segunda-feira, julho 30

Paixão pela leitura

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Anna Quindlen

O presente que todos os pais podem dar a um filho

A voz que uso quando as crianças se comportam mal é como uma casaca de inverno, carregada e severa. Usei o tom certa noite, quando meu filho mais velho apareceu à porta da cozinha uma hora depois de ter ido para a cama.
“Que está fazendo aqui?”, comecei a dizer, quando ele me interrompeu: “Acabei!”
O tom duro voou pela janela e nos sentamos para conversar sobre os pontos altos do livro que ele acabara de ler – o mesmo que li pela primeira vez quanto tinha 10 anos. Ainda hoje guardo o comentário que escrevi. Começava assim: “Este é o melhor dos livros.”
Todos nós temos aspirações semelhantes para os filhos: boa saúde, felicidade, trabalho interessante e satisfatório, estabilidade financeira. Mas, assim como uma casa modelo é diferente dependendo de quem escolhe os armários e venezianas, detalhes muitas vezes são diversos. Há pessoas que ficam alucinadas quando os filhos começam a andar, a jogar bola, a tentar tocar a Sonata ao luar ao piano. O dia em que percebi que meu filho sabia ler foi um dos mais felizes de minha vida.
A romancista inglesa Anita Brookner observou que “quando a pessoa cresce, torna-se civilizada, aprende a se comportar e conseqüentemente... as tentativas de recapturar...a espontaneidade estão condenadas”.
No entanto, quase sempre recuperamos a espontaneidade através dos mais jovens. Ver uma criança tocar as teclas do piano pela primeira vez, observar um corpinho romper a superfície da água num mergulho bonito, é experimentar o choque de revisitar o que é conhecido, como se fosse estranho e maravilhoso.
A leitura sempre foi, para mim, o desenrolar da vida, o modo de compreender o mundo e a mim mesma, tanto pelo desconhecido quanto pelo cotidiano. Se o fato de ser pai (ou mãe) muitas vezes consiste em passar adiante pedaços de nosso ser para receptores involuntários – e muitas vezes relutantes – então os livros representam meio simples e seguro de faze-lo. Ficaria satisfeita se meus filhos, quando crescessem, se tornassem o tipo de gente que acha que a decoração é sobretudo construir muitas estantes de livros. Isso daria a eles número infinito de mundos em que vagar, além da entrada para o mundo real. Assim como estranhos podem instalar-se amigavelmente para bater papo sobre os grandes jogadores de futebol do passado e do presente, também podemos ligar-nos a alguém pela paixão aos livros.
Lembro-me de que fazia listas de livros para minha irmã ler no verão, bem como do dia em que ela chegou em casa do trabalho tendo na bolsa minha cópia surrada e amarelada de Orgulho e preconceito e disse, irritada: “Diga-me se ela se casa com o senhor Darcy, porque se não se casar, não vou acabar de ler o livro.” E lembro-me, também, de como fiquei aturdida enquanto dizia, compenetrada, que nunca poderia revelar o final do livro, enquanto por dentro eu gritava e repetia: “Sim, sim, ela se casa com o senhor Darcy.”
Bastaria olhar para o rosto daquele menino ao dizer: “Acabei!”, para saber que algo deixara nele marca indelével. Acompanhei-o ao andar de cima com outro livro.
Então, quando saio do quarto, meu filho está lendo sob a luminária, a nave de sua mente viajando pelos mares com o auxílio de minha bússola. Pouco antes de fechar a porta, vejo de relance a formação de meu ser e a formação do ser dele, partes do mesmo tronco. E sou uma pessoa feliz.

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