Fonte : Revista Seleções
Data : março de 1943
Autora : Louise Didckinson Rich
A resposta de uma esposa à
pergunta: “Serão os maridos necessários?”
Há sete anos passados, Louise Dickinson,
em férias, percorria com um grupo de amigos, a floresta do Maine. No extremo
norte deste estado, na deserta região onde se encontram os Lagos Rangeley, o
grupo de excursionistas deparou com uma
casa erguida às margens do Rio Rapid, a milhas de distância da mais próxima
aldeia. O proprietário da vivenda, Ralpha Rich, um rapaz de Chicago, que
decidira vir morar sozinho no seio da floresta, convidou-os a jantar, ali, com
ele. Deste encontro de acaso nasceu-lhe por Louise uma afeição que o levaria ao
matrimônio. Agora, o casal Rich, na tranqüila vivenda da floresta, divide a sua
solidão com dois filhinhos, um cachorro e um gato. O seguinte excerto de um livro da senhora
Rich, descreve uma das mais inesquecíveis experiências da vida da autora na
solitária morada da floresta.
Há certas desvantagens em morar longe do
mundo; tais desvantagens, porem, são amplamente compensadas. A vida de casado,
para quem suporte a solidão dos lugares retirados, terá neles muito maiores
probabilidades de êxito. Se, por exemplo, um rapaz bem vestido, bem tratado, e
satisfeito consigo mesmo, me declarasse: “Preciso de você,”, eu dificilmente
acreditaria na sua sinceridade. É agradável, não há dúvida, ouvir palavras que
tais, mas, geralmente, elas pouco acrescentam. Quando Ralph, porem, me chega em
casa, com o sangue a gotejar de um profundo ferimento no braço, e berrando a
pelos pulmões: “Venha depressa! Que diabo – não está vendo que preciso de
você?!” – é decerto sincero no que diz. Precisa de mim, e sem demora. Sou-lhe,
então, necessária, e, por motivos análogos, ele mo é também a cada passo.
Decidíramos já que, ao ter eu de dar à
luz, seria internada no hospital da cidade; mas Rubem, o bebê era esperado para depois do primeiro de
janeiro. Enquanto não chegava aquela época, fui mantendo o meu programa habitual
de ocupações. Aconteceu que, num dia lindo como tivemos a 17 de dezembro, essas
“ocupações” consistiram em patinar no lago, então gelado. Dia claro, luminoso;
um manto de neve fresca recobrira a terra – azulada, na sombra, e com tons
fulvos, ao sol, e róseos ou purpúreos no cimo das colinas mais distantes. Por
sobre o lago, o vento espalhava a neve em camadas esparsas, cuja alvura melhor
se destacava de encontro ao reflexo azul anil do céu no gelo polido e límpido.
Cookie, o nosso cão, acompanhava-nos de perto, a correr e a latir, caindo e
levantando-se de novo. Todos nós, aliás, caímos pelo menos doze vezes, o que
talvez haja contribuído para o nascimento prematuro de Rubem.
Acordei em meio à noite de 18 de dezembro,
com fortes pontadas no estômago. Mas o que eu tomava por dores de estômago eram
já as dores do parto.
Não esquecerei jamais aquela noite. Ralph
tampouco, se não me engano. Meu marido, com outros homens do seu tipo, ao ser
informado de que a mulher de um amigo está grávida de oito meses, atravessa a
rua, ao vê-la, cumprimentando-a cautelosamente, de uma distância respeitável.
Evita, assim, o risco de ter que transporta-la às pressas num táxi para o
hospital mais próximo. Todavia, na noite em que Rubem nasceu,
faltou-lhe tempo para imaginar o que viria a suceder dentro do táxi. Obrigado a
enfrentar sozinho uma situação daquelas, não pôde pensar em mais nada. Apesar
do frio que fazia, Ralph suava em bicas. Como que ainda o vejo, com um gorro de lã
a descer-lhe sobre as orelhas, a gola levantada até o queixo, as luvas nas
mãos, a ler, nervosamente, sob a luz da lanterna, um pequenino livro intitulado
“Se o bebê chegar antes do médico”. Ele sabia que o médico não podia chegar à
nossa casa antes de umas dez horas.
Não pretendo dar a impressão de que me
conservei calma: seria faltar com à verdade. Ralph, porem, alarmou-se dez vezes
mais do que eu. Ao vê-lo assim, pela primeira vez, amedrontado e aflito, senti
não sei que estranho reconforto. Aquilo encheu-me de confiança e coragem.
“É preciso esquentar um bocado
de água”, sugeri. Eu própria nem sabia para que, mas lembrava-me de que,
segundos os livros, em momentos que tais, se toma sempre aquela providência.
Ralph saiu do quarto como um raio, e pude
ouvi-lo a diligenciar na cozinha, de onde escapavam misteriosos ruídos. Algum
tempo depois, ei-lo de volta. Era preciso, disse-me, um cobertor, que ele iria
aquecer sobre o fogão, forrando com o mesmo uma cesta de roupa. “Há que por o
bebê nalgum lugar,” explicou-me em seguida. Fiquei tranqüila a seu respeito, pois
era evidente que ele recuperara a calma. Consegui dizer-lhe, entre dois
gemidos, onde estava o cobertor, e Ralph desapareceu de novo. Ao voltar cinco
minutos depois, já era pai.
Os pais, em geral, não tem, para com seus
rebentos, responsabilidades imediatas. As de Ralph entretanto, foram imediatas
e prementes. Teve por exemplo, desde logo, que cortar e amarrar o cordão
umbilical.
- E (perguntei-lhe) não se dá banho aos
bebês recém-nascidos?
- Não – respondeu-me firmemente, - Há que
unta-los com óleo.
Não sei dizer de onde lhe veio semelhante
noção, mas o fato é que tinha razão. Enrolou o recém-nascido numa toalha de
banho, e lá se foi com ele, enquanto eu, deitada, me deixava invadir por mil
preocupações. Ralph nada sabia, certamente, a respeito de untar recém-nascidos
e de amarrar cordões umbilicais... Nosso bebê, alem do mais, berrava, sem vigor
ainda, porem visivelmente indignado. Que estaria a sofrer às mãos do pai? Mas
dentro em pouco, ei-lo de volta.
- Untou bem o bebê? – perguntei-lhe
aflita.
Mostrou-se ofendido: - Claro que sim.
Depois de todos os êmbolos que já lubrifiquei na vida....
-Êmbolos?! Você “lubrificou” o bebê com
óleo de motor?!
- Não. Naturalmente, com azeite.
- Mas nós não temos nenhum
azeite!
- Eu tinha uma lata guardada. É com isso
que preparo inseticidas. E o bebê vai muito bem, acrescentou. – Está lá, todo
inteirinho: unhas, dedos, cabelo – não falta nada. Examinei tudo com muito
cuidado, e que feio, meu Deus!
Ao dizer isto, observou, lançando os
ombros para trás: - Sempre tive horror aos homens bonitos. Este aqui tem um
punho de ferro, e Cookie tomou-se de amores por ele. Tudo irá, portanto, às mil
maravilhas. Mas, afinal de contas... que quer você que eu faça de toda aquela
água quente?
-Ah! É verdade... a água quente! Faça....
que tal se me fizesse um pouco de café?
De repente, senti-me faminta:
- E traga-me um sanduíche também, um
sanduíche de presunto, com bastante mostarda.
À manhã seguinte, uma vizinha nossa de
Middle Dam, Alice Miller, veio ver-me. Ouvi-lhe as gargalhadas quando vinha
subindo a escada.
- Sabe como Ralph amarrou o umbigo do
pequeno? Com uma corda, minha cara! Coitado do garoto! O nó é maior do que ele...
Leio às vezes nas revistas comentários
como estes:
“Sabe o leitor que em tal percentagem de
casas, na América, não há água corrente? Que em tal percentagem não há quartos
de banho? Que tal percentagem de crianças nasceram sem assistência médica?
Estas espantosas estatísticas mostram bem
como é numeroso o exército dos desprivilegiados da nação.”
Ao ler tais coisas, fico surpresa, a
refletir por momentos. “Meu Deus”, exclamo, e, logo após, num choque: “Mas é a
nós que eles se referem! Somos nós os únicos desprivilegiados da sorte!”
Mas sê-lo-emos, de fato? Não vou, é claro,
recomendar às mães que dêem à luz os seus filhos com a só assistência dos pais.
Posso, no entanto, afirmar que Rubem nada perdeu com isso – não por que houvesse
sido lambusado de azeita como um êmbolo – mas porque desde aquele momento, o
pai teve por ele uma especial predileção. Todos os pais, é claro, afeiçoam-se
aos filhos, e sentem-se responsáveis por eles. Mas – sem a menor parcela de
sentimentalismo – parece-me evidente que a sensação de responsabilidade
despertada pelo nosso Rubem em Ralph, logo após o nascimento, deixou profundos
traços. Ralph não é apenas aquele que veste, alimenta, e castiga Rubem. Antes
de mais nada, foi quem lhe amarrou o cordão umbilical, e lhe dispensou os
primeiros cuidados, quando ninguém, senão ele, poderia faze-lo. E o sentimento
que lhe nasceu, desde então, pelo filho, vale por todos os tratamentos e
atenções que me teriam sido facultados no hospital.
Não posso acreditar que os nossos filhos
se tornem, para sempre, desgraçados, porque lhe damos banho numa bacia colocada
na cozinha, à luz do querosene, ou por terem dormido numa cama, porventura não
bem aquecida. Não serão infelizes, toda a vida, por efeito de pequenos inconvenientes
que tais. Creio até que, num mundo em que a posse de bens materiais se torna
cada vez mais precária, o melhor presente que lhes possamos fazer é o de uma
indiferença absoluta pela falta de conforto, o que um desprezo total pela vida
mole e macia que o conforto proporciona.
Nenhum comentário:
Postar um comentário