sexta-feira, dezembro 29

Um balde de água fresca e limpa

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1971
Autor : Condensado de New Hampshire Profiles Jean Bell Mosley

Nada melhor para recomeçar bem as coisas

Após meses de cavar, dinamitar, arrastar, puxar terra, meses de muita canseira e esperança, ficou pronto o poço da fazenda, e a bomba foi devidamente instalada – um marco de progresso. Naquele dia quente de verão, num excesso de solenidade, vovô tirou o chapéu e despejou um canecão da primeira água sobre a sua cabeça. Papai, gesticulando muito, relembrou a resistência da rocha, a tremenda profundidade do veio subterrâneo, as horas de suor e de trabalho. Mas ali estava a recompensa final: água a 25 passos da mesa da cozinha.
“Não temos mais de carregar água da fonte!” – repetíamos triunfantes. Minhas irmãs e eu metemos os pés machucados debaixo da bica e bombeamos a valer, deixando a água jorrar, como que para apagar todas as topadas, todo o acúmulo de poeira, as farpas e a canseira de milhares de viagens à fonte. Vovó, sonhadora, falava em repuxos, lagos de peixes, e até em uma banheira. Mamãe, sensata, começou a regar as suas plantas que estavam murchando.
Nunca houve dúvida sobre o conforto que era o poço, mas sua principal contribuição talvez tenha sido a de mostrar que era muito mais do que água o que a fonte nos vinha dando.
A nascente que estávamos abandonando ficava a uns 200 metros da casa. Para chegar lá, passávamos sob as parreiras que cortavam a horta, atravessávamos o curral e chegávamos ao pomar; saltávamos uma porteira para alcançar uma picada torta que acompanhava uma cerca de arama que descia a encosta em ziguezague até à fonte.
Em anos passados, um antigo proprietário construiu um muro de pedra em semicírculo ao redor da fonte. Na base do muro, onde jorrava a água, alguém gravou as palavras VOLTE E REPOUSE. De vez em quando eu arrancava o musgo para ler o convite, que aliás nunca significou grande coisa para mim, até que minhas idas lá se tornaram freqüentes. Eu dizia em brincadeira que, quando alguém enchia os baldes, era evidente que devia descansar antes de tornar a subir a encosta com eles cheios.
Emergindo da nascente subterrânea, a água jorrava numa represinha e seguia em frente, borbulhando, para formar um laguinho que os gansos adoravam, e mais além um córrego através do pasto, para as vacas, guaxinins, lebres, lagostins e crianças.
Antes da comodidade que o poço representou, mamãe às vezes dizia a um de nós, seus filhos briguentos, mesmo que o balde de água ainda estivesse pela metade: “Vá buscar um balde de água fresca e limpa da fonte.” Lembro-me hoje que estes adjetivos se aplicavam apenas à água da fonte, e nunca à do poço, embora ambas fossem da mesma pureza cristalina.
Aborrecidos e emburrados, nós íamos tramando vingança. Mas era difícil guardar a raiva na sombra depois da videira. A paz ali era quase palpável. Dependendo da estação do ano, eu me demorava para aspirar a fragrância das parreiras em flor, para me deliciar com as uvas amadurecendo, ou observar um ninho de passarinho, com seus ovos reluzentes ou cabecinhas penugentas e bocas enormes. As formigas passavam em fileiras certinhas sobre as estacas de madeira, ocupadas com algum problema vital. As abelhas zumbiam, entravam e saíam, trazendo comunicados recentes de pastagens distantes. Às vezes uma borboleta pousava em meu ombro, arranjando assim uma carona até ao pomar. Feliz com isso, a gente prestava atenção, caminhando com cuidado para preservar aquele adorno vivo, e esquecia completamente as recentes discussões sobre a quem caberia esfregar o assoalho. De volta à casa com a água, tudo era novo, começava tudo outra vez.
Quando a tristeza envolvia a alma da gente com seus dedos cinzentos, era gostoso sentar no alto da porteira, de onde eu via as suaves colinas dobrando-se tranqüilamente, os campos verdes a se estenderem ao Sol. Podia-se ver que a natureza nunca chorava, simplesmente ficava ali, presente, absorvendo tudo, ecoando em seu silêncio uma verdade muito antiga: “É bom.” Os sons que porventura alcançassem os ouvidos – a brisa soprando nas macieiras, o mugido distante de uma vaca, o latido de um cachorro, o ranger de uma carroça, e até mesmo o sussurro da neve e o estalar o gelo no inverno – eram como pequeninas alavancas libertando a alma presa, deixando a gente quase flutuando com a harmonia. Em momentos assim, eu sabia que a única tristeza real e duradoura seria não estar vivo.
À mesa do café, nós muitas vezes discutíamos os diversos problemas da família. Toda vez que a decisão final tinha de ser tomada por uma só pessoa, era quase certo essa pessoa afastar a cadeira da mesa, dizendo: “Vou buscar um balde de água limpa e fresca, para começar o dia.” Era o mesmo que dizer: “Preciso de tempo, a sós, para pensar nisso.” Ninguém voltava sem uma decisão. Talvez porque, no caminho, nós observássemos que a indecisão prolongada não faz parte das leis da natureza. Os girassóis não perdem tempo em se voltarem para o Sol. As trepadeiras sobrevivem, bem ou mal, estirando-se na direção da estaca mais próxima.
Jamais se discutiu o impulso sutil e indefinível dessas idas à fonte, depois que elas deixaram de ser necessárias. Mas, com o tempo, cada um de nós aprendeu a voltar à fonte em determinados momentos. Quando papai voltou do hospital sem um braço, mamãe apanhou o balde e disse: “Acho que vou apanhar um balde da água fresca da fonte.” Ela voltou com uma calma inesperada e contagiante. Quando uma tempestade repentina arrasou o trigal, arrancou as espigas de milho e destelhou metade do celeiro, vovô foi à fonte e voltou com projetos modestos, porém entusiasmantes, para a reconstrução.
A minha própria volta à fonte começou com uma explosão súbita, porque a bomba não funcionou. Era preciso alguém ir apanhar um balde de água. Não era a primeira vez. Além do mais, no inverno a bomba congelava, e a água da fonte tinha de ser carregada, aquecida e derramada em volta da bomba, como que para acalma-la e fazer-lhe festa. Tudo isto de repente parecia resumir as transformações que estavam ocorrendo no mundo em que eu crescia. Pessoas morriam. Amigos se afastavam. Coisas que pensávamos serem verdadeiras eram negadas ou ditas relativas. Criou-se em mim uma necessidade profunda de conhecer alguma coisa de confiança, que eu pudesse defender, de onde eu pudesse partir, e aonde pudesse voltar, e tornar a partir.
Nesse dia, debaixo das parreiras, um sabiá alimentava seus filhotes. No jardim, os rabanetes que mamãe semeara na semana anterior brotavam em folhas verdes. Seriam absolutos os sabiás e os rabanetes? Por certo que eu os conhecera toda a minha vida.
Dentro de mim alguma coisa dura e tensa começou a relaxar quando me aproximei da fonte e ouvi a música infinitamente calmante da água, que corria dia após dia, ninguém sabe desde quando, tão livre, tão generosa. Pareceu-me a principio que a água da fonte era uma coisa digna de confiança. Nada de bombas modernas que vivem enguiçadas. Era só mergulhar o balde, e lá estava a água. Esperei que a paz crescente de tudo isso chegasse ao auge e varresse para longe as dúvidas e complexidades, e assim aconteceu.
Mas no exato momento em que aconteceu, descobri que não era a fonte, nem a água, pois que um deslocamento nas profundezas da terra poderia acabar com a fonte. Era saber que a água era suprida de algum lugar. Não era o sabiá, pois os sabiás não são eternos. Era o ato imemorial de a sabiá alimentar seu filhote, como as mães sabiás tem feito desde que existem sabiás. O ato, uma coisa duradoura e indestrutível, um instinto que não é manipulado por mãos humanas. Não eram os rabanetes, que durariam talvez duas semanas. Era o fato de estarem surgindo rabanetes das sementes de rabanetes e não feijões. Podia-se ter certeza disso.
Levantei o musgo e tornei a ler a velha mensagem. Eu tinha o meu motivo para me sustentar, o motivo que nós todos tínhamos para nos guiar, havia tanto tempo, sem sabermos. Existe no homem uma necessidade de voltar à evidência do cuidado invisível e da ordem universal, e repousar na convicção de que essas coisas lá estão e não podem ser destruídas.
A bomba continuou a ser uma maravilha para a família, mas agora – anos depois, e bem distantes – toda vez que volto á fazenda em espírito, sinto-me repousada e renovada pelo milagre eterno da fonte e de seus baldes de água fresca e limpa.

quinta-feira, dezembro 28

Jamais esquecerei você

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1983
Autor : Ray Bradbury

Eles formavam um casal extraordinário, mas tolhido por um mundo em que as convenções importam mais que um verdadeiro encontro de almas.

Ann Taylor veio a ser professora em Green Town no verão em que ela fazia 24 anos e Bob Spauding, 14. Ann era o tipo de mestra para quem todos os alunos querem levar laranjas grandes ou flores cor de rosa. Era como os belos pêssegos do verão na neve do inverno, e como o leite fresco para o cereal numa quente manhã de verão. Também os raros dias do ano em que o tempo se equilibrava delicadamente como uma folha entre ventos eram como Ann Taylor, e deveriam chamar-se como ela em nosso calendário.
Quanto a Bob Spaulding, poderia ser descrito como um peixe, metálico e lento, nas águas ligeiras do ribeirão de Fox Hill, ou dizer-se que sua voz podia ser ouvida nas copas das árvores, onde reinavam os ventos, caindo aos poucos. E lá ia Bob Spaulding, para ficar sentado sozinho, olhando o mundo.
Naquela primeira manhã em que a Srta. Ann Taylor entrou na sala e escreveu seu nome no quadro negro, a sala de aula de repente pareceu iluminar-se, como se o telhado tivesse recuado. Bob Spaulding estava sentado com uma bolinha de papel escondida na mão, mas deixou-a cair. Depois da aula, foi buscar um balde de água e começou a lavar os quadros.
“Que é isso?” perguntou-lhe ela, da mesa onde estava corrigindo exercícios de ortografia, voltando-se, para ele.
“Os quadros estão meio sujos. Acho que devia ter pedido licença”, disse ele parando, sem jeito.
“Acho que podemos fazer de conta que você pediu”, respondeu ela, sorrindo, e, diante daquele sorriso, ele acabou de lavá-los todos com rapidez e depois bateu os apagadores, com tanta força que parecia que o ar ficara cheio de neve.
Na manhã seguinte, ele por acaso passou pela pensão de Ann no momento em que ela ia saindo a fim de ir para a escola.
“Bem, aqui estou”, disse ele.
“E sabe”, volveu ela, “não me surpreendo.”
“Posso levar os seus livros?”, perguntou ele.
“Ah, obrigada, Bob.”
Foram andando por uns minutos, sem ele dizer coisa alguma. Ann o olhou, um pouco mais baixo do que ela, e viu como ele estava à vontade, como parecia feliz. Quando chegaram junto do recinto da escola, ele disse: “É melhor eu deixar você aqui. Os outros garotos podem não compreender.”
“Não sei seu eu entendo”, considerou a Srta. Taylor.
“Ora, somos amigos”, explicou :Bob, com uma sinceridade natural.
“Bob...”, ela começou a dizer.
“Não faz mal.” E afastou-se.
E lá estava ele na sala de aula, e lá estava ele depois das aulas, nas duas emanas seguintes, sem dizer nada, lavando os quadros, calado enquanto ela trabalhava; e lá estava o silêncio do Sol se pondo no céu brando, e o farfalhar dos papéis e o roçar da caneta. Às vezes o silêncio perdurava até quase as 17:00, quando a Srta. Taylor encontrava Bob no último banco, esperando.
“Bem, está na hora de ir para casa”, dizia ela, e ele corria a buscar o chapéu e o casaco dela. Depois passavam pelo pátio vazio e falavam de uma porção de coisas.
“Que é que você vai ser quando crescer, Bob?”
“Escritor”, respondeu ele.
“Ah, é uma ambição grandiosa!”
“Eu sei, mas vou tentar”, disse ele. “Já li muito.”
E, depois de pensar um pouco: “Faz um favor par mim, Srta Taylor?”
“Depende.”
“Todos os sábados, dou um passeio a pé pelo ribeirão até o lago. Há muitas borboletas e pitus. Talvez a senhora gostasse do passeio.”
“Acho que não posso. Vou estar ocupada.”
Ela já ia perguntar com que, mas parou. “Levo sanduíches e refrigerante. Gostaria que fosse comigo.”
“Obrigada, Bob, talvez outra vez.”
“Eu não devia ter convidado você, não é?”, refletiu ele.
“Você tem todo o direito de convidar quem quiser”, disse ela.
Alguns dias depois, Ann lhe deu um exemplar de Grandes Esperanças, de Charles Dikens. Ele varou a noite, lendo, e depois ambos conversaram a respeito.
Todos os dias Bob se encontrava com a Srta. Taylor e várias vezes ela ensaiou dizer-lhe que não o fizesse, mas nunca conseguia.
Então, numa manhã de sábado, ele estava no riacho, de calça arregaçada até os joelhos, abaixado para apanhar um camarão da água doce, quando levantou os olhos e a viu.
“Bem, aqui estou eu”, disse ela, rindo.
“E sabe”, atalhou ele, “não me surpreendo.”
“Quero ver os pitus e as borboletas”, pediu ela.
Andaram até o lago e sentaram-se na areia, um vento morno soprando à volta deles, fazendo esvoaçar os cabelos de Ann e o babado na sua blusa. Bob sentou-se alguns metros atrás dela e ambos comeram os sanduíches e beberam o refrigerante de laranja, com ar solene.
“Nunca pensei fazer um piquenique como este”, disse ela.
“Com um guri”, acrescentou ele.
Disseram pouco mais que isso a tarde toda.
“Está errado”, confessou Bob, depois. “e não sei por que. É só passear a pé, apanhar borboletas e camarões, e comer sanduíches. Mas mamãe e papai iam implicar comigo se soubessem, e meus colegas também. E os outros professores haviam de rir de você, não é?’
“Acho que sim. Não sei bem como é que vim parar aqui”, disse ela.
Foi mais ou menos só isso, o encontro de Ann Taylor com Bob Spaulding: duas ou três borboletas, um livro de Dickens, uma dúzia de pitus, quatro sanduíches e duas garrafas de refrigerante.
Na segunda-feira seguinte, se bem que Bob esperasse muito tempo, ela não saiu para ir à escola. Já tinha ido antes. E, naquela tarde, saiu mais cedo, com dor de cabeça.
Mas na terça-feira, depois das aulas, estavam ambos de novo na sala silenciosa – ele satisfeito, limpando o quadro negro, ela trabalhando com seus deveres, em paz, quando de repente o relógio da torre bateu as 17:00. O som forte do bronze era de estremecer o corpo, fazendo a pessoa parecer mais velha a cada minuto. A Srta. Taylor largou a caneta.
“Bob”, disse ela, “venha cá.”
“Sim, senhora”. Ele pousou a esponja.
Ela fitou Bob atentamente por um instante, até ele desviar o olhar.
“Bob, será que você sabe de que lhe vou falar?”
“Sei”, disse ele, por fim. “Sobre nós.”
“Quantos anos você tem?”
“Vou fazer 14.”
“Você sabe quantos anos eu tenho?”
“Sei sim, senhora. Já soube. Tem 24 anos. E eu vou ter 24 daqui a 10 anos, quase”, replicou ele. “Mas às vezes sinto que já tenho 24.”
“É, e às vezes você quase age como tal.”
“É mesmo?”
“Agora fique quieto. É muito importante nós compreendermos o que está acontecendo. Primeiro, vamos admitir que somos os melhores amigos do mundo. Nunca tive um aluno como você, nem nunca senti tanta afeição por um menino.” Ele corou, ao ouvir isto. Ela continuou. “E vou falar por você: você me achou a melhor professora que já conheceu.”
“Ah, mais do que isso”, disse ele.
“Talvez mais do que isso, mas é preciso encarar os fatos – uma cidade e seus moradores, e você e eu. Já pensei sobre o assunto, Bob. Não julgue que ignorei os meus sentimentos. Em certas circunstâncias, a nossa amizade seria estranha, mas você não é um menino comum. E sei que eu não sou doentia, nem mental nem fisicamente, e que o que se deu aqui foi uma estima sincera pelo seu caráter e bondade. Mas não são essas as coisas que levamos em conta neste mundo, a não ser que apareçam num homem de certa idade. Não sei se estou me exprimindo direito.”
“Se eu fosse 10 anos mais velho e uns 40cm mais alto, seria bem diferente”, atalhou ele.
“Sei que parece uma grande tolice”, disse ela, “já que você se sente muito adulto e certo, e não tem nada do que se envergonhar. Talvez um dia o povo chegue a julgar a mente das pessoas tão precisamente que dirá: ‘Este é um homem, embora o corpo dele seja apenas o de um rapaz de 13 anos, com a noção de responsabilidade de um homem.’ Mas até então, temos de obedecer aos critérios de idades e alturas, num mundo comum.”
“Não gosto disso”, disse ele.
“Talvez eu também não goste, mas na verdade não há nada a fazer, quanto a nós.”
“É, eu sei.”
“Temos de resolver o que vamos fazer”, sugeriu ela. “Posso arranjar uma transferência desta escola...”
“Não vai ser preciso”, informou ele. “Nós vamos nos mudar. Minha família e eu vamos morar em Madison.”
“Não tem nada a ver com tudo isso, não é?”
“Não, não, o meu pai arranjou outro emprego lá. Fica só a 80km daqui. Posso vir visitá-la, não?”
“Acha que ia ser boa idéia?”
“Não, acho que não.”
Ficaram sentados ainda um pouco na sala silenciosa.
“Quando é que aconteceu tudo isto?”, perguntou ele, desamparado.
“Não sei. Ninguém sabe, jamais há milhares de anos”, respondeu ela. “Às vezes acontece que duas pessoas se gostam quando não deviam. Não sei explicar.”
“Há uma coisa que quero que você se lembre”, disse por fim. “Na vida, há certas compensações. Você agora não está satisfeito, nem eu, mas vai acontecer alguma coisa para remediar. Acredita nisso?”
“Gostaria de acreditar. Se você ao menos esperasse por mim”, explodiu ele.
“Dez anos?”
“Aí eu teria 24 anos.”
“Mas eu teria 34, e talvez fosse outra pessoa inteiramente diferente. Não, não creio que isso seja possível. “
Ele continuou ali sentado, muito tempo.
“Não vou nunca esquecer você”, disse por fim.
“Há de esquecer.”
“Vou arranjar um meio de nunca esquecer você”, reafirmou ele.
Ela foi apagar os quadros.
“Eu ajudo”, disse Bob.
“Não, não”, cortou Ann, depressa. “Vá indo para casa.”
Ele saiu da escola. Olhando para trás, viu a Srta Taylor pela janela, junto do quadro, lentamente apagando as palavras escritas com giz.
Ele se mudou na semana seguinte e ficou fora 16 anos. Embora se encontrasse a 80km de distância, só voltou a Green Town quando já estava com quase 30 anos e casado.
Então, numa primavera, quando iam passando por lá, a caminho de Chicago, pararam para ficar um dia.
Bob deixou a mulher no hotel e passeou a pé pela cidade, e por fim perguntou pela Srta Ann Taylor.
“Ah, sei, aquela professora bonita. Morreu em 1936, pouco depois que você partiu.”
Tinha se casado?
“Não, nunca se casou.”
Bob foi ao cemitério e encontrou a lápide dela, que dizia: “Ann Taylor, nascida 1910, morta 1936.” E ele pensou: Tinha 26 anos. Ora, agora sou quase quatro anos mais velho que você, Srta. Taylor.
Mais tarde, naquele dia, o povo da cidade viu a mulher de Bob Spaulding andando ao encontro dele, sob os olmos e carvalhos. Ela era os belos pêssegos do verão na neve do inverno, e era o leite fresco para o cereal numa manhã quente de verão. E aquele era um dos poucos e raros dias do ano em que o tempo se equilibrava como uma folha entre ventos e deveria se conhecer, todos concordavam, pelo nome da mulher de Robert Spaulding.

quarta-feira, dezembro 27

Um camarada não voltou

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1971
Autor : Ken Agnew (segundo narrativa feita a Kenneth Schaefer)

Durante anos o jovem Karl Bley sonhou em fugir do mundo comunista. De repente ele deu o salto.

Era agora ou nunca para Karl Bley. Meti meu aviãozinho numa curva fechada e rumei para o navio alemão. O vôo rasante sobre o navio era o sinal para o maquinista de 24 anos pular na água.
Eu estava apreensivo. A sete milhas da cadeia de ilhas Florida Keys o Oceano Atlântico é geralmente hostil, e naquele dia de novembro de 1970 ondas fortes esperavam o maquinista em seu salto para a liberdade. Se ele escapasse à poderosa sucção da hélice do navio, teria de arriscar-se com os tubarões até que a lancha de socorro o alcançasse.
E eu nem tinha certeza de que Karl Bley estivesse no navio. Se estivesse, teria ele coragem de saltar – ou desanimaria com os 12 metros que o separavam das águas revoltas?
Os Irmãos Bley. Fugir era o sonho de Karl Bely havia dois anos, desde a noite em que, a bordo do mesmo navio misto da Alemanha Oriental, o Wolkerfreundschaft, ele passara ao largo das luzes de Miami. Mil milhas a noroeste, em Villa Park, Illinois, morava seu irmão mais velho. Eric Bley conseguira deixar a Alemanha Oriental em 1955, e fora seguido um ano depois por sua noiva, Marlis. Os dois eram agora americanos naturalizados. Eric abrira uma firma de máquinas de construção em um subúrbio de Chicago, e seus negócios iam bem.
Durante 15 anos os irmãos se corresponderam. (Eles combinaram um código para iludir os vigilantes censores postais da Alemanha Oriental.) Logo após uma viagem a Havana em 1968, Karl escreveu a Eric dizendo que se tornasse a passar tão perto dos Estados Unidos, estava disposto a “pular e nadar”. E não era conversa. Eric sabia o que ia no íntimo do irmão. Ele havia sentido a mesma ânsia de liberdade.
Eric sabia também a dificuldade de cobrir a nado as sete milhas do navio à praia, de modo que a aflição era de ambos os lados da Cortina de Ferro. Foi nesse ponto – dois meses antes – que eu entrei no esquema.
O plano. Eric tinha ido a Florida Keys, ao sul de Miami, à procura de ajuda para o plano que ele e o irmão haviam traçado. Em Duck Key ele viu um excelente barco de aluguel, o Pequod, pertencente ao meu velho amigo Comandante Bob Lowe. Veloz e em ótimas condições, o Pequod era o barco ideal para passar o Volkerfreundschaft quando ele navegasse pelo litoral da Flórida a 18 nós. Eric conversou com Lowe, que o escutou em silêncio.
“Você quer pôr um barco de salvamento ao lado do navio no momento exato em que o seu irmão vai saltar?”, perguntou Lowe.
Eric confirmou.
“É preciso haver coordenação terra-ar. E um sinal para avisar seu irmão de que tudo está pronto para o salto.”
Precisando de um piloto, Lowe apresentou-me a Bley. Foi Lowe que me convenceu. Percebi que ele tinha gostado de Eric. Antes de Eric terminar a exposição do plano, eu estava tão cativado quanto Bob pela determinação de um homem na luta pela vida do irmão.
Eric sabia quase tudo o que precisávamos saber sobre o Volkerfreundschaft, graças a um folheto de propaganda mandado por Karl. Os passageiros embarcariam no porto báltico de Rostock para uma viagem a Havana, o oásis comunista no Ocidente, e voltariam a Rostock. O folheto trazia uma fotografia do navio, e o texto dava até as freqüências captadas pelo rádio de bordo.
Traçamos um plano. Eu voaria a rota que a maioria dos navios comunistas seguem na viagem para Havana – das Bahamas eles seguem diretamente no rumo de Palm Beach, depois contornam o litoral da Flórida até passarem os Keys. Avistando o navio, eu me comunicaria pelo rádio com Bob e Eric, que sairiam no Pequod. Quando eles alcançassem o navio, eu faria um vôo rasante com o avião. Esse seria o sinal para Karl saltar.
Na segunda semana de novembro Eric disse-nos que Karl estava no navio. Ele estaria ao largo dos Keys no dia 26 de novembro. Vestiria uma jaqueta de cor viva para facilitar o reconhecimento e levaria um salva-vidas debaixo dela. Mas, escreveu Karl, mesmo se o barco de salvamento não aparecesse, ele saltaria antes que o Volkerfreundschaft fizesse a volta para afastar-se do litoral americano.
Alarma falso. Para garantir uma vigilância permanente, procuramos a colaboração de George Butler, engenheiro aposentado e um entusiasta piloto. Durante dois dias ele e eu voamos pala lá e para cá a 60 milhas entre Palm Beach e as Bahamas, bem em cima da rota que o navio seguiria. Estendemos a vigilância também para o sul, acompanhando os Keys até American Shoal, um farol abandonado a 16 milhas de Key West – ponto de virada da maioria dos navios russos que demandam Cubam. Nada conseguíamos, a não ser cansaço.
Às cinco e meia da manhã de 27 de novembro, Eric deixava desanimado o seu hotel de Duck Key para mais um vôo de reconhecimento. De repente, olhando para a escuridão do oceano a leste, ele viu luzes – o navio! Eric correu para o carro e tocou para o aeroporto de Marathon em Key Vaca. Eu o esperava, e quando decolamos vimos o navio, o costado todo iluminado. Apaguei as luzes das asas e o foto de fuselagem para não alarmar o objetivo. Voando alto sobre o navio, pegamos o folheto de propaganda para identificar-lo pela fotografia. O céu e o mar ainda estavam escuros, mas as luzes do convés nos ajudaram – o navio no mar era o mesmo do folheto, nem faltava a linha vermelha acompanhando o casco.
Improvisação. Em poucos minutos estávamos de volta ao aeroporto, onde Bob Lowe nos disse que não havia tempo para ir a Duck Key, pegar o Pequod e ainda alcançar o navio, que já passava pela cidade de Marathon a 18 nós.
“Será preciso um barco que faça 40 nós para alcança-lo”, disse Lowe. “Vamos Eric! Vamos arranjar um barco nem que seja roubado.” Segundos depois o carro roncava na estrada, rumo a Big Pine Key, 30 quilômetros ao sul.
A essa altura, Butler já tinha chegado, e ia fazer o vôo de vigilância, a 600 metros, ficando o vôo rasante para mim. Pouco antes de decolarmos, pedi à mulher de Butler que chamasse a Guarda Costeira: “Diga-lhes que você recebeu uma mensagem muito clara a respeito de American Shoal, e peça para mandaram um barco imediatamente.” Precisávamos de algum apoio. Eu receava que Bob e Eric não conseguissem um barco, e que Karl estivesse mesmo disposto a pular na água de qualquer maneira, com ou sem sinal.
Voei para Big Pine Key no momento justo em que um barco de fiberglass de 22 pés equipado com motor de popa saía da marina de Sea Center e rumava para a claridade que começava a se mostrar a leste. O barco enfrentava fortes ondas quando entrou no mar aberto. Eu não acreditava que Lowe avistasse o navio, e passei por cima dele para pô-lo numa rota de interceptação que o colocasse adiante do navio.
Nesse ponto o barco parou completamente. Vi Bob pelejar com o motor até que ele pegou. Meia milha adiante o motor parou de novo.
“Bob não vai conseguir!”, gritei para Butler, pelo rádio.
Enquanto eu pensava se devia ou não dar o sinal, vi a espuma na popa do barquinho, sinal de que Lowe ligara o motor pela terceira vez. Ainda não estávamos derrotados!
Rumei para o ponto combinado, bem na dianteira do Volkerfreundschaft para esperar o aviso de Butler de que o barco se aproximava.
“Já!”, avisou ele afinal.
“Muito bem. Lá vou eu!”
Quatro na água. Rumei para a proa do navio e passei paralelo a bombordo, pouco acima dos cachos de espuma branca que se formavam na água. Avistei passageiros na amurada – uns 20 rostos dos mais assustados que já vi. No tombadilho de ré fiz uma virada brusca para a esquerda, tão perto que quase raspei o mastro de ré com a ponta da asa. Se Bley estava no navio ele não podia deixar de ter ouvido o sinal. Mas durante um segundo torturante nada aconteceu – eu só via gente boquiaberta na amurada quando passei roncando a estibordo.
“Ninguém pulou!”, gritei ao microfone.
Mas logo um vulto de camisa vermelha voava sobre o gradil e mergulhava na água.
“Ele pulou!”, gritei, quase engasgado de emoção.
Meu rádio estalou de repente, e a voz d eButler entrou:
“Tem dois na água!”
Olhei incrédulo. Pela janela lateral eu vi não dois, mas três! Não...quatro! Eric tinha-nos avisado: “Se o garoto pular, estejam atentos; talvez venham outros.” E vieram.
“Puxa! Que coragem!”, pensei. Nenhum dos outros três sabia do nosso plano. Apenas Karl tinha colete salva-vidas – os outros só tinham bóias circulares que jogaram na água antes de pular. Circulei sobre as figuras que se debatiam tentando alcançar as rodelas alaranjadas na água. Aquilo era coragem da mais pura.
A pilotagem de Lowe no barco de salvamento foi magnífica. O último homem nem bem tinha caído na água, Bob já passava pelo navio e Eric Puxava Karl para dentro.
A seguir veio a reação do navio. Sabíamos que os vermelhos estavam preparados para uma tal possibilidade, e debatemos muito sobre o tempo que o Volkerfreundschaft levaria para fazer uma volta de 180 graus. Calculamos mal.
Eric e Bob estavam ainda puxando os homens da água quando o navio inclinou-se numa virada fechada a toda velocidade. Era espantoso ver um navio grande inclinar-se assim, e por um momento tive a impressão de que o comandante queria todos os homens na água.
Pouco faltou! Quando o último homem foi retirado do mar o navio já vinha perto do barco de salvamento. Bob rumou para águas rasas perto da praia, onde o Volkerfreundschaft não podia segui-lo. Finalmente o navio alemão abandonou a perseguição, fez uma manobra em S e tomou o rumo sul na direção de Havana. Estava tudo acabado.
O rosto da liberdade. Mais tarde, sentado ao lado de Karl numa sala do posto da Guarda Costeira em Key West, contemplei o rosto decidido daquele rapaz magro, de cabelos escuros, da Alemanha Oriental. Seu sonho se realizara, quando Karl ergueu os braços em sinal de vitória e gritou para o homem da proa do barco: “Bruder! Bruder!”
Os outros que saltaram para a liberdade com ele era o Dr. Manfred Kupfer, neuropatologista de 37 anos, de Leipzig; seu irmão, Dr. Renhold Kupfer, patologista de 33 anos, de Zwickau; e o Dr. Peter Rost, de 37 anos, microbiologista, também de Zwickau. Eles haviam embarcado no navio com a esperança secreta de que surgisse alguma oportunidade de fuga. O salto de Karl foi a inspiração que eles esperavam.
Por intermédio de Eric, que serviu de intérprete, fiquei sabendo que Karl estava no convés desde muito cedo observando as luzes dos Keys, estudando a praia com binóculos à procura de um sinal qualquer de ação. “Vi quando vocês levantaram vôo do aeroporto”, disse-me ele. “Vi você apagar as luzes, e quando ouvi você no escuro acima do navio tive certeza de que Eric viria.”
Olhando aquele rapaz, de 24 anos, cujo rosto me garantia que o salto seria dado, com ou sem aviso, compreendi de repente o que significava a liberdade.

terça-feira, dezembro 26

Os peixes dormem?

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1995
Autor : Doug Stewart

Qual é o animal mais antigo?
E o mais ameaçado de extinção?
E o mais mortífero?
Respostas fascinantes a estas e outras dúvidas freqüentes.

Como a maior parte dos peixes não consegue fechar os olhos, é fácil pensar que eles não dormem, o que é o mesmo que achar que os humanos não conseguem dormir por não poderem fechar os ouvidos para deixar de ouvir. Na verdade, muitas espécies de peixes aproveitam algum tempo do dia ou, mais habitualmente, da noite para entrar num estado semelhante ao sono.
Alguns flutuam; outros descansam no fundo. Algumas espécies chegam mesmo a preparar um lugar para dormir. Os labros se enterram na areia até deixar apenas à vista um pequeno montinho que sobe e desce com sua respiração.
O bodião se esconde no lodo, provavelmente para iludir os predadores. Ao raiar do dia, os cardumes se reagrupam e retomam seu nadar sincronizado.

Que espécie de animal corre o maior perigo de extinção?
Embora não se saiba exatamente, um é um número terrível e é quantas araras de certa rara variedade (ararinha azul) se crê existirem soltas pelas matas. Apenas duas sobrevivem num zôo brasileiro, enquanto se calcula que entre 20 e 30 pertençam a colecionadores privados.
Nos Estados Unidos, o odo, ave outrora abundante, originária da ilha de Kauai, no Havaí, está também reduzida a um exemplar macho, mas que nos últimos dez anos não foi visto por ninguém. Quem sabe se tal espécie já não estará extinta?

Qual o mais danoso animal para o homem?
Não há dúvida: os mosquitos. Calcula-se que, só na África, o parasito da malária transportado pelos mosquitos mate 1 milhão de crianças por ano. Ao longo da história, ele deverá ter aniquilado mais gente que todas as guerras juntas. Os mosquitos são também os portadores da febre amarela e de pelo menos 100 vírus diferentes. No conjunto, essas doenças infectam pelo menos 300 milhões de pessoas por ano.

Qual é o animal vivo mais antigo que existe?
Talvez o gênero animal mais antigo seja Lingula, um crustáceo que possui uma longa extensão semelhante a um braço com duas pequenas conchas numa das extremidades para proteger seus órgãos vitais. Seus registros fósseis remontam a 500 milhões de anos.
A maior parte dos animais vai mudando à medida que o mundo ao redor também se altera. Mas o habitat desses crustáceos, o fundo do mar arenoso e parado, não mudou muito desde a era paleozóica. “Regra geral, quando o nicho ecológico de um animal não sofre alteração, não há pressão para ele mudar”, diz Normam Newell, curador de invertebrados do Museu Americano de História Natural.

Quais os animais com menor e maior tempo de vida?
O tempo normal de vida da efemérida desde que sai do casulo é de apenas algumas horas. Poucas ultrapassam um dia de vida. Elas pertencem à ordem dos apropriadamente denominados insetos efeméridos, ou efemerópteros, e dedicam suas breves vidas a uma única missão desesperada: a procura de um parceiro para acasalamento. Privados de bocas e de estômagos funcionais, nem sequer param para comer.
No outro extremo, o detentor do recorde poderá ser o mexilhão do Ártico. Há notícia de um exemplar que viveu submerso durante 220 anos (isso no caso de se aceitarem seus anéis de crescimento como certidão de nascimento, o que nem todos os biólogos fazem).
O animal mais velho de que se tem conhecimento é uma tartaruga que morreu em 1918. O réptil tinha sido capturado já adulto, em 1766, e morreu 152 anos depois.
Apesar de ter vivido tanto tempo, ela só ultrapassou em algumas décadas o cidadão japonês Shigechiyo Izumi (1865-1866), que poderá ter sido o mamífero mais velho da história.

Qual o animal de olfato mais apurado?
O desempenho olfativo do macho da mariposa saturnídea deve ser difícil de superar. Guiado apenas pelo cheiro, ele é capaz de localizar fêmeas a quilômetros de distância. Não é que estas sejam particularmente odorosas: suas glândulas abdominais contém cerca de um décimo milionésimo de grama do perfume amoroso, o feromônio, do qual apenas liberam uma pequena porção de cada vez. À distância, o mais provável é que as antenas do amante captem não mais que escassas moléculas dele, mas sua atenção está concentrada em detectar o odor de sua fêmea.

Os animais sonham?
Os seres humanos sonham durante períodos noturnos de sono REM (sigla, em inglês, de movimento rápido dos olhos), o mesmo acontecendo com muitos mamíferos e aves. Os cães, por exemplo, rosnam e gemem quando estão no limiar do sono.
Os pesquisadores identificaram partes do mesencéfalo dos gatos que parecem inibir o movimento muscular durante o sono. Quando esses centros são danificados, os gatos interpretam os sonhos com bastante dramatismo, chegando a atacar presas imaginárias.

Que animal possui a melhor audição?
Muitos morcegos tem o ouvido incrivelmente apurado. Um morcego pode se atirar em direção a bolinhas de algodão úmido jogadas no ar num quarto escuro como breu, e se desviar no último instante sem apanhar nenhuma. Tal fato sugere que eles fazem mais do que localizar objetos no escuro. De certo modo, vêem com as orelhas.
Esses mamíferos alados localizam a posição dos objetos pelo eco, a partir do tempo de duração, da força e da direção de sua própria voz. Ao se acercarem de uma mariposa, podem lançar 20 emissões de som por segundo (não se trata de sons audíveis, mas de um zumbido agudo); em seguida interpretam os sinais que ricocheteiam nela e voltam, enquanto a mariposa procura escapar.
Aparentemente, conseguem distinguir a forma de uma mariposa da de uma folha do mesmo tamanho. Podem também calcular a velocidade na qual o inseto se desloca no ar. Talvez até consigam avaliar o ritmo de batimento de suas asas pela análise dos ecos rapidíssimos.
As baleias e os golfinhos também usam a ecolocação, e a zona do cérebro que controla essas funções é de longe muito maior do que a dos morcegos. Mas como se torna mais difícil estuda-los em cativeiro, sabe-se menos acerca de sua audição.

Quem mora em suas pestanas?
Demodex Follicurorum é um minúsculo parente de oito patas da aranha que se aloja nos folículos capilares, incluindo os da base das pestanas. Aí, esses ácaros incubam, copulam e morrem, por vezes em número de meia dúzia por pestana, sem que nunca nos apercebamos disso.
Não incomodam e são completamente benignos. Alimentam-se perfurando as células dos folículos das pestanas com duas minúsculas agulhas e sugando depois o fluído celular a eles necessário.
Talvez seja engraçado descobrir os habitantes de nossas pestanas colocando uma delas recém-arrancada numa gota de água e examinando a sua base, mais grossa, através de uma lente forte.
Os ácaros dos folículos são, porém, largamente ultrapassados em número por congêneres seus que se alimentam das minúsculas escamas de pele morta que se desprendem de nossos corpos dia e noite ao ritmo de dezenas de milhares de minúsculos fragmentos por minuto. Um colchão de casal normal contém nada menos de 2 milhões deles. (Não os confundir com os percevejos, estes muito maiores.)
Bons sonhos!

sábado, dezembro 23

Fuga para a liberdade

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1983
Autor : William Gilden

Com a polícia rente no seu rastro, os dois ativistas do Solidariedade sabiam que sua única esperança era sair da Polônia, e o único meio possível, uma perigosa viagem.

A mulher soluçou de terror enquanto a polícia vasculhava sua casa na cidade portuária báltica de Gdynia. Os vizinhos observavam silenciosamente enquanto os rudes agentes levavam um mimeógrafo e panfletos recentemente impressos trazendo a marca do Solidariedade, o proscrito sindicato dos trabalhadores poloneses.
Uma mulher correu em direção à parada de ônibus onde Tadek Nowak, de 25 anos, desceria no caminho de casa, vindo do seu trabalho no estaleiro. “Há visitantes na sua casa”, sussurrou ela, ao passar por ele. Tadek percebeu o medo no semblante da mulher e afastou-se rapidamente, sabedor de que jamais poderia voltar ali.
Ele era apenas um dos milhares de membros do Solidariedade a continuarem atividades sindicais, apesar da proibição governamental subseqüente à imposição de lei marcial da Polônia, a 13 de dezembro de 1981. Juntamente com o seu velho amigo Marek Zuraw*, um estivador de 25 anos, ele escreveu um boletim que fornecia informações a respeito do Solidariedade não acessíveis à mídia controlada pelo governo. Noite após noite, os dois labutaram no estreito porão da casa de Tadek, imprimindo um folheto de cada vez. Em seguida os distribuíam, sempre à espreita da polícia. Os riscos eram sérios: a impressão e a divulgação do material “contra o Estado” poderiam significar 10 anos de prisão.
Plano audacioso. Imediatamente os dois homens se reuniram às pressas no apartamento de um amigo para combinar o seu próximos passo. Inevitavelmente a polícia iria descobrir o envolvimento de Marek. Pela manhã, chegaram com relutância à conclusão de que não tinham alternativa. “Temos de sair do país”, disse Tadek.
Embora Varsóvia e o esperado asilo na embaixada americana estivessem a apenas 320km de distância, eles precisariam de licenças especiais para chegar lá. Viajar sem permissão e não ser apanhado nos sucessivos postos de controle era absurdo. Foi então que ocorreu a Marek um audacioso plano de fuga: os dois homens se esconderiam dentro de um engradado num cargueiro polonês. Marek aproveitaria a oportunidade de ainda não ter sido implicado e voltaria a trabalhar no estaleiro. Sua missão: descobrir o engradado que os levaria para a liberdade.
Na manhã de segunda-feira, Marek folheou os pedidos de remessa, anotando cargas, destinos, épocas de partida. Veterano de 10 anos nas docas, não despertou suspeitas. O destino mais seguro que conseguiu achar foi Halifax, Nova Escócia – a uns 5.600km através do Atlântico Norte. Seria uma viagem difícil, de pelo menos 14 dias. Naquela tarde, ele percorreu os embarcadouros à procura dos engradados destinados a Halifax. Finalmente os descobriu, registrados para o navio container Kazimiers Pulaski. A partida estava marcada para dentro de seis dias, domingo, 25 de abril de 1982.
Marek e Tadek prepararam uma lista de provisões – barras de chocolate, bisnagas de pão, pílulas de vitaminas, 38 litros de água e recipientes para resíduos corporais. Eles se limitariam a quatro quadradinhos de chocolate, uma bisnaga de pão e não mais do que três xícaras de água por dia. Além disso, levariam uma lanterna elétrica, um baralho de cartas, um relógio, uma faca, cigarros, exemplares de seus impressos clandestinos e um pequeno dicionário polonês inglês.
Na manhã de terça-feira, Marek, fingindo preparar um dos engradados para embarque, enfiou um pouco de chocolate e bisnagas de pão através de uma pequena abertura. E se eu for apanhado? pensou. Mas seus movimentos passaram despercebidos. Na quarta-feira, colocou mais provisões. O engradado onde iriam embarcar media 2m de altura por 9m de comprimento, mas continha um torno industrial de 14 toneladas, deixando apenas espaço suficiente para os dois homens.
Na noite de sexta-feira, a esposa de Tadek foi trazida até ele para uma rápida despedida. Abraçaram-se, chorosos. Ele tentou consola-la. “Se eu ficar, serei metido na prisão e não a verei durante anos”, disse ele. “Se alcançar o Ocidente, as autoridades poderão deixar que você se reúna a mim. Precisamos tentar.”
“Sei que vocês precisam”, concordou ela. “Boa sorte, meu amor.”
Marek, que é divorciado, deixou atrás de si uma filha de três anos. Ele pôs a menininha no colo, abraçou-a várias vezes, beijou-a e disse um “até logo”.
Os dois fugitivos enfrentavam um grande obstáculo antes mesmo de chegarem ao engradado; como poderia Tadek, cujo cartão de identidade era para um estaleiro vizinho, penetrar no cais? Resolveram então faze-lo dissimuladamente pelo portão dos operários. O sábado amanhecia frio e chuvoso. Marek cumprimentou o único guarda do portão. “Ainda bem que estamos agasalhados”, gracejou ele. O guarda, descontraindo-se com a conversa, não percebeu que apenas Marek exibira um cartão de identidade.
“Nunca!” Uma vez no cais, ele conduziu Tadek até o engradado, e os dois arrastaram-se para dentro. Mal podiam se mover sem esbarrarem no torno. Temerosos de que o menor som os denunciasse, quedaram-se em silêncio enquanto a noite caía e tornava-se muito fria.
No domingo, o dia marcado para a partida, nada aconteceu. A segunda noite no engradado pareceu interminável. Por volta do meio-dia de segunda-feira, os dois começaram a ter dúvidas. E se eu li errado a lista de remessas?, perguntou Marek a si mesmo. Ambos temiam que, devido à demora, seus mantimentos acabassem antes do término da viagem. Cada um fazia a si próprio a mesma pergunta. Será que deveríamos sair agora e desistir da idéia?. Mas ambos respondiam para si mesmos: Não, nunca!
No fim da tarde, eles ouviram o motor de um monta cargas, e minutos depois o engradado balançou ao ser apanhado, conduzido ao longo do cais e colocado no interior do navio. Mas somente ao anoitecer de terça-feira foi que as grandes turbinas do navio começaram a funcionar. Finalmente estavam partindo! Pela primeira vez, uma sensação de regozijo os invadiu. Agora só o que tinham a fazer era esperar; parecia fácil.
Nessa noite novamente sofreram com o frio terrível. Seus receios voltaram: E se formos descobertos? E se as autoridades canadenses em Halifax nos puserem de volta no navio ou nos entregarem à embaixada polonesa? Tinham de se manter ocupados. Uma grossa lona recobria o torno. Com a faca de Tadek, começaram a recortar um saco de dormir. Durante dois dias, lutaram com o espesso tecido. O projeto foi interrompido quando o navio chegou a Bremerhaven, Alemanha Ocidental, uma parada que Marek vira no pedido de remessas.
Espiando através de uma fresta do engradado, observaram os estivadores descarregarem mercadorias. De repente, Tadek sussurrou:: “Vamos tentar uma escapada.” Marek pôs a mão no ombro de Tadek. Eles haviam eliminado essa idéia antes de partirem: os marinheiros poloneses poderiam agarra-los antes que atingissem o cais, e, mesmo se o conseguissem, não sabiam se os alemães os ajudariam.
O porão foi fechado, a escuridão desceu mais uma vez e os motores do navio de novo começaram a soar. Os dois homens voltaram a trabalhar no saco de dormir, terminando-o no dia seguinte. Escorregaram, então, para dentro dele, e por fim sentiram-se agasalhados.
A longa viagem atlântica começou. O tempo parecia ter parado. Acendendo a lanterna, tentaram jogar cartas, mas não conseguiam se descontrair. Os dois se enfraqueciam. Suspiravam pelas pessoas de quem gostavam. Preocupavam-se com a diminuição dos mantimentos. Ansiavam por uma refeição quente, um banho quente. Queriam se esticar, mas, devido ao torno, só podiam se mover pouco mais de um metro. A solidão e a tensão mental cresciam. À medida que cada dia terminava, Marek fazia uma incisão no engradado.
Dormitavam com intermitências, os corpos doloridos. Após 11 dias, o chocolate e o pão acabaram. Acreditavam estar a três ou quatro dias de Halifax, com uma parada intermediária em Nova York. Jaziam quietos, tentando poupar as forças que lhes restavam. Rezavam em silêncio. Finalmente, os motores do navio pararam. O porão foi aberto e os engradados foram removidos. Um monta cargas pegou o deles. Sentiam-se quase livres!
Através da fresta, puderam ver a luz do dia – estavam indo em direção à entrada do navio. Mas aí o monta cargas girou, moveu-se pelo porão, afastando-se da entrada, e depositou-os em outro lugar! O engradado ficou espremido entre um tabique e outros engradados, impedindo sua saída. O desânimo os invadiu.
Dentro em pouco, o navio abandonava o porto. Tadek e Marek não sabiam era que tinham acabado de deixar Halifax. A próxima parada era de fato Nova York, mas, julgando ser Halifax, aguardavam-na com ansiedade. Ouviram de novo os monta cargas no porão. Depois as máquinas e as vozes que enfraqueciam. O porão foi fechado e os motores soaram de novo. Alguma coisa não dera certo. Estavam indo de volta à Polônia! “É o fim para nós”, sussurrou Tadek.
Ele pensou em desistir, mas Marek o animou: “Lembre-se de Ewa e de Stefan. Agüente por amor a eles!” Tadek recuperou a coragem. Havia ainda 15 litros de água; talvez conseguissem sobreviver por todo o caminho de volta à Polônia.
No dia seguinte, Marek fraquejou. Agora era ele quem se lamentava. Desta vez Tadek ofereceu apoio: “Cedo ou tarde eles tem de nos levar para algum lugar. Espere um pouco mais!”
Continuaram a se animar mutuamente. Mas, no fundo, pensavam o pior: Como morrerei? Será fácil ou difícil?
Dois dias depois, o Kazimierz Pulaski parou em outro porto. Desorientados, mas conseguindo se erguer, Tadek e marek não tinham idéia de onde se encontravam. Novamente o porão foi aberto, os monta cargas entraram. O engradado foi conduzido em direção à entrada; só que desta vez não parou. A luz solar se enviesou através das frestas do engradado, enquanto ele era erguido até a doca. Dentro, Tadek e Marek se abraçavam. Mas onde se encontravam? O maquinista do monta cargas estava a apenas um metro e pouco deles. Era um negro. “Estamos em Cuba”, sussurrou Tadek, assustado.
Decidiram permanecer ali até o anoitecer. Ocorreu então a Tadek: e se os outros engradados estivessem espremidos contra o deles e os encurralassem? “Não me importo com o que aconteça”, disse Tadek. “Vamos!”
Empurraram a porta e tombaram no cais, aos pés de um punhado de estivadores espantados. Após 18 dias no engradado, a luz e o ar livre os estontearam. Estavam medonhos: Barbados, lívidos e fracos. Cada um deles perdera 7kg. Tadek tirou o vocabulário polonês inglês do bolso e indicou a pergunta: “Onde estamos? Os trabalhadores do porto sorriram e responderam: “Estados Unidos...Baltimore.” Eram homens livres.

Hoje, Tadek e Marek permanecem em Baltimore e obtiveram asilo político. Sentem uma falta terrível dos entes queridos e estão tentando traze-los para os Estados Unidos. Enquanto isso, a sensação de liberdade “é maior do que poderíamos ter possibilidade de imaginar”, diz Marek, enquanto Tadek acrescenta: “A menos que se tenha conhecido a tirania, não se pode inteiramente avaliar o que é esta maravilha.”

* Foram usados pseudônimos para Nowake Zuraw, a fim de proteger seus parentes na Polônia.

sexta-feira, dezembro 22

A corrida em que todo mundo ganhou

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1983
Autor : Frank Sousa, no Union, de Springfield, Massachusets

O grande orgulho dos norte-americanos nas olimpíadas de inverno de 1980, realizada em Lake Placid, estado de Nova York, foi o velocista Eric Heiden, ganhador de cinco medalhas de ouro na competição. Mas os Estados Unidos podiam vangloriar-se de coisa ainda melhor – que, ao que parece, passou despercebida da imprensa, que se concentrou nos grandes vencedores.
Cerca de cinco horas depois de Heiden haver obtido um novo recorde mundial na exaustiva prova de 10.000m, os patinadores ainda competiam na prova de duplas. Ninguém poderia pretender desafia-lo, e os torcedores começaram a deixar a pista.
Alguém lembrou então que a última prova de classificação, que só deveria começar daí a uma hora, só teria um corredor, um sul-coreano de 17 anos que disputava seus primeiros Jogos Olímpicos. Não só não teria ninguém para competir com ele, como aparentemente não teria espectadores. No momento em que soou o tiro de partida, centenas de pessoas tinham resolvido ficar para ver o patinador que havia viajado 16.000km e que não tinha a menor chance de vencer.
Os aplausos começaram quando a prova teve início e continuaram a cada volta do sul-coreano. O rapaz dava tudo que podia, e durante algum tempo teve-se a impressão de que ele estava sendo mais veloz do que Heiden. Não era isso, mas os americanos continuaram a aplaudir. Não estavam sendo contra Heiden; estavam ovacionando um perdedor. Por fim o ritmo dele diminuiu; mas, naquela corrida, todos – o rapaz e os que ficaram para anima-lo – todo mundo saiu ganhando alguma coisa.

quinta-feira, dezembro 21

Um complô de computadores

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1983
Autor : Will Stanton

Maggie, minha mulher, não gosta de computadores. Ela os considera uma ameaça à tranqüilidade do lar...por enquanto menos grave que o futebol, mas ganhando terreno. (Emprego o termo computador, embora nele eu inclua tudo o que tem um interruptor para ligar e desligar, tudo o que faz ruídos e acende.)
Há algum tempo que Maggie vinha se preocupando porque nossos filhos se empolgavam demais com o mundo da eletrônica. Eles usam computadores no colégio, ouvem fitas enquanto voltam para casa, e depois ligam os vídeo games. “Não é só dos pais que eles estão se afastando”, queixava-se. “Agora é também dos amiguinhos e dos cupinchas. Em lugar de Tampinha, Cegueta e Ferrugem, agora só dá Atari, Coleco, Activision. Detesto isto!”
“Compreendo o que você está sentindo, mas os homens sempre tiveram um interesse exagerado por tudo o que é mecânico. Somos, acima de tudo, seres racionais. Gostamos de saber como é que as coisas funcionam.”
“Racionais uma ova”, reatacou ela. “Já vi você numa loja de ferragens. Parece um menino numa casa de bichinhos de estimação. Aquelas ferramentas e bugigangas todas, dentro das caixas ou penduradas, pedindo para serem compradas”.
“Tudo bem”, respondi-lhe. “Se você está a fim de meter o pau nas máquinas, é um direito que lhe assiste; agora, você está completamente por fora em como os computadores vem sendo usados nos negócios, na segurança, na saúde e na educação. Há peritos que chegam até a prever que, não demora muito, os computadores nos colégios poderiam se encarregar da maior parte das tarefas do ensino”, disse-lhe.
“E isso é bom?’, indagou Maggie.
“Claro!”, foi minha resposta. “Desobriga os professores de uma porção de futilidades e lhes dá tempo para fazerem coisas mais importantes, como por exemplo manter a ordem, ou fiscalizar os alunos para que não gravem suas iniciais na pintura de computadores. A verdade é que os garotos e as máquinas eletrônicas possuem uma afinidade natural. Eles se dão melhor entre si do que com os professores ou os pais.”
“Sei disso”, concordou ela. “Às vezes tenho a sensação de que os adultos estão ficando meio defasados.”
“Tenha calma”, reconfortei-a . “Se tivéssemos algo a temer por parte dos computadores, as autoridades iriam confiar a eles (como o fazem) nossos segredos militares, nossas fichas médicas, nossas contas bancárias?”
“Eu preferia que você não me tivesse perguntado isso”, observou minha mulher.
“Muito bem, vamos então consultar os garotos”. Roy e Sammy acabavam de chegar de bicicleta.
“Vocês acham que as crianças estão ficando dependentes demais das máquinas?’, perguntei. “Os computadores e os robôs estão tirando o lugar das pessoas?’
“Hein?”, indagaram nossos filhos de uma só voz.
‘Tirem esses malditos fones dos ouvidos!”, ordenei. Repeti as perguntas.
Os dois opinaram que, para dizer a verdade, estávamos até atrasados em matéria de robôs computadorizados. “No Japão”, afirmou Roy, “os robôs são mais usados do que em qualquer outro lugar.”
“Os japoneses não os tratam como máquinas”, acrescentou Sammy. “Dão nomes a eles, desejam-lhes bom dia e boa noite. Raciocinam assim: seja legal com o seu robô, que ele será legal com você.”
“Quem contou isso tudo para vocês?, indagou Maggie. “Seu professor ou uma das suas máquinas?’
A maioria das informações deles provinha de filmes de ficção científica, como A ilha do Dr. Kyomoto.
“É a história de um cientista que quer conquistar o mundo”, informou-nos Roy. “Ele vive numa ilha em que não há pessoa alguma, só robôs; e fabrica uma porção de máquinas fotográficas e barbeadores elétricos com minúsculos robôs embutidos. Depois vende tudo bem baratinho, em lugares onde generais e almirantes costumam se encontrar, para estes comprarem os artigos e o cientista poder descobrir os planos secretos deles.”
Não pude deixar de sorrir. Não que os japoneses não sejam engenhosos, mas... Olhei para o meu relógio de pulso: era japonês. Incrível como eles conseguiam vender tão barato um relógio ótimo”
Roy prosseguiu: “Os robozinhos hipnotizam as pessoas que os utilizam...só esqueci é como exatamente eles fazem isso!”
“Impressões subliminares”, comentei.
Ele me olhou espantado. “Você viu o filme?”
Sorri. Por acaso tenho uma percepção bastante profunda da mentalidade oriental. “Vá em frente com a sua história”, sugeri.
“O Dr. Kyomoto está prontinho para conquistar o mundo”, continuou Roy. “Só que os robôs espiões já viram as vantagens da democracia, de modo que transmitem informações falsas. O doutor acaba sendo destruído pela sua própria bomba.”
Olhei par aMaggie. “Um filme e tanto.”
Sammy seguia com a narrativa. “Então os robôs fabricam mais robôs...”
“Está bem”, interrompeu Maggie. “Chega dessa história. Do contrário, vamos todos ter pesadelos!”
Na verdade é bastante divertido ver as coisas em que essa garotada acredita. É, mas quando se pensa a sério no assunto...
“Você sabe”, comentei depois com Maggie, enquanto nos preparávamos para dormir, “se a gente realmente quisesse instalar microfones escondidos no país inteiro, não haveria processo melhor do que vender televisores e câmaras mais baratos do que todo mundo. Veja por exemplo o nosso caso: a gente tem artigos japoneses pela casa inteira. Em 50 anos os computadores progrediram tanto quanto a humanidade em 50 mil. O Q. I. deles continua duplicando, triplicando, e o nosso ficou na mesma. Qualquer dia...”
“Tolice”, respondeu ela. “Se algum dia eles chegassem a ser mais inteligentes que nós, pararíamos de fabrica-los.”
“Se soubéssemos disso, claro que sim”, comecei, “mas eles se fariam de bobos. A essa altura é evidente que eles já estariam fabricando seus próprios robôs.”
“O que você está dizendo é que eles poderiam tomar conta do mundo a qualquer momento...no ano que vem, por exemplo?’
“No próximo ano, este ano...” Vesti o meu pijama.
Maggie deu um risinho. “É só uma questão de tempo.”
Havia outra coisa me grilando. “Nos noticiários”, observei, “você já reparou como os políticos se mexem aos trancos? Como a expressão deles parece vidrada?”
Maggie concordou, inclinando a cabeça. “É apenas uma questão de tempo.”
“Toda vez que mostram os políticos em casa”, prossegui, “nunca se vê qualquer bichinho de estimação. Um cachorro haveria de saber!”
Maggie deu um bocejo. “Vamos é tratar de dormir.”
“No último domingo”, insisti, “quando o seu irmão estava aqui, pisou no ancinho, o cabo bateu na cabeça dele: você se lembra do ruído surdo que fêz? Completamente diferente do som que faz normalmente!”
Ela havia fechado os olhos.
Cantarolei uns compassos de uma musiquinha de tema japonês, e me meti na cama. A casa estava em completo silêncio. Silenciosa até demais. Tive uma daquelas sensações malucas, que a gente às vezes tem, de que há alguma coisa escutando, na escuridão. Não era Maggie: sua respiração profunda e regular me garantia isso.
“Bem”, disse eu, “boa noite a todos.”
Maggie mexeu-se. “Que foi?’
“Estou só dando boa noite.”
“Sayonara”, respondeu minha mulher...’tchauzinho’, em japonês.

quarta-feira, dezembro 20

O pastor

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1977
Autor : Frederick Forsyth

O autor dos best-sellers O dia do Chacal, O dossiê Odessa e Cães de Guerra conta aqui uma extraordinária história de Natal, colhendo seu material dos dias em que, com 19 anos, era um dos mais jovens pilotos da Real Força Aérea. Esta História foi inicialmente escrita como um presente de Natal para sua mulher.

Durante um breve momento, enquanto aguardava da torre de controle permissão para decolar, deu uma olhada através da cúpula da carlinga pelos campos alemães à minha volta. Estavam brancos e ondulantes sob o crepitante luar de dezembro.
À minha frente, durante atenta espera da voz do controlador de tráfego que me chegaria pelos fones, eu via estender-se a pista, uma lisa faixa escura, ladeada de duas fileiras de luzes brilhantes.
Minutos depois que eu levantasse vôo, as luzes se apagariam, pois nessa noite não haveria aviadores errantes olhando para a terra e confirmando suas posições. Estávamos na noite de Natal, no ano da graça de 1957, e eu era um jovem piloto procurando voltar para casa para comemorar a data.
“Charlie Delta, pronto para decolar!” A voz do controlador arrancou-me de meus devaneios, ressoando em meus fones como se ele estivesse ali comigo, em minha minúscula carlinga, gritando ao meu ouvido.
Avancei a manete para frente com a mão esquerda. Por detrás de mim, o gemido apagado do motor aumentou até tornar-se um grito. Quando o fim da pista passou a toda a velocidade sob meus pés, fiz que o meu jato Vampire descrevesse uma curva de subida suave para a esquerda.
Por baixo e atrás de mim, ouvi o ruído seco das rodas entrando em seus compartimentos, e senti que o jato dava um salto para frente, livre da resistência do trem de aterragem. Mantive-o na curva ascendente, pressionando o botão do rádio com o polegar esquerdo.
“Charlie Delta, decolagem efetuada, com trem em cima e travado”, disse eu em minha máscara de oxigênio.
“Charlie Delta, OK. Mude para o canal D”, respondeu o homem que estava de serviço na torre, e, antes que eu pudesse mudar o rádio de canal, acrescentou: “Feliz Natal!”
É claro que isso era inteiramente contra as normas do uso do rádio. Naquele tempo eu era muito moço, e extremamente consciencioso. Apesar disso, respondi: “Obrigado, torre. Feliz Natal para você também!” A seguir, sintonizei o rádio na freqüência do Controle Aéreo da RAF na Alemanha do Norte.
Sobre minha coxa direita estava aberto o mapa com a minha rota traçada a tinta azul, mas eu sabia de cor todos os detalhes. Sessenta e seis minutos de vôo, inclusive com o tempo de descida e pouso, e o Vampire tinha combustível para mais 80 minutos no ar.
Ao virar sobre o aeroporto de Celle, a 1.500m de altitude, observei o ponteiro de minha bússola fixar-se numa rota de 265º. O nariz do aparelho estava voltado para a abóboda negra e gelada do céu envolto na noite, pontilhado de estrelas tão brilhantes que lançavam centelhas brancas contra meus olhos. Embaixo, o mapa em preto e branco da Alemanha do Norte estava tornando-se cada vez menor, com as massas escuras das florestas de pinheiros confundindo-se com as claras vastidões dos campos. Aqui e ali, uma vila ou uma pequena cidade com suas luzes cintilando. Lá embaixo, por entre ruas alegremente iluminadas, devia haver gente entoando cânticos de Natal, batendo às portas engalanadas de azevinho para cantar Noite Feliz. Seiscentos e tantos quilômetros à minha frente, seria o mesmo: as canções em minha própria língua, mas muitas das melodias idênticas.
Quer se diga Weihnacht ou Christmas, tudo é Natal em todo o mundo cristão – e era bom estar a caminho de casa. A hora do café da manhã, eu estaria festejando a data com a minha família.
O altímetro marcava 8.300m. reduzi a marcha do motor, aliviando as manetes, para ter uma velocidade de 900km, e mantive-a fixa nos 265º. Num ponto abaixo de mim, estaria ficando para trás, na escuridão, a fronteira holandesa. Eu já tinha 21 minutos de vôo.
O problema começou de maneira tão despercebida que levei alguns minutos para compreender que qualquer coisa não ia bem. O primeiro sinal de anormalidade que tive ocorreu quando dei uma olhada para verificar minha rota na bússola. A agulha, em vez de estar firme nos 265º, oscilava à toa pelo mostrador, passando de Leste para Oeste, de Sul a Norte sem qualquer justificativa.
Roguei contra a bússola uma praga muito imprópria para o espírito de Natal, mas até que o problema não era muito grave: havia uma outra bússola de reserva, a bússola de álcool; mas, assim que a observei de relance, vi que havia também algo de errado com ela – a agulha dançava como uma doida. Por certo, alguma coisa tinha batido contra a caixa, o que não é raro acontecer. Em qualquer caso, eu podia chamar o controle de Lakenheath dentro de minutos, e dali me dariam um PCT (Pouso Controlado de Terra), ou seja, as instruções de segundo a segundo que um aeroporto bem equipado pode dar a um piloto para faze-lo pousar, mesmo nas piores condições de tempo.
Antes de tentar Lakenheath, o procedimento correto seria informar o canal D (com o qual eu estava sintonizado) de meu pequeno problema, a fim de que ele pudesse avisar Lakenheath que eu estava voando sem bússola. Apertei o botão de transmissão e chamei:
“Charlie Delta. Charlie Delta, chamando Controle de Beveland do Note...”
Parei. Não adiantava continuar. Em vez do intenso crepitar da estática e do som agudo de minha própria voz de volta nos ouvidos, havia apenas um murmúrio abafado no interior de minha máscara de oxigênio. Era a minha própria voz falando... sem passar dali, tentei de novo. O mesmo resultado. Muito atrás, através das vastidões negras e implacáveis do mar do Norte, nos aquecidos e confortáveis edifícios de concreto do Controle de Beveland do Norte, o pessoal devia estar um pouco afastado de seus painéis de controle, conversando e bebericando seu café ou chocolate bem quente. Não poderiam ouvir-me. O rádio não funcionava.

Em último caso
Lutando contra uma crescente sensação de pânico que pode matar um piloto mais rapidamente que qualquer outra coisa, engoli em seco e contei devagar até dez. sintonizei depois o canal F, mas o silvo contínuo do meu próprio motor a jato por trás de mim era a única resposta que eu obtinha.
Enquanto eu tentava em vão fazer contato com vários canais de rádio, meus olhos sondavam o painel de instrumentos à minha frente. Eles tinham uma mensagem para me transmitir: em algum ponto, sob meus pés, entre os quilômetros de fios de várias cores que formavam os circuitos, havia um fusível queimado.
A primeira coisa a fazer em tais casos (relembrei o velho sargento Norris nos ensinado isso) era baixar os manetes, passando de uma velocidade de cruzeiro para outra mais lenta. O objetivo era conseguir o máximo de permanência em vôo.
“Não queremos gastar combustível precioso, não é verdade, meus senhores?” Provavelmente vamos precisar dele mais tarde. Devemos, então, reduzir a potência.” Fechei a manete e observei o conta-giros. Como ele funciona com gerador próprio, pelo menos com ele eu podia contar. Esperei até que o motor estivesse a 7.200 rpm, e senti que a velocidade do avião diminuíra.
Os instrumentos principais à frente dos olhos de um piloto são seis, incluindo a bússola. Os outros cinco são o anemômetro (indicador da velocidade do vento), o altímetro, o indicador de velocidade vertical, o indicador de inclinação e o indicador de glissagem ( que informa se o avião está glissando de viés, como um caranguejo, pelo céu afora). Dois deles são de funcionamento elétrico, e, com eles, tinha sucedido o mesmo que à minha bússola. Isso me deixava com os três instrumentos de funcionamento sob pressão: o anemômetro, o altímetro e o indicador de velocidade vertical. Em outras palavras: eu sabia a que velocidade ia, a que altitude me encontrava e se estava descendo ou subindo.
É perfeitamente possível pousar um avião apenas com estes três instrumentos, avaliando o resto por esses velhos auxiliares de navegação que são os olhos do homem. Possível, sim, mas em ótimas condições meteorológicas, à luz do dia e com céu sem nuvens. À noite, não.
As únicas coisas que se vêem de noite, mesmo numa noite clara de luar, são as luzes. A 8km, a norte de Norwich, sabia eu, ficava o aeroporto militar de Merriam St. George, cujo farol de luz vermelha estaria transmitindo em Morse seu sinal de identificação durante a noite. Ali, se ao menos eles tivessem o bom senso de acender as luzes do campo quando me ouvissem a pouca altitude, de um lado para o outro sobre o aeroporto, eu podia aterrar com segurança. Comecei a fazer descer o Vampire lentamente em direção à costa, que se aproximava.
A uns 4.500m, e ainda descendo, comecei a notar que um novo inimigo entrara em cena. Bm lá longe à direita e à esquerda, à minha frente e sem dúvida atrás de mim, o luar refletia-se num mar de brancura, plano e sem fim. Tinha chegado o nevoeiro de East Anglia.
Enquanto eu estivera voando para oeste, a partir da Alemanha, uma ligeira brisa, que não chamara a atenção dos homens da meteorologia, começara a soprar, deslocando uma faixa de ar ligeiramente mais quente do mar do Norte para as planícies de East Anglia.
Ali, em contato com a terra gelada, os trilhões de minúsculas partículas de umidade, no ar do mar, tinham-se condensado, formando a espécie de nevoeiro que pode cobrir uma grande extensão em cerca de meia hora. Eu não podia dizer até que ponto ele se estendera para oeste – talvez até as West Midlands, batendo contras as encostas orientais dos Apeninos! Seria inútil a tentativa de sobrevoar o nevoeiro em direção a ocidente. Sem instrumentos de navegação nem rádio, eu iria perder-me em terreno estranho, desconhecido para mim. Estava também fora de cogitação tentar voltar à Holanda, a fim de pousar numa das bases da Força Aérea Holandesa ao longo da costa; não havia combustível para isso. Confiando apenas em meus olhos para orientação, poderia aterrar na base de Merriam St. George... ou morrer entre os destroços do Vampire em algum ponto nos pântanos de Norfolk cobertos pelo nevoeiro.
A 3.000m de altitude, saí do mergulho e aumentei ligeiramente a força do motor para me manter no ar, consumindo mais do meu precioso combustível. Ainda imbuído do que aprendera na escola, lembrei-me de novo das instruções do sargento Norris:
“Quando estamos inteiramente perdidos acima de nuvens contínuas, meus senhores, temos que pensar na necessidade de abandonar o avião, certo?”
Claro, sargento! Infelizmente, sabe-se muito bem que é quase impossível saltar de pára-quedas do Vampire. Só se conhecem dois pilotos que tiveram êxito, mas perderam as pernas no salto. Enfim, pode ainda haver alguém que seja bem sucedido. Que mais, sargento?
“O que temos a fazer em primeiro lugar é, portanto, voltar o avião para o mar alto, longe de quaisquer zonas de intensa habitação humana.” As regras foram todas executadas, mas elas não mencionavam que as probabilidades de um piloto viver mais de meia hora, ao atirar-se numa noite de inverno nas águas frias do mar do Norte, eram uma em cada cem.
“Uma última providência, meus senhores, a que se deve lançar mão em último caso.”
Assim está bem melhor, sargento Norris. É num caso assim que eu me encontro agora.
“Todos os aviões que se aproximem das costas da Inglaterra são visíveis nas telas de radar do nosso sistema de alerta. Portanto, se nosso rádio não funcionar, e não pudermos transmitir nossa situação de emergência, devemos adotar um comportamento muito especial. Faremos isso tomando o caminho do mar, e voando depois em pequenos triângulos, percorrendo cada lado desse triângulos em dois minutos de vôo. Desta maneira, podemos esperar atrair a atenção. Quando tivermos sido localizados, o controlador de tráfego aéreo é informado disso e manda outro avião para socorrer-nos...”
Sim, era a última tentativa para salvar a vida. Lembrava-me agora melhor dos detalhes. O avião de socorro que nos guiaria a uma aterragem segura, voando asa contra asa, era chamado Shepherd *(literalmente, o Pastor).

Sombra negra
Olhei para o relógio. Já estava no ar há 51 minutos, e só me restavam uns 30 minutos de combustível. Virei o Vampire para a esquerda e comecei o primeiro lado de um triângulo. Dois minutos depois, virei de novo para a esquerda. Abaixo de mim, o nevoeiro estendia-se para trás a perder de vista, e para frente também, em direção a Norfolk.
Passaram se dez minutos, e eu tinha feito quase dois triângulos completos. Havia muitos anos que eu não rezava de verdade, e as palavras chegaram-me com dificuldade.
“Senhor, salva-me por favor desta encrenca miserável...” Não, não se deve falar assim com Ele. “Pai nosso, que estás no céu...”
Quando completei 72 minutos no ar, compreendi que não ia aparecer ninguém. O indicador de combustível marcava entre zero e um quarto – digamos, mais dez minutos de vôo. Senti uma onde de desespero crescer dentro de mim.
Cinco minutos depois, fiquei sabendo sem sombra de dúvidas que ia morrer naquela noite. Nem medo eu tinha; só uma tristeza imensa. Tristeza por todas as coisas que nunca haveria de fazer, pelos lugares que nunca veria, pelas pessoas que nunca mais voltaria a encontrar. Era cruel, era triste, morrer aos 20 anos de idade, com uma vida inteira ainda por viver; e o pior não era a morte; mas o pesar por tudo o que deixara de fazer.
Inclinei a asa esquerda do Vampira para o lado da Lua, a fim de completar o último lado do último triângulo.
Por baixo da extremidade da asa, lá no fundo, contra o reflexo da camada de nevoeiro, uma sombra negra cruzou a brancura. Durante um segundo, pensei que fosse minha própria sombra, mas era outro avião, sobre a massa do nevoeiro, acompanhando minha curva uns 1.000m abaixo pelo céu afora em direção ao fog.
Tentando ao máximo não acreditar que se tratasse de um avião qualquer que estivesse seguindo sua rota, prestes a desaparecer para sempre na camada de nevoeiro, empurrei o manete e comecei a descer em sua direção. Ele continuava a voar em curva e passei a fazer o mesmo. A 1.500m, compreendi que ainda estava indo muito depressa para ele. Não podia reduzir mais a marcha, com receio de o Vampire ficar abaixo da velocidade crítica e cair por falta de controle. Para diminuir ainda mais a velocidade, apliquei os freios aerodinâmicos. O Vampire estremeceu quando os freios oscilaram na corrente de ar, passando então para os 520km.
Foi nesse momento que ele se aproximou de mim, em direção à ponta de minha asa esquerda. Passamos a voar os dois em linha reta, oscilando enquanto tentávamos manter a formação. A Lua estava à minha direita, e a sombra de meu avião encobria a configuração do outro. Mesmo assim, porém, pude distinguir o brilho de duas hélices girando no céu à frente dele. Era evidente que não podia voar à minha velocidade: eu pilotava um caça a jato, e o outro era apenas um avião a motor de pistões, de modelo obsoleto.
Ele manteve-se ao meu lado durante alguns segundos; depois, inclinou-se suavemente para a esquerda. Pela posição da Lua, prestes a desaparecer, eu sabia que seguíamos com rumo à costa de Norfolk, e, pela primeira vez, pude ver bem o avião. Para surpresa minha, o meu “pastor” era um De Havilland Mosquito, um modelo de caça-bombardeiro muito usado na Segunda Guerra Mundial.
Lembrei-me então de que a Esquadrilha Meteorológica em Glouceste usava Mosquitos ( os últimos que ainda voavam) como auxílio para previsões do tempo.
Dentro da carlinga do Mosquito pude distinguir, contra a luz da Lua, o piloto, com a mão direita na janela, os dedos esticados, a palma para baixo. Apontou para frente e para baixo, querendo dizer com isso: “Vamos descer.”
Fiz que sim com a cabeça e, rapidamente levantei a mão esquerda para que ele pudesse vê-la, apontando em frente, para o meu painel de comando, com um dedo indicador, e depois erguendo a mão com os cinco dedos bem abertos. Por fim, passei a mão pela garganta. Por convenção, estes sinais significam: tenho apenas combustível para cinco minutos; depois, o meu motor pára. Vi a cabeça, protegida dentro da máscara de oxigênio, e de óculos, acenar que tinha compreendido; então, começamos a descer em direção ao nevoeiro. A velocidade dele aumentou, e eu recolhi os freios de ar.
A 100m, ele interrompeu a descida. O nevoeiro ainda estava por baixo de nós. A camada de neblina estendia-se provavelmente apenas do solo até 30m de altura, mas isso era mais do que suficiente para impedir que um avião pudesse pousar sem controle de terra. Eu bem podia imaginar a torrente de instruções que chegavam do posto de radar aos fones do homem que voava a meu lado. Eu não tirava os olhos dele, com receio de perde-lo de vista por um instante que fosse, observando todos os sinais que fazia com as mãos.

“Vá em frente e pouse!”
Dois minutos mais tarde, levantou o punho esquerdo, fechado, contra a janela, e a seguir abriu-o, encostando os cinco dedos estendidos no vidro. “Baixe seu trem de aterragem.”
O piloto do avião-guia apontava de novo para baixo, para outra descida. Pude ver então o nariz do Mosquito, onde estavam pintadas, grandes e pretas, as letras JK. Deviam ser o código de chamada da rádio Jig King.
Ele voltou a pôr-se na horizontal logo por cima da camada de nevoeiro tão baixo que seus contornos superficiais, como algodão-doce, batiam em nossas fuselagens. Fizemos uma curva circular firme. Consegui dar uma olhada em meu indicador de combustível: estava no zero, pulsando fracamente. Pelo amor de Deus, mais rápido, balbuciei numa prece.
Voltei a vê-lo um segundo mais tarde, e vi-o fazer com a mão esquerda o sinal de “descida”. Ele baixou então para dentro do nevoeiro e eu o segui. Ali íamos nós, numa descida pouco acentuada, suave, mas uma descida apesar de tudo, e de poucas dezenas de metros, para o nada.
Passar de um céu, mesmo escassamente iluminado, para dentro das nuvens ou do nevoeiro é como entrar num banho de algodão cinzento. De repente, nada mais há além daquela massa acinzentada em turbilhão, milhões de gotículas que avançam para nos cortar caminho e nos estrangular – só que agora, a apenas uns dez metros à minha frente, estava o vulto de um Mosquito que voava com absoluta segurança em direção a alguma coisa que eu não podia ver.
Mantendo a formação com o Mosquito, percebi que ele diminuía a marcha, pois eu também estava desacelerando, descendo e reduzindo a velocidade. Numa fração de segundo, corri os olhos pelos dois instrumentos de que necessitava: o altímetro marcava zero, e o indicador de combustível também; nenhum dos ponteiros mexia sequer. Num relance, vi que o indicador de velocidade marcava 220km – e aquele maldito caixão em que eu me achava despencaria do céu aos 170km.
Sem aviso, o piloto do Mosquito apontou o indicador para mim, e, depois, para além do pára-brisas. Queria dizer: “Pronto. Vá em frente e pouse!” Olhei para frente, através do meu pára-brisas, agora todo enevoado. Nada! Depois, sim, qualquer coisa. Uma sombra à esquerda, outra à direita; depois duas, uma de cada lado. Cercadas de bruma, havia luzes de um lado e de outro, aos pares, passando como relâmpagos. Concentrei o olhar para ver se distinguia o que se encontrava no meio delas. Nada, a não ser escuridão. Depois, uma risca pintada correndo sob meus pés: a linha central da pista. Freneticamente, desliguei a propulsão e mantive o aparelho estabilizado, rezando para que o Vampire pousasse bem.
As luzes vinham agora subindo, e chegaram quase ao nível dos olhos, mas o avião ainda não estava em terra. Pam! Tocamos o solo. Pam-pam! Outro choque. Pam-pam-papam.rrr! Agora estávamos em terra. As rodas principais tinham tocado o solo... e agüentado.
Acionei os freios, e o nariz também abaixou em relação à pista de aterragem. Uma pequena pressão dos freios para manter o avião em linha reta evitando a derrapagem; mais pressão nesses freios para não sair da pista. As luzes iam passando mais devagar, mais devagar, cada vez mais devagar...
O Vampire parou. Notei que as minhas mãos estavam crispadas na alavanca de comando, apertando o comando de freio. Não sei quantos segundos as segurei ali, até acreditar que tínhamos mesmo parado. Por fim, convenci-me. Acionei o freio de estacionamento e soltei o central. Não era necessário desligar o motor; ele tinha ficado sem combustível enquanto o Vampire corria pela pista. Desliguei todos os outros sistemas e, lentamente, comecei a libertar-me da poltrona. Foi quando um movimento atraiu meu olhar. À minha esquerda, no nevoeiro, a cerca de 15m acima de mim, num vôo rasante com as rodas recolhidas, o Mosquito passou roncando. Vi de relance a mão do piloto na janela lateral; depois, desapareceu de novo no nevoeiro, antes que ele pudesse ver meu gesto de agradecimento. Eu, porém, já tinha decidido telefonar para a RAF, em Gloucester, e agradecer-lhe pessoalmente.

Sorte danada!
Esperava que o carro da torre de controle aparecesse daí a segundos porque, numa aterragem de emergência, mesmo na véspera de Natal, deviam estar sempre de prontidão o carro de bombeiros, a ambulância e meia dúzia de outros veículos. Ninguém chegou... pelo menos durante os primeiros dez minutos.
Quando os dois faróis de um carro emergiram do nevoeiro, eu já me sentia enregelar. As luzes pararam a poucos metros do Vampire ali imobilizado, e o carro parecia insignificante diante do vulto do avião de caça. Nisto, ouviu-se uma voz: “Alo!”
Desci da carlinga, saltei da asa para o campo corri na direção dos faróis. Não havia nele qualquer distintivo de identificação da Força Aérea. Perto do carro, vi um rosto gordo, de quem gostava de cerveja, com um bigode caído. Pelo menos, usava um boné de oficial da RAF. Olhou espantado para mim, enquanto eu surgia envolto no nevoeiro.
“Isso aí é seu?” perguntou ele, acenando com a cabeça para o vulto escuro do Vampire.
“É, acabei de pousar.”
“Incrível!”, disse ele. “Absolutamente incrível!”
Fiquei muito contente por me sentir no calor do carro... e muito mais ainda por estar vivo.
“Você teve uma sorte danada!”, disse ele – ou, antes gritou, porque o motor estava engrenado numa barulhenta primeira.
“Tive mesmo”, concordei. Meu combustível acabou precisamente quando eu estava pousando. O rádio e todo o sistema elétrico pifaram há quase 50 minutos, sobre o mar do Norte.
“Sem rádio?”
“Sem rádio”, confirmei. “Todos os canais mudos.”
“Então, como foi que você encontrou este lugar?”
“Fui guiado até aqui”, expliquei pacientemente.
Ele encolheu os ombros, como para dizer: “Bem, se insiste.” Ao fim de algum tempo, disse: “Em todo caso, foi uma sorte danada. Não entendo é como o outro conseguiu encontrar isso aqui.”
“Não havia problema nenhum”, respondi-lhe. “O avião dele era um dos aparelhos de meteorologia da RAF em Gloucester. Evidentemente ele tinha rádio; por isso, viemos até aqui em formação, por meio de PCT. Depois, quando eu vi as luzes à beira da pista, pousei sozinho.”
O homem tinha mesmo a cabeça dura – e, além do mais, estava bêbado.
“Incrível!”, disse ele, chupando uma gota perdida de umidade do seu bigodão. “Não temos PCT. Aqui não há nenhum equipamento de navegação, nem mesmo um farol.”
Era agora a minha vez de colher informações.
“Mas aqui não é a base da RAF de Merriam St. George?”, perguntei com voz apagada.
“Não”, respondeu ele. “Aqui é a base de Minton da RAF.”
“Nunca ouvi falar dela”, disse eu por fim.
“Não é de admirar. Estamos fora de funcionamento há anos. Minton agora é um depósito de abastecimentos. Com licença... um instante.”
Parou o carro e saltou.
“Fui só apagar as luzes da pista”, informou ele, e arrotou.
Senti a cabeça tonta. Tudo aquilo era absurdo, doido, ilógico – mas tinha que haver uma explicação razoável.
“Por que foi, então, que você as acendeu?”, perguntei eu.
“Porque ouvi o barulho do seu motor”, respondeu-me. “Eu estava no cassino dos oficiais bebendo um trago quando o velho Joe me pediu que chegasse um instante à janela e escutasse. Foi então que vi você dando voltas bem por cima de nós. Que tremendo nevoeiro hoje.”
“Onde é que fica exatamente então a base Minton?” perguntei-lhe.
“A 8km da costa, em linha reta para dentro de Cromer. É onde nós estamos.”
“E onde é a base da RAF mais próxima com todo o equipamento de rádio?”
Ele pensou um instante e respondeu: “Deve ser a base de Merriam St. George. Não pode deixar de haver tudo isso lá. Escute aqui, eu sou só um almoxarife.”
Era essa a explicação. O amigo desconhecido do avião de meteorologia me levara direto da costa para Merriam St. George. Por sorte, Minton ficava precisamente a caminho da pista de Merriam. O controlador desta base deve ter pedido que andássemos em círculo enquanto ele acendia as luzes da pista, e este velhote tinha acendido suas luzes também. Resultado: Chegando ali por um último esforço, eu fora pousar o meu Vampire no aeroporto errado. Meu combustível tinha acabado precisamente quando eu me encontrava bem no meio da pista. Eu nunca poderia chegar a Merriam, a 16km de distância. Teria ido arrebentar meu avião nos campos por falta de pontos de referência.

Sem querer acreditar
No momento em que acabei de elaborar essa explicação racional da minha presença naquele aeroporto quase abandonado, chegamos ao cassino dos oficiais. Meu anfitrião, que se apresentou como tenente Marks, despiu seu sobretudo de pele de carneiro e jogou-o em cima de uma cadeira. Vestia as calças do uniforme, mas com um espesso pulôver azul em vez da jaqueta. Dever ser horrível passar o Natal sem serviço num buraco daqueles.
Levou-me para um escritório, onde havia uma cadeira, uma mesa sem nada em cima e um telefone. Chamei a telefonista local e, enquanto esperava, Marks voltou com um copo de uísque. Habitualmente, é raro eu tocar em álcool, mas a bebida me aqueceria, de modo que lhe agradeci quando ele saía para entender-se com o encarregado. Meu relógio marcava quase meia-noite. Droga de maneira de passar o Natal!, pensei eu. Lembrei então de que, 30 minutos antes, eu estivera suplicando a Deus qualquer auxílio – e senti-me envergonhado.
“Base Merriam St. George da RAF”, disse uma voz de homem ao telefone. Devia ser o sargento de serviço falando da sala da guarda, pensei eu.
“Controle de Tráfego Aéreo, por favor”, solicitei-lhe. Houve então uma pausa.
“Desculpe”, disse a voz, “mas posso saber quem está falando?”
Dei meu nome e minha patente. “Estou falando da Base Minton da RAF”, expliquei-lhe.
“Compreendo, mas lamento dizer-lhe que não há vôos esta noite. Ninguém de serviço no Controle de Tráfego Aéreo. Há apenas alguns no cassino.”
Quando consegui falar com o oficial de serviço da base, percebia-se que ele estava no cassino, porque me chegava o som de conversa animada atrás dele.
Respirei fundo e comecei pelo princípio.
“Portanto, como o senhor vê, fui interceptado pelo avião dos serviços meteorológicos de Gluceste e foi ele quem me encaminhou. Neste nevoeiro, porém, deve ter havido um PCT; não há outra maneira de aterrar. Mas, quando vi as luzes de Minton, pousei pensando que era Merriam St. George.”
“Mas nós estamos fechados”, disse ele. “Encerramos todo o expediente às 17:00. Não tivemos qualquer chamada para ficarmos de vigilância.”
“Mas a base Merriam St. George tem PCT”, insisti.
“Eu sei que temos”, gritou ele, “mas não foi usado esta noite. Está fechado desde as 17:00.”
Fiz a pergunta seguinte pausadamente e com todo o cuidado.
“Sabe qual é a base mais próxima da RAF que trabalhe na faixa de 121,5 megaciclos durante a noite, e qual a mais próxima daqui que mantenha um serviço de escuta de chamadas de emergência 24 horas por dia?”
“Sei”, disse ele, também lentamente. “A oeste, a base de Marham da RAF; ao sul, a base de Lakenheath da RAF. Boa noite, Feliz Natal.”
Pus o fone no gancho. Marham ficava a 65 km, do outro lado de Norfolk, e Lakenheath, a 65km ao sul, em Suffolk. Com o combustível que me restava, eu não poderia chegar a Merriam St. George, que não estava nem aberta. Como poderia então ter alcançado Marham ou Lakengeath? Eu havia dito ao piloto daquele Mosquito que só tinha combustível para cinco minutos. Ele fizera sinal de haver compreendido. De qualquer modo, ele estava voando afastado, muito baixo, depois de termos mergulhado no nevoeiro, e não poderia cobrir 56km assim. O homem devia estar doido.
Comecei então a tomar consciência de que, na realidade, eu não devia a vida ao piloto da meteorologia de Gloucester, mas ao tenente Marks, apreciador de cerveja, ao tenente Marks, resmungão e há muito ultrapassado, que não sabia distinguir a frente de um avião de outra, mas que tinha feito 400m através do nevoeiro para acender as luzes de uma velha pista porque ouvira um jato dando voltas no ar perto demais da terra. Ainda assim, o piloto do Mosquito já devia estar agora de volta a Gloucester, e ele merecia saber que, apesar de tudo, eu estava vivo.
“Gouceste?”, perguntou a telefonista. “A esta hora da noite?”
Uma coisa que se pode dizer sobre as esquadrilhas da meteorologia é que elas está sempre em serviço. O meteorologista de plantão recebeu a chamada. Expliquei-lhe o que se passava.
“Desculpe, mas deve haver algum engano, tenente”, disse ele. “Não podia ser um dos nossos. Os Mosquitos foram retirados se serviço há três meses. Agora usamos Camberras.”
Sentei-me com o telefone na mão, olhando para ele sem querer acreditar. Veio-me então uma idéia.
“Que foi feito deles?” perguntei eu. Meu interlocutor deve ter sido combatente, homem já de certa idade – e de grande gentileza e paciência para suportar perguntas tão idiotas àquela hora.
“Foram par a sucata, creio eu, ou é mais provável que tenham ido para museus.”
“Um deles não poderia ter sido vendido a algum particular?”
“É possível”, disse ele por fim.

E Feliz Natal
Desliguei o telefone e sacudi a cabeça, perplexo. Que noite! Que noite incrível! Primeiro, meu rádio e todos os meus instrumentos deixam de funcionar; depois quem se perde sou eu e fico sem combustível. Em seguida, sou levado a reboque por um lunático insensato, apaixonado por aviões obsoletos (pilotando o seu próprio Mosquito, noite adentro), que, por acaso, me avista, chega tão perto de mim que quase me faz cair, e, por fim, um oficial de serviço em terra, meio bêbado, tem a idéia de acender as luzes da pista a tempo de me salvar. Difícil ter mais sorte! Uma coisa, porém, era certa; aquele amador, verdadeiro ás, não tinha a mais leve idéia do que estava fazendo. Por outro lado, onde estaria eu agora se não fosse ele? Boiando morto no mar do Norte, a esta hora.
Tomei o resto do uísque num brinde a ele e à sua estranha paixão de pilotar aviões velhos em vôos particulares. Nesse momento, o tenente Marks pôs a cabeça à porta.
“Seu quarto está pronto”, disse-me. “Número 17, mesmo ao fundo do corredor. Joe foi acender o fogo para você. A água do banho está esquentando. Se não se incomodar, acho que vou dormir.”
Peguei meu capacete e dirigi-me para o fundo do corredor ladeado de números de quartos de oficiais solteiros há muito destacados para outros postos. Da porta do 17, saía uma réstia de luz. Quando entrei no quarto, um homem já idoso, que estava ajoelhado em frente à lareira, levantou-se. Levei um susto. Os encarregados dos cassinos são em geral homens a serviço da RAF. Aquele, no entanto, devia ter quase 70 anos e era, sem dúvida, um civil, recrutado no local.
“Boa noite, tenente”, disse ele. “Sou Joe... o encarregado do cassino.”
“Eu sei, Joe, o tenente Marks me falou a seu respeito. Sinto muito dar-lhe tanto trabalho a esta hora da noite. Acabo de aparecer aqui, por assim dizer.”
“O tenente Marks me disse.”
‘Já está aqui há muito tempo, Joe?”, perguntei eu, mais por cortesia do que propriamente por curiosidade.
“Há quase 20 anos. Desde pouco antes da guerra, quando a base foi instalada.”
“Então viu muitas coisas mudarem, não é? Nem sempre as coisas devem ter sido como são hoje.”
“Não eram não.” Então, contou-me sobre o tempo em que os quartos viviam repletos de jovens pilotos, cheios de vida, quando a sala de jantar ressoava com vivo ruído do bater de pratos e talheres, e o bar se animava com as canções alegres; falou dos meses e anos durante os quais o céu acima da base crepitava com o ronco dos motores a hélice, levando aviões para a guerra e trazendo-os de volta.
Enquanto ele falava, esvaziei o que restava de meia garrafa de vinho tinto que ele tinha trazido da cantina. Joe era um bom empregado. Depois de engolir um prato de bacon com ovos que ele tinha preparado, levantei-me da mesa, tirei um cigarro do bolso de meu macacão de vôo, acendi-o e dei uma volta pelo quarto. Ele começou a tirar a mesa. Parei em frente de uma velha fotografia emoldurada, sozinha no consolo da lareira por cima do fogo. Parei com o cigarro a meio dos lábios, sentindo que o quarto de repente ficava frio.
A fotografia era já velha e amarelecida, mas ainda estava suficientemente nítida. Mostrava um jovem mais ou menos de minha idade, vestido com equipamento de vôo. Fixava a câmara com implacável intensidade.
Atrás dele, bem visível, estava seu avião. Não podia haver engano: era a silhueta esguia, brilhante, do caça-bombardeiro Mosquito.
“Quem é o piloto, Joe?”
“Que piloto?”
Fiz sinal com a cabeça para a fotografia isolada, por cima da lareira.
“Ah, sim. É a fotografia de John Kavanagh. Esteve aqui durante a guerra.”
Pôs o copo do vinho em cima dos pratos.
“Kavanagh?” Aproximei-me de novo da fotografia e examinei-a de perto.
“Sim, era irlandês. Excelente homem, se posso falar assim. Este era justamente o seu quarto.”
“De que esquadrilha era ele, Joe?” perguntei-lhe, ainda observando o avião em segundo plano.
“Dos Pioneiros, tenente. Eles voavam Mosquitos. Excelentes pilotos, todos eles, senhor. Mas eu arriscaria dizer que Johnny era o melhor de todos. Talvez eu seja suspeito para falar. Era ordenança dele, entende?”
Não havia dúvida. As letras um tanto esmaecidas no nariz do Mosquito, por detrás do piloto na fotografia, eram JK. Não Jig King, mas Johnny Kavahagh.
Tudo era agora claro como água. Kavanagh tinha sido um excelente piloto, voando numa das esquadrilhas de elite durante a guerra. Depois, havia saído da Força Aérea, dedicando-se provavelmente à venda de carros de segunda mão, como vários fizeram. Assim, ganhara muito dinheiro na próspera década de 1950, comprara provavelmente uma bela casa de campo, e assim ficara com dinheiro suficiente para se entregar à sua verdadeira paixão, que era voar –ou, melhor, reviver o passado, seus dias de glória. Tinha comprado um velho Mosquito num dos leilões periódicos que a RAF faz de seu material obsoleto. Depois de bota-lo no ponto, voava particularmente nele sempre que lhe dava na veneta. Não é má idéia para passar as horas livres, uma vez que se tenha dinheiro.
Ele devia estar, portanto, de regresso de qualquer viagem à Europa, e, vendo-me voar em triângulos por cima da camada de nuvens, compreendeu que eu estava em dificuldade e serviu-me de guia. Determinando com precisão sua posição, graças aos sinais cruzados dos radiofaróis, e conhecendo de cor aquela resga de costa, tinha tomado o risco de procurar sua antiga base aérea de Minton, apesar do denso nevoeiro. Era um risco dos diabos, mas, de qualquer maneira, eu não tinha mais combustível, de modo que seria aquilo ou a tragédia.
Não tinha dúvida de que podia encontrar esse homem, provavelmente até por intermédio do Real Aeroclube.
“Era com certeza um bom piloto”, disse eu com ar de reflexão, pensando em sua atuação naquela noite.
“O melhor de todos”, respondeu o velho Joe por atrás de mim. “Diziam que ele tinha olhos de gato. Eu me lembro de que muitas vezes, quando a esquadrilha regressava, depois de lançar foguetes de reconhecimento sobre os alvos a serem bombardeados na Alemanha, o resto dos jovens ia ao bar tomar uma bebida, provavelmente várias até.”
“E ele não bebia?” perguntei.
“Bebia, sim, mas a maior parte das vezes ia encher de novo o tanque e decolava sozinho, voltando para o canal da Mancha ou para o mar do Norte em busca de algum bombardeiro em dificuldades à procura da costa, para guia-lo de volta à base.”
Tirei os olhos da fotografia e apaguei o cigarro no cinzeiro ao lado da cama. Joe estava à porta.
“Um verdadeiro homem”, disse eu com toda a sinceridade. Ainda hoje, já de meia-idade, não deixava de ser um soberbo voador.
“Ah, sim, um verdadeiro homem, o Kavahagh. Lembro-me de uma vez me dizer aí, precisamente onde o senhor está, diante do fogo: “Joe, seja onde for que se encontre um deles por aí, na noite, tentando regressar, eu vou lá busca-lo e traze-lo para a base.”
Fiz um sinal comovido de assentimento. Era evidente que o velho Joe adorava o seu oficial do tempo de guerra.
“Bem”, disse eu, “ao que parece, ele ainda continua fazendo a mesma coisa.”
O velho Joe sorriu.
“Seria muito difícil acreditar, tenente. Ele saiu em seu último vôo de patrulhamento na véspera do Natal de 1943, há precisamente 14 anos, e nunca mais voltou. Caiu com o avião em algum ponto do mar do Norte... E agora, tenente, boa noite e Feliz Natal.”

segunda-feira, dezembro 18

Um Papai Noel inusitado

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 2004
Autor : Marc Howard Wilson

O inverno que se seguiu ao 11 de setembro foi difícil para mim. Eu havia acabado de deixar o rabinato em Greenville, Carolina do Sul, embarcando no que seria um longo período de desemprego e, em plena meia-idade, muitos dias de depressão. Sentia um enorme vazio. Minha única alegria foi ter comigo os netos, Sophie e Simeon, para o Hanukkah, mas, quando eles voltaram para casa, de novo o estado de espírito sombrio e o vazio interior tomaram conta de mim. Foi então que minha mulher, Linda, diretora de uma instituição de caridade para os sem-teto, sugeriu que eu me vestisse de Papai Noel para 30 crianças, na programação natalina de uma repartição municipal. Como dizia ela, eu parecia o velhinho. Tenho barriga e barba cheia, quase branca.
Embora eu seja judeu, a questão de esbarrar em costumes e fronteiras religiosas não me preocupava: sempre acreditei em incentivar as pessoas a serem menos rígidas em relação a essas delimitações. Ainda assim, por motivos que nada tem a ver com religião, naquele ano, não estava animado. Mas Linda insistiu que a vida continuava. Então, comecei a treinar meus sonoros “Ho-ho-hos”.
Eu não estava preparado para aqueles 30 pares de olhos que se cravaram em mim quando cheguei. “Papai Noel! Papai Noel! Olhe meus sapatos novos! Papai Noel! Eu me comportei direitinho, Papai Noel! A gente pode cantar Sinos de Belém?”
As crianças voaram para cima de mim, aos beijos e abraços. Todas se sentaram em meu colo e posaram para fotografias, e dei a cada uma delas um presente: um ursinho de pelúcia, uma boneca, um livro para colorir.
A alegria desinibida a as vozes entusiasmadas me trouxeram lágrimas aos olhos. Senti uma onda de compaixão. Aquelas crianças eram o presente mais frágil de Deus a uma mundo frio: dádivas de inocência. Essa percepção confirmou para mim as profundas verdades da palavra de Deus. Aquelas crianças sem teto me arrancaram da insegurança e da desilusão. Naquele instante precioso, perdi a cabeça e recobrei a sanidade.