrito:
   
     Estávamos devendo dinheiro a “seu doutor”, por serviços médicos, e pedimos para pagar por esta forma:

     Eskar Toler: Um alqueire de batata em cada mês, Dezembro, Março, Junho.
     John Whisler: Seis dólares devidos por pneumonia. Manteiga e queijo à ida para o mercado.
     Jake Granther: Cebolas, metade de um porco. Dinheiro quando o algodão principiar a dar.
   
     Mamãe olhou para nós, e eu percebi o que ela estava pensando. Aquelas provas de lealdade e afeição, que dava a gente do campo, eram profundamente consoladoras.
     Uma moça, com olhos de matrona, apresentou-me nos braços um bebê gorduchinho: “O nome dela é Mary Kate Ruth.”
     Mary, Kate e Ruth eram exatamente os nossos nomes, meu e de minhas irmãs – as três filhas de “seu doutor”. Ele havia acolhido em sua casa aquela jovem mãe, cujo estado já lhe não dava tempo de chegar ao hospital. Lembro-me ainda. Era noite. Eu ajudei a preparar a mesa na sala de visitas, onde ela devia deitar-se, e Mamãe lhe seriu de enfermeira. “Esta mulher não gritou uma só vez.” Papai me disse depois. “Olhava para sua mãe, e dizia: - Não se incomode, minha senhora. Eu não acordarei seus filhos! – Quando as dores eram fortes, os ossos das mãos quase lhe rompiam a pele, de tanto agarrar-se à mesa, mas não deu sequer um gemido.” A mesa ainda guarda os sinais das unhadas que a pobre lhe aplicou, na sua luta para suportar silenciosamente o sofrimento.
     Fui para a sala. Em torno da lareira estavam homens da roça. Quase todos fumando cachimbo. “Vê este dedo?” disse um deles. “Eu não tinha mais ele aí, se não fosse o “seu doutor”. E contou, na sua linguagem, o que lhe tinha acontecido com o dedo.
     Jake Granther tinha um dos pés guarnecido por um aparelho. “Seu doutor” ia tirando da minha perna o raio da bala, e me ensinado uma trova,” disse Jake, e prosseguiu pensativamente, depois de ter dado uma cusparada no fogo: “Homem bem educado, tinha de ser como aquele! A trova falava assim:

     O fumo é coisa ruim. E eu gosto dele. Ele faz a gente ficar magro, ele estraga a saúde da gente, uma boa desgraça é o que ele é. E eu gosto dele...”
     Enquanto escutava aqueles homens simples, subia do meu coração um canto alviçareiro, porque não era um canto de tristeza, senão um canto de amor. Amor por aquela boa criatura que tinha sido meu pai9. amor por aquelas terras de sertão, a que ele consagrara sua vida. Amor pelas unhadas que deixaram o seu traço na mesa: pelo pão e pelos ovos que vieram, a cavalo, de tão longe, e Mamãe guardara na cozinha.
     Que importava que meu pai não houvesse deixado dinheiro, para que eu estudasse música no Conservatório, ou Roberto viesse a fazer seu curso de medicina? Iríamos de qualquer modo, para a frente. O legado, que dele recebíamos, era a mais preciosa das heranças: a independência, a integridade, e a afeição e a confiança da gente sã e sincera do campo, que nele tivera um servidor dedicado.
       

  
  
  
  

sexta-feira, abril 27

Meu filho nasceu no bosque


Fonte : Revista Seleções
Data : março de 1943
Autora : Louise Didckinson Rich

A resposta de uma esposa à pergunta: “Serão os maridos necessários?”

     Há sete anos passados, Louise Dickinson, em férias, percorria com um grupo de amigos, a floresta do Maine. No extremo norte deste estado, na deserta região onde se encontram os Lagos Rangeley, o grupo de excursionistas deparou  com uma casa erguida às margens do Rio Rapid, a milhas de distância da mais próxima aldeia. O proprietário da vivenda, Ralpha Rich, um rapaz de Chicago, que decidira vir morar sozinho no seio da floresta, convidou-os a jantar, ali, com ele. Deste encontro de acaso nasceu-lhe por Louise uma afeição que o levaria ao matrimônio. Agora, o casal Rich, na tranqüila vivenda da floresta, divide a sua solidão com dois filhinhos, um cachorro e um gato.  O seguinte excerto de um livro da senhora Rich, descreve uma das mais inesquecíveis experiências da vida da autora na solitária morada da floresta.

     Há certas desvantagens em morar longe do mundo; tais desvantagens, porem, são amplamente compensadas. A vida de casado, para quem suporte a solidão dos lugares retirados, terá neles muito maiores probabilidades de êxito. Se, por exemplo, um rapaz bem vestido, bem tratado, e satisfeito consigo mesmo, me declarasse: “Preciso de você,”, eu dificilmente acreditaria na sua sinceridade. É agradável, não há dúvida, ouvir palavras que tais, mas, geralmente, elas pouco acrescentam. Quando Ralph, porem, me chega em casa, com o sangue a gotejar de um profundo ferimento no braço, e berrando a pelos pulmões: “Venha depressa! Que diabo – não está vendo que preciso de você?!” – é decerto sincero no que diz. Precisa de mim, e sem demora. Sou-lhe, então, necessária, e, por motivos análogos, ele mo é também a cada passo.
     Decidíramos já que, ao ter eu de dar à luz, seria internada no hospital da cidade; mas Rubem, o bebê  era esperado para depois do primeiro de janeiro. Enquanto não chegava aquela época, fui mantendo o meu programa habitual de ocupações. Aconteceu que, num dia lindo como tivemos a 17 de dezembro, essas “ocupações” consistiram em patinar no lago, então gelado. Dia claro, luminoso; um manto de neve fresca recobrira a terra – azulada, na sombra, e com tons fulvos, ao sol, e róseos ou purpúreos no cimo das colinas mais distantes. Por sobre o lago, o vento espalhava a neve em camadas esparsas, cuja alvura melhor se destacava de encontro ao reflexo azul anil do céu no gelo polido e límpido. Cookie, o nosso cão, acompanhava-nos de perto, a correr e a latir, caindo e levantando-se de novo. Todos nós, aliás, caímos pelo menos doze vezes, o que talvez haja contribuído para o nascimento prematuro de Rubem.
     Acordei em meio à noite de 18 de dezembro, com fortes pontadas no estômago. Mas o que eu tomava por dores de estômago eram já as dores do parto.
     Não esquecerei jamais aquela noite. Ralph tampouco, se não me engano. Meu marido, com outros homens do seu tipo, ao ser informado de que a mulher de um amigo está grávida de oito meses, atravessa a rua, ao vê-la, cumprimentando-a cautelosamente, de uma distância respeitável. Evita, assim, o risco de ter que transporta-la às pressas num táxi para o hospital mais próximo. Todavia, na noite em que Rubem nasceu, faltou-lhe tempo para imaginar o que viria a suceder dentro do táxi. Obrigado a enfrentar sozinho uma situação daquelas, não pôde pensar em mais nada. Apesar do frio que fazia, Ralph suava em bicas. Como que ainda o vejo, com um gorro de lã a descer-lhe sobre as orelhas, a gola levantada até o queixo, as luvas nas mãos, a ler, nervosamente, sob a luz da lanterna, um pequenino livro intitulado “Se o bebê chegar antes do médico”. Ele sabia que o médico não podia chegar à nossa casa antes de umas dez horas.
     Não pretendo dar a impressão de que me conservei calma: seria faltar com à verdade. Ralph, porem, alarmou-se dez vezes mais do que eu. Ao vê-lo assim, pela primeira vez, amedrontado e aflito, senti não sei que estranho reconforto. Aquilo encheu-me de confiança e coragem.
     “É preciso esquentar um bocado de água”, sugeri. Eu própria nem sabia para que, mas lembrava-me de que, segundos os livros, em momentos que tais, se toma sempre aquela providência.
     Ralph saiu do quarto como um raio, e pude ouvi-lo a diligenciar na cozinha, de onde escapavam misteriosos ruídos. Algum tempo depois, ei-lo de volta. Era preciso, disse-me, um cobertor, que ele iria aquecer sobre o fogão, forrando com o mesmo uma cesta de roupa. “Há que por o bebê nalgum lugar,” explicou-me em seguida. Fiquei tranqüila a seu respeito, pois era evidente que ele recuperara a calma. Consegui dizer-lhe, entre dois gemidos, onde estava o cobertor, e Ralph desapareceu de novo. Ao voltar cinco minutos depois, já era pai.
     Os pais, em geral, não tem, para com seus rebentos, responsabilidades imediatas. As de Ralph entretanto, foram imediatas e prementes. Teve por exemplo, desde logo, que cortar e amarrar o cordão umbilical.
     - E (perguntei-lhe) não se dá banho aos bebês recém-nascidos?
     - Não – respondeu-me firmemente, - Há que unta-los com óleo.
     Não sei dizer de onde lhe veio semelhante noção, mas o fato é que tinha razão. Enrolou o recém-nascido numa toalha de banho, e lá se foi com ele, enquanto eu, deitada, me deixava invadir por mil preocupações. Ralph nada sabia, certamente, a respeito de untar recém-nascidos e de amarrar cordões umbilicais... Nosso bebê, alem do mais, berrava, sem vigor ainda, porem visivelmente indignado. Que estaria a sofrer às mãos do pai? Mas dentro em pouco, ei-lo de volta.
     - Untou bem o bebê? – perguntei-lhe aflita.
     Mostrou-se ofendido: - Claro que sim. Depois de todos os êmbolos que já lubrifiquei na vida....
     -Êmbolos?! Você “lubrificou” o bebê com óleo de motor?!
      - Não. Naturalmente, com azeite.
     - Mas nós não temos nenhum azeite!
     - Eu tinha uma lata guardada. É com isso que preparo inseticidas. E o bebê vai muito bem, acrescentou. – Está lá, todo inteirinho: unhas, dedos, cabelo – não falta nada. Examinei tudo com muito cuidado, e que feio, meu Deus!
     Ao dizer isto, observou, lançando os ombros para trás: - Sempre tive horror aos homens bonitos. Este aqui tem um punho de ferro, e Cookie tomou-se de amores por ele. Tudo irá, portanto, às mil maravilhas. Mas, afinal de contas... que quer você que eu faça de toda aquela água quente? 
     -Ah! É verdade... a água quente! Faça.... que tal se me fizesse um pouco de café?
     De repente, senti-me faminta:
     - E traga-me um sanduíche também, um sanduíche de presunto, com bastante mostarda.
     À manhã seguinte, uma vizinha nossa de Middle Dam, Alice Miller, veio ver-me. Ouvi-lhe as gargalhadas quando vinha subindo a escada.
     - Sabe como Ralph amarrou o umbigo do pequeno? Com uma corda, minha cara! Coitado do garoto! O nó é maior do que ele...
     Leio às vezes nas revistas comentários como estes:
     “Sabe o leitor que em tal percentagem de casas, na América, não há água corrente? Que em tal percentagem não há quartos de banho? Que tal percentagem de crianças nasceram sem assistência médica?
     Estas espantosas estatísticas mostram bem como é numeroso o exército dos desprivilegiados da nação.”
     Ao ler tais coisas, fico surpresa, a refletir por momentos. “Meu Deus”, exclamo, e, logo após, num choque: “Mas é a nós que eles se referem! Somos nós os únicos desprivilegiados da sorte!”
     Mas sê-lo-emos, de fato? Não vou, é claro, recomendar às mães que dêem à luz os seus filhos com a só assistência dos pais. Posso, no entanto, afirmar que Rubem nada perdeu com isso – não por que houvesse sido lambusado de azeita como um êmbolo – mas porque desde aquele momento, o pai teve por ele uma especial predileção. Todos os pais, é claro, afeiçoam-se aos filhos, e sentem-se responsáveis por eles. Mas – sem a menor parcela de sentimentalismo – parece-me evidente que a sensação de responsabilidade despertada pelo nosso Rubem em Ralph, logo após o nascimento, deixou profundos traços. Ralph não é apenas aquele que veste, alimenta, e castiga Rubem. Antes de mais nada, foi quem lhe amarrou o cordão umbilical, e lhe dispensou os primeiros cuidados, quando ninguém, senão ele, poderia faze-lo. E o sentimento que lhe nasceu, desde então, pelo filho, vale por todos os tratamentos e atenções que me teriam sido facultados no hospital.
     Não posso acreditar que os nossos filhos se tornem, para sempre, desgraçados, porque lhe damos banho numa bacia colocada na cozinha, à luz do querosene, ou por terem dormido numa cama, porventura não bem aquecida. Não serão infelizes, toda a vida, por efeito de pequenos inconvenientes que tais. Creio até que, num mundo em que a posse de bens materiais se torna cada vez mais precária, o melhor presente que lhes possamos fazer é o de uma indiferença absoluta pela falta de conforto, o que um desprezo total pela vida mole e macia que o conforto proporciona.
             
  
  
  
  

A tragédia do Baependí


Fonte : Revista Seleções
Data : março de 1943
Autor : Capitão Lauro Reis

“Fomos torpedeados!”

     O capitão Lauro Moutinho dos Reis, oficial de artilharia do Exército Brasileiro, fazia parte da Unidade que viajava no Baependí para o Nerdeste, quando, na noite de 15 de agosto de 1942, foi abruptamente torpedeado na altura da fronteira dentre Bahia e Sergipe, a 20 milhas da costa.
     Testemunha presencial do fato que, ao lado dos outros torpedeamentos da mesma ocasião, suscitou a onda de revolta nacional que levou o Brasil à guerra contra as potências do Eixo, o Capitão Lauro Reis dá-nos aqui um relato bem vivo do dramático episódio.

     Deixamos o porto de Salvador, Bahia, às sete horas da manhã, rumando para o Norte. Do Rio de Janeiro até ali o mar tinha estado calmo. Agora se apresentava picado, espumoso, com fortes marolas, e o velho Baependí arrastava-se, moroso, balançando desagradavelmente.
     O vapor ia repleto – umas trezentas e cinqüenta pessoas, incluindo a tripulação e uma unidade do Exército, cujos componentes – oficiais e soldados -  iam acompanhados de suas famílias, algumas com muitas crianças.
     Como esse dia – 15 de agosto – era o aniversário natalício do comissário de bordo, um excelente homem, o jantar foi festivo, a orquestra tocou animadamente e a alegria reinou a bordo até bastante tarde. Enquanto no salão se dançava, lá fora na popa, os soldados – quase todos cariocas – trepados em canhões e grandes caixas, reunidos em grupos, tocando pandeiros e batendo em latas, cantavam seus sambas à moda do morro...
     Noite fechada, as luzes todas apagadas, navegávamos a umas 20 milhas da costa, quando súbito um tremendo estampido sacode violentamente o velho barco. Quebram-se as vidraças; o madeiramento range, estala, racha, e, arremessados por forças invisíveis, voam estilhaços de vídeo e madeira para todos os lados. Caem as primeiras vítimas, e há diversas pessoas com o rosto sangrando, devido a ferimentos provocados por fragmentos de vidro.
     As máquinas param, o vapor altera o rumo abruptamente, e somos jogados pela inércia, com força, para a frente.
     O primeiro instante deixa todas as pessoas imóveis de espanto, a respiração suspensa, as fisionomias pálidas e angustiadas... Não há gritos, nenhum pânico. Percebe-se em cada um o esforço mental para entender o ocorrido, para buscar uma solução, pressentindo a gravidade do terrível momento...
     Estou no vestíbulo, de onde partem as escadas para o deck superior e para os camarotes de baixo. Tomado de surpresa, tenho imediata intuição do sucedido: fomos torpedeados” Logo a seguir, ouço o apito surdo do navio, pedindo socorro... O Baependí começa a adernar.
     Corro ao meu camarote ali perto, empurro a porta, que felizmente não ficou emperrada, apanho rápido o meu salva-vidas, e saio.
     Há muitas pessoas no vestíbulo; umas, principalmente mulheres e crianças, paradas, como se esperassem que uma providência alheia as salve; outras caminhando febrilmente, na direção em que julgam poder encontrar salvamento. O navio aderna mais e mais; só podemos andar, agora, agarrados à parede.
     Alguns descem com dificuldade as escadas para os camarotes inferiores, em busca de salva-vidas, ou para se reunir às suas famílias; infelizmente, para não voltarem mais... Ficarão na companhia dos que nem sequer conseguiram sair dali.
     Vejo tudo isso de relance, e, ainda enfiando o cinto salva-vidas, subo a escada para o deck de cima, em busca da minha baleeira; agarrado ao corrimão, chocando-me com pessoas que descem, aturdidas, estou quase no alto, quando um segundo torpedo explode, abalando fragorosamente todo o navio. O corrimão, ao qual me agarrava, fica feito em frangalhos, e rolo da escada, de costas, aos trambolhões, até a porta do refeitório, de onde saíra. Entre o primeiro e o segundo torpedo, não decorreram mais de trinta segundos.
     As luzes se apagam; esbarramos uns nos outros, desorientados, no meio de profunda escuridão. O navio aderna brutalmente, já sendo impossível, agora, andar de pé.
     O segundo torpedo foi o tiro de misericórdia. O Baependí agoniza... Percebo que o afundamento vai ser rápido. Esforço-me para sair do interior. Um cheiro sufocante e enjoativo, proveniente da explosão, invade tudo.
     Tateando, com grande esforço consigo agarrar-me à escada, e, de rastos, segurando-me nas saliências, vou subindo devagar.
     Na escuridão, apenas distingo, numa pequena claridade vinda de fora, o contorno de uma porta, ao fim da escada que tento subir. É preciso atingi-la a todo custo, porque senão eu afundarei dentro do navio. Mais um esforço, e consigo chegar.
     O navio, nesse momento, está quase de lado; o que era parede passou a ser chão. Atravesso aquela porta com os movimentos de quem, pela abertura do teto, passa para o forro de uma casa.
     Alcanço a baleeira em frente à porta. Presa aos turcos, num emaranhado de cordas, alguns marinheiros tentam solta-los, procurando desvencilhar cordas, febrilmente.
     Mas é inútil; o Baependí continua a afundar vertiginosamente” As ondas revoltas quase nos atingem, e ouço, bem perto, os gritos pungentes dos que já lutam com elas.
     Compreendo, então, que devo atirar-me imediatamente ao mar, para não ser arrastado pelo turbilhão que faria a massa do navio ao submergir. Mas já é tarde demais porque, estando ele quase horizontal, se eu der um salto, cairei, conforme o lado, sobre o casco ou sobre o convés. Ouço ainda o apito tenebroso do vapor, um apito surdo e contínuo, agonizante, de estertor.
     As águas me envolvem violentamente, jogando-me de encontro a uma parede. Depois... sinto que mergulhamos, arrastados pelo navio.
     Penso, conformado, na morte: deste mergulho não voltarei, certamente!
     Não perco o raciocínio, nem me deixo dominar pelo desespero. Antes me conservo calmo, resignado, enfrentado o desfecho da vida. Continuo a mergulhar, a mergulhar... Quantos metros? Nem sei! Sinto nos ouvidos o barulho forte e característico das bolhas de ar, numa escala cromática extravagante, que vai num crescendo do grave para o agudo, à proporção que me aprofundo nas águas... A falta de ar já me tortura; começo a engolir água...
     Súbito, porem, paro de mergulhar, e percebo que vou voltando. Mas sou, então, violentamente imprensado entre dois volumosos fardos, e tenho a sensação de que vou ficar esmagado. Inexplicavelmente, não sinto nenhuma dor, por felicidade, fico de novo livre, e continuo a voltar, aos trancos, à superfície, recebendo pancadas pelo corpo, agora mais rápido – até que, de repente, dou um salto, saindo-me fora da água o tronco todo, tal o empuxo.
     O navio está completamente submerso. Imagino que não dever ter levado a afundar-se mais de três ou quatro minutos, tornando impossível qualquer providência de salvamento, ou a descida de qualquer das baleeiras.
     O mar, violentíssimo, encapelado, está coberto de destroços, e, não sei como, ainda caem paus de todos os lados, como estilhaços.
     Ouço gritos terríveis, angustiosos, de socorro, e vejo homens, mulheres e crianças se afogando em torno de mim.
     Nado um pouco e me agarro a uns paus que flutuam, e que as fortes ondas me arrancam logo das mãos; imediatamente me seguro noutros, mas também não consigo suste-los, e fico nesse jogo, pulando de uma tábua para outra, durante algum tempo.
     Reparo que há sobre as águas duas luzes avermelhadas, como archotes, a iluminar aquela cena macabra: são bóias de iluminação, que se acendem automaticamente, ao contato com a água.
     O mar limita-me a visão, e só quando me elevo numa onda melhora o meu horizonte. Em dado momento, avisto com surpresa um projetor lançando seu feixe luminoso sobre o local do sinistro: firmo o olhar e diviso, iluminado pelas luzes quem dançam na água, o perfil do submarino assassino, bem próximo de nós, contemplando os resultados da sua bárbara missão! Em seguida, perco-o de vista...
     Estou agora junto de uma grande tábua branca, com aberturas que me parecem janelas: consigo com facilidade deitar-me nela, de bruços, e me sinto mais bem acomodado. Pelos menos descanso um pouco. Mas me agarro com todas as forças, para que as ondas não me arranquem dali.
     Perto de mim, alguém grita em desespero, já quase a perder o fôlego: - “Não posso mais, vou desistir...”
     Animo o companheiro, chamando-o para junto de mim, e isso me dá mais ânimo! Ele se aproxima, e com algum esforço se agarra à minha tábua: vem ofegante, exausto. Trocamos algumas palavras. É um tripulante do Baependí.
     As ondas violentas e o forte vento começam agora a espalhar náufragos e destroços, os gritos dispersos de socorro chegam cada vez de mais longe. Somos também impelidos para longe do local do sinistro, arrastados naquela tábua, em rumo desconhecido.
     Conjugando nossos esforços, examinamos o mar em todas as direções. Nada! Provavelmente nenhuma baleeira pode ser lançada ao mar. Nossa salvação é provisória, sem dúvida.... E ficamos vogando ao sabor de ondas por um tempo difícil de estimar; talvez meia hora, uma hora...
     Ouvem-se agora menos gritos de socorro; a maioria sucumbiu, desesperada!
     Mas repentinamente divisamos uma silhueta que não é de um destroço, passando defronte das bóias de iluminação, já bem longe.... Parece-nos uma baleeira... Dentro, um vulto, de pé... Não resta dúvida, é uma baleeira! Mas está muito distante. Para alcança-la, teríamos que nadar contra o vento e as ondas, e, cansados como estamos, isso não nos parece empresa fácil.
     Começamos então a gritar, com todas as forças dos nossos pulmões. Grito, grito! Lembro-me de gritar meu nome, e o faço diversas vezes. Lembrança talvez salvadora: ouvimos pouco depois, uma resposta que nos pareceu “espera”... Graças a Deus, tinham-nos ouvido, e remam em nossa direção”
     Foi o primeiro alento, a primeira sensação de poder sair com vida daquela pavorosa catástrofe.
     A baleeira se aproxima.... Abandonando a benfazeja tábua, damos umas braçadas, lançam-nos uma bóia presa a uma corda, e somos içados para bordo, onde encontro dois tenentes, dois sargentos e três soldados, da minha unidade. Abraçamo-nos, comovidos, mas poucas palavras trocamos. Pensamos na sorte dos outros camaradas, e não nos conformamos com a idéia de que somos os únicos sobreviventes.
     É talvez esta a única baleeira que escapou ao desastre, arrancada dos turcos pela violência da explosão.
     Recolhidos mais alguns náufragos, somos ao todo vinte e oito. Entre eles, há uma moça que, mal explodiu o torpedo, se lançou resolutamente ao mar, nadando, agarrada a um pequeno destroço, durante mais de uma hora!    
     Mas em que direção ficará a costa? Não podemos orientar-nos com segurança, pois mal se vêem as estrelas, e a escuridão impede-nos de consultar a única bússola, que corria de mão em mão, inutilmente.
    Mas entre os náufragos está, felizmente, o piloto do Baependí. Recobrando as forças, ele resolve com simplicidade o problema de navegação, mandando “remar na direção do vento, pois o mesmo soprava para terra.”
     Somente na baleeira noto que estou ferido. O sangue jorra abundantemente do meu rosto, e, levando a mão à face direita, percebo que sofri uma fratura. Mas não sinto nenhuma dor.
     A pequena embarcação joga como uma casca de noz naquele mar agitado, e de vez em quando uma onda mais forte invade-a; um grande rombo da proa aumenta a nossa inquietação: é preciso baldear continuamente, tal a quantidade de água que entra.
     O vento é cortante, sentimos um frio tremendo, uma sede desoladora, e o enjôo apodera-se da maioria.
     Pouco depois avistamos, não muito longe, um navio iluminado. Ficamos hesitantes; valerá a pena remar na sua direção? Alcançá-lo-emos? Desistimos da idéia, o que foi providencial, pois cerca de uma hora depois, ouvimos o eco de uma tremenda explosão, que nos pareceu um trovão longínquo: o navio que passara por nós – o Araraquara, soubemos depois – foram também torpedeado!
     Navegamos assim, impelidos pelo vento e pelos remos, durante toda a noite – que nos parece interminável. Os rapazes, incansáveis, se revezam nos remos e os outros no balde de água.
     Ao clarear o dia, ainda na penumbra, temos uma explosão de contentamento: a uns dois quilômetros de nós, percebemos a faixa branca de areia de uma praia!
     A praia, desabitada, é formada por vastas dunas de areia, onde os pés se enterram, agravando nosso cansaço. Caminhamos algum tempo, seguindo uma pequena trilha, até avistarmos uma cabana onde apenas encontramos água.
     Felizmente, indicam-nos uma picada que vai ter a uma povoação. Andamos até o meio-dia, ou antes, arrastamo-nos, pois há diversas pessoas feridas, e outras esgotadas. Por sorte encontramos muito côco da Bahia, cuja água saborosa bebemos sofregamente.
     Ao chegarmos à povoação, todas as portas e janelas se batem, violentamente” “Que teria havido?” Consultamo-nos surpresos... Estamos tão embrutecidos, que nos custa a compreender: a nossa nudez quase total ofendeu o pudor da gente da terra! Um parlamentar, que enviamos em trajes mais decentes resolve a situação, e recebemos algumas roupas usadas, que nos permitem improvisar tangas.
     Depois de alimentados, seguimos de canos para Estância, no estado do Sergipe, termo de nossas provações.
     Ali soubemos, mais tarde, terem chegado à praia, numa pequena balsa de madeira, mais oito náufragos do Baependí. Trinta e seis sobreviventes – eis o que restava!
     Quase todos os nossos camaradas tinham sido tragados pelas ondas. E quando um médico, náufrago também, nos relatou o episódio da morte do mais jovem dos nossos companheiro de armas, não pudemos conter as lágrimas.
     Ao atirar-se ao mar, sem salva-vidas, certo do fim que o aguardava, o tenente Assunção lançara em voz vibrante este grito derradeiro de patriotismo:
     “Viva o Brasil!”
            
      
    
  

O cão que soube esperar



Fonte : Revista Seleções
Data : Marco de 1943

     Se gentleman é aquele que ao mesmo tempo sabe ser gentil e muito homem -  então não resta dúvida que o meu mano Jim fazia jus ao epíteto. Não se pense, pois, que o Jim não sabia ser rijo quando fosse preciso: duro ele o era! Mas em se tratando de seres que merecessem gentileza ou bondade, especialmente mulheres, crianças e cachorros – Jim era a verdadeira encarnação da gentileza. É do Jim e do nosso cachorro que lhes quero falar agora.
     Há alguns anos o Jim veio viver na nossa companhia, e Mr. Bones, o cão, tornou-se logo o seu fiel companheiro. Foi o que se chama ver-te e amar-te! O Jim tinha qualquer coisa aos olhos dos cães. Toda vez que ele saía em viagem de negócios, Mr. Bones queria logo acompanhá-lo. E o Jim de dizer: “Tenha paciência, Mr Bones. Eu volto, e para a próxima vez hei de levar você comigo.”
     Às vezes Jim chegava a ficar ausente uma semana ou mais. E Mr. Bones esperava, cheio de paciência. Bem sabia o que “a próxima vez” significava, porque Jim nunca faltava a uma promessa. Assim que regressava, dizia logo: “E então, Mr Bones, que tal? Esperou com paciência? Então venha daí. Agora é a nossa vez.” E lá iam juntos para uma longa jornada. Quase se pode dizer que Mr. Bones vivia só para essas excursões na companhia do seu grande amigo.
     Quando Jim ficava por casa, depois do jantar, Mr. Bones ia ao primeiro andar todas as noites, trazia os pantufos de Jim para baixo, depunha-os no chão, em frente à cadeira do dono, e ali ficava até serem horas de ir para a cama, deitado, com o focinho em cima de um pé de Jim.
     Chegou a grande doença  final de Jim, e disse-me ele: “Este coração já não vai longe. É questão de dias... O pano vai cair breve. Bom, eu não tenho razão de queixa. A vida foi tão boa para mim, Bill...”
     No próprio dia em que havia de morrer, Jim me disse: “O cachorro vai sentir a minha falta. Deixe-o vir aqui ao pé de mim.”
     Mr. Bones entrou no quarto, e olhou para Jim com uma expressão de ansiedade no olhar. O dono disse: “Tenha paciência, Mr Bones. Eu volto, e para a próxima vez hei de levar você comigo...”
     Cá na família é hábito levar as coisas com calma. Jim tinha sido meu irmão durante cinqüenta anos. Perdê-lo agora, apesar de muito doloroso, ainda não era um preço excessivo a pagar pelo que a sua amizade me dera: assim eu me consolava. Os pequenos, de começo, é que não se resignavam, porque Jim tinha sido para eles um grande tio camarada. Mas as crianças esquecem depressa as suas mágoas...
     E Mr. Bones? Ora, Jim tinha dito: “Tenha paciência, Mr Bones” – e o cachorro pôs-se a esperar, cheio de coragem. É bem verdade que Jim se estava demorando muito, muito mais do que de costume: mas promessa que ele fizesse era sagrada para o cão. Alem disso, Mr Bones tinha levado para o caixote onde dormia, na cozinha, os pantufos de Jim.
     Correram cinco anos. Minha mulher e eu estávamos uma noite sentados a ler na sala. A casa estava calma e silenciosa. Súbito, deitado no chão ao lado da cadeira de Emília, Mr Bones acordou e começou a abanar a cauda vivamente. É sabido que os cães ouvem coisas que escapam ao nosso ouvido. Pusemo-nos à escuta, mas não ouvimos passos, ruído algum lá fora.
     E a cauda – pam, pam, pam – a bater outra vez contra a perna da cadeira... Então, um bocado enferrujado, porque os anos eram muitos, Mr Bones se levantou e deixou a sala. Um minuto depois voltava com os pantufos de Jim nos dentes, e depunha-os em frente da cadeira onde o dono costumava sentar-se: pousou neles o focinhos, e caiu de novo a dormir.
     Seria a rajada de recordações que me trouxe à memória a vista daqueles chinelos, ali no seu lugar de outrora? O certo é que pareceu que a sala se enchia de repente do velho calor de bondade de outros tempos. Emily disse com doçura:
     “Jim era bom... A gentileza em pessoa.” E acrescentou: “Acho que vou me deitar. E você também deve vir. Já leu demais esta noite. Mas acho melhor não acordarmos o cachorro, coitado. Vamos deixar ele dormir aqui esta noite.”
     Lá estava na manhã seguinte, exatamente como o tínhamos deixado: a cabeça entre as patas, o focinho em cima dos pantufos do dono. Mas alguma coisa parecia dizer-nos, logo ao vê-lo, que Mr Bones esperara quanto podia: adiante dele, infinda, calorosa de camaradagem, desenrolava-se a jornada alegre e derradeira do cachorro que soube esperar...