sexta-feira, dezembro 29

Um balde de água fresca e limpa

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1971
Autor : Condensado de New Hampshire Profiles Jean Bell Mosley

Nada melhor para recomeçar bem as coisas

Após meses de cavar, dinamitar, arrastar, puxar terra, meses de muita canseira e esperança, ficou pronto o poço da fazenda, e a bomba foi devidamente instalada – um marco de progresso. Naquele dia quente de verão, num excesso de solenidade, vovô tirou o chapéu e despejou um canecão da primeira água sobre a sua cabeça. Papai, gesticulando muito, relembrou a resistência da rocha, a tremenda profundidade do veio subterrâneo, as horas de suor e de trabalho. Mas ali estava a recompensa final: água a 25 passos da mesa da cozinha.
“Não temos mais de carregar água da fonte!” – repetíamos triunfantes. Minhas irmãs e eu metemos os pés machucados debaixo da bica e bombeamos a valer, deixando a água jorrar, como que para apagar todas as topadas, todo o acúmulo de poeira, as farpas e a canseira de milhares de viagens à fonte. Vovó, sonhadora, falava em repuxos, lagos de peixes, e até em uma banheira. Mamãe, sensata, começou a regar as suas plantas que estavam murchando.
Nunca houve dúvida sobre o conforto que era o poço, mas sua principal contribuição talvez tenha sido a de mostrar que era muito mais do que água o que a fonte nos vinha dando.
A nascente que estávamos abandonando ficava a uns 200 metros da casa. Para chegar lá, passávamos sob as parreiras que cortavam a horta, atravessávamos o curral e chegávamos ao pomar; saltávamos uma porteira para alcançar uma picada torta que acompanhava uma cerca de arama que descia a encosta em ziguezague até à fonte.
Em anos passados, um antigo proprietário construiu um muro de pedra em semicírculo ao redor da fonte. Na base do muro, onde jorrava a água, alguém gravou as palavras VOLTE E REPOUSE. De vez em quando eu arrancava o musgo para ler o convite, que aliás nunca significou grande coisa para mim, até que minhas idas lá se tornaram freqüentes. Eu dizia em brincadeira que, quando alguém enchia os baldes, era evidente que devia descansar antes de tornar a subir a encosta com eles cheios.
Emergindo da nascente subterrânea, a água jorrava numa represinha e seguia em frente, borbulhando, para formar um laguinho que os gansos adoravam, e mais além um córrego através do pasto, para as vacas, guaxinins, lebres, lagostins e crianças.
Antes da comodidade que o poço representou, mamãe às vezes dizia a um de nós, seus filhos briguentos, mesmo que o balde de água ainda estivesse pela metade: “Vá buscar um balde de água fresca e limpa da fonte.” Lembro-me hoje que estes adjetivos se aplicavam apenas à água da fonte, e nunca à do poço, embora ambas fossem da mesma pureza cristalina.
Aborrecidos e emburrados, nós íamos tramando vingança. Mas era difícil guardar a raiva na sombra depois da videira. A paz ali era quase palpável. Dependendo da estação do ano, eu me demorava para aspirar a fragrância das parreiras em flor, para me deliciar com as uvas amadurecendo, ou observar um ninho de passarinho, com seus ovos reluzentes ou cabecinhas penugentas e bocas enormes. As formigas passavam em fileiras certinhas sobre as estacas de madeira, ocupadas com algum problema vital. As abelhas zumbiam, entravam e saíam, trazendo comunicados recentes de pastagens distantes. Às vezes uma borboleta pousava em meu ombro, arranjando assim uma carona até ao pomar. Feliz com isso, a gente prestava atenção, caminhando com cuidado para preservar aquele adorno vivo, e esquecia completamente as recentes discussões sobre a quem caberia esfregar o assoalho. De volta à casa com a água, tudo era novo, começava tudo outra vez.
Quando a tristeza envolvia a alma da gente com seus dedos cinzentos, era gostoso sentar no alto da porteira, de onde eu via as suaves colinas dobrando-se tranqüilamente, os campos verdes a se estenderem ao Sol. Podia-se ver que a natureza nunca chorava, simplesmente ficava ali, presente, absorvendo tudo, ecoando em seu silêncio uma verdade muito antiga: “É bom.” Os sons que porventura alcançassem os ouvidos – a brisa soprando nas macieiras, o mugido distante de uma vaca, o latido de um cachorro, o ranger de uma carroça, e até mesmo o sussurro da neve e o estalar o gelo no inverno – eram como pequeninas alavancas libertando a alma presa, deixando a gente quase flutuando com a harmonia. Em momentos assim, eu sabia que a única tristeza real e duradoura seria não estar vivo.
À mesa do café, nós muitas vezes discutíamos os diversos problemas da família. Toda vez que a decisão final tinha de ser tomada por uma só pessoa, era quase certo essa pessoa afastar a cadeira da mesa, dizendo: “Vou buscar um balde de água limpa e fresca, para começar o dia.” Era o mesmo que dizer: “Preciso de tempo, a sós, para pensar nisso.” Ninguém voltava sem uma decisão. Talvez porque, no caminho, nós observássemos que a indecisão prolongada não faz parte das leis da natureza. Os girassóis não perdem tempo em se voltarem para o Sol. As trepadeiras sobrevivem, bem ou mal, estirando-se na direção da estaca mais próxima.
Jamais se discutiu o impulso sutil e indefinível dessas idas à fonte, depois que elas deixaram de ser necessárias. Mas, com o tempo, cada um de nós aprendeu a voltar à fonte em determinados momentos. Quando papai voltou do hospital sem um braço, mamãe apanhou o balde e disse: “Acho que vou apanhar um balde da água fresca da fonte.” Ela voltou com uma calma inesperada e contagiante. Quando uma tempestade repentina arrasou o trigal, arrancou as espigas de milho e destelhou metade do celeiro, vovô foi à fonte e voltou com projetos modestos, porém entusiasmantes, para a reconstrução.
A minha própria volta à fonte começou com uma explosão súbita, porque a bomba não funcionou. Era preciso alguém ir apanhar um balde de água. Não era a primeira vez. Além do mais, no inverno a bomba congelava, e a água da fonte tinha de ser carregada, aquecida e derramada em volta da bomba, como que para acalma-la e fazer-lhe festa. Tudo isto de repente parecia resumir as transformações que estavam ocorrendo no mundo em que eu crescia. Pessoas morriam. Amigos se afastavam. Coisas que pensávamos serem verdadeiras eram negadas ou ditas relativas. Criou-se em mim uma necessidade profunda de conhecer alguma coisa de confiança, que eu pudesse defender, de onde eu pudesse partir, e aonde pudesse voltar, e tornar a partir.
Nesse dia, debaixo das parreiras, um sabiá alimentava seus filhotes. No jardim, os rabanetes que mamãe semeara na semana anterior brotavam em folhas verdes. Seriam absolutos os sabiás e os rabanetes? Por certo que eu os conhecera toda a minha vida.
Dentro de mim alguma coisa dura e tensa começou a relaxar quando me aproximei da fonte e ouvi a música infinitamente calmante da água, que corria dia após dia, ninguém sabe desde quando, tão livre, tão generosa. Pareceu-me a principio que a água da fonte era uma coisa digna de confiança. Nada de bombas modernas que vivem enguiçadas. Era só mergulhar o balde, e lá estava a água. Esperei que a paz crescente de tudo isso chegasse ao auge e varresse para longe as dúvidas e complexidades, e assim aconteceu.
Mas no exato momento em que aconteceu, descobri que não era a fonte, nem a água, pois que um deslocamento nas profundezas da terra poderia acabar com a fonte. Era saber que a água era suprida de algum lugar. Não era o sabiá, pois os sabiás não são eternos. Era o ato imemorial de a sabiá alimentar seu filhote, como as mães sabiás tem feito desde que existem sabiás. O ato, uma coisa duradoura e indestrutível, um instinto que não é manipulado por mãos humanas. Não eram os rabanetes, que durariam talvez duas semanas. Era o fato de estarem surgindo rabanetes das sementes de rabanetes e não feijões. Podia-se ter certeza disso.
Levantei o musgo e tornei a ler a velha mensagem. Eu tinha o meu motivo para me sustentar, o motivo que nós todos tínhamos para nos guiar, havia tanto tempo, sem sabermos. Existe no homem uma necessidade de voltar à evidência do cuidado invisível e da ordem universal, e repousar na convicção de que essas coisas lá estão e não podem ser destruídas.
A bomba continuou a ser uma maravilha para a família, mas agora – anos depois, e bem distantes – toda vez que volto á fazenda em espírito, sinto-me repousada e renovada pelo milagre eterno da fonte e de seus baldes de água fresca e limpa.

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