segunda-feira, dezembro 11

Getúlio, meu financista inesquecível

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1981
Autor : Bernardo Teixeira

Vivendo em tão altas rodas financeiras, qualquer mau passo havia de ser fatal para aquele pobre homem.

Ele dizia chamar-se Getúlio Martins e ser brasileiro – filho único de um banqueiro do Brasil, morto em duelo por um ex-príncipe da Rússia, e de uma cantora de ópera austríaca, desaparecida num naufrágio ao largo da costa de Madagascar. Havia herdado uns milhões (cruzeiros? Dólares? Libras?), mas sua sólida fortuna atual, obtida depois da morte do pai, fora conseguida através de inteligentes investimentos em operações petrolíferas, empresas de navegação, metalúrgicas e, evidentemente, no mercado da Bolsa.
Seu background era bastante romântico, mas a figura de Getúlio Martins era uma lástima. Deveria ter quarenta e poucos anos, mas parecia muito mais velho. Tinha uma aparência nitidamente de subalimentado, e, quanto a asseio, nem se fala.
Quando meu amigo Fernando e eu o conhecemos, na década de 1940, no Café da Brasileira ( no Chiado, em Lisboa, local favorito de reunião de empresários, intelectuais, pseudo-intelectuais e estudantes como nós), Getúlio estava andrajosamente vestido e tinha a barba por fazer. Dois de seus dentes incisivos eram podres. Mas, quando falava das suas jogadas geniais que lhe haviam granjeado milhões, seus pequeninos olhos castanhos brilhavam com tal fulgor que dava prazer ver.
Jogando alto. Getúlio geralmente chegava à Brasileira por volta do meio-dia, e ficava ali até as seis ou sete da tarde. Durante esse tempo todo, tomava três ou quatro cafezinhos. Assim que o garçom se aproximava com a modesta conta, Getúlio sacava da sua sebenta carteira de couro e procurava, em vão, uns trocadinhos para pagar. Havia sempre alguém que, invariavelmente pagava os cafezinhos.
Vivia numa pensão barata das redondezas (“para ter privacidade”, como ele explicava), mas freqüentemente falava do seu criado inglês, Parker, e do seu cachorro fox-terrier, Spitfire. Trazia sempre consigo velhos números do Financial Times, de Londres, e do Wall Street Journal.
Estendia esses dois jornais sobre a mesa, para estudar as flutuações da Bolsa, e depois, num caderno, fazia misteriosas anotações – possíveis investimentos para o dia seguinte, segundo dizia. Suas instruções seriam mais tarde enviadas pelo telefone aos seus corretores em Nova York, Londres, Paris, Rio de Janeiro e Beirute.
“Graças ao telefone, é possível um astuto financista ficar sentado no seu hotel em Lisboa a fazer milhões em operações pelo mundo afora”, explicava ele, o rosto cansado refulgindo num êxtase maravilhoso de sensação de poder e confiança.
Fernando e eu fomos ficando cada vez mais ligados a Getúlio, e vez por outra íamos para sua mesa, sempre que tínhamos uma tarde livre, sem aulas. Em troca, sentíamos o maior prazer em pagar seus cafezinhos. Não era raro ficarmos cogitando como é que ele conseguir arranjar alguns tostões para pagar o aluguel do seu quarto de pensão.
Problemas de sobrevivência. Uma noite, Fernando foi dar com ele no Rossio, de chapéu na mão, chegando-se a um cavalheiro idoso, de aspecto distinto, que lhe deu uns trocados para se ver livre dele. Era obviamente assim que Getúlio arranjava dinheiro para pagar o aluguel.
Desse dia em diante, Fernando e eu começamos a nos preocupar com a sua capacidade de sobrevivência.
“Vamos dar-lhe algum dinheiro para ele poder andar limo e decentemente vestido?” sugeriu Fernando.
“Acho que não”, repliquei. “Isso ia querer dizer que a gente não acredita nele. Você quer destruí-lo? Um milionário excêntrico deve parecer e comportar-se como um excêntrico.”
“Certo”, concordou Fernando, “mas os milionários excêntricos comem como deve ser. Getúlio vive de cafezinhos, e sua roupa tem um cheiro horrível.”
Por fim, chegamos a um entendimento: iríamos tentar dar ao Getúlio Martins algumas das nossas roupas velhas.
“Mas como é que nós vamos conseguir isso sem ofender o orgulho dele?”, indaguei.
“Vamos dizer a ele que as roupas são para Parker, o criado; depois juntamos um saquinho com comida e dizemos que é para o Spitfire”, sugeriu Fernando.
Salazar e o orçamento. No dia seguinte levamos-lhe uma mala velha com dois ternos usados – e mais um casaco, umas camisas e outras peças de roupa que a gente já não usava.
“Fernando e eu achamos que talvez Parker não se importe de usar essas roupas”, adiantei.
“Meus amigos, vou-lhes contar uma coisa”, confidenciou Getúlio. “Parker, normalmente, usa as roupas que eu já não quero mais; mas, mesmo assim, vou levar para ele o presente de vocês.”
Depois Fernando entregou-lhe um grande saco de comida “para Spitfire”, onde iam duas enormes fatias de pão, queijos, salsichas e feijão em lata.
“Spitfire adora presentes”, declarou Getúlio.
Quando tornamos a ver Getúlio, estava muito bem barbeado e tinha cheiro de gente. Chamou a nossa atenção para o detalhe de que vestia um casaco muito parecido com o que havíamos oferecido a Parker.
“Talvez os senhores e eu tenhamos o mesmo alfaiate em Londres”, observou ele displicentemente.
Convidamos Getúlio para jantar conosco nessa noite.
“Esta noite o Dr. Salazar me pediu que fosse à sua casa para discutirmos o orçamento para o ano que vem... Mas posso ir lá outra noite. Vou jantar com vocês, meus amigos.”
Altíssima roda. Nós o levamos a uma tasca típica no Bairro Alto, famosa pelas enormes porções de boa comida e pelos preços razoáveis. Quando a comida foi servida, Getúlio devorou tamanha quantidade que ficamos com receio de que sua figura bastante franzina fosse rebentar. Entre o último prato e a sobremesa, encorajado por vários copos de vinho da casa, contou-nos alguns dos seus espetaculares empreendimentos financeiros.
“Estou certo de que já ouviram falar da Union Minière, de Katanga. Quem é que vocês pensam que tornou isso possível? Getúlio, é claro! Coloquei nessa mina 500 milhões do meu capital, em moeda sonante, e adquiri o controle da companhia em Bruxelas. Foi arriscado, mas existe muita gente querendo compra-la. Ofereci o negócio ao meu amigo, Dr. Salazar, mas ele não tinha dinheiro por causa daquele imenso estádio desportivo que pretende construir. Então ofereci uma parte do meu controle a De Gaulle, que comprou imediatamente. Salazar ficou aborrecido comigo, mas eu lhe disse que negócio é negócio, fiz um grande donativo a Nossa Senhora de Fátima, e continuamos amigos.”
“O senhor já fez alguns investimentos aqui no país?”, quis saber Fernando.
“O mercado é muito pequeno para mim”, respondeu Getúlio, “mas, a pedido do Dr. Salazar, comprei uma boa parte do açúcar de Moçambique e refinanciei o Caminho de Ferro de Benguela, em Angola.”
“Qual vai ser a sua próxima jogada, Getúlio?”, interrogou Fernando.
“Isso é segredo”, disse. “Mas não se admirem se, antes do fim da semana, eu tiver umas duas companhias aéreas no bolso.”
Dominando o petróleo. Durante cerca de uma semana, nem eu nem Fernando fomos à Brasileira, e, quando voltamos a ver Getúlio, ele estava radiante e excitado.
“Pois é, meus amigos, consegui!”, declarou. “A maior jogada da minha vida. Enterrei nela todo o meu capital.”
“Que? As duas companhias aéreas?”, perguntou Fernando.
“Nada disso, meus amigos, eu estava brincando com vocês”, disse, com ar benevolente. “Eu comprei a SEPAC.”
“Que é isso?” perguntei. Nem eu nem Fernando tínhamos jamais ouvido falar nela.
“Sociedade para a Exploração de Petróleo na África Central”, explicou Getúlio. “A SEPAC tem concessões que abrangem praticamente todo o continente africano ao sul do Saara. Em Londres, Nova York, Houston e Beirute entraram em pânico quando souberam da minha cartada. O embaixador britânico esteve ao telefone a manhã inteira, e já me constou que o embaixador americano teve um ataque do coração. Já imaginaram o que isso significa? Eu, Getúlio Martins, posso estar em breve em condições de estabelecer o preço do petróleo no mundo inteiro.”
Fomos interrompidos pelo garçom, que veio pedir os dois escudos do cafezinho do senhor Martins, mas o capitalista, como sempre, não tinha o troco exato. Foi Fernando quem pagou o cafezinho de Getúlio.
Desenlace. Pouco depois, fui uma semana para casa, de férias. Ainda estava lá quando os jornais anunciaram a descoberta de um fabuloso escândalo internacional – o caso da SEPAC, um cartel petrolífero fictício, avaliado em bilhões de dólares, no qual alguns investidores desavisados haviam enterrado grandes somas de capital.
“Pobre Getúlio! Ele que tinha posto tudo que possuía na SEPAC”, comentei, ao ler o jornal no café da manhã.
“De que você está falando?”, perguntou vovó.
“Oh! Nada. Era daquele meu amigo sem vintém que realiza fantásticas operações financeiras por esse mundo afora”, expliquei.
Assim que regressei a Lisboa, telefonei ao Fernando e nos encontramos num bar do centro antes de irmos jantar.
“Como foi que Getúlio reagiu ás notícias sobre a SEPAC?”, indaguei.
“Ah, você não sabe? Ele se jogou da janela do quarto e se matou.”
“Que loucura!”, exclamei. “Por que?”
“Por que perdeu todos os seus milhões nesse escândalo”, disse Fernando.
“Mas os milhões dele não eram de verdade!”
“Para ele eram.”
Abanei a cabeça, pedi outra cerveja e fiquei pensando na saudade que iríamos sentir do Getúlio.

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