terça-feira, julho 17

Quando o inferno se cobre de gelo

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autor : Michael Finkel

No Alaska, pescadores de caranguejo arriscam a vida num trabalho de até 20 horas seguidas, grande parte do tempo no escuro.

A pesca comercial é a profissão mais perigosa na América do Norte, segundo o Ministério do Trabalho dos Estados Unidos; e a pesca de caranguejo snow-crab no Bar de Bering, a mais mortal de todas. A temporada começa em janeiro, quando a luz diurna é mínima e as tempestades estão no auge da violência.
Nos últimos anos, a pequena comunidade de pescadores de caranguejo vem sofrendo quase uma baixa por semana durante a temporada de pesca; essa taxa de mortalidade é tão mais alta do que em qualquer outra profissão nos Estados Unidos que parece inconcebível que o trabalho ainda exista. Mesmo assim, não faltam candidatos à função. Todos os anos, em janeiro, dúzias de homens perambulam pelo cais pedindo trabalho aos capitães. O pagamento é excelente. Um tripulante experiente pode ganhar mil dólares ou mais por dia.
Eu garanti meu posto com antecipação. Desejava escrever a respeito desse tipo de pesca, e um capitão, Gretar Gudmundsson, se dispôs a levar-me em seu barco, o Notorious – sob certas condições. Para que eu pudesse ir, ele seria forçado a contratar um tripulante a menos. Assim, em troca de um lugar no barco, concordei em fazer qualquer tipo de serviço, sem remuneração.
A bordo, Gretar me guiou em uma excursão de dois minutos. “Aqui é a cozinha”, disse. “Este é seu beliche; ali é a casa do leme. Lá está o convés. Agora arrume um trabalho.”
Aos 37 anos, Gretar é jovem para um capitão. Mas não é inexperiente. Vem de uma família de pescadores islandeses; uma de suas mais antigas lembranças é do momento em que teve de abandonar, com o pai, um navio que naufragava. Gretar tem o riso fácil e a displicência típica do homem do mar, mas mesmo assim seu aperto de mão é do tipo que faz estalar os ossos.
A tripulação me cumprimentou sem demonstrar simpatia ou desdém; logo ficou claro que minha aceitação dependeria da qualidade de meu trabalho. Eram seis os tripulantes de convés: o mestre, três experientes caranguejeiros e dois aprendizes. Eu era um destes; o outro era um sujeito de 34 anos chamado Ed. Os experientes eram Ken e Moe, ambos com 20 e tantos anos, e Troy, um jovem de 19 anos do sul da Califórnia, que havia abandonado a escola.
Rob era o mestre. “Este é o meu convés”, disse, assim que nos conhecemos. “Faça o que eu digo e provavelmente não vai morrer.”
Rob era imenso – com o físico daqueles sujeitos que se vêem arremessando barris de cerveja nos concursos de “O homem mais forte do Mundo.’ Era caranguejeiro havia oito anos e acabara de completar 29. tinha visto pessoas morrerem no convés, outras trabalharem com fraturas de ossos e ferimentos expostos e companheiros serem varridos pela água em marés turbulentos. Conquistara respeito. Certa vez perguntei-lhe sobre a imensa tatuagem em seu peito. “Foi feita na prisão”, respondeu. Embora Gretar fosse o capitão, o barco, na prática, era de Rob.

Coro de gritos
Passamos cinco dias em Dutch Harbor preparando-nos para a temporada. Cada um dos 125 covos tinha de estar pronto: rasgões costurados, bóias atadas, cabos de arrasto amarrados. Um covo de caranguejo, feito de aço e tela, tem as dimensões e a forma de uma cama de casal das grandes. Vazio, pesa mais de 300 quilos. O trabalho era exclusivamente físico; tudo tinha de ser forçado, marretado, puxado ou empurrado. Delicadeza tinha pouca serventia – um bom tripulante é forte, rápido e servil.
No café da manhã do segundo dia, Ken, um dos sujeitos experientes, desistiu de repente. “Não estou mentalmente preparado”, explicou a Rob. Foi substituído por um fumante inveterado e irrequieto de 22 anos chamado Andy, ex-palhaço de rodeio que também já competira no circuito profissional de luta de rua.
Antes de partirmos, Gretar me convocou à casa do leme. “Você vai ganhar 1%”, disse. Foi o maior elogio que eu poderia ter recebido – ele estivera observando meu trabalho e tinha decidido que eu merecia participar do lucro líquido da embarcação.
Bem cedo na manhã seguinte, sob céus tempestuosos, deixamos Dutch Harbor e viajamos 27 horas rumo ao norte, a uma velocidade de sete ou oito nós. Ondas de três a cinco metros encobriam o barco com uma névoa de borrifos.
A formação de gelo torna a embarcação pesada no topo e, se a tripulação não consegue romper o gelo com rapidez, o barco vira. Enquanto golpeávamos as amuradas, comecei a me sentir enjoado, e pus para fora o café da manhã, bem no convés. Ninguém ligou. “Na próxima, tente o balde de iscas”, sugeriu Moe. “Os caranguejos adoram.”
Quando chegamos ao nosso pesqueiro, a primeira tarefa foi colocar iscas nos covos e atira-los ao mar. O ritmo era frenético. A remuneração dos pescadores de caranguejo baseia-se unicamente no volume de captura. Quando se alcança o limite para a temporada, a pesca cessa. Portanto cada temporada se transforma numa corrida. Trabalhávamos 20 horas e descansávamos quatro, todos os dias.
Eu tentava manter o ritmo, mas o balanço da embarcação me jogava para todos os lados. Meus joelhos vergaram quando me mandaram carregar a “madre”, um rolo de cabo de 70 quilos. Já os homens experientes, em contrapartida, eram capazes de usar o movimento do barco para se mover à maneira dos astronautas. Durante o trabalho, a tripulação do Notorious quase nunca usava coletes salva vidas. Eram muito volumosos e faziam o sujeito parecer um maricas.
Gritos e xingamentos desabavam sobre nós. Rob os comandava. Quando ele gritava, o corpo inteiro daquele a quem se dirigia parecia instintivamente encolher-se.
Havíamos praticamente terminado de lançar os covos e Rob estava no meio de uma bronca contundente quando Ed reagiu e gritou de volta. Julgando pela cara do mestre, os socos eram iminentes. Ed saiu correndo do convés: sábia decisão.
Alguns minutos depois mandaram que eu fosse busca-lo. Ele estava trancado na cabine. “Desisto!”, gritou. “Não vou mais sair daqui.”
Ed cumpriu a palavra. Exceto para esgueirar-se até a cozinha em busca de comida enquanto estávamos no convés, ele não deixou seu beliche pelo resto da viagem.
Seu comportamento não surpreendeu ninguém. “Os aprendizes vão para o mar e enlouquecem”, disse Rob. “Isso acontece o tempo todo.” Havíamos perdido um sexto de nossa força de trabalho antes de capturar um único caranguejo.

Balé no mar
A pesca de caranguejo não é particularmente complicada. Os covos eram depositados no fundo do mar, suas posições marcadas por um par de bóias. Ao passarmos por um deles, um tripulante içava com o auxílio de um “filhote” (haste com um gancho na extremidade), o cabo que conectava as bóias e, em seguida, colocava o cabo de alto-mar na roldana do guincho do motor. Quando o covo vinha à tona, duas pessoas ajudavam a coloca-lo sobre o lançador. Então nós desarmávamos a porta e, com a ajuda de força hidráulica do lançador, erguíamos o covo numa posição quase vertical, de modo que a maior parte dos caranguejos se esparramava sobre uma grande mesa para seleção. Recolocávamos iscas no covo e o fazíamos escorregar de volta à água, para então separarmos os caranguejos – machos grandes no porão, machos pequenos e fêmeas (sempre pequenas) numa calha de volta ao mar. Em seguida, outra bóia. O ciclo durava cerca de oito minutos.
“Quando tudo corre bem”, Moe ressaltou certa vez, “é como um balé – todos se movimentando sem se tocar.” Obviamente Moe pouco frequentara espetáculos de balé, mas era o único a bordo que poderia tentar o uso de tal metáfora.
Designado para a inglória tarefa de congelador, eu tinha de rastejar para dentro do frigorífico da coberta de proa, arrastar um bloco de 30 quilos de arenque congelado e estraçalha-lo com a marreta. Jogava então os pedaços num triturador de iscas que transformava o arenque em papa, com a qual eu ia enchendo potes de plástico de 4,5 litros. A seguir, corria até o tanque de bacalhau, agarrava um peixe vivo, cortava suas guelras e abria-lhe um talho no ventre. O odor do arenque atraía os caranguejos; o bacalhau os alimentava nos covos.
Eu pendurava o bacalhau num gancho no topo de cada pote de isca, corria até o covo no lançador e saltava dentro dele, prendendo o gancho no centro da armadilha. No interior do covo, inclinando-me para fora sobre o Mar de Bering, agarrava o restante dos caranguejos e os lançava ao convés, enquanto ondas geladas arrebentavam sobre mim e caranguejos me beliscavam sempre que tinham a oportunidade. Depois de 60 ou 70 beliscões, eu já nem notava.
Alguém então gritava: “Tampa!” e eu saltava rapidamente para fora do covo – a tampa de um covo de caranguejo pesa certa de 20 quilos e, quando está se fechando, não há nada que a faça parar, haja ou não uma cabeça no caminho.
Eu voltava então até o balde de isca para reiniciar o processo. Oito minutos por covo, 20 horas por dia. Das tarefas do convés, esta era a mais fácil e menos perigosa.

Pinça de caranguejeiro
O sono era o que realmente me atormentava. Minha atenção começava a se dispersar. Fragmentos de canções ou de comerciais de TV se alojavam em minha mente e se repetiam como um disco quebrado. Eu precisava de uma quantidade cada vez maior de energia para simplesmente não deixar a cabeça pender, e cair no sono.
De vem em quando era servida uma refeição quente; deixávamos o convés desembestados e nos atirávamos a ela como lobos. Algumas refeições duravam menos de 10 minutos, nos quais eu engolia dois filés, três pedaços de frango, um prato de cereal e uma tigela de sopa. Gretar então berrava: “Covo chegando!”, e retornávamos ao convés.
Não fazia sentido rotular de “dia” o período de trabalho. Não estávamos trabalhando uma semana ou um mês; trabalhávamos até completar a embarcação. Os dois tanques de armazenamento vivo do Notorious tem capacidade para 140 mil quilos de caranguejo. Era possível que os enchêssemos em três dias; igualmente possível em três semanas. Perguntei a Rob como ele conseguia manter o ritmo. “É só parar de pensar”, disse ele.
Na hora de dormir, eu me deitava com todas as minhas roupas, exceto a capa, por mais que cheirassem mal ou por mais molhadas que estivessem. Assim, economizava o trabalho de me despir e vestir. Tampouco tomava banho. Nem ao menos escovava os dentes. Não valia a pena perder 90 segundos de sono. Meus sonhos me deixavam louco: ao cerrar os olhos, estava novamente no convés, pescando caranguejos. Despertava mais cansado.
Logo no início da viagem, no momento em que um covo era erguido para ser lançado, uma onda o arremessou diretamente sobre mim. Atingiu-me nas coxas, achatando-me contra outro covo. Bem, acabou-se. Meus dois fêmures estão despedaçados, lembro-me de ter pensado. Nunca mais vou andar – talvez agora possa dormir um pouco.
Tive sorte; fiquei apenas com grandes equimoses nas pernas. Pouco depois Gretar anunciou pelo megafone que, num barco nas proximidades, um novato perdera quatro dedos no triturador de iscas – justamente a máquina que eu operava.
Os problemas que afligiam minhas mãos eram outros. A combinação de trabalho repetitivo, tempo frio e umidade constante logo provocou rigidez na mão direita. Tocar qualquer objeto se tornou levemente doloroso; mais tarde, a dor passou a ser terrível. À noite, a mão latejava tanto que eu tinha de mantê-la suspensa sobre a cabeça. Finalmente, ela se imobilizou com os dedos estendidos.
“Meus parabéns”, disse Gretar. “Você está com pinça de caranguejeiro.”
Moe me aconselhou a urinar na mão. Foi o que fiz, e de fato senti certo alívio.
Comecei, entretanto, a usar só a mão esquerda, que não demorou a ficar como a outra. Passei a alternar as mãos e a dor se transformou em dormência generalizada.
Gretar, enquanto isso, apanhava o megafone e nos mandava trabalhar mais rápido. Em seus anos de convés, costumava-se terminar de arrumar um covo em três minutos exatos. “Mais rápido!”, berrava. “Mais rápido!” Fiquei convencido de que ele era psicótico.

Estado de euforia
Não desisti, certo de que, se o fizesse a tripulação acabaria comigo. Teriam me lançado ao mar e ninguém jamais saberia. Eu marretava arenque; matava bacalhau. Esmaguei o polegar na porta de um covo; fui atingido na cabeça por um gancho de aço oscilante. Rob teve a mão presa num covo e a unha arrancada. Gretar gritava para que fôssemos mais rápidos.
O convés lembrava uma zona de guerra – patas de caranguejo espalhadas por toda parte, montanhas de entranhas de peixe. Parecia sempre noite. Comecei a andar cambaleando. Pisava em caranguejos e não ligava à mínima – eu odiava caranguejos. Comecei a perder a audição. Achava difícil piscar. “O olhar fixo do Mar de Bering”, comentou Rob.
E então, enquanto enchia um pote de iscas, simplesmente parei. Caí de joelhos, e as lágrimas jorraram.
Tinha certeza de que levaria a maior bronca, mas estava errado. O pessoal viu que eu estava prestes a desabar. Andy apressou-se em colocar as iscas no covo, e então Rob disse algo que eu nunca poderia esperar. Convocou todos para um abraço coletivo. E ali, no convés do pesqueiro, no meio do Mar de Bering, interrompemos por um instante as atividades e o grupo se uniu num abraço.
Naquela noite, antes de dormir, Rob me disse que não acreditava que eu tivesse agüentado tanto tempo. Apenas três horas e meia depois, Gretar tamborilou com o punho na cabeceira de minha cama – o nosso sistema de despertador – e me comunicou que a parte de Ed na pesca seria minha. Eu tinha direito a 2%. Naquele dia, no convés, entrei num estranho estado de semi-consciência. O que está além da exaustão, descobri, não é uma exaustão mais profunda. É um estado alucinatório de euforia. Decerto um estado em que meus companheiros de tripulação poderiam entrar instantaneamente. Eu me esqueci do tempo. Não sentia dor. Ergui a madre e coloquei num covo, algo que não teria sido capaz de fazer no primeiro dia.
Enfim chegou o momento em que o barco estava completamente carregado. “Acabou”, anunciou Gretar pelo megafone. Havíamos terminado. Descobrimos que estávamos pescando caranguejos havia nove dias. Gretar apontou a embarcação para o sul e nos reuniu. Não havíamos trabalhado o bastante, queixou-se. Na próxima viagem precisaríamos ser mais rápidos.
Entramos e nos atiramos nos beliches. Minhas mãos doíam tanto que eu não conseguia dormir. Fiquei deitado de costas, as mãos penduradas, pendendo no ar, como um cão suplicante. Rob pediu que eu ficasse por toda a temporada e Moe tentou me convencer a permanecer ao menos alguns dias mais. “Vai sentir o maior orgulho de sua vida ao ver os caranguejos sendo descarregados”, disse ele. “Tonelada após tonelada.” Recebi um cheque de 3 mil dólares. Rob ganhou 10 mil. “Nada mal para nove dias”, comentou ele. Mas eu queria partir assim que atracássemos. Nunca mais na vida queria olhar para um caranguejo.
Quando atracamos, juntei meus pertences e abandonei o Notorious. Antes mesmo que eu deixasse o cais, havia meia dúzia de homens junto à embarcação, aguardando para assumir meu lugar.

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