terça-feira, julho 31

Promessa de primavera

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Jeff Rennicke

Até mesmo os dias mais gelados de inverno apresentam... promessa de primavera.

Nada. Nenhum rastro além do meu está pontilhado na camada de neve recente – branca como a casca do vidoeiro – caída durante a noite. Nenhum alvoroço de sombras nas árvores, nem sinal de cantos de pássaros no ar.
O pouco sol que existe nessa época do ano brilha fraco, sem vontade, através da fina névoa de nuvens brancas, não oferecendo a menos pretensão de calor. Já faz quase uma semana que a temperatura perto de minha cabana no Wisconsin se mantém abaixo de zero. O mercúrio parece estar preso à base do termômetro. Sinto arrepio enquanto bato com os pés para me aquecer e novamente espero escutar algum sinal de vida.
O único ruído vem das pontas despidas dos galhos, rangendo como dentes. À primeira vista, a natureza não parece ter investido muito nesse dia de fim de inverno. A floresta tem ar de gravura tosca – árida, cinzenta e sem vida. Os flocos de neve caindo como pára-quedas no gramado da frente, que nos encantaram no dezembro – agora significam apenas que temos de raspar o pára-brisa do carro. Há belezas sutis – os galhos de pinheiro envoltos em camada branca, o brilho azulado do luar sobre a neve. Mas, nessas profundezas do inverno, procuramos menos a beleza do que sinais de que a primavera não foi esquecida.
Não é fácil encontra-los. Já houve época em que se acreditava que a natureza simplesmente fazia limpeza geral no inverno, espécie de apocalipse anual, seguida de renascimento milagroso a cada primavera. Pensava-se que os camundongos se regeneravam espontaneamente das pilhas de trapos. As rãs e tartarugas saíam das poças de água, geradas pelas chuvas mágicas da primavera. Pássaros se transformavam em outros animais para atravessar os meses gelados.
Os verdadeiros meios usados pela natureza para lidar com o frio são quase tão espantosos quanto essas velhas histórias. O inverno oferece duas opções básicas à vida silvestre: mudar-se ou lutar. Em alguns locais, a paisagem se esvazia como uma jarra de água derrubada. Os galhos curvam-se sob o peso de bandos mistos de melros, pássaros negros e estorninhos, às centenas de milhares, que se reúnem para migrações em massa. Dois terços das espécies de pássaros que tem os ninhos na América do Norte dirigem-se a locais de climas mais amenos.
Cem milhões de borboletas danis archipus, parecendo flores silvestres aladas, viajam às vezes até 6 mil quilômetros ao México, Texas e à Califórnia. Caribus saem em bandos do alto Ártico com as primeiras geadas do inverno. Baleias cinzentas viajam milhares de quilômetros procurando calor, alimento e sol.
Mas nem todas as migrações alcançam o globo terrestre. Muitas espécies fazem viagens curtas, por vezes apenas de alguns quilômetros, para aproveitar condições locais conhecidas como microclimas. Os alces do Colorado passam das terras altas para os vales vizinhos. As águias de cabeça branca do Alasca procuram o alto-mar. Os cervos de cauda branca das matas do Wisconsin buscam uma encosta voltada para o sul com o objetivo de aproveitar o sol da manhã.
Outras criaturas inventam meios próprios de enfrentar a dura realidade do inverno. Os bois postam-se de costas para o vento de temperaturas abaixo de zero, respirando devagar pelas narinas que aquecem o ar ártico supergelado antes que ele penetre nos pulmões. Os ursos polares se mantém aquecidos acumulando camadas de gordura de até 18 centímetros sob a pele de quase 10 mil pêlos por 6 centímetros quadrados. As patas ásperas são antiderrapantes.
A sobrevivência de certas espécies parece quase milagrosa. O chapim, por exemplo, que pesa apenas nove gramas, lembra minúscula centelha de vida para se lançar à mercê de ventos gélidos, de 60 km/h.
Para manter a fornalha interna estocada, os chapins comem, no inverno, o dobro do que comem no verão. Durante o dia, alimentam-se quase continuamente, para acumular camada de gordura que queimará lentamente durante a noite fria. No inverno, também tem mais 30% de penas e podem afofa-las, formando camada de ar quente.
Quando o frio se torna muito intenso, os chapins alcançam uma espécie de estado hipotérmico controlado, as temperaturas corporais baixando até 11 graus abaixo dos 40 normais, desse modo reduzindo o consumo de energia. A qualquer indício de calor, os chapins saem das cavernas de moitas cerradas, piando baixinho e comendo, sempre comendo.
Muitas espécies de sangue frio se enterram na lama para não congelar, reduzindo-se quase à morte. As rãs do mato na verdade se congelam, e degelam na primavera. A rã inunda a corrente sanguínea com glicose – anticongelador que impede lesão às células -, expediente também utilizado por insetos, tartarugas e cobras do gênero thamnophis.
Atravesso um riacho. Abaixando-me, raspo a neve da superfície e bato no gelo com a mão – de luvas -, imaginando uma tartaruga em algum lugar no fundo., ouvindo vagamente o ruído, enquanto pacientemente aguarda a primavera.
Nesse mato também estão os ursos negros hibernando. Em cada outono, levados por recordação ancestral do inverno, os ursos negros entram num frenesi alimentar. Chegam a consumir 20 mil calorias por dia, aumentando em 30% o peso corporal. Na primeira nevasca, eles se escondem no fundo de tocos, grutas e buracos rasos formados de capim. Às vezes se entocam a alturas de até quase 30 metros nos troncos quebrados de árvores antigas. As batidas cardíacas caem até 10 por minuto e eles estabelecem residência por um período de quatro a seis meses.
Não comem nem bebem, não urinam nem defecam. Pesquisas sobre o modo de os ursos reciclarem os detritos sem envenenar o organismo tem ajudado a tratar pacientes com insuficiência renal. O estudo da maneira de lidar com longos períodos de inatividade sem perda de cálcio nem atrofia muscular pode ajudar a evitar a osteoporose, além de ter conseqüências para os vôos espaciais de longa duração.
Fico pensando na confiança total do urso na volta da primavera. Postado ali na beirada, a alguns graus do clima impróprio à vida, é confortador saber que sob a neve os ursos dormem numa crença inocente de que o sol retornará para libertar os rios e fazer as flores desabrochar.
Quando volto para casa, ouço o ruído: o assobio dos chapins, baixinho, em dois tons. Quando os procuro, vejo um pica-pau penugento subindo em espiral pelo vidoeiro, o brilho vermelho vivo com uma língua de fogo. No solo, observo pegadas de coelhos, onde momentos antes só tinha visto neve lisa.
Esses ligeiros sinais de vida nos permitem acreditar de novo na primavera. Ajudam-me a apreciar a beleza do que resta do inverno e a me lembrar de que o frio não durará para sempre. Cada rastro, cada trechinho de canto de ave, cada legume congelado é uma afirmação de vida, desafio ao frio, promessa.
Ânimo, parecem dizer. A primavera chegará em breve.

segunda-feira, julho 30

Paixão pela leitura

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Anna Quindlen

O presente que todos os pais podem dar a um filho

A voz que uso quando as crianças se comportam mal é como uma casaca de inverno, carregada e severa. Usei o tom certa noite, quando meu filho mais velho apareceu à porta da cozinha uma hora depois de ter ido para a cama.
“Que está fazendo aqui?”, comecei a dizer, quando ele me interrompeu: “Acabei!”
O tom duro voou pela janela e nos sentamos para conversar sobre os pontos altos do livro que ele acabara de ler – o mesmo que li pela primeira vez quanto tinha 10 anos. Ainda hoje guardo o comentário que escrevi. Começava assim: “Este é o melhor dos livros.”
Todos nós temos aspirações semelhantes para os filhos: boa saúde, felicidade, trabalho interessante e satisfatório, estabilidade financeira. Mas, assim como uma casa modelo é diferente dependendo de quem escolhe os armários e venezianas, detalhes muitas vezes são diversos. Há pessoas que ficam alucinadas quando os filhos começam a andar, a jogar bola, a tentar tocar a Sonata ao luar ao piano. O dia em que percebi que meu filho sabia ler foi um dos mais felizes de minha vida.
A romancista inglesa Anita Brookner observou que “quando a pessoa cresce, torna-se civilizada, aprende a se comportar e conseqüentemente... as tentativas de recapturar...a espontaneidade estão condenadas”.
No entanto, quase sempre recuperamos a espontaneidade através dos mais jovens. Ver uma criança tocar as teclas do piano pela primeira vez, observar um corpinho romper a superfície da água num mergulho bonito, é experimentar o choque de revisitar o que é conhecido, como se fosse estranho e maravilhoso.
A leitura sempre foi, para mim, o desenrolar da vida, o modo de compreender o mundo e a mim mesma, tanto pelo desconhecido quanto pelo cotidiano. Se o fato de ser pai (ou mãe) muitas vezes consiste em passar adiante pedaços de nosso ser para receptores involuntários – e muitas vezes relutantes – então os livros representam meio simples e seguro de faze-lo. Ficaria satisfeita se meus filhos, quando crescessem, se tornassem o tipo de gente que acha que a decoração é sobretudo construir muitas estantes de livros. Isso daria a eles número infinito de mundos em que vagar, além da entrada para o mundo real. Assim como estranhos podem instalar-se amigavelmente para bater papo sobre os grandes jogadores de futebol do passado e do presente, também podemos ligar-nos a alguém pela paixão aos livros.
Lembro-me de que fazia listas de livros para minha irmã ler no verão, bem como do dia em que ela chegou em casa do trabalho tendo na bolsa minha cópia surrada e amarelada de Orgulho e preconceito e disse, irritada: “Diga-me se ela se casa com o senhor Darcy, porque se não se casar, não vou acabar de ler o livro.” E lembro-me, também, de como fiquei aturdida enquanto dizia, compenetrada, que nunca poderia revelar o final do livro, enquanto por dentro eu gritava e repetia: “Sim, sim, ela se casa com o senhor Darcy.”
Bastaria olhar para o rosto daquele menino ao dizer: “Acabei!”, para saber que algo deixara nele marca indelével. Acompanhei-o ao andar de cima com outro livro.
Então, quando saio do quarto, meu filho está lendo sob a luminária, a nave de sua mente viajando pelos mares com o auxílio de minha bússola. Pouco antes de fechar a porta, vejo de relance a formação de meu ser e a formação do ser dele, partes do mesmo tronco. E sou uma pessoa feliz.

sábado, julho 28

Aproveite a partida

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : James Dodson

A jornada chegava ao fim, e meu pai insistia em jogar à sua maneira

Meu velho era um cara que sempre via o lado bom de tudo. Quando adolescente, eu o chamava, nem sempre afetuosamente, de Oti, o místico, devido ao seu louco otimismo, eterno entusiasmo e imperturbável jeito de ver qualquer problema ou crise como “oportunidade de crescimento”.
Durante 30 anos, fora representante sênior de uma das maiores firmas de publicações industriais do mundo. Transformara o apático setor de publicidade em próspero território de milhões de dólares. Para Oti, o trabalho duro era forma de jogo, pois envolvia a solução de problemas. Esta visão se encaixava como luva na filosofia de seu jogo preferido – o golfe.
Ele pôs um taco em minhas mãos pela primeira vez quando eu tinha uns 10 anos. Atirei bastante mau humor pelos montículos da Carolina do Norte, e tacos também. Eu tinha tanta pressa de ser bom que ele me mandava “relaxar e aproveitar porque o jogo termina logo”. Não entendia o que ele queria dizer.
“O verdadeiro prazer do jogo”, explicava, “estava em decifrar o enigma de cada arremesso – interrupção injusta, horrível jogada em terreno áspero.” Para ele, o golfe também formava o caráter. Por isso, era rigoroso com as regras: você fixava os pinos no gramado; esperava a vez; cumprimentava o adversário por um bom lançamento. Ele achava as cortesias essenciais como o oxigênio, mas eu me sentia sufocado por elas.
Finalmente, quando me acalmei e cresci, o golfe tornou-se muito mais que um jogo entre nós. Era minha porta de entrada para o universo dele – modo de ver quem realmente era aquele filósofo esquivo, engraçado, excêntrico, e em quem eu precisava me tornar.
O campo de golfe transformou-se no lugar onde conversávamos. Nenhum tema ficava de fora: sexo, mulheres, Deus, carreira, dinheiro. Debatíamos sem rancor, encontrávamos pontos em comum, competíamos como loucos e aproveitávamos os momentos do jogo.
Jogamos no dia em que Neil Armstrong pisou na lua, na véspera do meu casamento e no dia seguinte ao nascimento de meu filho. Disputamos as partidas na chuva, no vento, no calor. Normalmente jogávamos tarde, seguindo nossos vultos ao escurecer.
Mas agora papai chegava aos 80, e enfrentava desagradáveis efeitos da colostomia radical e da prostatectomia. Os joelhos estavam fracos, a audição era ruim e ele sofria de catarata, porém nunca mencionava esses problemas. E, se eu o fazia, ele apenas ria de minhas preocupações.
Num dia frio e úmido de outubro, jogamos em Pinechurst, Carolina do Norte, um de seus campos preferidos. Ele errou e perdeu arremessos que antes fazia de olhos fechados. Em dado momento, estava preparando a jogada, quando o ouvi, timidamente, pedir ajuda. Peguei-lhe a mão, que tremia um pouco. Meu coração quase se partiu. Na volta para casa, disse: “Vamos fazer aquela viagem sobre a qual sempre falamos.”
A viagem era para St. Andrews, Escócia, Meca do golfe. Estivéramos lá antes – eu como anotador de golfe, papai como sargento da Força Aérea durante a Segunda Guerra Mundial-, mas nunca jogáramos juntos.
Duas semanas antes de partirmos, ele me telefonou. “Estou com sangramento”, avisou. O Câncer voltara, espalhando-se para a região pélvica, costas e estômago. Teria um mês de vida, dois no máximo.
“Podem me encher de veneno e me fazer durar mais algumas semanas, mas quem diabos precisa disso?” Ele revelou que planejava deixar a natureza seguir seu curso. Disse-lhe que admirava sua coragem. Ele me respondeu para poupar a força dos pulmões para o campo de golfe. “Estou planejando dar-lhe uma surra em St. Andrews”, brincou. “Vejo-o no aeroporto;” Oti, o místico, falara.
Decidimos jogar em vários campos da Inglaterra antes de irmos para St. Andrews. A primeira partida seria em Royal Lytham, perto do vilarejo inglês de Freckleton. Por 13 meses, durante a Segunda Guerra, papai servira como inspetor de pára-quedismo da Força Aérea nos arredores da aldeia. Nos dias livres, jogava golfe.
Quando entramos em Freckleton, as calçadas estavam cheias de crianças de escola. “Havia crianças como estas passeando próximo à base”, disse meu pai. “Tirei fotos de várias delas. Tínhamos uma parede coberta com as fotografias.”
No campo, naquele dia, papai nitidamente saltitava ao andar. Pude vê-lo fazendo um swing com seu uniforme de sargento.
Sentamos para descansar na grama do décimo marco.
“Nosso placar está horrível”, comentei.
“Não importa. Isso é tão gostoso. Olhe aqueles pássaros.”
Avistei inúmeros pássaros brancos sobre os tetos vermelhos pontiagudos. O momento era realmente gostoso, provando, como alguém já disse, que o golfe depende, em grande parte, do parceiro que se escolhe para jogar.
Durante a partida com alguns residentes na noite seguinte, certa mulher falou sobre a recente reunião na antiga base.
“Houve uma cerimônia para lembrar o bombardeiro”, contou.
“Que bombardeiro?”, perguntei.
“O que explodiu”, respondeu ela.
Olhei para papai.
“Sabe de que bombardeiro ela está falando?”
Estava pálido.
“Sim.” Sua voz era quase um sussurro. “Venha comigo.”
Caminhamos até o cemitério nos fundos da igreja no centro do vilarejo. Eu o segui até uma grande cruz de granito polido. Li alguns dos nomes inscritos na margem de pedra que cercava o canteiro: Gillian e June Parkinson, George Preston, Michael Probert, Annie Harrington...
Trinta e oito nomes ao todo. Um túmulo coletivo.
“Como esses caras morreram?”, perguntei.
“Não eram caras”, respondeu. Eram crianças. De 4 e 5 anos. Freqüentavam a escola da igreja. Um de nossos bombardeiros chocou-se contra a escola.”
Fechou os olhos, e me perguntei se estaria rezando ou revivendo as cenas que eu não conseguia imaginar.
“Eram mais ou menos 10h30min”, disse ele. “Eu acabara de me espreguiçar na cama para dormir mais um pouco quando ouvi o enorme ronco seguido da explosão. Fui um dos primeiros a chegar à escola. Deus, que cena! Combustível queimando pela rua. Lembro de ter removido pedaços do avião, tijolos e todas essas preciosas criancinhas lá dentro, enterradas vivas...”
Vi lágrimas brotarem-lhe dos olhos. Abracei-o, e ficamos ali por vários minutos.
Ele pigarreou e prosseguiu:
“Havia uma garota em especial. Sempre sorrindo. Eu a chamava de Madame Alegria. Estava entre os mortos.”
Senhor misericordioso, pensei.
“Uma semana depois do acidente, encontrei uma nota dos pais da menina no boletim da base. Queriam saber se alguém a fotografara. Dei-lhe todas as fotos que tinha, sentamos na sala e choramos. Acho que nunca experimentei algo tão triste.”
Saímos do cemitério, fechando lentamente o portão atrás de nós.
“Estou surpreso por nunca ter me contado essa história”, falei. Ele parou e olhou para trás, para a igreja.
“Para mim, a guerra terminou aqui”, disse. “Prometi a mim mesmo que nunca falaria sobre isso novamente.”
Na noite anterior, ele me confidenciava que, ao se juntar ao Exército, era um convencido que pensava entender de tudo. Foi quando “algo aconteceu” e percebeu que “a única coisa que a vida realmente nos promete é o sofrimento. Depende de nós criar a alegria.”
Oti, o místico, nascera no acidente do bombardeiro.
Naquela noite, minha prece foi simples: queria que meus filhos jamais conhecessem a dor que papai conhecera. Porém, se tivessem de enfrenta-la, eu esperava que fossem como Oti.
Há seis esplêndidos campos em St. Andrews. No entanto, é o Antigo Campo – o mais famoso do mundo – que atrai peregrinos do golfe. A demanda é tão grande que há sorteio diário para ver quem vai jogar. Eu conhecia um funcionário que nos colocaria no campo, mas quando contei a papai sobre a subversão que planejara, ele pareceu desconcertado.
“Por que quer fazer isso?”
“Não viajamos até aqui para não jogar no Antigo Campo?”
“Acha justo ignorar as regras?”
“Não se trata disso, papai”, falei, sentindo-me como se tivesse 12 anos, ao explicar que colara na prova.
“Então, por que quer jogar lá? Já jogou muitas vezes”, perguntou.
Ambos sabíamos por que era tão importante jogar lá, mas eu não queria dizer, e tinha certeza de que ele não queria ouvir: nossa ida ao Antigo Campo, provavelmente, seria a última partida juntos. Despedida à altura, porém uma despedida é sempre uma despedida. Era disso que eu mais sentia medo.
“Se é assim que deseja”, concordei. “Vamos depositar nossas esperanças na urna.”
“Só quero se for assim, e você também, se pensar melhor”, afirmou ele.
Não fomos sorteados nos dois primeiros dias.
“Vamos esperar mais um dia”, disse ele.
“E depois?”
“Bem, se não tivermos sorte, talvez seja melhor irmos.”
“Você quer dizer ir embora?”, perguntei calmamente.
“Acho que é hora. Tenho umas coisas para fazer.”
Fui caminhar e parei junto à cerca atrás do primeiro marco do Antigo Campo. Faltava, talvez, uma hora para escurecer. Vi dois jogadores terminarem, erguerem suas sacolas e se afastarem do campo. Fiquei ali com pena de mim mesmo. Percorrêramos toda aquela distância para nada.
Naquele instante, uma voz atrás de mim observou: “Disseram-me que há quase 500 anos se joga golfe aqui e qualquer pessoa está autorizada a usar estes campos públicos.” Era meu pai.
Caminhamos devagar e conversamos sobre golfe, sobre o passado, sobre mamãe. Logo estávamos no 17º marco, o Buraco da Estrada, considerado por muitos o mais difícil do mundo. O campo estava quase totalmente envolvido pelo crepúsculo azul de outubro.
“Gostaria que estivéssemos com nossos tacos”, disse eu.
“Ah, quem precisa deles?”, perguntou papai. “Vamos jogar assim mesmo.”
Ele sacou o taco imaginário, fingiu acertar a bola e fez o swing.
“Lá”, gritou. “Bem sobre a linha. Exatamente como há 50 anos.”
Eu o passei, como sempre, em pelo menos uma centena de metros. Da parte lisa do campo, papai utilizou o taco imaginário para acertar o buraco abominável. Depois anunciou que estava usando um calço de areia, e empurrou a bola suavemente para o gramado. Estávamos jogando magnificamente.
Caminhamos até o 18º marco, fizemos belas jogadas na escuridão, e descemos para a parte lisa do campo. Durante semanas eu tivera medo deste momento. Porém, estranhamente, estava quase feliz.
“Pode me chamar de sentimental”, disse papai, “mas acho que foi uma grande jornada.”
“Os chuveiros do hotel eram muito piores do que se esperava”, respondi.
“Você está falando da viagem. Estou me referindo à jornada.”
Papai morreu em março. Algum tempo depois, fiquei incomodado pelo sonho em que eu me esquecia do som da sua voz. Acordei encharcado de suor, chorando.
Três meses mais tarde, fui ao Antigo Campo mais uma vez. Quando meus parceiros e eu nos aproximamos do Buraco da Estrada, tirei da sacola de golfe um saquinho de veludo azul. Os outros avisados sobre o que aconteceria, assistiam solenemente.
“Vocês parecem os três Cavaleiros do Apocalipse”, comentei. “Por favor, mostrem um pouquinho de desrespeito.”
Disse-lhes que meu velho falava que o golfe é um jogo que nos faz sorrir.
“Então, por favor, sorriam.”
Enquanto eles riam, despejei lentamente as cinzas de meu pai no buraco.
Após a partida, um garoto, de 11 ou 12 anos, passou por mim com a sacola de golfe nas costas.
“Como se saiu?”, perguntei.
“Mais ou menos. Sou meio fraquinho.”
“Tudo bem”, disse eu. “Aproveite. O jogo termina logo, sabia?”
“Certo. Obrigado.”
Ele seguiu seu caminho e eu o meu. E então, parei. Eu o ouvira – a voz de papai. Sorri. Oti, o místico, voltara.

quinta-feira, julho 26

Feliz no casamento

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autoras : Dianne Hales e Doris Wild Helmering

Como vencer as dificuldades e ser feliz no casamento.

Ele se esqueceu do aniversário dela. Ela se atrasou para o jantar com um cliente importante. Ele quebrou a perna uma semana antes da viagem dos sonhos do casal. Ela gastou a devolução do imposto em móveis de jardim sem consulta-lo.
Mais cedo ou mais tarde a pessoa que amamos nos decepciona. O marido não se mexe para instalar o ar-condicionado, apesar do calor escaldante. A esposa se esquece da lavagem a seco do terno dele.
Se o comportamento não muda (por exemplo, um dos cônjuges continua gastando demais no cartão de crédito), ou a decepção é particularmente dolorosa (um deles revelou os maiores segredos do parceiro ao amigo), a mágoa pode ameaçar toda a relação.
No entanto, grande parte das decepções pode ser diminuída – e até apagada - , se o cônjuge fizer algo além de simplesmente se sentir mal ou ficar com raiva.
Eis aqui cinco sugestões de conselheiros matrimoniais para lidar com inevitáveis omissões e deslizes:

Vá além do momento
Certa mãe ocupada tinha o tempo exato para deixar a filha na creche e ir a um compromisso importante quando percebeu que o marido, que lhe emprestara o carro na véspera, deixara o tanque vazio. Ela passou rapidamente no posto de gasolina, porém se atrasou para a reunião.
Naquela noite, reclamou do marido: “Como pode ser tão desligado?” Médico, ele se distraíra com a ligação de emergência de um paciente no telefone do carro, e nem observara o combustível. Quando a raiva passou, ela percebeu que se zangara não tanto com o que ele fizera, mas com o pensamento de que fora desinteressado.
“A maioria dos parceiros não age de má-fé”, diz a conselheira matrimonial Michaeleen Cradock. “Só estão cuidado das próprias necessidades imediatas.” Maridos e esposas que se esquecem de pegar o videocassete no conserto ou comem a última fatia do bolo de chocolate não querem prejudicar o outro. Estão simplesmente atravessando momento de desatenção.
Da próxima vez que achar seu cônjuge omisso, tente se colocar no lugar dele: o que está acontecendo em sua vida neste momento? Provavelmente ele se esqueceu de que é parte de uma equação e que seu comportamento afeta duas pessoas.

Lembre-se da grande imagem
Todos os dias, ao lavar a louça, a colunista de certo jornal via da janela uma bela árvore florida. “Adorava aquela árvore”, conta. “As folhas voavam como borboletas ao vento.” Quando o marido começou a podar os arbustos, pediu-lhe especialmente que não tocasse na árvore. Mas, ao voltar das compras, a árvore fora cortada. “Tive de corta-la”, disse o marido. “Ficou feia depois que a podei.”
Apesar da explicação, a mulher ficou furiosa. “Pensei: ‘Por que não cumpriu a palavra? Não sabia o quanto eu gostava da árvore?’”. Após martirizar-se e ao marido durante alguns dias, ela forçou-se a parar e pensar. “Percebi que estava deixando meus sentimentos negativos levarem a melhor sobre mim e meu casamento – e, se aquela era a pior coisa que meu marido já fizera, eu era uma esposa de sorte. Ele teve um instante de desatenção, que equilibrei com a vida inteira de consideração.”
Perspectiva é algo difícil de se manter no casamento porque não se tem o tempo nem a distância suficientes para deixar os maus sentimentos se dissiparem. A promessa quebrada de hoje se soma à retirada bancária não registrada de ontem. E camadas de sentimentos negativos vão sendo construídas.
Para evitar ser sufocado por mágoas antigas, não se esqueça da decepção recente – resolva-a logo quando acontecer – e resista à tentação de voltar ao passado. Se houver algo que o cônjuge possa fazer para que você se sinta melhor – leva-lo para jantar em comemoração ao aniversário de que ele ou ela se esqueceu, por exemplo, ou, no caso da colunista, plantar uma nova árvore – diga.

Exercite suas opções
Às vezes, o que mais ajuda a resolver diferenças individuais é o senso de humor. Durante anos, o hábito de certa mulher de não fechar as portas exasperou o marido. “Eu levantava à noite para ir ao banheiro e – bam! – esbarrava na porta do armário aberta”, queixa-se ele.
Depois de pedir que fechasse as portas, reclamar e enfurecer-se cada vez que ela se esquecia, ele desistiu de tentar muda-la. “É uma das características que a faz ser quem e”, diz. Hoje ele ri e vai ao banheiro à noite com os braços estendidos.
John Gladfelter, psicólogo clínico, lembra: “Não devemos deixar que sentimentos negativos dominem nossa vida. Temos outras opções.”

Busca de soluções
Em 20 anos de casamento, a secretária e o despachante discutiram sobre a divisão de tarefas em casa. Quando mudaram para uma casa maior, a esposa precisou de mais ajuda do marido. Então, concordaram que ela cozinharia e faria compras, enquanto ele aspiraria a casa nos fins de semana. “No início, ele cumpriu o trato, mas depois começou a esquivar-se”, queixa-se a esposa. “Conversamos. Ele reassumiu a função, porém voltou a se esquivar. Conversamos novamente.” O modelo se repetia e a esposa ficava cada vez mais ressentida.
Muitos parceiros caem na armadilha de tentar resolver uma questão recorrente da mesma velha maneira. “Cada vez que não funciona, o problema piora”, explica a conselheira matrimonial Serra Bording-Jones. “A mulher pode acusar o marido de não ama-la porque ele não mantém a palavra. O Mario, achar que ela está tentando controla-lo e recusa-se a ceder. E ambos podem tornar-se sarcásticos ou cínicos.” Como uma bola de neve, o assunto cresce e fica potencialmente mais destrutivo.
Nessas situações, os dois precisam pensar num compromisso criativo que funcione para ambos. Aqui, o casal poderia permutar as tarefas, com a esposa aspirando e o marido fazendo compras. No entanto, escolheram outra opção: ele aspira a cada duas semanas, o que é mais do que gostaria, porém mais flexível”, conta ela. “Se ele se esquece, não declaro a Terceira Guerra Mundial. Além disso, está cumprindo o trato muito melhor agora.”

Reacenda o romance
Após 20 anos servindo no mundo todo, freqüentemente sem a família, certo coronel da Marinha se reformou e começou a trabalhar como consultor. “Quando passei a ficar mais tempo em casa, apaixonei-me de novo por minha mulher”, revela. “Queria sair para jantar, viajar nos fins de semana, recuperar todo o tempo perdido. “Porém ela, que tinha a própria vida, estava ocupada com seu bufê e o trabalho voluntário.
As queixas de que um dos parceiros é mais atencioso, romântico, carinhoso ou disponível como antes são comuns no casamento. Freqüentemente são as mulheres que, negligenciadas, sentem falta de pequenos gestos, como elogios ou buquês de flores, que mostram que os maridos ainda se preocupam. Eles, também, podem ansiar por maior intimidade e romance. Homens acham natural o carinho de suas mulheres. Porém, quando ele desaparece, sentem falta, e querem-no de volta.
Por sugestão de um amigo, o coronel decidiu agradar à mulher, como fazia anos antes. À noite, quando ela chegava exausta, acendia a lareira e esperava-a na porta com um copo de vinho. Depois de verificar a agenda da esposa, planejou um fim de semana numa romântica pousada na praia, e enviou convite formal requisitando o prazer de sua presença. Os dois agora se descrevem como um “casal em lua de mel”.
Mesmo nos casamentos duradouros, gestos carinhosos e românticos mantém a chama acesa. Elogie com freqüência. Diga a ele o quanto sempre o admirou. Diga a ela que adora sua risada.
Se a vida está atribulada pela rotina doméstica e pelos filhos, estabeleça momentos só para os dois. Simples mensagem, como “penso sempre em você”, ou “queria estar com você agora” anima o dia de qualquer pessoa.
Com algum esforço, pequenas mágoas que inevitavelmente ocorrem no relacionamento podem ser postas de lado. Então, marido e mulher tem possibilidades de se voltar para os prazeres – e não para as decepções – que o casamento traz.

quarta-feira, julho 25

Os óculos perdidos

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Magnus Linklater

Quem poderia imaginar a aventura em que se transformaria esta busca?

Já era meia noite em nossa tranqüila residência em Edimburgo, Escócia, e minha esposa acabava de arrumar as malas para viajarmos. Porém, deixou cair os óculos no corredor e estes escorregaram para dentro de uma fresta no chão.
Era um piso feito de pedras do século passado. Depois de afastar algumas, pude ver os óculos reluzindo lá embaixo. Deitei-me próximo ao buraco e enfiei o braço esquerdo para alcança-los. Meus dedos entranhados na poeira vasculharam sem sucesso, até que desisti. Parecia provocação: era capaz de vê-los, e não podia pegá-los. Quis puxar o braço, porém não saía. Meu cotovelo ficou preso entre uma pedra e uma viga de ferro. No começo, puxei com cuidado. Depois, com mais força. Nem se mexia.
Tentei girar o braço e...nada!
Permanecia ali, naquela posição ridícula de cara para o chão. Minha mulher, parecendo ignorar a gravidade da situação, sugeriu esfregar azeite no braço. Despejamos um pouco no buraco. Em vão. Por um instante, achei ter ouvido o som de risos contidos, porém, como não podia vê-la, não tive certeza.
“Vamos ter de chamar o Corpo de Bombeiros”, disse ela.
Resolvi continuar tentando. Uma coisa é passar por uma humilhação dessas na intimidade do próprio lar; outra é revelar isso aos bombeiros – algo inimaginável. Puxava com força e me contorcia. Após 10 minutos, tive de ceder.
Parece não haver outro meio de chamar os bombeiros a não ser pelo telefone de emergência. Com isso não se contata apenas uma pessoa, e sim toda a organização. Em pouco tempo a rua adormecida foi invadida pelo som estridente da sirene acompanhada de incessantes luzes azuis.
Três homens prontamente equipados de capacetes amarelos e machados saltaram do carro. Pude ver suas enormes botas. Agacharam-se em volta de mim, estudando a situação. Nenhum deles, pelo que vi, achou a menor graça.
Outro veículo estacionou lá fora – dessa vez, um carro da polícia. Dois oficiais munidos de intercomunicadores entraram e começaram a registrar a ocorrência. Não percebi se riam ou não, só sei que também usavam botas enormes.
Outro oficial, do Departamento de Investigação Criminal, juntou-se a eles movido pela informação de que um homem estava “preso até os braços em concreto.” Nunca tinha visto algo assim e resolveu dar uma olhada.
Segundos mais tarde, o som de freios anunciava a chegada da ambulância. Dois paramédicos pularam apressados, carregando maletas grandes, oxigênio e equipamento médico com recursos sofisticados de reanimação. Abaixaram-se e perguntaram sobre meu estado de saúde. Respondi que estava melhor do que se podia imaginar.
Àquela altura, já havia oito homens lá em casa, e três veículos com luzes piscando do lado de fora. Foi o que pude captar de onde estava: grudado ao chão. Uma pessoa olhava abismada, pois o que via era um corpo, o rosto virado para o chão, cercado por todas as equipes de emergência da cidade. Arrepiei-me ao imaginar o que lhe estaria passando pela cabeça.
Um dos paramédicos sugeriu azeite outra vez. Despejaram um pouco do caro azeite de oliva extra puro restante na lata, enquanto ele movia meu corpo. Minha sensação era de que o braço estava sendo arrancado. “Puxe agora”, ordenou.
Obedeci e, de repente, lá veio meu braço, todo vermelho, ensangüentado e lambuzado de azeite – ao menos saiu inteiro.
“Mova os dedos”, ordenou o paramédico. Todos mexiam. “Da próxima vez, use um cabide”, aconselhou, com tom de reprovação, o único que ouvi naquela noite.
Os policiais fecharam seus blocos de anotações. O investigador balançava a cabeça sem acreditar no que havia presenciado. Os paramédicos guardaram o oxigênio, e os bombeiros levaram de volta os machados, com certa relutância. Os motores soaram novamente e o comboio de emergência foi embora.
Recobrei os “sentidos” com um copo de cerveja. Depois, fui buscar um cabide – e recuperei os óculos em 2 minutos e meio.

terça-feira, julho 24

Tudo o que você finge saber

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Lynette Padwa

...e tem medo de que alguém pergunte.

A civilização do século 20 partiu-se em incontáveis áreas de especialização. Só um gênio acompanharia os últimos jargões, avanços científicos e referências culturais. Por exemplo, você sabe a diferença entre um gourmet e um gourmand? Sabe onde é a terra de ninguém? Nenhum destes termos é obscuro; na verdade, você provavelmente já os usou sem saber o significado.
Bem, pode relaxar. Aqui estão os fatos de que precisa saber para manter a cabeça erguida num jantar, entender os noticiários e explicar uma ou duas coisas a seu sobrinho de 12 anos – ou pelo menos compreende-lo, quando ele explicar algo para você.

Qual a diferença entre um gourmet e um gourmand?
Discrição. Requinte. Paladar. Conhecimento. Em poucas palavras, gourmet é um conhecedor de pratos e vinhos finos; gourmand é quase um glutão. O dicionário Webster gentilmente define um gourmand como “alguém que gosta demasiadamente de comer e beber”. Como Henrique VIII, John Belushi, Marlon Brando.

Por que liberais são de “esquerda” e conservadores de “direita”?
Em 1º de outubro de 1791, a primeira legislatura francesa reuniu-se após a Revolução. A assembléia estava lotada por 745 membros. Os liberais ou radicais ficaram sentados à esquerda do orador, e os conservadores, à direita. Os termos “asa esquerda” e “asa direita” ainda são usados no mundo inteiro para denotar as duas correntes políticas, liberalismo e conservadorismo.

O que é medida draconiana?
Se é ríspido, brutal ou severo demais para as circunstâncias, um ato é considerado draconiano. O Draco original foi um legislador de Atenas, no século 7 AC. Publicou as primeiras leis escritas da Grécia, e é considerado responsável pela rigidez de tais leis, embora não as tenha criado; eram costumes que os gregos seguiam há anos.
Uma vez escritas as regras, muitos gregos ficaram estarrecidos ao ver o quanto eram injustas. Pequenos furtos eram punidos com a morte, e se um homem não pudesse pagar as dívidas, tornava-se escravo. Finalmente, os gregos expulsaram Draco e “suas leis”, cancelaram as dívidas, libertaram os escravos e criaram regras civis mais tolerantes.

Onde é a terra de ninguém?
Na Idade Média, a terra de ninguém ficava ao norte de Londres, onde eram jogados os corpos dos criminosos. Como até os crimes pequenos eram punidos com a morte, havia muitos corpos – enforcados, decapitados, empalados – para servir de alerta.
Depois, construiu-se um cadafalso dentro da cidade. Os anos passaram, toda a terra ao redor de Londres foi colonizada e os campos cultivados – exceto os antigos terrenos de execução, que não foram reivindicados por ninguém. Terra de ninguém foi o termo usado para descrever a área, sendo mais tarde, por volta de 1900, empregado no jargão militar.

Os Três Mosqueteiros realmente existiram?
Só na mente de Alexandre Dumas. Ele escreveu o romance Os Três Mosqueteiros em 1844. o cenário é a França do século 17, e os mosqueteiros – Athos, Porthos e Aramis – são esgrimistas que servem ao rei, Richelieu em seu plano para prejudicar a família real. A confusão sobre serem ou não reais surge porque Luis XIII e Richelieu de fato existiram. Mas, como muitos autores, Dumas usou figuras históricas para realçar seus personagens de ficção.

O que torna uma virgem vestal?
O termo virgem vestal invoca imagens da virgem suprema. Ela provavelmente realizaria seus secretos rituais de purificação durante os serviços vespertinos, o que significa que deve ser católica.
Não exatamente. Na verdade, as virgens vestais já existiam antes do nascimento de Cristo. Vesta, deusa romana que as virgens honravam, era a filha mais velha de Saturno. Nunca se casou, mas dedicou-se à família e ao lar. Transformou-se na matriarca, comandando um templo circular no centro de Roma. As virgens eram sacerdotisas que zelavam por uma chama sagrada ardendo no templo de Vesta.

segunda-feira, julho 23

Como ser fiel a si mesmo

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Denis Waitley

Siga estes passos infalíveis para o amor próprio

Meus avós acreditavam que ou uma pessoa é honesta ou não é. Não existe meio termo. Num quadro na parede de sua sala de visitas, lia-se um lema bem simples: “A vida é como um campo recém coberto de neve. Por onde quer que eu ande, deixarei minhas pegadas no chão.” Meus avós não precisavam falar no assunto – demonstravam esse lema no modo como viviam.
Instintivamente eles sabiam que integridade significava um determinado padrão ético e moral que não faz concessões à conveniência ou às circunstâncias da vida. A integridade é um padrão interior para julgar nosso comportamento. Infelizmente, é um artigo escasso hoje – e a cada dia se torna mais raro. Mas é essencial em todas as áreas da sociedade. E é algo que devemos exigir de nós mesmos.
Um bom teste para esse valor é examinar três princípios básicos:

Mantenha-se firme em suas convicções.
Há uma história que fala de uma enfermeira no primeiro dia de trabalho numa equipe de cirurgia, num renomado hospital. Ela foi responsável pela contagem de todos os instrumentos e materiais utilizados durante uma operação de abdome. A enfermeira disse ao cirurgião:
“O senhor só removeu 11 compressas e nós usamos 12. Temos de encontrar a que falta.”
“Eu retirei todas”, respondeu o médico. “Vamos fechar agora.”
“O senhor não pode fazer isso”, insistiu a novata. “Pense no paciente.”
Sorrindo, o cirurgião ergueu o pé e mostrou a ela a 12ª compressa.
“Você vai se sair muito bem, aqui ou em qualquer hospital em que trabalhar”, disse o médico.
Se souber que está certo, não recue.

Reconheça o mérito dos outros.
Não tema quem possa ter uma idéia melhor ou mesmo ser mais esperto do que você.
David Orgilvy, fundador da agência de publicidade Ogilvy & Mather, deixou isso claro para os novos diretores, dando a cada um deles uma daquelas bonecas russas que contém outras no interior do corpo.
A mensagem de Ogilvy estava dentro da boneca menor: “Se cada um de nós contratar pessoas ‘menores’, vamos nos tornar uma empresa de anões. Mas, se cada um contratar pessoas ‘maiores’, a Ogilvy & Mather se transformará numa empresa de gigantes.” Foi exatamente o que aconteceu – a empresa hoje é uma das maiores e mais respeitadas agências de publicidade do mundo.

Seja honesto e franco, mostrando-se como realmente é.
As pessoas que não tem valores internos genuínos costumam amparar-se em fatores externos – como aparência ou status – para se sentirem bem consigo mesmas. Farão tudo que puderem para preservar essa fachada, mas muito pouco para desenvolver valores internos e crescimento pessoal.
Portanto, seja você mesmo. Não crie disfarces para os aspectos desagradáveis de sua vida. Quando a situação for difícil, enfrente-a com dureza. Encare a realidade e seja adulto em suas reações aos desafios da vida.
Amor próprio e consciência limpa são componentes poderosos da integridade e a base para o enriquecimento de suas relações com as pessoas.

Ser íntegro significa fazer o que você faz porque é o certo, e não por estar na moda ou ser politicamente correto. Uma vida de princípios, em que não se sucumbe ao chamado sedutor da moralidade fácil, será sempre vitoriosa. E o levará ao século 21 sem a necessidade de verificar suas pegadas pelo espelho retrovisor. Foi o que meus avós me ensinaram.

sábado, julho 21

A verdade sobre o Dr. Berger

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Jerome Groopman

Sua força estava na maneira como enfrentava o infortúnio.

Baixo e magro, cabelos claros e sorriso de menino. Dan Berger me cativou desde o início. Eu o conheci em sua entrevista para um estágio no Departamento de Oncologia e Hematologia do Deacones Hospital, de Harvard.
“Quero me dedicar totalmente à hematologia”, disse-me ele. Estava acostumado a ouvir essas palavras de candidatos esperançosos de conseguir o concorrido estágio, mas o tremor na voz de Dan me fez achar que estava sendo sincero. Ele ganhou a vaga e eu me tornei um de seus orientadores docentes.
Dan planejava retornar à sua terra quando terminasse o estágio. Eu entendia seus motivos. Os pais estavam envelhecendo. Eram judeus húngaros, sobreviventes de Auschwitz, e tinham vindo para o novo continente recomeçar a vida. Dan, filho único, e a família eram muito ligados a eles.
Muitos pacientes em minha clínica tinham Aids. Fiquei impressionado com a rapidez com que Dan adquiriu os conhecimentos necessários para fazer o diagnóstico e tomar decisões terapêuticas nesses casos e, mais impressionado ainda, com seu carinho e preocupação com os pacientes.
Depois de um ano de estágio na clínica, Dan juntou-se à equipe do laboratório, que pesquisava modificações genéticas nos glóbulos vermelhos para torna-los resistentes ao HIV, o vírus causador da Aids. Ambos sabíamos que esse projeto de terapia genética implicaria um penoso esforço, mas ele disse estar ansioso para enfrentar o desafio.
Dan trabalhava arduamente. Tomava café da manhã com as duas filhas antes de irem para a creche, chegava no meio da manhã ao laboratório e trabalhava até as 10 ou 11 da noite. Muitas vezes eu o encontrava lá aos domingos.
Eu o colocara na equipe da citologista Phong Phen. Ela o ensinou a trabalhar de forma segura com o vírus vivo.
Phong era uma pessoa muito especial. Eu a admirava, tanto pelo trabalho científico, quanto pela firmeza de caráter. Trabalhara como técnica num laboratório da Cruz Vermelha em Phnom Pehn, no Camboja. O Khmer Vermelho executou o diretor da instituição e dois médicos. Um guerrilheiro acertou a boca de Phong com o cabo do rifle quando ela tentou lhe tirar a arma, arrancando-lhe os dentes da frente.
Classificada pelo Khmer Vermelho como “tecnocrata”, foi enviada com o marido e o filho de 3 anos para ser “reeducada” num campo de trabalho na selva, onde o marido morreu. Ao perceber que nunca sairia viva dali, fugiu com o filho.
Levaram dois meses até a fronteira tailandesa. Phong nunca me contou o que aconteceu na implacável jornada pela floresta.
Certa vez, num momento mais calmo, quando perguntei sobre suas experiências com o Khmer Vermelho, ela disse:
“Dr. Groopman, isso foi há muito tempo”. A ponte fixa colocada no chegar nos Estados Unidos atrapalhava-lhe a dicção. “Conheci gente no Camboja que sobreviveu a dificuldades maiores. Agora penso no futuro, não no passado.”
“E o que você espera do futuro, Phong?”
“Tranqüilidade, Dr. Groopman. Tranqüilidade. Meu filho é um bom garoto. Os professores gostam dele. E eu adoro meu trabalho. Tive muita sorte.”
Em 1993, o inverno chegou cedo na Nova Inglaterra. Na primeira semana de outubro, Dan voltou dos feriados judaicos esgotado e abatido. Seu rosto, geralmente bem disposto, tinha um aspecto pálido e doentio. Os olhos castanhos e fundos estavam distantes e inexpressivos. Perguntei se surgira algum problema em casa. Dan me olhou hesitante, mas respondeu:
“Não, problema nenhum.”
Nas semanas seguintes, minha preocupação aumentou. Dan não era mais o mesmo. Perguntei a Phong se sabia por que estava tão distraído e deprimido.
Ela me dirigiu um olha vago. Deduzi que não sabia de nada.
O primeiro domingo de dezembro foi um dia claro e límpido. Fui ao laboratório por em dia algumas leituras técnicas. Pouco depois deparei com um artigo sobre HIV que queria comentar com Dan.
Como esperava, encontrei-o no Laboratório de Biossegurança Nível 3, o local projetado para trabalhos com agentes perigosos, como o HIV. Dan estava de pé ao lado de Phong, que pipetava uma solução numa placa de Petri grande. Esperei que ela terminasse.
“Dan”, chamei baixinho.
“Oi, Jerome.” Sua voz estava um pouco rouca.
“Tenho aqui um artigo que vai interessar a você.”
“Obrigado”, suspirou. “Vou sair e dar uma olhada. Não estou mesmo produzindo muito hoje. Phong, pode terminar isso para mim?”
Phong assentiu em silêncio.
Depois de passarmos pelos rituais de descontaminação, fomos até minha sala. Dan parou para admirar o equipamento do laboratório.
“Que lugar!”, exclamou.
Era domingo e a sala, sem ninguém, estava cheia de aparelhos parados. Eu compartilhava da admiração de Dan. Cada instrumento tinha propósito e personalidade únicos, e gozava do respeito reservado às grandes obras de arte. Dan entrou e dirigiu-se a um canto afastado do laboratório. Como se prestasse uma homenagem, parou em frente ao aparelho que definia automaticamente seqüências de genes – o rei de todas aquelas máquinas.
Aquele aparelho havia triplicado a velocidade de andamento de nosso projeto de terapia genética, permitindo-nos, esperávamos, maior rapidez nas pesquisas da cura da Aids.
“Adoro este laboratório”, afirmou Dan, enquanto saíamos da sala e seguíamos pelo corredor. “Não sou religioso como você, Jerome. Mas, ultimamente, vejo-me agradecendo pela vida que tenho, por trabalhar nesta nossa área. A medicina nos dá a oportunidade de levar uma vida moral.”
Assenti, em silêncio, perguntando-me o porque de tais ponderações naquele momento.
“Sou grato”, continuou ele, “porque, como médicos, aprendemos tanto sobre nós mesmos quanto sobre os pacientes. Principalmente aqueles com Aids ou câncer. Descobrimos todos os dias que somos mortais.” Fez uma breve pausa e completou: “Mas, é claro, disso eu já sabia.”
Entramos em minha sala. Dan me encarou com uma expressão solene e disse, quase num sussurro:
“Jerome, eu tenho Aids.”
Senti como se tivesse levado um soco. Enquanto lentamente me recuperava, o coração parecia explodir no peito. As lágrimas turvaram-me os olhos.
Levantei-me, ainda sem firmeza, caminhei na direção de Dan e o abracei.
Ficamos juntos até tarde nesse domingo, observando, da janela do escritório, o sombrio crepúsculo prateado dar lugar a uma escura noite estrelada. Ouvi Dan contar o que ele chamava de “a outra história” de sua vida.
Ele era portador de grave hemofilia. Todos os seus movimentos eram carregados de riscos: uma queda ou corte poderia resultar em hemorragia fatal.
Mesmo assim, os pais haviam-no imbuído de atitudes que o ajudaram a enfrentar primeiro a hemofilia e, agora, a Aids. O tempo todos insistiam que era ele, e não a doença, o senhor de sua vida. E quando se é o senhor da própria vida, pode-se enche-la de bons momentos, a fim de amenizar as adversidades.
Dan contraíra Aids dos concentrados de fator de coagulação contaminados que lhe tinham salvado a vida. Não se sabia que um vírus fatal podia ser transmitido com o fator protéico de doadores infectados.
Conversamos por mais de duas horas. Dan olhou para o relógio e disse que tinha de ir para casa jantar com a família. Levei-o até a porta e tornamos a nos abraçar.
Voltamos a conversar numa tarde no início de janeiro. Dan sabia que eu me perguntava como ele convivia, no dia a dia de médico, com a Aids e todos os seus tormentos. Ele contou que esses três anos, cuidando dos pacientes e estagiando no laboratório conosco, na verdade tinham lhe feito um grande bem e trazido muitas esperanças.
É lógico que havia momentos em que ficava apavorado, mas não acreditava que morreria de Aids. Nos últimos anos a medicina tinha conquistado importantes avanços terapêuticos. Dan estava otimista em relação à possibilidade de o projeto de terapia genética em que trabalhávamos estender sua vida em algumas décadas. Tinha esperanças de ver as filhas crescer. Tinha esperanças de continuar a realizar um trabalho produtivo. Enquanto pudesse manter-se em atividade, trabalharia e lutaria para viver.
Perguntei por que não me contara antes sobre a doença. Ele respondeu que adotara uma política de ‘contar a quem precisava saber’, aqueles que eram essenciais a seu atendimento médico e apoio emocional. Portanto, os pais, seus médicos e, obviamente a mulher, Rina, tinham conhecimento. As filhas só sabiam que o pai às vezes passava mal. Se piorasse, saberiam mais.
“Jerome, você não é o primeiro do laboratório a saber.”
Fiquei um pouco surpreso. A quem ele teria falado antes de mim, seu orientador, amigo e chefe do laboratório?
“Contei a Phong há algum tempo. Ficamos amigos. Você sabe o que ela já passou. Tem uma compreensão e uma força que me lembram meus pais. Pedi que jurasse segredo. Não se zangue por ela não ter contado a você.”
Agora eu entendia seu silêncio meses antes.
“Não se preocupe. Phong agiu certo ao respeitar sua confiança.”
Logo chegou junho, época de nos despedirmos dos que tinham concluído o estágio. Dan ia trabalhar num laboratório de HIV no Canadá.
Em seu último dia, ele veio com Rina e as filhas. Trouxe a câmera e, depois de fotografar o laboratório, pediu a alguém que batesse uma fotografia nossa: eu e Phong com ele e a família.
Quando abracei Dan pela última vez, pensei que eu deveria ter sido seu orientador e mestre, mas que, de muitas maneiras, fora ele meu professor. Dan ensinou-me que, aceitando as incertezas da vida, podemos, paradoxalmente, superar o medo e ampliar nossa existência. E como, mesmo sob a sombra da morte, podemos encontrar forças e coragem ao optar pelos pequenos prazeres da vida.
Dan perdeu a batalha em 1996. a fotografia em que ele aparece comigo, Phong e a família continua em minha mesa. Muitas vezes olhos para ela e reflito. Seu espírito, como a luz de uma estrela distante, continua a iluminar minha vida, muito depois de extinta a fonte.

sexta-feira, julho 20

Vovô não foi embora

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autora : Ann Hood

O que um menino sabia sobre amor, sofrimento e cura?

Um dia, Sam, meu filho de 4 anos, contou-me que vira a babá chorando porque tinha rompido com o namorado.
“Ela estava triste”, explicou ele. “Eu nunca fiquei triste”, acrescentou. “Nunca mesmo.”
Era verdade. A vida de Sam era feliz – em grande parte por causa de seu relacionamento com meu pai. Como Sam contava a todos, Vô Hood era mais do que um avô para ele – era um companheiro.
Há uma cena no filme Anne of Green Gables em que Anne exprime em voz alta o desejo de ter um amigo do peito. Assistindo à cena certo dia, Sam disse:
“Como eu e o Vô: amigos do peito para sempre.”
Meu pai descrevia essa relação do mesmo modo. Quando eu ia dar aulas à noite fora da cidade, uma vez por semana, era o Vô que buscava Sam no colégio com sua caminhonete vermelha e o levava para a casa dele, onde brincavam de piratas, cavaleiros e Robin Hood.
Eles até se vestiam do mesmo jeito: camiseta com bolso, boné de beisebol e jeans. Tinham seus restaurantes preferidos, parques que sempre freqüentavam e lojas de brinquedos em que papai deixava Sam brincar pelos corredores em carros motorizados.
Sam sabia de cor o número do telefone de meu pai e lhe telefonava todos os dias, de manhã e à noite.
“Vô”, perguntava, agarrando o fone, “posso ligar para você mais cem vezes?” Papai sempre respondia que sim e atendia o telefone todas as vezes com o mesmo prazer.
Então meu pai adoeceu. Nos meses em que ficou hospitalizado com câncer no pulmão, preocupava-me com a reação de Sam à aparência do avô: as marcas das injeções, os tubos de oxigênio, sua fraqueza. Quando expliquei a Sam que se visse o avô tão doente poderia ficar assustado, ele se espantou.
“Ele nunca poderia me assustar”, respondeu.
Mais tarde, vi adultos se aproximando da cama de meu pai no hospital com apreensão, sem saber o que dizer ou fazer. Mas Sam sabia exatamente como agir: com abraços e brincadeiras, como sempre.
“Vai voltar para casa logo?” perguntava.
“Estou me esforçando” respondia papai.
Quando ele faleceu, tudo mudou para mim e para Sam. Sem querer enfrentar as perguntas e os sentimentos suscitados pela morte de meu pai, eu reprimia a tristeza arrasadora que sentia. Quando, bem intencionadas, as pessoas me perguntavam como eu estava, dava uma resposta rápida e mudava de assunto.
Mas Sam era diferente. Para ele, pensar em voz alta era o melhor meio de compreender.
“Então”, dizia, acomodando-se no assento do carro, “O Vô está no espaço, não é?”
Ou, apontando para um vitral da igreja:
“Um daqueles anjos é o Vô?”
Logo depois que meu pai morreu, Sam indagou:
“Onde fica o paraíso?”
“Ninguém sabe exatamente”, respondi. “Muita gente acha que é no céu.”
“Não”, disse Sam, sacudindo a cabeça. “Fica muito longe. Perto do Camboja.”
Em outra ocasião, perguntou:
“Quando a gente morre desaparece, não é? E quando a gente desmaia, desaparece só um pouquinho, certo?”
Achava que as perguntas dele eram boas. O que me incomodava era o que sempre fazia depois: olhava bem dentro dos meus olhos, com mais esperança do que eu podia suportar, e aguardava minha aprovação, correção ou sabedoria. Mas, nesse assunto, meu medo e a minha ignorância eram tais que eu ficava muda perante a inocência dele.
Recordando a atitude de Sam diante da doença de meu pai, comecei a observar sua maneira de enfrentar o sofrimento. À noite ele encostava o rosto na vidraça da janela do quarto e chorava, dizendo para a escuridão: “Vô, amo você! Sonhe com os anjos!” E depois que as lágrimas cessavam, ele se deitava, de certo modo satisfeito, e dormia. Eu, ao contrário, andava pela casa a noite toda, sem saber como chorar.
Um dia, no estacionamento do supermercado, vi uma caminhonete vermelha, igual à de meu pai. Por um instante esqueci que ele tinha morrido. Meu coração deu um salto e pensei: Papai está aqui!
Então me lembrei, e me desfiz numa enxurrada de lágrimas. Sam veio para o meu colo, espremendo-se contra o volante.
“Você sente saudades do Vô, não sente?”, indagou.
Consegui indicar que sim com a cabeça.
“Tem de acreditar que ele está conosco, mãe”, disse ele. “Tem de acreditar nisso.”
Jovem demais para se agarrar numa ideologia em especial, Sam estava simplesmente lidando com o sofrimento e a perda, acreditando que a morte não nos separa realmente de quem amamos. Eu não podia lhe mostrar o paraíso num mapa nem explicar o rumo que a alma segue. Mas ele encontrara o próprio jeito de lidar com isso.
Há pouco tempo, quando preparava o jantar, Sam estava sentado à mesa da cozinha, quieto, colorindo seu livro do Homem Aranha.
“Eu também amo você”, disse ele.
Eu ri e respondi.
“Você só diz ‘Eu também amo você’ depois que alguém diz primeiro ‘Eu amo você’.”
“Eu sei”, disse Sam. “O Vô acabou de dizer ‘Eu amo você, Sam’, e eu disse, ‘Eu também amo você’”.
E continuou a colorir.
“O Vô acabou de falar com você?”, perguntei.
“Ah, mamãe”, disse Sam. “ele diz que me ama todos os dias. Diz a você também. Você é que não está escutando.”
Mais uma vez, passei a seguir o exemplo de Sam. E comecei a escutar.

quinta-feira, julho 19

O flamingo que perdeu o rumo

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autora : Kathy Cook

Livre pela primeira vez, o flamingo planava só, sobre as colinas e rios do nordeste dos EUA. Depois de 20 anos de cativeiro, os músculos de seu peito doíam. Apesar disso o pássaro perdido seguia voando, examinando a terra lá embaixo em busca de outros flamingos. Mas seus companheiros estavam muito distantes desse estranho e novo habitat.

Era outubro de 1997, os dias iam ficando mais curtos e a temperatura caía, às vezes para abaixo de zero. Embora nunca tivesse migrado, o instinto dizia ao flamingo para procurar um clima mais quente. No entanto, sendo de uma espécie chilena, enquanto bandos de aves migratórias da América do Norte voavam para o sul, ele seguia em direção ao noroeste, para onde achava que seria a costa. Uma rota em que certamente morreria de frio.
A ave acabou chegando ao Canadá e, no início de novembro, viu um bando de gansos ao longo de uma enseada do Rio Ottawa. Então desceu suavemente e pousou no meio deles.

Kathy Nihei, fundadora do Centro de Proteção às aves Selvagens do Vale do Ottawa, largou o conta-gotas com que alimentava uma ave doente e atendeu o telefone. Era Elizabeth Le Geyt, observadora de pássaros e colunista do Ottawa Citizen, e a história que contou fez Kathy rir.
“Está falando sério, Elizabeth? Um flamingo? Aqui?!” Ela sabia que não se encontram flamingos no Canadá, quanto mais no Rio Ottawa. “Vamos checar isso.”
Kathy dirigia o centro de proteção às aves havia 16 anos. Atualmente o centro trata de mais de 3.500 aves órfãs e feridas por ano, antes de devolve-las à vida selvagem.
Como Kathy estivesse jantando na casa dos pais naquela noite de 9 de novembro, o colega Jamlyn e um voluntário se ofereceram para ir até Shirleys Bay, onde o misterioso visitante fora visto.
Quando chegaram lá, viram a ave de penas cor de rosa e pernas longas e finas, que chapinhava nas águas rasas. Hamlyn telefonou para Kathy: “É grande. É cor de rosa. É um absurdo flamingo!”, exclamou.
No dia seguinte Kathy, Hamlyn e vários voluntários pegaram algumas redes, pediram emprestadas duas canoas e remaram até a enseada. Não demorou muito para que Kathy avistasse o corpo da ave, de uma cor de rosa brilhante, destacando-se nitidamente no dia nublado.
Devagar, remaram até uns cinco metros de distância do flamingo. De repente a ave ergueu as amplas asas e voou para uma pequena ilha. Kathy percebeu que aquele resgate seria mais difícil do que imaginara.
Ao deitar-se naquela noite, ela não conseguia parar de pensar na solitária criatura perdida: De onde você veio, pobre ave? E como vai alimentar-se quando os cursos de água se congelarem?
Ao amanhecer, Kathy deu início a uma séria de e-mails e telefonemas para zoológicos, santuários de aves marinhas e também para qualquer um que tivesse experiência com flamingos e pudesse ajudar. Nenhum dos zoológicos da área dera falta de um flamingo e ninguém tinha experiência na captura dessa ave. Baseando-se nas informações obtidas, Kathy encomendou comida própria para flamingos e conseguiu alguns espécimes de plástico, desses para enfeitar jardim, e uma fita com sons emitidos pela ave. Um plano tomava forma, e as pessoas estavam ansiosas para ajudar.
Um observador de pássaros enviou mensagem pela Internet pedindo que quem tivesse perdido um flamingo entrasse em contato com o Centro de Proteção às Aves Selvagens do Vale do Ottawa.
Então o Ottawa Citizen publicou na primeira página a história do visitante estrangeiro.

Said Sheikh, 19 anos, voluntário que dedicava meio expediente de trabalho ao centro dirigido por Kathy, crescera admirando os flamingos selvagens de sua terra natal, o Quênia, e anos antes havia resgatado do Oceano Índico um flamingo doente. Quando soube da ave perdida, encaminhou-se para Shirleys Bay a fim de juntar-se ao crescente número de voluntários para o resgate.
Entre eles achava-se Alan Walsh, 42 anos, pai de duas meninas: Shannon, 6 anos, e Lauren, 9.
“Papai, você podia salvar o flamingo”, dissera-lhe Shannon, ouvindo a história no rádio. “Por favor, papai!”
Walsh olhara para os olhos suplicantes das filhas e o sorriso cúmplice da mulher, e ligara para Kathy a fim de saber como poderia ajudar.
No centro de proteção todos estavam em compasso de espera. Na primeira semana, chegou uma resposta para a mensagem da Internet. O flamingo era um fugitivo do Santuário de Aves Selvagens Livingston Ripley, em Litchfield, Connecticut. Seu nome era Eilish. Para os canadenses, porém, ele logo se tornou conhecido como Elisha.
Nos primeiros dias, Elisha bancou o turista. Um dia era visto com os gansos em Shirleys Bay; no dia seguinte, aparecia a dez quilômetros de distância, rio acima ou abaixo. No fim da semana, as aparições pararam subitamente. Através da mídia, Kathy pediu ao público que ligasse para o centro se o flamingo fosse visto.
Os gansos tinham ido par o sul, e Kathy esperava que o flamingo os estivesse seguindo. Mas especialistas disseram que isso era improvável. Os gansos logo a deixariam para trás, e Elisha provavelmente continuaria sozinha.
Na noite de 16 de novembro o flamingo pousou mais uma vez nas águas rasas do Rio Ottawa e adormeceu. Antes da aurora, a temperatura caiu para –10º C e a água congelou. Quando acordou, estava com as finas pernas presas no gelo.
Escoteiros que faziam uma caminhada pela manhã viram Elisha e telefonaram para Kathy, que imediatamente reuniu a equipe de resgate.
O flamingo observou os humanos aproximarem-se numa canoa que abria caminho em meio à neve e ao gelo. Quando chegaram a cinco metros de distância, ele começou a bater as asas. O gelo que o prendia quebrou-se e ele se soltou desajeitadamente, com blocos presos à parte inferior das pernas. Ah, Elisha, por favor confie em nós. Sua vida depende disso, pensou Kathy, desapontada. Derrotados por ora, os voluntários remaram de volta à margem.
“Temos de imaginar outro plano”, disse Kathy.
Walsh concordou, e em dois dias construiu uma armadilha de cinco metros de diâmetro que poderia ser fechada manualmente quando o flamingo entrasse nela.
De volta a Shirleys Bay, Kathy pôs na armadilha iscas de alimentos e flamingos de plástico. Elisha ignorou o chamariz.
“Ele é inteligente!”, admitiu Kathy para Jamlyn e Walsh enquanto tomavam café de uma garrafa térmica no posto de observação camuflado.
No dia seguinte um voluntário avistou Elisha enquanto alimentava patos nas proximidades do Parque Andrew Haydon, ao longo do Rio Ottawa.
A armadilha de Walsh foi preparada de novo. Para atrair a ave, montarem-se espelhos na margem que refletiam a imagem dela, um ganso de plástico movido por controle remoto foi colocado ali perto, e começaram a tocar uma fita de sons de flamingo.
Houve outras tentativas de resgate criativas. Voluntários camuflaram uma canoa com ramos e juncos. Sheikh e outro admirador de Elisha empurraram-na na direção da ave e esconderam-se atrás da canoa segurando redes. Não adormecido de todo, o flamingo manteve um olho desconfiado no objeto flutuante. Quando a estranha geringonça chegou a uns cinco metros de distância, a ave voou par um local mais tranqüilo.
Pacientemente, eles a seguiram por uma sucessão de novos locais, mas todas as vezes ela escapou.

Em 21 de novembro a enseada se congelou totalmente. Dois dias depois, o flamingo foi visto alimentando-se na foz de um riacho, dez quilômetros rio acima. Mais uma vez Kathy pôs alimentos e flamingos de plástico ao logo do riacho.
Sheikh vestiu macacão e botas de borracha para proteger-se da água gelada e escondeu nas costas uma rede extensível de pegar borboleta. Aproximou-se de joelhos do flamingo. Como fizera no resgate do Oceano Índico, esfregou os dedos embaixo da água, imitando o som de outro flamingo alimentando-se. A ave começou a caminhar em sua direção.
“Não acredito. Ele está indo diretamente para os braços de Said!”, sussurrou Kathy para Hamlyn.
O flamingo estava quase ao ao alcance da mão de Sheikh quando este escorregou num buraco do leito do rio e chapinhou. Elisha então fugiu.
Em dezembro o flamingo passara a maior parte do tempo alimentando-se na foz do riacho, ocasionalmente mudando para uma parte mais estreita, com sete metros de largura. Kathy esperava que uma armadilha especial nesse local tivesse sucesso. Para fazer a armadilha, precisavam de sete redes grandes e quase invisíveis. O custo, porém, estava acima das possibilidades do centro.
A essa altura, no entanto, a situação desesperada da ave havia despertado o interesse do público e tocado o coração das pessoas. Três redes foram doadas após a divulgação de um apelo. Seriam necessárias mais quatro. Então o centro recebeu um telefonema: “Suas redes estarão chegando amanhã. É a nossa contribuição”, informou um representante do Ottawa Citizen.

As redes chegaram em 5 de dezembro, e Kathy, Hamlyn e dez voluntários passaram seis horas montando a armadilha. Fincaram estacas no chão e esticaram redes de uma margem à outra, deixando uma abertura na frente para servir de porta, que em seguida camuflaram com palha e folhas.
Trabalhando em duplas, os voluntários começaram uma vigília de 24 horas. Passaram-se dias frustrantes: a ave não entrava na armadilha. É loucura! Por que estou fazendo isso?, perguntava-se Walsh, enquanto esperava na fria escuridão da madrugada. Mas o que começara como um desejo de agradar às filhas tinha se tornado uma exigência.
Então uma onda de frio chegou e uma camada de gelo cobriu o riacho. O flamingo desapareceu. Muitos pensaram que ele tinha sucumbido aos rigores da natureza.
Em 10 de dezembro, ainda sem sinal da ave, Kathy e Hamlyn decidiram tirar a armadilha. Não podiam mais continuar vigiando-a 24 horas por dia! Era tempo de admitir o fracasso. Kathy estava calçando botas de borracha para entrar no rio e soltar a armadilha do gelo quando alguém se aproximou correndo: “Lá está ele!”
O flamingo encontrava-se a apenas 20 metros de distância. Eles correram para quebrar o gelo da armadilha. Kathy, entusiasmada, quase não notou que suas mãos nuas começavam a congelar. Walsh chegou para ajudar. Depois de tirarem o gelo, foram para seus esconderijos.
Venha, avezinha, deixe seu estômago guia-la, dizia Hamlyn baixinho, enquanto o flamingo esfomeado bicava o gelo, em busca de comida. Então ouviu o leve murmúrio de água corrente vindo da armadilha. Encaminhou-se para lá, mergulhou a cabeça na água e começou a comer.
Walsh ergueu a mão e, quando a ave se voltou na direção do fundo da armadilha, avisou: “Agora!”
Hamlyn correu para a rede, agarrou o flamingo e apertou-o contra o corpo. Ele não se debateu. Com um amplo sorriso, Hamlyn beijou-lhe o topo da cabeça de penas eriçadas.

A história do resgate foi amplamente divulgada. Quando fotos do flamingo salvo ocuparam a primeira página dos jornais de Ottawa no dia seguinte, foi como se toda a cidade tivesse dado um suspiro de alívio.
Ninguém ficou mais feliz com a notícia do que o ornintólogo S. Dillon Ripley, presidente e fundador do santuário de aves de Litchfield, abrigo de 80 espécies de aves de todo o mundo. Elisha fugira quando tratadores foram aparar-lhe as penas das asas. Durante cerca de um mês tentaram resgata-lo, mas o flamingo desapareceu e foi considerado morto.
Também Kathy ficou feliz por Elisha ter sido salvo, mas triste por vê-lo ir embora. Por cortesia da Air Canadá, o flamingo foi para casa. Hoje está de volta à grande área protegida por redes, no santuário de Litchfield.

quarta-feira, julho 18

O banquinho de madeira

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autora : Heloisa Seixas

Emoldurado pela porta, o jovem de rosto sério trazia nas mãos um pequeno banco de madeira.

O cenário era um casarão do início do século no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, com telha francesa, janelas imensas em pinho de riga, assoalho de tábuas corridas. A noite, de festa: era a inauguração de um estúdio de dança que passaria a funcionar ali.
Estávamos em julho de 1993 e, no inverno carioca, fazia um friozinho agradável. No salão, de quase cem metros quadrados, cercado de janelões e espelhos, a multidão se amontoava, conversando ruidosamente.
A música estava animada, como animadas eram as vozes em todas as rodas que se formavam. Mas, de repente, o vozerio desceu de tom. Música e vozes foram baixando, baixando, até se tornarem pouco mais do que um murmúrio, enquanto as pessoas se voltavam, quase sem perceber, para uma porta no fundo do salão. Todos os olhares convergiram para aquele ponto.
Ali, emoldurado pela porta, estava um jovem. Era um rapaz como outro qualquer, como tantos que pelo salão se espalhavam, participando da festa. Mas duas coisas o diferenciavam dos demais. A primeira era o olhar. Estava sério – o rosto, máscara inexpressiva, sem rugas, encarava as pessoas à sua volta com uma intensidade peculiar, os olhos castanhos saltando de um para outro convidado e nele se cravando, implacáveis. A segunda coisa era o banquinho. Ele trazia nas mãos um pequeno banco de madeira, objeto sem dúvida incomum de se portar naquela hora e naquele lugar.
Logo, deu um passo à frente. E, lentamente, sem nunca deixar de olhar as pessoas nos olhos, caminhou para dentro do salão. Atrás dele, vieram outros. Rapazes e moças. Todos sérios, todos de olhar intenso – e cada um levando nas mãos um banquinho de madeira.
Espalharam-se pelo salão, agora mergulhado em silêncio. Alguém desligara o som e todos aguardavam, quietos e curiosos. Os jovens continuavam mudos, mas seus olhares pareciam cada vez mais inquietos, saltando de uma pessoa para outra.
Súbito, num movimento vigoroso, o primeiro jovem colocou no chão seu banquinho, nele subindo em seguida. E, pairando alguns centímetros acima do resto do salão, começou a falar.
Era um texto teatral, que depois se soube ser uma colagem de várias peças. Falava sobre a necessidade que o ser humano tem de se expressar através da arte. Sobre a tentativa de permanecer, de deixar um rastro sobre a terra, gravado em tintas, letras, sons, o que for. Terminado seu trecho, o rapaz se calou e desceu do banquinho, voltando a segura-lo nas mãos.
E imediatamente outro jovem, colocando seu próprio banco no chão, nele subiu e continuou a fala, do ponto onde o colega havia parado. Depois dele, uma jovem. E em seguida mais um rapaz. Todos falando dessa busca incessante de expressão – e de como isso é saudável, heróico e belo.
Incrível que a colagem de textos tivesse sido feita – como ficaríamos sabendo mais tarde - pelo diretor de teatro Márcio Vianna, que morreria quase três anos depois, aos 47 anos. Ironicamente, aquele belo espetáculo tinha sido criado por um homem que estava com os dias contados. Mas afinal, pensando bem, quem de nós não está?
O fato é que, na festa, nós, os convidados, ouvimos encantados a preleção dos jovens, envolvidos pela força com que diziam o texto e pela verdade que havia naquelas palavras. Até que, num dado momento, o último dos jovens, um rapaz, subiu em seu banquinho para a fala final. De olhos brilhantes e com gravidade, ele disse:
“É por meio da arte que a dor se transforma em luz. É por meio da arte, ainda, que muitos encontram o divino. Por isso, devemos, cada um de nós, tentar buscar nosso dom, nossa própria forma de expressão. Devemos todos, ao menos uma vez na vida, seja como for, seja de que forma for, tomar coragem e subir no nosso próprio banquinho.”
O salão inteiro era uma só massa de silêncio, todos os olhos convergindo para aquele jovem que dizia coisas tão sábias. E ele, então, abrindo um imenso sorriso, conclamou:
“E é em nome da arque que agora chamo vocês a fazer uma celebração. Quero que todos, todos aqui presentes, tirem uma pessoa, qualquer pessoa, para dançar. E vamos celebrar a vida!”
Mal acabou de dizer a frase e os primeiros acordes de uma música encheram o salão, ninguém sabe como. E todos nós, o salão inteiro, alguns com desconhecidos, alguns até sozinhos, nos vimos felizes, obedecendo aquela ordem.
Saímos todos dançando.

terça-feira, julho 17

Quando o inferno se cobre de gelo

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Michael Finkel

No Alaska, pescadores de caranguejo arriscam a vida num trabalho de até 20 horas seguidas, grande parte do tempo no escuro.

A pesca comercial é a profissão mais perigosa na América do Norte, segundo o Ministério do Trabalho dos Estados Unidos; e a pesca de caranguejo snow-crab no Bar de Bering, a mais mortal de todas. A temporada começa em janeiro, quando a luz diurna é mínima e as tempestades estão no auge da violência.
Nos últimos anos, a pequena comunidade de pescadores de caranguejo vem sofrendo quase uma baixa por semana durante a temporada de pesca; essa taxa de mortalidade é tão mais alta do que em qualquer outra profissão nos Estados Unidos que parece inconcebível que o trabalho ainda exista. Mesmo assim, não faltam candidatos à função. Todos os anos, em janeiro, dúzias de homens perambulam pelo cais pedindo trabalho aos capitães. O pagamento é excelente. Um tripulante experiente pode ganhar mil dólares ou mais por dia.
Eu garanti meu posto com antecipação. Desejava escrever a respeito desse tipo de pesca, e um capitão, Gretar Gudmundsson, se dispôs a levar-me em seu barco, o Notorious – sob certas condições. Para que eu pudesse ir, ele seria forçado a contratar um tripulante a menos. Assim, em troca de um lugar no barco, concordei em fazer qualquer tipo de serviço, sem remuneração.
A bordo, Gretar me guiou em uma excursão de dois minutos. “Aqui é a cozinha”, disse. “Este é seu beliche; ali é a casa do leme. Lá está o convés. Agora arrume um trabalho.”
Aos 37 anos, Gretar é jovem para um capitão. Mas não é inexperiente. Vem de uma família de pescadores islandeses; uma de suas mais antigas lembranças é do momento em que teve de abandonar, com o pai, um navio que naufragava. Gretar tem o riso fácil e a displicência típica do homem do mar, mas mesmo assim seu aperto de mão é do tipo que faz estalar os ossos.
A tripulação me cumprimentou sem demonstrar simpatia ou desdém; logo ficou claro que minha aceitação dependeria da qualidade de meu trabalho. Eram seis os tripulantes de convés: o mestre, três experientes caranguejeiros e dois aprendizes. Eu era um destes; o outro era um sujeito de 34 anos chamado Ed. Os experientes eram Ken e Moe, ambos com 20 e tantos anos, e Troy, um jovem de 19 anos do sul da Califórnia, que havia abandonado a escola.
Rob era o mestre. “Este é o meu convés”, disse, assim que nos conhecemos. “Faça o que eu digo e provavelmente não vai morrer.”
Rob era imenso – com o físico daqueles sujeitos que se vêem arremessando barris de cerveja nos concursos de “O homem mais forte do Mundo.’ Era caranguejeiro havia oito anos e acabara de completar 29. tinha visto pessoas morrerem no convés, outras trabalharem com fraturas de ossos e ferimentos expostos e companheiros serem varridos pela água em marés turbulentos. Conquistara respeito. Certa vez perguntei-lhe sobre a imensa tatuagem em seu peito. “Foi feita na prisão”, respondeu. Embora Gretar fosse o capitão, o barco, na prática, era de Rob.

Coro de gritos
Passamos cinco dias em Dutch Harbor preparando-nos para a temporada. Cada um dos 125 covos tinha de estar pronto: rasgões costurados, bóias atadas, cabos de arrasto amarrados. Um covo de caranguejo, feito de aço e tela, tem as dimensões e a forma de uma cama de casal das grandes. Vazio, pesa mais de 300 quilos. O trabalho era exclusivamente físico; tudo tinha de ser forçado, marretado, puxado ou empurrado. Delicadeza tinha pouca serventia – um bom tripulante é forte, rápido e servil.
No café da manhã do segundo dia, Ken, um dos sujeitos experientes, desistiu de repente. “Não estou mentalmente preparado”, explicou a Rob. Foi substituído por um fumante inveterado e irrequieto de 22 anos chamado Andy, ex-palhaço de rodeio que também já competira no circuito profissional de luta de rua.
Antes de partirmos, Gretar me convocou à casa do leme. “Você vai ganhar 1%”, disse. Foi o maior elogio que eu poderia ter recebido – ele estivera observando meu trabalho e tinha decidido que eu merecia participar do lucro líquido da embarcação.
Bem cedo na manhã seguinte, sob céus tempestuosos, deixamos Dutch Harbor e viajamos 27 horas rumo ao norte, a uma velocidade de sete ou oito nós. Ondas de três a cinco metros encobriam o barco com uma névoa de borrifos.
A formação de gelo torna a embarcação pesada no topo e, se a tripulação não consegue romper o gelo com rapidez, o barco vira. Enquanto golpeávamos as amuradas, comecei a me sentir enjoado, e pus para fora o café da manhã, bem no convés. Ninguém ligou. “Na próxima, tente o balde de iscas”, sugeriu Moe. “Os caranguejos adoram.”
Quando chegamos ao nosso pesqueiro, a primeira tarefa foi colocar iscas nos covos e atira-los ao mar. O ritmo era frenético. A remuneração dos pescadores de caranguejo baseia-se unicamente no volume de captura. Quando se alcança o limite para a temporada, a pesca cessa. Portanto cada temporada se transforma numa corrida. Trabalhávamos 20 horas e descansávamos quatro, todos os dias.
Eu tentava manter o ritmo, mas o balanço da embarcação me jogava para todos os lados. Meus joelhos vergaram quando me mandaram carregar a “madre”, um rolo de cabo de 70 quilos. Já os homens experientes, em contrapartida, eram capazes de usar o movimento do barco para se mover à maneira dos astronautas. Durante o trabalho, a tripulação do Notorious quase nunca usava coletes salva vidas. Eram muito volumosos e faziam o sujeito parecer um maricas.
Gritos e xingamentos desabavam sobre nós. Rob os comandava. Quando ele gritava, o corpo inteiro daquele a quem se dirigia parecia instintivamente encolher-se.
Havíamos praticamente terminado de lançar os covos e Rob estava no meio de uma bronca contundente quando Ed reagiu e gritou de volta. Julgando pela cara do mestre, os socos eram iminentes. Ed saiu correndo do convés: sábia decisão.
Alguns minutos depois mandaram que eu fosse busca-lo. Ele estava trancado na cabine. “Desisto!”, gritou. “Não vou mais sair daqui.”
Ed cumpriu a palavra. Exceto para esgueirar-se até a cozinha em busca de comida enquanto estávamos no convés, ele não deixou seu beliche pelo resto da viagem.
Seu comportamento não surpreendeu ninguém. “Os aprendizes vão para o mar e enlouquecem”, disse Rob. “Isso acontece o tempo todo.” Havíamos perdido um sexto de nossa força de trabalho antes de capturar um único caranguejo.

Balé no mar
A pesca de caranguejo não é particularmente complicada. Os covos eram depositados no fundo do mar, suas posições marcadas por um par de bóias. Ao passarmos por um deles, um tripulante içava com o auxílio de um “filhote” (haste com um gancho na extremidade), o cabo que conectava as bóias e, em seguida, colocava o cabo de alto-mar na roldana do guincho do motor. Quando o covo vinha à tona, duas pessoas ajudavam a coloca-lo sobre o lançador. Então nós desarmávamos a porta e, com a ajuda de força hidráulica do lançador, erguíamos o covo numa posição quase vertical, de modo que a maior parte dos caranguejos se esparramava sobre uma grande mesa para seleção. Recolocávamos iscas no covo e o fazíamos escorregar de volta à água, para então separarmos os caranguejos – machos grandes no porão, machos pequenos e fêmeas (sempre pequenas) numa calha de volta ao mar. Em seguida, outra bóia. O ciclo durava cerca de oito minutos.
“Quando tudo corre bem”, Moe ressaltou certa vez, “é como um balé – todos se movimentando sem se tocar.” Obviamente Moe pouco frequentara espetáculos de balé, mas era o único a bordo que poderia tentar o uso de tal metáfora.
Designado para a inglória tarefa de congelador, eu tinha de rastejar para dentro do frigorífico da coberta de proa, arrastar um bloco de 30 quilos de arenque congelado e estraçalha-lo com a marreta. Jogava então os pedaços num triturador de iscas que transformava o arenque em papa, com a qual eu ia enchendo potes de plástico de 4,5 litros. A seguir, corria até o tanque de bacalhau, agarrava um peixe vivo, cortava suas guelras e abria-lhe um talho no ventre. O odor do arenque atraía os caranguejos; o bacalhau os alimentava nos covos.
Eu pendurava o bacalhau num gancho no topo de cada pote de isca, corria até o covo no lançador e saltava dentro dele, prendendo o gancho no centro da armadilha. No interior do covo, inclinando-me para fora sobre o Mar de Bering, agarrava o restante dos caranguejos e os lançava ao convés, enquanto ondas geladas arrebentavam sobre mim e caranguejos me beliscavam sempre que tinham a oportunidade. Depois de 60 ou 70 beliscões, eu já nem notava.
Alguém então gritava: “Tampa!” e eu saltava rapidamente para fora do covo – a tampa de um covo de caranguejo pesa certa de 20 quilos e, quando está se fechando, não há nada que a faça parar, haja ou não uma cabeça no caminho.
Eu voltava então até o balde de isca para reiniciar o processo. Oito minutos por covo, 20 horas por dia. Das tarefas do convés, esta era a mais fácil e menos perigosa.

Pinça de caranguejeiro
O sono era o que realmente me atormentava. Minha atenção começava a se dispersar. Fragmentos de canções ou de comerciais de TV se alojavam em minha mente e se repetiam como um disco quebrado. Eu precisava de uma quantidade cada vez maior de energia para simplesmente não deixar a cabeça pender, e cair no sono.
De vem em quando era servida uma refeição quente; deixávamos o convés desembestados e nos atirávamos a ela como lobos. Algumas refeições duravam menos de 10 minutos, nos quais eu engolia dois filés, três pedaços de frango, um prato de cereal e uma tigela de sopa. Gretar então berrava: “Covo chegando!”, e retornávamos ao convés.
Não fazia sentido rotular de “dia” o período de trabalho. Não estávamos trabalhando uma semana ou um mês; trabalhávamos até completar a embarcação. Os dois tanques de armazenamento vivo do Notorious tem capacidade para 140 mil quilos de caranguejo. Era possível que os enchêssemos em três dias; igualmente possível em três semanas. Perguntei a Rob como ele conseguia manter o ritmo. “É só parar de pensar”, disse ele.
Na hora de dormir, eu me deitava com todas as minhas roupas, exceto a capa, por mais que cheirassem mal ou por mais molhadas que estivessem. Assim, economizava o trabalho de me despir e vestir. Tampouco tomava banho. Nem ao menos escovava os dentes. Não valia a pena perder 90 segundos de sono. Meus sonhos me deixavam louco: ao cerrar os olhos, estava novamente no convés, pescando caranguejos. Despertava mais cansado.
Logo no início da viagem, no momento em que um covo era erguido para ser lançado, uma onda o arremessou diretamente sobre mim. Atingiu-me nas coxas, achatando-me contra outro covo. Bem, acabou-se. Meus dois fêmures estão despedaçados, lembro-me de ter pensado. Nunca mais vou andar – talvez agora possa dormir um pouco.
Tive sorte; fiquei apenas com grandes equimoses nas pernas. Pouco depois Gretar anunciou pelo megafone que, num barco nas proximidades, um novato perdera quatro dedos no triturador de iscas – justamente a máquina que eu operava.
Os problemas que afligiam minhas mãos eram outros. A combinação de trabalho repetitivo, tempo frio e umidade constante logo provocou rigidez na mão direita. Tocar qualquer objeto se tornou levemente doloroso; mais tarde, a dor passou a ser terrível. À noite, a mão latejava tanto que eu tinha de mantê-la suspensa sobre a cabeça. Finalmente, ela se imobilizou com os dedos estendidos.
“Meus parabéns”, disse Gretar. “Você está com pinça de caranguejeiro.”
Moe me aconselhou a urinar na mão. Foi o que fiz, e de fato senti certo alívio.
Comecei, entretanto, a usar só a mão esquerda, que não demorou a ficar como a outra. Passei a alternar as mãos e a dor se transformou em dormência generalizada.
Gretar, enquanto isso, apanhava o megafone e nos mandava trabalhar mais rápido. Em seus anos de convés, costumava-se terminar de arrumar um covo em três minutos exatos. “Mais rápido!”, berrava. “Mais rápido!” Fiquei convencido de que ele era psicótico.

Estado de euforia
Não desisti, certo de que, se o fizesse a tripulação acabaria comigo. Teriam me lançado ao mar e ninguém jamais saberia. Eu marretava arenque; matava bacalhau. Esmaguei o polegar na porta de um covo; fui atingido na cabeça por um gancho de aço oscilante. Rob teve a mão presa num covo e a unha arrancada. Gretar gritava para que fôssemos mais rápidos.
O convés lembrava uma zona de guerra – patas de caranguejo espalhadas por toda parte, montanhas de entranhas de peixe. Parecia sempre noite. Comecei a andar cambaleando. Pisava em caranguejos e não ligava à mínima – eu odiava caranguejos. Comecei a perder a audição. Achava difícil piscar. “O olhar fixo do Mar de Bering”, comentou Rob.
E então, enquanto enchia um pote de iscas, simplesmente parei. Caí de joelhos, e as lágrimas jorraram.
Tinha certeza de que levaria a maior bronca, mas estava errado. O pessoal viu que eu estava prestes a desabar. Andy apressou-se em colocar as iscas no covo, e então Rob disse algo que eu nunca poderia esperar. Convocou todos para um abraço coletivo. E ali, no convés do pesqueiro, no meio do Mar de Bering, interrompemos por um instante as atividades e o grupo se uniu num abraço.
Naquela noite, antes de dormir, Rob me disse que não acreditava que eu tivesse agüentado tanto tempo. Apenas três horas e meia depois, Gretar tamborilou com o punho na cabeceira de minha cama – o nosso sistema de despertador – e me comunicou que a parte de Ed na pesca seria minha. Eu tinha direito a 2%. Naquele dia, no convés, entrei num estranho estado de semi-consciência. O que está além da exaustão, descobri, não é uma exaustão mais profunda. É um estado alucinatório de euforia. Decerto um estado em que meus companheiros de tripulação poderiam entrar instantaneamente. Eu me esqueci do tempo. Não sentia dor. Ergui a madre e coloquei num covo, algo que não teria sido capaz de fazer no primeiro dia.
Enfim chegou o momento em que o barco estava completamente carregado. “Acabou”, anunciou Gretar pelo megafone. Havíamos terminado. Descobrimos que estávamos pescando caranguejos havia nove dias. Gretar apontou a embarcação para o sul e nos reuniu. Não havíamos trabalhado o bastante, queixou-se. Na próxima viagem precisaríamos ser mais rápidos.
Entramos e nos atiramos nos beliches. Minhas mãos doíam tanto que eu não conseguia dormir. Fiquei deitado de costas, as mãos penduradas, pendendo no ar, como um cão suplicante. Rob pediu que eu ficasse por toda a temporada e Moe tentou me convencer a permanecer ao menos alguns dias mais. “Vai sentir o maior orgulho de sua vida ao ver os caranguejos sendo descarregados”, disse ele. “Tonelada após tonelada.” Recebi um cheque de 3 mil dólares. Rob ganhou 10 mil. “Nada mal para nove dias”, comentou ele. Mas eu queria partir assim que atracássemos. Nunca mais na vida queria olhar para um caranguejo.
Quando atracamos, juntei meus pertences e abandonei o Notorious. Antes mesmo que eu deixasse o cais, havia meia dúzia de homens junto à embarcação, aguardando para assumir meu lugar.

segunda-feira, julho 16

Ingrediente principal

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Alex Witchel

Mamãe dava as receitas, mas havia sempre algo que ela não incluía.

Quando pedi à minha mãe que me desse todas as suas receitas, ela se sentiu ofendida.
“Por que?, retrucou. “Ainda não morri.”
“Eu sei”, respondi, “mas se fizermos isso agora, você estará aqui para tirar minhas dúvidas, certo?”
Ela resmungou algo, concordando. Mamãe só aprecia a lógica quando esta lhe ocorre primeiro. Assim, fiz uma lista de 35 pratos e ela levou um ano (um ano!) para escrever as receitas. Apresentou-as com um bilhete: “Experimente, tempere a gosto e ligue para mim se não der certo.” Eu já devia imaginar.
Comecei pelo peru assado, antiga receita de família, dada por nossa cabeleireira brasileira. Olhei as instruções de mamãe. Bastava marinar o peru durante 24 horas em vinho tinto e uma longa lista de temperos.
Espere um instante. Liguei para ela.
“Normalmente você não põe um recheio no peru?”, perguntei.
“Bem”, disse ela, “pode ser cebola, maçã, ameixa seca ou laranja.”
“Mãe, você nunca pôs nada nesse peru a não ser cebola.”
“Bem, você pode pôr outros recheios.”
“Já entendi. Esse é o seu protesto passivo à minha presunção de lhe tirar o poder de mãe, não é?”
Ela riu mais ainda.
“Ah!”, continuou. “Ponha uma ou duas cebolas cortadas na assadeira com um pouco de água, para regar o peru.”
Olhei a receita. A palavra cebola não aparecia nem uma vez, quanto mais duas.
“Ótimo”, comentei com frieza.
Ela adotou um tom conciliador.
“Escute, querida, eu também me aborrecia com minha mãe quando pedia as receitas dela. Ela nunca media nada. Dizia o que eu sempre lhe disse: “Veja como eu faço.” Preparamos o mesmo prato tantas vezes que nem prestamos atenção à quantidade de ingredientes. Sentimos o cheiro, vemos o aspecto. Nem sempre sai igual.
“Mas quero que saia igual”, retruquei. “Quero que a minha casa tenha o cheiro que a sua tem nos feriados, quando tudo é delicioso e ficamos felizes de poder estar aí.”
“Vai dar certo.” A campainha da porta dela tocou. “Se tiver algum problema, me ligue.” E desligou.
Depois de por o peru para assar, fiz purê de batatas. Tendo sido criada numa família judia, sempre me sentia frustrada quando se tratava de purê. A única ocasião em que se podia prepara-la de verdade era para servir com peixe, pois manteiga, creme e leite não podem ser misturados com carne. Em nossa casa, o purê de batatas em geral era feito com sal e margarina. Assim, no decorrer dos anos, tentei várias receitas e por fim consegui uma que me agrada.
O peru assou mais depressa do que mamãe disse. Chamei meu marido e Simon, meu enteado de 14 anos, para se sentarem à mesa.
“Você fez peru sem um motivo especial?”, perguntou Simon.
“Fiz. Queria treinar”, respondi.
“Legal”, comentou ele, enquanto o pai trinchava o peru.
O gosto estava exatamente igual ao de minha mãe! Talvez aquelas vezes em que fiquei olhando enquanto ela cozinhava tivessem mesmo valido a pena. Enchemos nossos pratos, conversamos, rimos e comemos. Todos repetimos. Simon virou-se para mim, o rosto radiante. Retribuí o sorriso. Eu conseguira – tinha copiado o peru.
“Este é o melhor purê de batatas que já comi”, disse ele, empolgado.
“Ah! Que bom!”, exclamei.
“Como é que você faz?”, perguntou Simon.
Fiquei surpresa.
“Manteiga”, comecei. “Creme...”
Nossos pratos se esvaziaram. O momento mágico passara. Simon foi assistir a TV.
De volta à cozinha, olhei para o que sobrara de manteiga e de creme. Quanto eu usara? Não me lembrava. Pensei em Simon me olhando, os olhos arregalados. E entendi por que tinha sido tão difícil para minha mãe escrever aquelas receitas. E para a mãe dela. Porque não se trata de manteiga, creme ou cebolas. O ingrediente que não se pode escrever é o quanto você ama sua família – o prazer que sente em alimenta-la, cuidar dela, ver o rosto de uma criança transformar-se num instante, olhando para você com a boca cheia – com segurança e admiração.
“Como ficou o peru?”, perguntou mamãe no dia seguinte.
“Ótimo”, disse eu. “Um grande sucesso.”
“O que serviu com ele?”
Hesitei
“Purê de batatas.”
“Ah!”, exclamou ela. “Você tem uma receita boa?”
Sorri.
“Pensando bem, tenho sim”, respondi.

sábado, julho 14

Batalha contra os mosquitos

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Nick Jans

Eles são capazes de sugar quase 500ml de sangue por dia de um só alce.

Do alto da montanha serrilhada, eu observava o Redstone Valley. Como é comum acontecer no verão aqui no noroeste do Alaska, a manhã estava luminosa, o vento soprando, mas agora começava a ficar encoberto por nuvens vindas do leste. É melhor me apressar, pensei, o acampamento ficava ainda a uns três quilômetros montanha abaixo.
Embora 18 anos se tivessem passado desde a primeira vez em que vim a esta imensa região agreste, o fascínio permanecia. Estabelecido em Ambler, vilarejo esquimó no vale do Rio Kobuk, eu achava que a vida entre os inupiats era tão rica e diversificada quanto o panorama ártico que nos rodeava. Entretanto, mesmo um luminoso dia de verão podia trazer problemas.
Quando ajeitei a mochila nos ombros, um grande mosquito do Ártico se chocou com um baque surdo contra meu rosto. Isso já havia acontecido algumas vezes durante o dia, mas estávamos no início da estação – o gelo desaparecera havia apenas duas semanas – e eu mal havia notado a presença deles. Mas agora, quando descia serpenteando a montanha, a última aragem desapareceu, e os mosquitos me atacaram. Subindo em nuvens da tundra encharcada, arremessavam-se contra meu rosto. Enfiei a mão no bolso para pegar o repelente, mas ele não estava lá. Eu me defendia com tapas e conseguia acertar cinco ou seis a cada pancada, mas devia ter uns dois mil deles em cima de mim. Os mosquitos arremetiam com o ferrão e começavam a sugar, espetando-me por cima das roupas, dezenas deles ao mesmo tempo. Mesmo quatro mãos não seriam suficientes. Anos de experiência no Alaska me haviam ensinado o que fazer numa situação dessas. Levantei a gola, apertei as alças da mochila e saí correndo feito um louco.
Quando avistei minha barraca, ainda estava correndo. E os mosquitos também. Eu tinha conseguido deixar o primeiro enxame para trás em algum lugar da montanha, porém havia mais insetos esperando em cada curva do caminho, e eles me seguiam numa espécie de cortina sibilante. Toda vez que eu reduzia a marcha, o ataque recomeçava. Parei apenas o tempo suficiente para abrir o zíper da porta de tela, e mergulhei lá dentro, em busca de segurança. Precisei de 15 minutos para me livrar dos mais ou menos cem mosquitos que conseguiram entrar comigo.
Depois que encurralei o último deles, avaliei os estragos e tentei relaxar. Minhas mãos e meu pescoço estavam sujos de sangue, e cada centímetro de pele exposta era uma cordilheira de calombos. Pelo menos eu ainda tinha minha carteira.
Lá fora, o zumbido insistente e lúbrico era quase ensurdecedor. Os mosquitos se instalaram em cima da tenda, tamborilando no nylon como chuva. Embora minha comida estivesse só a uns 20 metros de distância, contentei-me com barras de cereais que tinha na mochila e alguns goles de água choca. Enquanto comia, os insetos se amontoavam na tela da janela, introduzindo esperançosos os ferrões nas aberturas da malha. Só mais tarde naquela noite, quando uma chuva fria caiu e espalhou o enxame, me atrevi a por o nariz, que coçava, outra vez do lado de fora.
A temporada dos mosquitos nessa região do Alasca é relativamente curta – dez semanas no máximo, com o auge em junho ou início de julho -, mas é sempre violenta. Já fui importunado na Ásia tropical, devorado nas matas ao norte do Maine e mastigado nos mangues pantanosos do México. Mas nenhum dos insetos com que deparei nessas ocasiões me preparou para o encontro com os mosquitos do Ártico.
No auge da temporada, são milhões deles por quilômetro quadrado, elevando-se em redemoinhos para tragar qualquer mamífero infeliz, incluindo os humanos. Eles são capazes de sugar quase 500ml de sangue por dia, de um só alce, ou por em debandada manadas inteiras de caribus, que fogem a galope, apavorados e sem rumo. As fêmeas se perdem dos filhotes. Os machos correm até a exaustão. E com razão. Reza a lenda que um animal, ou mesmo um humano, apanhado numa dessas tempestades de inseto pode ser sugado até a última gota de sangue. Felizmente, as piores infestações não duram mais do que cerca de um mês.
Embora sanguinários, os grandes mosquitos do Ártico são criaturas frágeis. Essas abomináveis “aves do Alasca” (cujo comprimento médio é de 6 milímetros), comuns no princípio da estação, não agüentam sequer uma brisa mais forte. E fenecem sob os brilhantes raios do sol. Se está muito quente ou muito frio, se chove muito ou pouco, os mosquitos correm para se abrigar. Passam a maior parte de sua curta vida acocorados sob folhas ou voando para bebericar néctar, esperando pelas condições alimentares ideais. Uma noite tranqüila, úmida e nublada é perfeita. É então que a situação pode se complicar rapidamente.
Os esquimós que vivem acima do Rio Kobuk sabem como lidar com os mosquitos. Logo que o gelo desaparece do rio, muitas pessoas de Ambler abastecem os barcos de compensados e rumam para o litoral gélido, varrido pelo vento, a fim de passar o verão, como vem fazendo há séculos. É claro que também vão pescar e caçar focas, mas não é coincidência que essa migração anual ocorra ao mesmo tempo que o pior da temporada de insetos. Os inupiatis não reclamam muito, mas colocam uma distância entre eles e os mosquitos.
Existem ainda pessoas, como meu amigo Howie Kantner, que mostram que tudo não passa de um estado de espírito. Lembro-me dele certa noite de verão, construindo um barco. Eu estava besuntado com várias camadas de repelente, batendo com a mão para afastar os insetos do rosto, enquanto Howie calmamente tirava medidas e serrava. De peito nu. Sem repelente. Suas costas pareciam cobertas por um pêlo cinza e vivo. Ele parecia nem sequer reparar nos mosquitos, exceto se um lhe roçasse o lábio ou a pálpebra, quando gentilmente ele o afastava com a mão. “Se não pensar neles, não vão incomodar você”, disse-me ele. “Eles fazem parte da região.”
A atitude laissez-faire de Howie talvez explique por que ele não pesa mais de 60 quilos. Mas acho que meu amigo tem certa razão. Se você passa o verão no Ártico, os mosquitos são um simples fato da vida, assim como a chuva.
O norte do Alaska é um mundo cheio de fatos como esse, alguns árduos, outros belos, mas todos de uma simplicidade pura. Seja uma noite a 50 graus abaixo de zero, a encosta íngreme de uma montanha ou um enxame de mosquitos ávidos por sangue, há sempre um desafio, algo que se explica por si só e, de alguma forma, define você.
É esse o fascínio deste lugar: a oportunidade de viver, agir e respirar a terra. Mesmo depois de 18 anos, a emoção não diminuiu. Além da estrada mais próxima, ninguém afirmaria que a vida é fácil. Mas eu não a desejo de outra maneira.