terça-feira, outubro 31

Uma vida, um gato

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1974
Autor : Era Zistel

Apesar de sua deficiência, Marco era um intrépido explorador que me ensinou também como enfrentar a adversidade

O gato era meu, mas nem eu o conhecia muito bem. Quando filhote, havia se comportado de maneira ousada: fora o primeiro a explorar a casa e a sair. Por isso o chamamos de Marco Pólo, logo abreviado para Marco, nome a que ele atendia (se estivesse disposto) com a ligeira contração de uma orelha.
Passava a maior parte do tempo correndo ao redor das árvores no quintal. Algumas vezes eu tinha de ir busca-lo, e então era como se fossem dois estranhos se encontrando – mas ele sempre voltava para casa, na hora de comer e dormir. Assim, e pelo menos até certo ponto, ele era meu gato.
Talvez eu não tivesse sentido muito a falta de Marco se, um dia, ele não voltasse, mas algo diferente aconteceu. Ouvi o guincho de pneus freando com violência e corri, encontrando-o estirado no meio-fio, com os olhos esbugalhados e vidrados.
Não dava sinal de vida. Coloquei-o com cuidado dentro de uma caixa e comecei a procurar uma pá para lhe cavar um túmulo, quando ouvi um leve miado – Marco não estava morto. Tratei dele, da melhor maneira que pude, e finalmente se achava de novo de pé, completamente recuperado – foi o que pensei.
Pouco a pouco, percebi que algo havia acontecido a Marco. Um dia, quando estávamos no quintal, notei que ele andava de maneira estranha, quase cautelosa, levantando bem uma pata antes de recolhe-la lentamente, para movimentar a outra. Um exame apressado não me revelou nada de anormal, mas quando fiz um ruído repentino, ele saiu correndo – e se chocou de cabeça contra uma cesta deixada no pátio. Estava cego.
Há quanto tempo vinha tateando para achar o caminho, como uma pessoa cega usa a bengala? Quantas vezes não teria sentido fome por não conseguir driblar a hostilidade dos outros gatos, antes de chegar à comida? Talvez ignorasse mesmo onde havia coisas que comer. Eu sabia que os gatos costumam ser dotados de um olfato apurado, mas quando lhe púnhamos comida, ele nunca parecia descobri-la, até tropeçar nela. Passei então a dar algumas pancadinhas no solo, um sinal que ele logo aprendeu como sendo o da localização da comida.
Comecei a acompanhá-lo freqüentemente, tirando obstáculos de seu caminho, até compreender que, assim não lhe estava fazendo nenhum favor. Ele ainda era um explorador. Nada parecia lhe dar mais prazer do que descobrir qualquer coisa oculta. Por isso, mudei deliberadamente certas coisas de lugar, para acrescentar um pouco de emoção à sua vida agora restrita.
Na primeira vez que o vi sobre o telhado, tomando sol, meu coração quase parou. Percebendo minha presença lá em baixo, ele se levantou, deu um enorme bocejo e tateou até a beirada do telhado. Com a pata, localizou um galho de árvore, certificou-se de sua resistência, saltou, caminhou pelo ramo até o tronco e despreocupadamente pulou sobre mim.
À medida que se tornava mais confiante, mais longe passou a ir. Logo estava visitando o bosque atrás de nossa casa. Eu costumava observa-lo, espantado, enquanto ele encontrava o caminho entre as árvores sem se chocar com nenhuma. (Como as pessoas cegas, ele parecia ter desenvolvido uma espécie de radar, que o advertia dos obstáculos.) Outras vezes se divertia perseguindo folhas levadas pelo vendo, em galopes que me faziam rir e quase chorar.
Só raramente se perdia, quando o latido de um cão ou algum outro ruído ameaçador o fazia correr em pânico, desorientado como um peixe fora da água, e sem prestar atenção ao rumo. Aí, soltava um longo miado, que aprendi a reconhecer como um pedido de socorro.
Habituou-se a distinguir as variações do meu tom de voz, assim como as de meu temperamento. Quando eu não estava bem disposto, ele se dava conta, e se encolhia. Quando me sentia alegre, ele também sabia, e mesmo minha mania de cantarolar, que desagradava até a mim, deixava-o tão feliz que ele respondia com uma grande excitação, brincando como um gatinho recém-nascido.
A princípio, sua cegueira enfurecia os outros gatos, pois não podia evitar de colidir com eles. Um gato enorme chamado Pert era-lhe particularmente hostil e provocou-lhe mais de um arranhão. Depois, algo estranho aconteceu. Durante alguns dias, Pert limitou-se a olhar para Marco, intrigado: finalmente aprendeu que devia fazer algumas concessões. Sempre que Marco se encaminhava em sua direção, ele rapidamente pulava para o lado, abrindo passagem. Mais tarde, os outros gatos fizeram o mesmo, e Marco pode andar livremente.
Os anos se passaram. Todos tínhamos nos habituado de tal forma à deficiência de Marco que já não conseguíamos imagina-lo de outro modo – e, talvez à medida que a memória de sua antiga visão se esvanecia, ele também se sentisse assim. Quando fez 12 anos, começou a mostrar sinais de declínio. Já não tomava sol no telhado e parecia se contentar em ficar estirado no quintal. Então, aos 13 anos, teve um ataque. Enquanto eu lutava com a idéia de elimina-lo, descobri que não era necessário. Ele não tinha nenhuma intenção de abandonar a luta.
Dia após dia, exercitava as pernas paralisadas, movendo-as lentamente a princípio, depois um pouco mais depressa. Tentava se levantar e caía, tentava de novo e caía outra vez, e continuou tentando até conseguir se pôr de pé, vacilante, mas triunfal. Quando caminhava, as pernas se arrastavam, dando-lhe um curioso gingado. De vez em quando, costumava cair, mas parecia decidido. Pedindo para sair, ele rolava pelos degraus, levantava-se e chegava ao lugar onde tinha decidido ir.
Aos 15 anos, houve uma notável transformação em seu comportamento. Mal podia esperar para sair de manhã, mas em vez de ir tomar sol, ficava olhando na direção do bosque e miando. Marco queria voltar às suas queridas árvores, mas não conseguia chegar até lá.
Eu também apreciava o bosque e assim, toda tarde, chamava-o e ele vinha se juntar a mim. Atravessar o bosque era um problema. Tentava carrega-lo, mas ele se debatia com impaciência, querendo ser independente, mesmo não conseguindo encontrar mais o caminho. Finalmente, lembrei-me do sinal das pancadas e passei a bater com o calcanhar sobre cada pedra, para que ele pudesse localiza-la. Isso deu certo, embora por vezes ele errasse o passo e caísse. Não importava. Agarrava-se de novo à pedra com as garras, recompunha-se e continuava. Andávamos por toda parte e ele até fazia suas pequenas explorações, sem nunca perder a noção de minha presença.
Meu desejo era o de que o fim lhe chegasse ali, no bosque, onde mais gostava de estar, mas ele continua conosco. Seu mundo agora se tornou muito pequeno, não mais do que um caixote perto do aquecedor da cozinha. Nos dias mais quentes, quando brilha o sol, ele sai e se senta num degrau, virando a cabeça de um lado para o outro, ouvindo pequenos sons, como o vôo de um pássaro ou o ruído de um inseto sobre uma folha seca.
Quando o vejo ali sentado, esperando pelo fim, não sinto pena – Marco detestaria isso, tanto quanto ser carregado – mas gratidão. Ele me ensinou como enfrentar a adversidade e como derrota-la pela coragem.

segunda-feira, outubro 30

A mãe de ouro

Fonte : Revista Super Interessante
Data : Setembro de 2006.
Autora : Paula Sato

O primeiro picaretasso do Novo Mundo foi uma mulher, a americana Mary Butterworth. Em 1716, quando tinha 30 anos, ela vivia na então colônia inglesa de Massachusetts, uma das 13 que décadas mais tarde formariam os EUA. Mary sustentava os filhos trabalhando como confeiteira e lavando roupas para fora. A grana era curta, mas a ambição era comprida. Tanto que a Sra. Butterworth resolveu cortar o problema pela raiz: Passou a fabricar libras esterlinas na cozinha.
O esquema era no melhor estilo dona-de-casa. Mary usava um pedaço de tecido engomado e um ferro de passar para imprimir suas notas. Depois, corrigia as imperfeições à mão, usando penas de várias espessuras e nanquim. Para deixar a nota com jeito de usada e fazer com que ela parecesse ainda mais autêntica, a falsificadora assava o papel no forno.
As cédulas caseiras enganavam bem e Mary foi ampliando o negócio. Em pouco tempo, ela chefiava uma espécie de Casa da moeda alternativa. Trabalhando com um pequeno exército de ajudantes, imprimia notas de 1 libra – as mais graúdas naqueles tempos pré-dólar – e vendia pela metade do valor de face.
Deu tão certo que Mary passou a abastecer outras colônias com dinheiro falso. A essa altura ela já contava com o apoio de figurões, como políticos e juízes, e já tinha se instalado numa mansão. Mas os problemas começaram a aparecer. A pequena Rhode Island, por exemplo, recebeu tantas notas frias que quase entrou num processo de hiperinflação.
Aí as autoridades britânicas fecharam o cerco. Depois de prenderem um juiz que ajudava na distribuição das libras traiçoeiras, eles chegaram até o QG de Mary. Mas, como a mulher só usava material caseiro – e sempre lavava o tecido usado para imprimir as notas – não havia provas de que ela estava envolvida no esquema de falsificação.
Assim Mary continuou solta. Mas achou melhor não se arriscar mais. Usando os conhecimentos de administração e logística que tinha adquirido nos negócios, a ex-falsificadora abriu um serviço de bufê.
E foi muito bem sucedida, diga-se.

sexta-feira, outubro 27

Como tratar uma mulher

Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1973
Autor : Will Stanton

É uma arte que qualquer homem pode adquirir, se tiver... bem, se tiver qualidades para tanto.

Provavelmente, a mais importante lição que um homem pode aprender sobre a mulher é que o que ela quer nem sempre é o que ela diz que quer. Descobri isso no caminho de volta da escola, quando pela primeira vez saí com Maggie. Tínhamos estacionado o carro num lugar romântico, e tentei passar um braço sobre os seus ombros. Ela disse-me que parasse, e eu parei.
Depois de uns cinco minutos de silêncio, ela disse-me que tinha a impressão de que eu não gostava dela. “Olhe”, comecei eu, “quando tentei abraça-la você não me disse que parasse?”
“Não há dúvida”, respondeu Maggie. “Mas não lhe pedi que fizesse disso um ponto de honra.”
Desde então, a vida já não foi a mesma para mim.
Acho que é no carro que a maioria dos homens mais aprende sobre as mulheres. Um amigo meu levava a esposa de táxi ao hospital, para o nascimento do primeiro filho. Ele se agitava nervoso ao lado da mulher, até que ela lhe disse que deixasse de se preocupara e que se acalmasse, porque estava perfeitamente bem. Então ele recostou-se, acendeu um cigarro e começou a conversar com o motorista.
Só muito depois é que ele me contou o caso, acrescentando: “Se uma mulher grávida lhe disse para relaxar, relaxe só um pouco.”
Os desejos das mulheres são freqüentemente contraditórios. Por exemplo, em dezembro último, Maggie foi a um leilão e voltou com o carro cheio de tapetes feitos à mão e trastes velhos de cozinha. “Sei que dei um rombo no orçamento”, disse ela, ”mas foi uma pechincha. É o meu presente de Natal. Quer dizer, você pode dar-me ainda uma colônia ou um foulard, mas, se me der mais do que isso, vou ficar zangada.”
“Então papai não vai dar nada a você?”, perguntou a pequena Jeannie.
“Bem, espero que ele tenha alguma coisa para mim”, disse Maggie. “Mas o principal presente já ganhei”, arrematou com um sorriso de orgulho.
Na manhã de Natal, ela ficou realmente surpreendida com a bandeja antiga de fazer massa que lhe dei. Ela pegou-a com o enlevo com que se pega numa obra de arte. Ao mesmo tempo, mostrou-se um pouco aborrecida. “Nós fizemos um pacto”, disse, “e você rompeu. Não é justo gastar tanto comigo.”
Sorri. “Talvez não seja você a única caçadora de pechinchas. Um velho fazendeiro tinha isso no celeiro, cheio de comida para galinhas, e aceitou uma ninharia de pagamento.”
“Qualquer pessoa vê logo que tem valor.”
“Você nem pode imaginar como isto estava – com 50 anos de teias de aranha e estrume de galinha.”
Maggie deixou escapar um “oh” de desapontamento.
“E tive de inventar uma maneira de limpa-la . Então levei-a a um marmoreiro que faz lápides de sepulturas e mandei limpa-la com jatos de areia.”
“Que faz lápides de sepulturas...”
“Exatamente. Depois passei uma solução restauradora por cima, e veja que beleza.”
“Que beleza...” Ela olhou a bandeja de novo, mas agora tinha desaparecido o enlevo. “Bm, com essa conversa toda, o jantar está atrasado.”
Tenho pensado um pouco desde então, e conclui que a mulher adora achar pechinchas em toda a parte – exceto debaixo da árvore de natal.
Um das coisas que toda a mulher gostaria de fazer era uma dieta de 30 dias que já tivesse começado um mês antes. Maggie quer sempre perder uns quilinhos, mas nunca leva a dieta avante. “O que preciso é que me animem”, diz ela, “que me dêem apoio moral. Nunca consegui isso de você.”
“Não gosto de mulheres magricelas”, disse. (A experiência tem-me mostrado que, quando a cozinheira faz dieta, todos em casa emagrecem.)
Mas acontece que justamente o vestido que ela queria estava um pouco apertado. Se emagrecesse um pouquinho, ele lhe cairia perfeitamente. Vi então que ela necessitava realmente de uma motivação extra. “Ficarei contente de poder ajuda-la.” Estendi a mão e dei-lhe uma palmadinha.
“Você está ficando um pouco flácida.”
“Flácida?”
“Eu quis dizer sólida.”
“Sólida?”
“Olhe, eu prefiro assim. Sempre fui fã da Mae West.”
“Mae West...”
No jantar, aquela noite tivemos agrião cozido na água. Quando ela terminou o regime, com o meu apoio moral, eu tinha perdido quatro quilos.
Agora, se uma mulher diz que quer a sua opinião honesta, é certo que já tem a sua formada e está procedendo a um voto de confiança. Uma resposta errada, e ele fica infelicíssima. Assim, quando Maggie comprou dois vestidos e me perguntou de qual deles eu gostava mais, decidi que, desta vez, iria tomar mais cuidado no que diria.
“Bem”, disse, “o azul realça a cor dos seus olhos.”
“Você acha?” Ela parecia desapontada.
“É, talvez seja demais”, disse. “Agora, o verde...”
“Eu não tenho nada que combine com o verde. Nem sapatos, nem bolsa.”
“E quanto ao tecido?” perguntei. “Qual deles dura mais?”
Ela olhou para o teto. ~”Não se escolhe vestido de festa pela sua durabilidade”, disse.
“Não entendo nada disto”, retruquei. “Em algumas das festas a que tenho ido...” e ri. Maggie não.
Por fim, ela devolveu os dois vestidos. “Não consigo entende-la”, eu disse. “Pensei que você tivesse gostado dos dois.”
“E, realmente, tinha”, afirmou ela. “Mas você não gostou de nenhum deles. Deduzi logo isso, de tanto que você ficou mudando de opinião.”
Recentemente, fomos visitar a família de Maggie. A caminho, minha mulher pediu-me que tentasse ser amável com a irmã, Joanne. “Você é tão crítico! E você sabe como é Joanne, como pensa que tudo é indireta para ela.”
“Sua família pensa que tudo é indireta.”
“Mas eu não sou assim”, disse Maggie.
“Farei o possível”, prometi. “Mas você sabe que a sua irmã é do tipo de pessoa que acha que imbecil é palavrão.”
“Mas é minha irmã”, retrucou Maggie.
Decidi então que ia fazer um grande esforço. Joanne não era horror nenhum – até que era bonita e oito anos mais moça que Maggie. E, no fim da história, eu não era obrigado a ficar ouvindo-a .
No caminho de volta para casa, comentei que, no fim das contas, o fim de semana tinha sido bem agradável. Maggie vinha silenciosa. “Desta vez, tentei realmente ser amável com Joanne”, disse.
“Eu notei.”
“Sabia que era isso que você queria.”
“Toda a família notou.”
“Não foi o que você me pediu?”
“As pessoas na rua notaram. Olhe, eu pedi a você para ser simpático com ela, mas não para ficar bancando o Charles Boyer com aqueles olhares compridos para ela, ou para ficar com ela no porão da casa durante hora e meia!”
“Nós estávamos procurando o jogo monopólio.”
“Qual foi a última vez que você dançou comigo? Ou me levou para um passeio? Ou me escreveu pequenos versinhos engraçados?”
Fiquei revoltado com a injustiça. “Ouça”, disse, “sua irmã é a garota mais estouvada deste lado do planeta. Não pára de falar um minuto, é incapaz de desligar a televisão enquanto houver programa. É a alma da festa, que não consegue ir a uma festa. Desculpe-me, mas é assim mesmo.”
Maggie pensou um pouco, e disse: “Mas é a minha irmã.”
Houve uma época em que Maggie teve o vírus das 24 horas. Levei as crianças para a casa de um vizinho e cuidei dela o melhor que pude. Mas ela passou uma noite horrível, e, de manhã, a única coisa que queria era chá. Então pediu-me que saísse para tomar o café da manhã fora.
“Uma torrada, para mim, chega.”, disse.
“Isso eu não vou deixar que você faça”, disse ela com energia. “Não quero que você também fique doente. Pegue o carro, vá a um restaurante e tome um bom café da manhã.”
Quando voltei, ela perguntou-me o que tinha comido. Se fôssemos recém-casados, talvez eu lhe tivesse dito a verdade – que tinha tomado meu café da manhã predileto, ou seja, melão, salsicha, torradas, batatas fritas, três xícaras de café e um charuto. Mas, durante essas 24 horas, ela não tinha comido nada. Olhei para ela, e vi-a ali estirada, tão pálida e abatida! “Você vai ficar zangada”, disse, “mas não pude comer mais que meia torrada.”
Acho que o vírus já havia terminado o seu ciclo, porque a recuperação da minha mulher foi notável. Apesar dos meus protestos, ela levantou-se e desapareceu na cozinha. Quinze minutos depois, chamou-me, e ali na mesa da cozinha, estava meu café da manhã predileto: melão, salsicha, torradas, batatas fritas e café. Maggie sentou-se à mesa diante de mim, de maneira a poder ver o meu prazer em comer tudo aquilo.
As maneiras pelas quais um homem pode demonstrar amor à mulher são muitas. Pode faze-lo escalando montanhas, atravessando rios a nado ou abatendo dragões. Ou até mesmo comendo uma torrada com um sorriso nos lábios.

quinta-feira, outubro 26

Bambu - o pau para toda obra

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1974
Autor : Christopher Lucas

Nas selvas úmidas do Bornéu, os caçadores de cabeças das tribos daiaque utilizam-no para transportar água; nos restaurantes de Pequim, é cortado em pedaços que são servidos fritos; em Quioto, no Japão, e em Bangkok, na Tailândia, hábeis artesãos fazem dele leques e muitos outros objetos maravilhosos; na Grã-Bretanha, alguns professores costumam usa-lo nas crianças que não sabem a lição; nos Estados Unidos, os decoradores de Manhattan recorrem a ele para ornamentar elegantes apartamentos. Para muita gente, ele representa tudo na vida – ele é o bambu, a planta mais maravilhosa do mundo.
No Ocidente, o bambu pode ser ainda considerado uma planta rara e exótica, mas no Oriente, para cerca da metade da população, ele constitui uma necessidade como o ar ou a água. “Seria difícil imaginar como conseguiríamos viver se não fosse o bambu”, declara Thanom Sivichai, chefe de uma aldeia do povo thai. “Todas as manhãs acordo numa cabana feita de bambu, com telhado de folhas de bambu. Ergo-me de uma cama de bambu, bebo água num recipiente de bambu, sento-me num assoalho de bambu e como brotos de bambu fritos, com arroz. Enquanto minha mulher varre a casa com uma vassoura de bambu, eu rego os arrozais utilizando uma bomba de bambu que canaliza a água através de um sistema de tubos de bambu. Na época das colheitas, junto o arroz na eira com um ancinho de bambu, separo os grãos com uma peneira de bambu, carrego o arroz numa cesta de bambu e vou guarda-lo numa arca de bambu.”
“Meu meio de transporte é uma carreta de bambu”, diz o fazendeiro filipino Luiz Lualhati, “equipada com eixos de bambu, e o búfalo atrelado a ela leva uma canga também de bambu. Quando vou pescar, coloco um mastro de bambu em meu barco, uso um caniço de pesca de bambu e as cestas em que trago o peixe também são de bambu. Quando vou caçar, levo uma lança de bambu, e disparo flechas de bambu com um arco de bambu. Para preparar o almoço, faço uma fogueira com achas de bambu, cozinho o arroz numa panela de bambu, corto uma cana tenra de bambu e bebo seu suco.”
Barato, abundante e perene, o bambu dá uma madeira, rija, leve, limpa, oca, macia e polida, que é ao mesmo tempo flutuante, flexível, maleável, elástica, resistente e extremamente durável. Em qualquer parte do mundo, o bambu pode ser considerado um inesgotável manancial de virtudes – uma planta com mil e uma utilidades. No Oriente, o bambu é, talvez, o melhor amigo do homem.
Indiscutivelmente, em muitos aspectos, o bambu apresenta algumas das características mais notáveis de quaisquer outros espécimes do reino vegetal. A planta é, de todos os seres vivos conhecidos, aquele que cresce mais depressa. Há certos casos em que poderíamos dizer, sem grande exagero, que é possível ver a planta crescer. Esta afirmação não deve causar surpresa, pois já foram constatados casos de bambus que cresceram mais de 120 centímetros num só dia!
Quanto ao tamanho, os bambus podem ser simples raminhos com menos de dez centímetros de altura, ou plantas de porte gigantesco, com mais de 60 metros; em grossura, vão desde débeis caniços de 2,5 milímetros de seção até robustos troncos com 18 centímetros de diâmetro.
Ao contrário do que muita gente pensa, o bambu não é uma árvore, mas uma herbácea. A família das babusóideas, à qual pertence, abrange 1.250 espécies. “O bambu”, na opinião de um botânico, “é uma erva com pretensões a árvore.”
O bambu é tão diferente das outras plantas que os botânicos tiveram de criar termos especiais para identificar alguns órgãos dos espécimes dessa natureza. Assim, o caule, que é bem forte, em vez de ser chamado “tronco”, foi classificado pelos botânicos como colmo, termo específico para os caules ocos, como o do bambu, que apresentam nós de espaço em espaço. Da mesma forma, a designação de “raiz” foi substituída pela de rizoma, que descreve com mais exatidão a rede extremamente compacta de ramificações subterrâneas, as quais por sua vez dão origem a novas plantas, cada uma das quais cria depois seus próprios rizomas.
Quaisquer que sejam suas espécies, a família das babusóideas é característica de zonas de climas quentes, ou mesmo tórridos. Desenvolve-se com mais abundância no Oriente, sendo nativa na China, Índia, Japão e todo o Sueste da Ásia. Também é nativa em determinadas regiões da África, América Latina e Australásia. Embora pareça incrível, os bambus nunca surgiram como plantas nativas na América do Norte, na Europa, nem em vastas regiões da Eurásia. Somente há poucos séculos é que os primeiros rebentos de bambus foram trazidos de zonas onde a planta era nativa e cuidadosamente replantados. Ao contrário do que seria de esperar, os rebentos se adaptaram admiravelmente aos novos climas.
Quais os motivos dessa extraordinária capacidade de adaptação? Bem, é que três das principais características do bambu são o seu enorme vigor, vitalidade e poder de reprodução. A planta pode suportar muitas das mais adversas condições meteorológicas. Há determinadas espécies de bambus que resistem admiravelmente à neve, à geada e mesmo ao gelo; por outro lado, o bambu de climas subtropicais pode suportar as mais violentas tempestades. Por exemplo, na ilha de Hokkaido, na região setentrional do arquipélago japonês, há vastas planícies onde a variedade de bambu sasa sobrevive e se reproduz, suportando até a inclemência dos ventos gelados que sopram da Sibéria. Por sua vez, na Jamaica quente a úmida, as varas de bambu que há alguns anos foram enterradas no chão para servir de suportes a dois milhões de pés de inhames criaram raízes e, em menos de três anos, formaram uma selva impenetrável.
Como devem calcular, o que fornece toda a vitalidade ao bambu são as raízes. Todas as moitas de bambus mais próximas estão interligadas por essa densa e complicada teia que se alastra pelo subsolo. Como os membros de uma família humana, cada caule, rebento e rizoma estão ligados com outros não apenas por “parentesco”, mas por essa rede em constante crescimento. Essa interligação umbilical permite que toda a família se mantenha em constante cooperação, repartindo entre si a selva e a água, e se propagando indefinidamente – ou melhor, quase indefinidamente, pois quando um bambu floresce, isso significa que irá morrer.
Até agora, ninguém sabe a ocasião em que esse momento falta irá ocorrer, mas, quando as flores aparecem na planta, as folhas velhas caem e já não são substituídas. As folhas jovens que ficam não possuem pujança suficiente para prover a planta de água e alimento – e, então, o bambu morre. O mesmo acontece com o rizoma, através do qual a vida é transmitida à planta.
A morte de um bambu ocorre muito raramente. A planta pode durar 60, ou mesmo 120 anos, conforme a espécie. Primeiro, só uma das plantas floresce; depois, passados um ou dois anos, toda a moita de bambus fica coberta de pequenas flores brancas. Outro fenômeno também inexplicável é que determinada espécie de bambu floresce simultaneamente em toda a área que ocupa. Em princípios de 1973, por exemplo, uma espécie de bambu de caule grosso, conhecida como madake, que é mais disseminada em todo o arquipélago japonês, deu flor em todo o país, pela primeira vez desde 1864.
Os bambus apresentam ainda outras características invulgares, que podem ser comparadas a certos “sentimentos” próprios dos seres humanos. Como os colmos jovens se desenvolvem muito rapidamente, “mamãe” bambu, muito prudente, vai armazenando seiva em seu rizoma, e então, sacrificando-se, acaba por definhar para poder alimentar seus filhotes insaciáveis. Só quando os caules jovens já estão bem desenvolvidos é que ela começa a se alimentar outra vez. Tal como acontece com os progenitores humanos, “mamãe” bambu (como a planta se reproduz por autopolinização, não há necessidade de um “pai”) até transmite aos filhos seus próprios caracteres “genéticos”. Se os cultivadores de plantações de bambus pretendem obter plantas de colmos grossos, selecionam “mães” altas e robustas; se querem colmos mais delgados, fazem o contrário. Por outro lado, os caules das plantas jovens podem ser facilmente moldados (será que poderíamos dizer educados?) durante os primeiros meses de vida. Os caules em desenvolvimento podem ser comprimidos com talas de madeira de cedro e, assim, os colmos dos novos bambus podem sair quadrangulares, oblongos ou mesmo triangulares.
Embora as utilizações práticas do bambu sejam inumeráveis, esta planta durável e sempre viçosa desempenha muitas outras funções não menos importantes. O bambu está intrinsecamente ligado às origens de toda a cultura oriental, às suas lendas, sua história, poesia, pintura e erudição. O bambu é tão importante para os orientais como o mármore o foi para os clássicos gregos, ou as Madonnas para os artistas da Renascença italiana. Qualquer deles desempenhou papel fundamental na expansão das atividades criadoras dos artistas de cada uma dessas épocas da história.
Nas brumas da pré-história, por exemplo, os chineses já concediam ao bambu um lugar de honra, considerando-o com um dos venerados Quatro Nobres, os quais eram: a orquídea, a ameixeira, o crisântemo e o bambu. Os sábios admitiam que a planta possuía poderes místicos e até sobrenaturais. O bambu também desfrutou de lugar de destaque entre os chamados Três Amigos, ao lado da ameixeira e do pinheiro; o bambu simbolizava a figura divina de Buda, enquanto os outros dois representavam os grandes filósofos Confúcio e Lao-tsé. Em conjunto, simbolizavam os três pensadores mais influentes da história chinesa, e foram universalmente aceitos como símbolos da felicidade e da boa sorte. Mesmo na China de Mão Tse-tung, essa crença ainda sobrevive.
O bambu tem aparecido praticamente desde o início de todas as formas de arte chinesa. Os primeiros entalhadores que se dedicaram a trabalhos de escultura em bambu surgiram durante a dinastia Sung (960 – 1279 D C). A arte da caligrafia talvez nunca tivesse aparecido se não fosse a descoberta do pincel de bambu. Porém é no mundo esplendoroso da pintura chinesa que o bambu tem sua mais elevada expressão. Os antigos pergaminhos eram feitos de papel de bambu e suspensos de pesados tubos também de bambu. Como tema de pinturas, o bambu não é rivalizado por qualquer outro motivo pictórico. Ao longo de dois mil anos, ele tem sido representado mais vezes em pinturas e tratado com maior interesse do que qualquer outro assunto, além das próprias figuras humanas.
No Oriente, o bambu também tem desempenhado papel fundamental nas próprias origens da ciência e da tecnologia. Por toda a Ásia, talvez não haja nenhuma ponte, grande ou pequena, onde o bambu não esteja presente. Ainda hoje, resistentes cordas de bambu são utilizadas para entrançar cabos, enquanto canas de bambu, cortadas ao meio no sentido do comprimento, são usadas como pranchas em inúmeras pontes suspensas. No rio Yangtsé, grupos de 300 homens, ou mais, rebocam gigantescas barcaças de madeira ou batelões, fazendo-os vencer as corredeiras de Si-kiang. Esses homens arrastam os batelões puxando por cabos de bambu que chegam a ter 400 metros e que podem suportar esforços de tração de 690 quilos por centímetro quadrado; os cabos são tão resistentes que não se esgarçam, mesmo quando friccionam em rochas afiadas. Na opinião de peritos, o bambu tem uma resistência igual à do ferro para suportar esforços de tração. O mais incrível é que o bambu conseguiu resistir à bomba atômica em Hiroxima; foram encontrados alguns rebentos verdes de bambu germinando precisamente no centro do local da explosão.
O extenso rol de virtudes do bambu também inclui seu papel preponderante na medicina chinesa e na de outros países orientais. Embora algumas espécies tropicais sejam venenosas, ainda hoje existem muitos remédios recomendados há já vários séculos que podem atenuar ou até curar certas doenças. Na Idade Média, por exemplo, um misterioso medicamento conhecido como tabaxir, destilado de colmos de bambu, veio desde os confins da Índia até a Europa, onde as pessoas mais rústicas e crédulas supunham que era o antídoto ideal contra todos os venenos. Com toda a sabedoria de que dispunham na época, os cientistas da corte vitoriana negaram as virtudes desse medicamento. No entanto, há relativamente poucos anos, pesquisadores químicos descobriram que certos colmos de bambu contém um pó fino e branco de sílica pura, produto muito utilizado para absorver toxinas, tal como o carvão ativado.
Mais recentemente, cientistas japoneses descobriram inúmeras aplicações novas para o sempre inexplorado bambu. Criaram um hormônio vegetal que ativa extraordinariamente o crescimento de trepadeiras, arbustos e árvores frutíferas. Descobriram também uma nova droga contra o câncer, que tem suscitado controvérsias; uma solução que auxilia o desenvolvimento de culturas de bactérias; e um produto químico que conserva os alimentos e tira o cheiro desagradável do peixe. Em contrapartida, no Ocidente, cientistas conseguiram extrair do bambu um produto que serve de combustível para motores Diesel, enquanto outros defendem a idéia de que a planta constitui ótima forragem para o gado.
Contudo, é pela sua madeira que o bambu continua sendo mais procurado. Sob o aspecto econômico, o bambu proporciona mais lucros do que qualquer outra madeira. Por exemplo, uma plantação de bambu que seja bem tratada pode aumentar em 20% o peso de sua madeira em cada ano. O crescimento é mais rápido que o de qualquer outra planta, a idade de abate é inferior, e as matas de bambu não precisam ser capinadas nem replantadas. O dinheiro investido em plantações de outras árvores de mais lento crescimento fica empatado por muito mais tempo, enquanto as plantações de bambu vão dando lucros anualmente. Elas são, na verdade, uma autêntico negócio da China.

quarta-feira, outubro 25

A fantástica criatura chamada abelha

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1985
Autor : Jack Denton Scott

Aqui, só as fêmeas trabalham (e como). Em compensação, ser macho tem sérias desvantagens...

Como seria um mundo inteiramente comandado por seres do sexo feminino?
Preparem-se homens. Tal coisa existe e é extremamente organizada, arrumada, e segura, contando com uma mão de obra altamente especializada, uma elaborada estrutura social, um surpreendente sistema de comunicações e uma muito bem nutrida população. É um verdadeiro paraíso ergomaníaco, mas não deixa de ser também um mundo cruel: os poucos machos que o habitam deixam de ser alimentados após completarem suas funções...
Esta sociedade de irmãs forma o círculo particular das abelhas de mel, as mais valiosas e prolíferas. Elas pertencem à grande família de insetos Apoidea, que inclui 20.000 espécies, entre elas as mangangavas ( bombus) e as abelhas do pau ( xylocopidae).
As domesticadas vivem em colméias artificiais de madeira, projetadas de forma a permitir que a estrutura que contém os favos possa ser removida sem causar-lhes transtornos. Cada colméia comporta cerca de 60.000 residentes.
A ação dentro de uma típica cidade colméia parece uma confusão frenética, mas é tão controlada quando o lançamento de uma nave espacial. As duas categorias de residentes – as abelhas domésticas e as do campo – realizam as mais variadas tarefas. Entre as domésticas incluem-se as “empregadas”, responsáveis pela remoção de detritos. Caso um objeto seja grande demais para ser retirado – um rato, por exemplo, morto a ferroadas após ter invadido a colméia -, elas o escalpelam e mumificam com própolis, uma resina extraída de árvores.
As “ventiladoras” também se incluem entre as domésticas. Elas se postam próximo à entrada da colméia e batem as asas para ventilar o interior. E há as “coveiras”, encarregadas de remover as abelhas mortas da colméia.
A seguir encontram-se as “operárias”, cuja função principal é construir novos favos para a armazenagem do mel. A cera de abelha ( uma espécie de gordura) é excretada por glândulas na parte inferior do abdomem das operárias. Após retirarem a cera com as patas, elas a mastigam, formando bolas minúsculas para a construção de um prodígio de engenharia: o favo, hexagonal e feito em duas camadas, utilizado para a criação de abelhas jovens e armazenagem do mel. As operárias consertam velhos favos, enquanto as “recobridoras” revestem de cera as camadas recém construídas.
Disse Charles Darwin: “É preciso não ter sensibilidade para não ser tomado por uma profunda admiração ao se examinar com cuidado a estrutura tão regular de um favo, e tão perfeitamente adaptada ao objetivo que deve atingir.” Ademais, como abelhas operárias, tendo a completa metamorfose ( do ovo à abelha) levado apenas 21 dias.
Uma abelha mestra põe ovos fecundados e não fecundados – e ambos se desenvolvem. Os primeiros dão fêmeas e contém genes da rainha e dos zangões que a fertilizaram. Os não fecundados produzem machos com genes herdados apenas da rainha.
As abelhas, que emergem do estado de pupa como fêmeas aladas, imediatamente assumem suas tarefas, e, ao que parece, sem instruções das mais velhas. Por cerca de 20 dias as obreiras desempenham tarefas domésticas, como limpar as células do favo, ventilar a colméia e recolher detritos. Em três semanas elas estão prontas para cumprirem inteiramente sua missão principal – a fabricação de mel.
Durante mais de 4.500 anos, os homens vem utilizando o mel e a cera das abelhas. O mais antigo documento gráfico deste fato é um baixo relevo, egípcio, datado aproximadamente do ano 2.400 AC, que mostra um apicultor fumigando uma colméia e trabalhadores filtrando o mel, enchendo com ele potes de barro e vedando-os. Aristóteles dizia que o mel era “o orvalho destilado das estrelas e do arco-íris.” Outros gregos o denominaram “o néctar dos deuses”.
Só nos Estados Unidos recolhem-se por ano aproximadamente 90 milhões de quilos de mel. Além disso, por cada tonelada comercializada, são vendidos 14kg de cera.
Durante séculos esta foi a única conhecida, e foi dela que se fizeram as primeiras velas. Os egípcios a utilizavam para embalsamar corpos. Hoje a cera de abelha entra também na confecção de lustra-móveis, cosméticos, produtos farmacêuticos e moldes de dentes.
À parte a utilização desses produtos, as abelhas contribuem de forma ainda mais importante para a economia. Ao colherem o néctar, elas roçam nos órgãos reprodutores das flores, fazendo as vezes de vetores da polinização. Plantas e árvores – tudo, desde maçãs e pêras até aspargos e brócolis, depende ou se beneficia de tal polinização feita pelos insetos, principalmente abelha. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos estima que para cada dólar de mel as abelhas produzam mais de 100 de polinização.
É assim que as laboriosíssimas irmãs da colméia trabalham para todos nós.

terça-feira, outubro 24

Um homem de outra época

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1971
Autora : May Sarton

Perley Cole era “de outra era, quando um operário tinha tempo, paciência e vontade de fazer um serviço perfeito...”

A princípio – parece incrível agora – nós mal percebemos sua presença na aldeia. Vimos luzes na velha casa no alto do morro, atrás do prédio abandonado da escola, e imaginamos que os veados não mais desceriam nas noites de outono para apanhar as frutas caídas lá no pomar. Alguém se instalara na casa, e isso é geralmente boa notícia. Não sabíamos quem era, nem por que estava ali.
Passaram-se vários meses até que encontrei Perley Cole no terreno baldio que era o estacionamento da aldeia. Apresentamo-nos uma ao outro, no meio das latas de lixo, e lembro-me que admirei o capricho com que ele pintara a sua velha caminhonete de entregas. E então, num dia de junho, a velha campainha de minha porta tocou imperiosamente... e lá estava ele.
Começou um longo discurso, que conseguiu parecer lacônico devido à maneira pela qual era pronunciado: “Sei que sou um velho – e há quem diga, um velho tolo – mas já trabalhei um bocado em fazendas aqui e ali, e pode ser que a senhora precise de ajuda. Ouça bem, eu não vou passar fome, e tenho muito o que fazer no meu canto, mas...”
A minha casa na fazenda, estilo século XVIII, com seus 14 hectares e meio de matas e de campinas, estava abandonada havia muitos anos quando para lá me mudei. Um milhão de coisas ainda estavam por fazer, e eu citei algumas.
“Um dia desses eu apareço”, disse Perley, e sumiu.
Foi a minha primeira experiência com as suas retiradas repentinas. Vi-o afastar-se – seus passos eram os passos largos e vagarosos do fazendeiro que consegue trabalhar de manhã à noite sem se cansar. E meditei sobre o rosto – magro, vincado, com a testa alta e o queixo comprido e firme, o nariz bem marcado, olhos tímidos e penetrantes. Por que teria ele se instalado aqui, entre nós?
“Sou um velho”, dissera ele – mas havia uma certa impetuosidade no seu tom, que significava claramente “um velho indomado”.
No intervalo entre o nosso encontro no estacionamento e a sua visita, muita coisa acontecera na propriedade dele. Não só tinha pintado a casa e reconstituído e retelhado o celeiro, mas também o campo em volta fora segado e as macieiras podadas. Canteiros de flores apareceram em volta das pedras de granito. O velho indomado era visivelmente um homem de muitas habilidades, e tinha padrões que estamos desacostumados de ver. É maravilhoso, numa aldeia remota como esta, quando lutamos para evitar que o mato tome conta, ver-se a restauração de um lugar abandonado. Renova o ânimo de todos nós.
Estaria ele falando sério quando apareceu? – perguntei a mim mesma. Será que eu o teria afastado, dando a impressão de estar demasiadamente ansiosa, ou de não estar suficientemente ansiosa? Pois eu já percebera que esse era um homem orgulhoso, suscetível e tímido.
E então, numa manhã bem cedo, fui acordada por um sussurro no campo entre a casa e o celeiro. Fui ver o que era, e lá estava Perley Cole, derrubando o mato.
Era a primeira vez que eu via um homem ceifando. Fiquei observando os movimentos largos, firmes e ritmados, e quantas vezes ele aprumava a foice para afia-la. Vi como ele a pegava, com um jeito desconfiado e carinhoso. Vi também que esse não seria um trabalho grosseiro e apressado e sim uma questão de capricho e de elegância.
Ali, triunfante, ele parecia um homem na plenitude da vida. Eu nunca teria adivinhado que ele tinha mais de 70 anos. Velho? Eu viria a descobrir que ele era capaz de fazer o dobro do trabalho de um homem de 30 anos.
Aos poucos, Perley foi moldando, podando e limpando o meu terreno. Aparou três arbustos que circundavam a pedra no meio do meu prado grande, e de repente toda aquela era uma paisagem em que se podia descansar a vista. Ele aumentou o “gramado”, incluindo nele o mato entre a casa e o celeiro, e replantou a grama da frente. Não queria saber do meu aparador elétrico. “Nem morto eu queria um desses monstros barulhentos”, informou-me. Por fim, eu me desfiz da máquina; não se oferece uma pianola a Paderewski.
Lentamente fomos descobrindo o caminho da amizade, ratificada com muitos copos de xerez, quando Perley largava o serviço, ao meio-dia. Ele bebe o xerez de um trago. A bebida desce e depois de um momento lá vem uma história: “Está aberta a sessão. Agora, preste atenção no que vou contar!”
Sento-me no banco da cozinha, tomo o meu xerez devagar e escuto. Já conheço muita coisa a respeito dele e do seu “passarinho”, como chama a esposa, Angie. Perley veio ao mundo pesando cinco quilos e berrando. Era o caçula de quatro irmãos, e não era o predileto. Aos 12 anos fugiu de casa, e foi trabalhar para um fazendeiro vizinho. “Eu não era do tipo de ficar atado às saias da minha mãe!” – contou-me com orgulho selvagem.
Ao completar 18 anos, ele sabia com quem haveria de casar-se. “Mas primeiro a gaiola e depois o passarinho”, disse ele; não pedira Angie em casamento até que pudesse oferecer-lhe uma casa, com quatro hectares de terra. “Não dei entrada nenhuma”, contou-me ele, para provar como era bom o seu crédito.
Nunca o ouvi dizer o que quer que fosse que não viesse bem do íntimo da sua experiência essencialmente solitária; e ele me ensinou muita coisa. Quando ele me diz que tenha paciência, eu obedeço, porque sei que ele aprendeu a sua própria paciência e o seu próprio ritmo no decorrer de uma vida longa. Eu tenho absorvido Perley como uma fonte primitiva e saudável, e ele tem alimentado, em mim, a poeta e a jardineira. O seu fraseado vigoroso me volta à memória como temas repetidos numa fuga musical. Um dos meus prediletos é este: “Ele entende tanto de lavoura quanto um ganso entende de Jesus.”
Quando vê que estou deprimida por algum motivo, ele não consola; ele diz: “A vida é como uma parede de pedra. É só deixar uma pedra começar a deslizar e você está frito!” Considero estimulante este conceito de vida.
Quando Perley chegou à porta de minha casa, ele poderia ser um fantasma de outra época, uma época em que o trabalhador tinha tempo, paciência e vontade de fazer um serviço perfeito, não pelo dinheiro, mas pelo amor próprio e pela dedicação ao trabalho em si. Neste ponto Perley surge aos meus olhos como modelo. Ao pensar na maneira como ele se ajoelha para aparar uma cerca, eu às vezes revejo pela quinta vez uma página de meus escritos, ao invés de me dar por satisfeita após a quarta revisão. A bem dizer, creio que quando ele está presente eu trabalho melhor. Lá está ele, nos bosques, cortando mato, e cá estou eu, à minha secretária, podando uma moita de palavras. É ao mesmo tempo uma camaradagem, curiosa e solitária, e uma inspiração.
Pouco a pouco, Perley tirou a minha propriedade do desmazelo e do caos, e lhe deu um pouco de beleza e de ordem. Mas, se muitas vezes ele se assemelha a um anjo da guarda, esse anjo tem duas faces, e uma delas é menos benévola. Ele é um “bom brigão” – vem dizer-me – como se eu não soubesse! Volta e meia acumula pressão, de um tipo ou de outro, e por fim explode, com raiva. Certa vez ele foi embora, e não apareceu durante dois dias, deixando um serviço pela metade. Telefonei para Angie: “Diga a ele que venha até cá, para me dar uma explicação.”
Ele realmente apareceu, e num vocabulário veemente e copioso, disse-me que eu arranjasse outro homem mais moço, que ele ia embora. Consegui, afinal, descobrir o que ele estava querendo dizer: dois dias antes, no fim do trabalho daquela manhã, eu havia dito: “Você já esta há muito tempo nesse trabalho, Perley.” Ele tomara a minha expressão, de receio que estivesse trabalhando em excesso, como se eu quisesse insinuar que ele estava trabalhando devagar e que era um velho, que não valia o dinheiro que eu lhe estava pagando! Estava aberta a sessão e eu fiquei ouvindo. Depois, convenci-o de que, se ele não voltasse, o sal perderia o sabor e nunca mais as coisas voltariam aos seus devidos lugares.
Estarei errada em acreditar que uma aldeia muito necessitada de cuidado fosse exatamente aquilo que Perley procurava? Nada lhe dava mais prazer do que observar um emaranhado de árvores mortas e de mato, e depois ajeita-lo. Ao contemplar o que, para a maioria de nós, pareceria uma tarefa impossível, ele começa a cantarolar, com a expectativa; seu rosto, muitas vezes duro no repouso, ilumina-se com a alegria da luta, com a alegria do artista.

Nota da redação: Perley Cole morreu em setembro de 1970. as recordações da Srta. Sarton parecem um testemunho adequado à beleza e à ordem que ele deixou na Terra.

segunda-feira, outubro 23

A súbita quietude

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1977
Autor : Gerald Moore

Quando uma filha única deixa a família, abre-se um vazio que jamais poderá ser preenchido.


As fotos que tirei naquele dia mostram uma garota alta, bonita e de cabelos pretos, debaixo de um velho bordo, no campus tranqüilo de uma universidade. A garota está sorrindo, mas, para os olhos experientes de um pai, há impaciência em seu sorriso. “Depressa, por favor”, diz ele, “e deixe-me ir.”
Minha filha Cathy entrou para a universidade quase em fins de 1976. sempre soubera que ela iria, mas Cathy partiu aos 16 anos, bem antes de me sentir preparado para entrega-la ao mundo. Alias, é a partida, e não propriamente a idade, o que obriga um pai a enfrentar o súbito vazio que um filho deixa atrás de si.
É claro que tive tempo de me preparar para a separação. Durante toda a primavera precedente e no verão, ajudei Cathy a preencher os papeis de inscrição e, juntos, experimentamos a mesma alegria quando ela soube que fora aceita.
Depois, estudamos o prospecto da universidade, discutindo cursos e condições – ela olhando para o futuro e eu para o passado. E, como a maioria dos pais, agradava-me, na época, sabe-la cheia de iniciativa e de desejo de independência.
De repente, sem que me encontrasse pronto para isso, estávamos no campus, examinando o quarto de Cathy, comprando pequenas coisas que tínhamos esquecido de trazer. Comemos com outros calouros acompanhados dos pais, cada família observando discretamente as outras para descobrir com que tipo de companhia iriam os filhos conviver. À medida que se aproximava a hora da despedida, notei que meu diálogo com Cathy se tornava mais formal. Quando a luz do dia começava a desaparecer, pedi-lhe que posasse para umas fotos. “Para os seus avós”, disse-lhe, não acrescentando e para mim.
Cathy gentilmente acedeu ao meu pedido, mas percebi que ficara embaraçada por ser levada a separar-se, por lhe ter lembrado que representava algo de especial para alguém; na verdade, desejava sentir-se livre naquele momento de começar a vida sozinha. Recordei-me, então, do meu próprio começo de carreira universitária e do constrangimento que tive quando minha mãe insistiu em que posasse para um retrato diante do meu novo dormitório. “Bem, meu filho”, dissera ela, “você é o primeiro de nós que vai para a universidade; por isso, quero um retrato para lembrar este dia.” Por mais privilegiado que me sentisse em estar indo para a universidade, aquele pedido não deixou de mortificar-me. Agora, Cathy continuava a tradição que eu comecei.
Na segunda-feira de manhã, enfrentando o vazio na cozinha, doeu-me o coração enquanto me dava conta de que talvez não voltasse a ver Cathy, meio adormecida, de pé junto do esquentador, a camisola voejando à volta do corpo. Esses breves momentos matinais de sossego nunca me pareceram especialmente importantes, mas agora compreendia que tinham sido parte da rotina diária, algo que eu passara a apreciar. Pelo andar de Cathy, por sua postura, pela maneira como levantava a cabeça, podia dizer se ela dormira bem, se estava feliz, se eu devia apertar ou afrouxar o controle de suas atividades noturnas. Isso tudo agora competia a ela mesma, assim como outros aspectos essenciais de uma vida bem vivida. Estaria eu pedindo muito... e cedo demais?
“Acho que você está sendo um pai nervoso”, disse Bridget, minha mulher, mais tarde nessa manhã. “Quantas vezes Cathy realmente o decepcionou?”
“Poucas”, tive de admitir. “Muito poucas.”
A pergunta de Bridget fez-me recordar um fim de tarde, logo após Cathy ter completado 14 anos, quando me vi diante de sua primeira insistência em uma extravagância própria de um adulto.
Ao chegar do colégio, entrou na cozinha e disse: “Papai, vamos dar uma volta?”
O convite não me surpreendeu. Muitas vezes já havíamos resolvido problemas enquanto perambulávamos pelas colinas das redondezas. Antes de sair, meti um maço de cigarros no bolso.
Fomos caminhando por uma velha mata de pinheiros, sobre um leito macio de agulhas, e chegamos até uma pedra sobranceira a um riacho. Ali nos sentamos e continuamos a conversar, enquanto eu esperava que ela dissesse o que tinha em mente. Bruscamente, seus olhos encheram-se de lágrimas. “Sei que isso vai magoar você”, disse de repente. “Comecei a fumar.”
Realmente doeu. Eu era um fumante e odiava esse fato. Estava certo de que ela seguira meu exemplo, apesar de meus sermões sobre os malefícios do fumo. Chegara a acreditar que havia conseguido fazer-lhe compreender a diferença entre os exemplos positivos que um pai pode dar a suas falhas de comportamento.
“Chathy”, comecei. “Deus lhe deu um corpo magnífico. Você é forte, pode correr depressa e pular alto. Como é que você pode maltratar um corpo assim?”
Mais lágrimas. Então, pareceu-me ouvir minha própria voz, meu próprio fracasso repetido diante de mim. “Não sei”, disse ela. “Não consigo evitar.”
Subitamente, senti raiva. Lembrei-me dela, garotinha ainda, partindo meus cigarros ao meio e recitando anúncios contra o fumo.
“Um minuto menos de vida!”, costumava apregoar. Deixava-me doutrinar desse jeito, na esperança de que ela não cairia no tremendo hábito que já então eu vinha tentando vencer. Comecei a imaginar uma forma de influenciá-la para que deixasse de fumar. Não acreditava que uma atitude de indignação teria sucesso onde a razão falhara. Sabia também que minha própria credibilidade no assunto era nula, pois não conseguira dominar-me a mim mesmo.
“Cathy”, expliquei finalmente. “Gosto de você. Detesto pensar que está fumando. Hei de esperar sempre que você pare.”
Ela deitou a cabeça no meu colo, ainda lavada em pranto, e disse: “Sinto muito, papai.”

Cathy já estava na universidade há mais ou menos um mês quando Bridget e eu fomos visitá-la e a levamos para almoçar. Íamos pela estrada principal e, em dado momento, vimos duas garotas muito atraentes pedindo carona. Filhas dos outros, pensei.
“Pare!”, berrou Cathy do banco de trás. “É a Karen e a Amy.” As duas entraram no carro e nós as deixamos depois no lugar que indicaram. Mais tarde, já instalados para o almoço, formulei minha suspeita.
“Você já andou pedindo carona com Karen e Amy?”, perguntei.
“Já, sim. Uma vez andei”, foi a resposta brusca de Cathy.
“Você gostou?”
“Não”, disse ela. “Apanhamos um bruto susto.”
“Que aconteceu?”
“Apenas um bruto susto. Bruto mesmo.”
Bridget cutucou-me, disfarçadamente por baixo da mesa. “Como o susto que a gente pode sentir num rodeio”, disse ela. Referia-se a um caso que só lhe havia contado há uma semana.
Quando eu tinha 15 anos, convenci meus pais a deixarem-me assistir a um rodeio no estado de Novo México, onde vivíamos na época. A chuva nesse dia enlameara a arena, e o show foi cancelado. Vaqueiros sedentos invadiram o bar local, para aproveitar o dinheiro recuperado das entradas. Naturalmente, meus dois amigos e eu estávamos lá também. Eu tinha até conseguido comprar uma cerveja, embora me faltassem uns anos para poder fazê-lo legalmente. Quase de repente, estourou uma briga perto de mim. Um homem levou uns cortes com uma garrafa quebrada e o sangue espirrou na minha camisa branca. Meus amigos e eu corremos para a porta.
Chegamos em casa bastante tarde. Eu estava exausto, inteiramente arrebentado de emoção e medo. Sem refletir, despi-me e adormeci.
De manhã bem cedo, fui acordado bruscamente. Mamãe me sacudia. “Gerald! Gerald!”, dizia ela engasgada. “Você está bem?” Olhei seu rosto pálido e vi a camisa ensangüentada que ela tinha nas mãos.
“Estou bem, mamãe. Palavra! Houve uma briga, mas não foi comigo.”
Ela puxou o cobertor e viu que eu não estava ferido. Então, fez algo que sempre considerei espantoso. Olhou-me transtornada, levantou a camisa cheia de horríveis manchas de sangue, olhou outra vez para mim... e saiu do quarto. Nunca mais voltou a falar nisso.
Anos mais tarde, perguntei-lhe sobre o caso.
“Acho que preferi não saber detalhes”, disse-me. “Deve ter sido nessa altura que compreendi como é arrasante a tarefa de criar um filho. Às vezes, você chegava perto de mim e eu tentava consertar os danos que você poderia ter sofrido; depois esforçava-me por incutir-lhe um pouco de caráter – e você ia outra vez embora. Tudo o que eu podia fazer era esperar que minha influência tivesse sido boa. Já era grande o medo, mesmo desconhecendo os detalhes.”
Com a lembrança vívida dessas palavras na mente, olhei para Cathy do outro lado da mesa. “Você pretende pedir carona de novo?”, perguntei.
“Nunca!”, veio a resposta enfática.
Nessa noite, telefonei a minha mãe para partilhar com ela aquela experiência paralela de pai. Ouviu-me atentamente e disse: “Sei que você às vezes considera meus ditos um bocado bobos, mas penso que os filhos podem ser como as peônias: tem que apanhar um pouco de frio antes de darem flor.”
“Talvez”, disse eu, “mas esse mesmo frio mata flores mais delicadas.”
“Pensei”, retrucou ela, “que estávamos criando peônias.” A seguir, acrescentou: “Mas, meu filho, não é fácil ficar indiferente. Você verá o que quero dizer.”
Na tarde seguinte, eu estava no jardim varrendo as folhas quando ouvi o ônibus do colégio se aproximar. Durante anos tive o costume de ir até o pátio no fim do dia, e, geralmente estala lá ao chegar o ônibus, com Cathy. Ficava observando Sam, nosso cão preto, peludo, que corria pela estrada e parava precipitadamente junto à porta do ônibus. Ali esperava cheio de ansiedade, com a cauda abanando furiosamente, até que Cathy descesse.
Nesse dia, o ônibus parou e Sam continuou na varanda, em seu canto predileto, ao sol. Levantou a cabeça em expectativa, mas não se mexeu. Observou cada criança que descia do ônibus e depois, lentamente, pôs outra vez a cabeça entre as patas. Na hora do jantar, contei a Bridget que Sam tinha desistido de ir ao encontro do ônibus do colégio. “Eu sei”, disse ela. “Coitado do Sam.”
De noite, com Sam enrolado a meus pés, comecei a compreender o que minha mãe queria dizer. Tornar-se indiferente, deixa-los partir, é de fato muito mais complicado que eu tinha imaginado.

sábado, outubro 21

Uma vez no Waldorf-Astoria

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1979
Autores : Jean e Bud Ince

A história verdadeira de uma experiência mágica por que passou um jovem casal apaixonado no mais famoso hotel do mundo.

BUD: Numa chuvosa noite de outubro, há 30 anos, sentei-me em meu quarto na Academia Naval de Anápolis, Maryland, com a lição de navegação na frente e o pensamento em Jean. Eu a conhecera no mês de agosto em Chicago e me apaixonara. Três dias mais tarde ali estava eu de volta a Anápolis, cercado de regras e regulamentos, enquanto ela se encontrava tão longe, provavelmente até rodeada de bons partidos. As coisas pareciam realmente pretas.
Surgiu, porém, um raio de espeladélfia para o jogo entre o Exército e a Marinha em novembro. Ambos tínhamos sido convidados para passar o fim de semana com meus tios em Nova York. Se eu tivesse chance, teria de aproveita-la e tornar aquele fim de semana algo de fantástico e inesquecível para ela. Joguei todos os meus livros para o lado e escrevi a seguinte carta:

Ao gerente
The Waldorf-Astoria
Nova York

Caro senhor
No sábado, 27 de novembro, espero abrir caminho entre os corpos prostrados da equipe de futebol de West Point e dirigir-me à cadeira, no Estádio Municipal, onde uma garota vai estar me esperando. Iremos às pressas para a estação ferroviária e partiremos para Nova York. Uma vez lá, tomaremos um táxi em direção ao seu hotel – e é aí que o senhor e o Waldorf-Astoria entram em cena.
Estou profundamente apaixonado por essa jovem, mas ela ainda não percebeu sentir o mesmo por mim. Preso neste mosteiro militar, raras são as chances de corteja-la. Essa noite portanto tem de ser maravilhosa sob todos os aspectos, pois pretendo pedi-la em casamento.
Gostaria de uma mesa perfeita, com luz de velas, prata cintilante e toalha de linho branco; com vinho e um jantar digno do clímax da carreira de seu mestre-cuca. À meia-noite em ponto gostaria que a orquestra tocasse “Navy Blue and Gold” suavemente.
Então farei a proposta.
Ficaria grato se o senhor pudesse confirmar meu plano e dizer-me também o valor aproximado da conta. Certamente ainda não fiquei rico ganhando 13 dólares por mês, mas já juntei um bocado.

Sinceramente,
E. S. Ince
Aspirante da Marinha dos Estados Unidos.

No momento em que a carta foi despachada, arrependi-me de tê-la escrito. Era tola, primária e acima de tudo presunçosa. É claro que o gerente do hotel mais famoso do mundo não estaria interessado na vida amorosa de um obscuro aspirante. A carta seria jogada à cesta de papéis, que era seu devido lugar.
Passaram-se duas semanas. Esqueci a carta, tentando loucamente encontrar um meio de convencer Jean, em apenas 36 horas, a passar o resto da vida comigo. Uma bela manhã, porém, encontrei em minha mesa um envelope timbrado de The Waldorf-Astoria. Rasguei-a e li:

Caro Aspirante Ince,
Sua carta gentil recebeu atenção considerável de nossa equipe. Apenas à guisa de brincadeira, juntarei as sugestões de nosso Maitre-d’hôtel, o famoso René Black.
“Pérolas negras de esturjão do mar Cáspio, acomodadas em garras de lagostas, abertas a louvar o Rei dos Oceanos.
“Filé de pampo, conhecido como a donzela do Atlântico, apresentado num saco de papel com a inscrição ‘Saudações de Poseidon’.
“Peito de galinha servido num pequeno ninho representando a segurança do brigue, acompanhado de legumes e salada verde.
“Uma excelente sobremesa conhecida por ‘Ritorna vincitor’, da Aida de Verdi. Um licor doce para selar a expectativa.
“O preço desta manoeuvre, incluindo vinhos, champanha, gratificações, flores e música fica em torno de 100 dólares. Esperamos assim que suas pequenas provisões estejam fortalecidas para a vitória completa.”
Para falar com sinceridade, a não ser que o senhor tenha recursos próprios, acho inteiramente desnecessário gastar tanto dinheiro. Ficaria feliz em reservar-lhe uma mesa na Wedgwood Room e providenciar uma mesa agradável com o melhor atendimento e flores: o senhor e a jovem poderão escolher diretamente do cardápio o que melhor lhes apetecer.
Certamente desfrutarão de alguns coquetéis, um jantar muito agradável e uma garrafa de champanhe pela terça parte do sugerido por René Black; mas a decisão cabe ao senhor. Por isso avise-me do que gostaria, para que preparemos sua pequena festa.
Saudações.
Cordialmente,
Henry B. Williams
Gerente

Fiquei atordoado, sentindo entusiasmo e gratidão; e consternado também – minhas poupanças nem se aproximavam dos 100 dólares. Com pesar escrevi ao Sr. Williams dizendo que ele tinha sido mais realista que o Sr. Black na estimativa dos meus recursos e que eu apreciaria muito que ele reservasse uma mesa.
Os dias se passaram sem que viesse uma confirmação de minha reserva. Estava certo de que a carta nunca chegara ao Sr. Williams ou que a coisa toda tivesse sido levada na brincadeira. Finalmente chegou o dia 27 de novembro. A Brigada dos Aspirantes observou seu time participar de um jogo emocionante, forçando um empate de 21-21 contra o Exército, franco favorito. Depois disso corri direto para a arquibancada, a fim de encontrar Jean. Ela estava mais linda e maravilhosa do que nunca.
No trem a caminho de Nova York mostrei-lhe a carta do Sr. Williams. Disse-lhe não ter certeza da reserva e não saber se deveríamos ir ao Waldorf. Decidimos tentar.
Entramos pela recepção. A Wedgwood Room se encontrava á direita, depois de uma pequena escada que tinha uma fita de veludo e um pajem na base e outro no topo. Inúmeros casais elegantemente vestidos esperavam para entrar. Jean e eu nos entreolhamos e engoli em seco. “Em frente!” Tomei coragem e dirigi-me amedrontado para o primeiro pajem. “Senhor”, disse, “sou o aspirante Ince; talvez haja uma reserva em meu nome.”
Num passe de mágica ele retirou a fita e nos deu passagem. “De fato, há sim”, disse ele, e vimos o maítre no alto sorrindo e perguntando: “Aspirante ince?” “Sim senhor”, consegui responder. “Por aqui”, disse e estalou os dedos. Fomos levados através da sala até uma linda mesa. Dois garçons acendiam compridas velas brancas...

JEAN: Andando na frente de Bud olhei para a mesa, maravilhada. No centro, entre as velas havia estefanotes brancos e rosas cor de rosa num vaso branco baixo. Logo que o garçom, de paletó vermelho, me ajudou a sentar, reparei numa caixa diante de meu lugar. Abri-a e encontrei um buquê de pequenas orquídeas brancas.
O cardápio era pintado a mão, em aquarela. Um navio cinzento da Marinha soltava vapor para o canto alto direito; à esquerda sobressaía o desenho do rosto de uma moça de periquitos azuis nos cabelos.
No momento em que nosso deslumbramento com as flores, a mesa e o cardápio permitiram uma interrupção, o garçom perguntou a Bud: “Desejariam um coquetel?”
Pedimos um Manhattan e esse foi o nosso único pedido a noite toda.
O jantar teve início. A prata reluzia e o cristal brilhava à luz das velas. Eddy Duchin e sua orquestra tocavam ao fundo. O serviço era constante, atencioso, discreto e cada prato parecia melhor que o anterior.
Mais ou menos no meio do jantar, um cavalheiro distinto, de cabelos prateados e enorme nariz gaulês, aproximou-se da mesas. “Sou René Black. Vim apenas para ver se tudo está bem e se você não está zangado comigo.” Bud pulou de pé e eu me curvei, ambos agradecendo efusivamente ao homem que planejara a noite. Ele puxou uma cadeira, sentou-se e falou, deleitando-nos com episódios de seu contínuo caso de amor com a esposa, a origem das omeletes e uma história maravilhosa sobre um jantar que preparou para seu regimento na França durante a Primeira Guerra Mundial. Quando lhe perguntamos se ele havia pintado o cardápio, sorriu, virou-se e rapidamente desenhou a cabeça de um mestre-cuca com a caneta. Sob o desenho, escreveu:
Si l’amour ne demande que dês baiser à quoi bom la gloire de cuisinier?” (Se bastam beijos para amar, para que serve a glória de cozinhar?)
Depois que o Sr. Black nos deixou, fitei Bud. Eu planejara assistir ao jogo entre o Exército e a Marinha e passar o fim de semana com ele, mas imaginava o que eu sentia em relação ao vistoso aspirante a quem vira tão pouco no verão anterior.
Agora estávamos no Waldorf-Astoria em Nova York. Tínhamos acabado de conversar com o famoso René Black; tínhamos degustado um jantar digno de um rei e estávamos bebericando vinho juntos. Mais era impossível!

BUD: Poucos minutos depois Eddy Duchin deixou seu lugar e aproximou-se da nossa mesa. O lendário músico era cordial e amistoso e comentou sobre a grande partida que a Marinha havia jogado naquela tarde; também ele servira na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial. Aproveitando-se de uma distração de Jean, inclinou-se e murmurou: “Navy Blue and Gold’ à meia-noite. Boa sorte!”
Levantou-se sorrindo maliciosamente, e voltou ao piano.
Saboreávamos um licor quando o garçom disse que me chamavam ao telefone na recepção. Segui-o, imaginando quem poderia estar chamando, mas encontrei o maítre me esperando atrás da porta. Estendeu-me a conta e disse: “Pensamos que preferiria não a receber na mesa.” Desdobrei-a receoso e conferi o total. Exatamente 33 dólares – a quantia que eu podia gastar, conforme afirmara na carta ao Sr. Williams. Eu tinha certeza de que tal quantia não pagava nem o início daquela noite no Waldorf e também que a razão por que a conta me fora apresentada com tal fineza era para me poupar o embaraço dos 33 dólares. Olhei o maítre e ele sorriu: “Todos nós da equipe esperamos que tudo corra bem para você.”

JEAN: Bud surgiu de volta à mesa e, em resposta à minha curiosidade sobre o telefonema, disse: “Nada importante. Vamos dançar?” Senti sua mão no meu braço guiando-me gentilmente para a pista. Outros casais dançavam à nossa volta, conversando e sorrindo. Eu só via Bud. Estávamos vivendo uma noite de sonhos, mas que era de verdade. “Estou apaixonada!”, pensei. “Que maravilha. Estou apaixonada.”

BUD: Faltando cinco para a meia-noite, estávamos sentados na mesa numa aura de felicidade. De repente o garçom responsável pelos vinhos apareceu com uma garrafa pequena de champanhe. Abriu-a com um pop suave e encheu duas taças de cristal. Levantei a taça para Jean e naquele momento rufaram os tambores da bateria. Eddy Duchin virou-se para nós e inclinou-se. Ergueu a mão e foi então que ouvimos a melodia da mais bela e sentimental das canções de estudantes: “...For sailormen in battle fair since fighting days of old have proved the sailor’s right to wear the Navy Blue and Gold.”
Olhei para Jean, minha adorada Jean, e com um nó na garganta, disse: “Você quer casar comigo?”

JEAN: Bud e eu nos casamos no mês de junho seguinte. Agora, 30 anos mais tarde, com nossos cinco filhos crescidos e um contra-almirante no lugar do aspirante, às vezes folheamos o maravilhoso presente de casamento que recebemos do Sr. Williams: uma edição limitada lindamente encadernada da história do Waldorf-Astoria, falando dos príncipes e potentados, presidentes e reis que freqüentaram este hotel deslumbrante. Uma noite, porém, não foi incluída – uma noite em que homens cordiais, bondosos, amavelmente românticos, abriram as portas da felicidade para um jovem casal teso e apaixonado. Aquela noite é nossa, como testemunha o presente de casamento do Sr. Black.
Emoldurada e exibida em lugar de honra na sala de jantar, está uma aquarela representando um pequeno mestre-cuca segurando seu espeto numa cozinha antiga. No alto, impressas na caligrafia familiar do Sr. Black, as palavras:

Si l’amour ne demande que dês baisers, à quoi bon la gloire de coisiner?

sexta-feira, outubro 20

Saiba dizer "não sei"

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1978
Autor : Jack Denton Scott

É preciso humildade e um espírito aberto para se dizer “não sei”

Tão freqüentes como o resfriado comum ( e quase tão desagradáveis) são esses sabichões que fazem parar uma conversa e fecham seus próprios espíritos ao dizerem “Eu sei”, quando alguém menciona um assunto de interesse. Eu posso dize-lo, pois também fui assim.
Certa noite, porém, tive minha lição durante um jantar oferecido pela esposa de um mestre-cuca muito conhecido. A senhora parecia deprimida e nervosa, enquanto um dos outros convidados e eu conversávamos com ela. Apontou um objeto preto de metal que estava sobre uma mesa e se assemelhava a um estranho grelhador elétrico.
“Isto é algo muito especial para raclette”, disse. “Vocês conhecem?”
Eu estava quase dizendo que sim, quando o sujeito a meu lado anunciou: “Não, eu não sei. Que é? Um novo processo de grelhar bifes?”
O sorrido da anfitrioa era digno de ser apreciado. À medida que ia explicando como o aparelho funcionava, a senhora se iluminava... e eu ia aprendendo. Raclette não era o sanduíche aberto de queijo suíço fundido, como eu pensava que fosse, mas uma variante do fondue, em que um pedaço de queijo suíço é devidamente derretido até um grau de maciez que permita raspa-lo para dentro de um prato e depois servi-lo com batatinhas cozidas e pequenos pepinos em conserva. Mais importante, porém, do que o fato de eu constatar que não sabia o que julgava saber foi fazer ressaltar uma de minhas deficiências. Eu tinha quase certeza de que o sujeito a meu lado, um homem que andara pelo mundo e perito em culinária, saberia o que era raclette. Sabia também algo que eu desconhecia: a maneira e o momento de, diplomaticamente, dizer “não sei” – e, assim, dar aos outros a oportunidade de brilhar.
Na ocasião seguinte, porém, eu já sabia. Temos uma vizinha que, em parte por motivo de um defeito físico, raramente toma parte nas conversas durante uma reunião. Nessa noite, elas nos trouxe de presente um legume de aspecto invulgar, de cor verde, esguio e curvo, com uns 30cm de comprimento. Das seis pessoas presentes, houve cinco que não sabiam (ou disseram que não sabiam) o que era, mas havia um sujeito que ainda não aprendera o que eu tinha aprendido. Pelo menos, foi isso que eu pensei.
“Pepino que não faz arrotar”, disse ele imediatamente. Podia ver-se a senhora do pepino desanimando – e iria emudecer de todo, quando o homem que identificara o pepino me surpreendeu.
“Ruth”, disse, “você que entende tanto de horticultura, conte para nós o que há por trás desse legume estranho.”
Assim, ficamos sabendo como certa firma de sementes tinha gasto anos apurando um pepino digerível, e vimos a nossa amiga introvertida descontrair-se e se divertir.
Pouco tempo depois de me ter convencido de que havia dominado essa nova arte de espírito aberto e boca fechada, me vi sentado ao lado de um fazendeiro amigo, numa reunião em nossa cidadezinha, durante a qual houve uma longa palestra sobre vacas, preços de leite e incentivos aos fazendeiros, feita por um sujeito da cidade que recentemente se radicara em nosso meio rural e estava dirigindo o mais importante escritório local.
Terminada a reunião, eu disse para meu amigo: “Você, Charlie, que sabe tudo sobre vacas e problemas dos fazendeiros, por que não se pronunciou?”
“Sim, sei sobre vacas”, respondeu Charlie, “mas não sei nada de política. Tenciono aprender, mantendo a boca fechada.”
Na verdade, aprendeu. Dois anos depois, era um cobra da política local – o porta-voz dos fazendeiros.
O psicólogo industrial Benjamin Hewitt acha que o emprego habitual das palavras “eu sei” indica espírito fechado e relutância em se abrir ou se revelar. Faz ver a muitas pessoas a quem aconselha que respostas rápidas e fáceis implicam uma maneira de pensar estereotipada, e que o “não sei” demonstra rapidez em ser imaginativo e agir criativamente. Recorda o caso de um industrial, homem que se realizou às suas próprias custas, e que, tendo começado seu negócio do nada, acabou por conhece-lo em todos os aspectos. No entanto, quando falava com seus empregados, era sempre com uma atitude de “não tenho a solução completa, você a tem?”, e assim continuava aumentando sua reserva de conhecimentos. “Ele se elevou ao sucesso encorajando os outros a se manifestarem”, relembra Hewitt. Afinal de contas, é como disse abertamente Thomas Alva Edison: “Nós não sabemos a milionésima parte de 1% de nada.”
Hewitt acha que todos podemos acrescentar incomensuravelmente algo à nossa arte de viver aprendendo a dizer calmamente para conosco “Tenho de pensar nisto”, ou abertamente para os outros: “Não sei.” Esse psicólogo indica cinco recompensas de que todos podemos nos beneficiar, praticando essa forma de auto-domínio.
Aumentar nossa credibilidade. A pessoa mais culta que conheço é uma senhora de 80 anos que já correu quase o mundo inteiro. É ex-professora universitária, fala cinco línguas, tem lido à bessa e domina um vocabulário que faz seus interlocutores sentirem complexo de inferioridade. Também tem uma memória que mais parece um arquivo. Apesar disso, ela nunca abusa de seus conhecimentos durante uma conversa, nem diz que sabe algo, se não sabe. Tenho aprendido como aumentar minha própria credibilidade escutando essa senhora sempre com resposta para tudo, mas que freqüentemente diz “Não sei” e que sugere que “se consultem os livros”, em vez de se fazer alarde de nossos próprios conhecimentos.
Abstrair do fanatismo e das convicções erradas. Certa noite, ouvi um homem que recentemente tivera alta do hospital falar de um banqueiro aposentado, considerado por muitas pessoas um ricaço austero, muito cheio de si. Não disse nada e fiquei perplexo ao saber que esse homem “rude” passava grande parte de seu tempo visitando doentes em hospitais, levando-lhes livros e pequenos presentes. Não apresentando minhas próprias opiniões na conversa, desfiz uma convicção fanatizada e descobri que eu e outras pessoas tínhamos permitido que a riqueza e o temperamento reservado daquele homem criassem uma impressão errada a seu respeito. Presentemente, esse banqueiro aposentado é meu amigo íntimo e respeitado confidente.
Contribuir para abrilhantar uma conversa, não para acabar com ela. Um dos mais exímios animadores de conversas que tenho tido o prazer de observar é Walter F. Sheehan, ex-diretor da escola Canterbury, estabelecimento de ensino preparatório, na Nova Inglaterra. Mestre da arte do “não sei”, ele gosta de desviar a conversa de um sujeito chato ou de um sabichão introduzindo um assunto interessante em que é versado. A guerra civil norte-americana é um de seus assuntos favoritos. Uma noite, quando falávamos de Robert E. Lee, um conviva perguntou: “Lee não menosprezou os fatos, ou não foi, inclusive, cruel, quando perdeu mais da metade de seus homens atacando Round Top, em Gettysburg, contrariando os conselhos de seus melhores oficiais?”
“Não sei”, respondeu calmamente o diretor. “Não sou militar.” Depois, virando-se para o sujeito ao lado, perguntou: “É verdade que os homens de Lee gostavam tanto dele que teriam feito a carga mesmo sem receberem ordens?” Tenho ouvido dizer isso. Não sei se é verdade ou não”. O sujeito percebeu a deixa e começou a falar entusiasticamente da magnética personalidade de Lee.
O diretor utilizou seus conhecimentos para guiar e inspirar a conversação, nunca permitindo que o “eu sei” dominasse, e fez de um serão que parecia destinado a cair em sonolenta monotonia uma valiosa experiência.
Fazer os inibidos sair de suas conchas. A conversa sobre o pepino digerível é um bom exemplo. O tato é a técnica a utilizar. Quando se sabe demasiado sobre os conhecimentos das outras pessoas e se lhes dá a entender isso, essa atitude pode levar os tímidos a se retraírem ainda mais.
Abrir nossos espíritos, proporcionando-lhes novos horizontes. Sócrates enunciou uma vez, muito sucintamente, a maneira de se conseguir um espírito aberto: “Quanto a mim, só sei que nada sei!” Vários discípulos o seguiram.
Antoine Gilly, um dos grandes mestres-cucas, é muitas vezes assediado por pessoas que querem lhe transmitir seus “fantásticos” segredos culinários. Uma vez, ouvi uma senhora falar com ele durante 20 minutos para lhe explicar como é que ela fazia omeletes. Mais tarde, ele me declarou, sorrindo: “Você sabe, eu nunca usei esse método porque ela da forma à omelete empurrando – nunca a vira. Parece uma coisa lógica e dá menos trabalho. Quando se põe a omelete no prato, seu aspecto, afinal, é o mesmo. Ainda hei de experimentar.”
Essa é a diferença entre um grande mestre-cuca e um cozinheiro vulgar que supõe conhecer tudo.
Um assunto que eu pensava que sabia um bom bocado era a Índia, especialmente suas selvas, onde costumava ir estudar os animais selvagens. No entanto, seguindo a idéia de Antoine Gilly, em vez de falar do que já conhecia a um indivíduo que permanecera lá bastante tempo, ouvi ele me descrever um horizonte completamente novo (uma região no sopé do Himalaia, a apenas 150km do Tibet chinês) que eu nunca vira. Aquilo que aprendi por não ter fechado meu espírito veio fazer parte de um romance que fez sucesso. Elephant Grass.

Em seu livro The Cawthorn Journals, o escritor Stephen Marlowe inclui um personagem que exemplifica minhas idéias de maneira incisiva: “Não ter certeza é uma ótima sensação. Ouvi hoje bastantes respostas prontas que ficarão gravadas em mim a vida inteira. Começo a pensar que o som mais interessante da nossa língua é o das duas palavras não sei, pois elas nos dão uma base para começar – para a gente se maravilhar, inclusive, e perceber o sentido de mistério em cada vida humana.”

quinta-feira, outubro 19

Duas ou três coisas que sei do Japão

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1978
Autor : Andrew H. Malcolm

Este é um país onde tudo corre de acordo com os planos – onde mesmo o imprevisível de alguma maneira não o é

Após 18 meses em Tóquio, são estas as coisas que minha família e eu, norte-americanos, estamos apenas começando a saber a respeito do Japão: A honestidade que impede um homem de pegar uma moeda esquecida numa cabine telefônica porque “não é minha”. A segurança pessoal, que torna o medo na cidade uma ficção. Certa filosofia de atendimento, que faz um dentista telefonar a um paciente vários dias depois da consulta para se certificar de que uma nova capa do dente ainda está bem. O valor das coisas, capaz de transformar um pedregulho vulgar num objeto decorativo de grande valor. A linguagem, que faz com que uma simples palavra como haku tenha três significados: varrer, calçar sapatos e vomitar.
Minha mulher, June, meus dois filhos (Christopher, de oito anos, e Spencer, de quatro) e eu já nos acostumamos a algumas dessas coisas. Porém, mesmo ano e meio depois que os encarregados da nossa mudança nos espantaram, entregando nossos pertences domésticos no preciso momento em que tinham prometido faze-lo, ainda estamos fascinados pelos acontecimentos que fazem nossa vida aqui.

Multidões. Gente, gente em quantidade por toda a parte. Tóquio tem 12 milhões de habitantes, e a população do Japão (112 milhões de pessoas) é mais de cinco vezes a da Califórnia – num espaço menor. E são montanhas o que cobre 80% das mais de 3.000 ilhas japonesas.
Os elevadores, trens, aviões, calçadas e parques vivem superlotados (as pessoas que vão fazer piqueniques saem de madrugada para pegar um bom lugar onde almoçar). Os hidrantes de água são enterrados na calçada sob coberturas para poupar espaço. No Japão, as portas não abrem para os lados: para poupar espaço, são portas de correr. Tudo aqui parece feito numa escala menor: as ruas, os carros, as casas, os quartos, as latas de refrigerante. As coisas tem de ser pequenas para caber. Esse é o primeiro fato da vida no Japão, pátria do radinho de pilha e da televisão minúscula.

Bons modos. Quando um cliente entra num restaurante de bairro, todo mundo, do caixa ao cozinheiro, grita: “Bem vindo, bem vindo!”. Uma amiga nossa perdeu seu passe de metrô uma manhã, a caminho do trabalho: à noitinha, ele tinha sido devolvido. Na véspera de começar a construção de uma obra, o mestre de obras distribui enormes caixas de biscoitos a todos os vizinhos, para se desculpar antecipadamente de qualquer transtorno.
Um dia, fui apanhado por uma tempestade fora da cidade. Um conhecido de poucos minutos antes telefonou a uma loja, e ela me mandou um guarda-chuva novo em momentos. Nas bombas de gasolina, três homens impecavelmente vestidos de camisa e gravata cercam o carro da gente para lavar os vidros, passar aspirador por dentro e polir as calotas. Quando June vai fazer compras na mercearia, o dono sempre promete mandar entrega-las em casa naquela mesma tarde. Outro dia, ele reparou que ela estava carregando um embrulho grande e pesado. “Também vamos mandar entregar isso”, disse ele. E mandou mesmo – na hora marcada.

Limpeza. Tomar banho é uma religião. As donas de casa e os proprietários de lojas limpam as calçadas em frente de suas casas. Há grupos que varrem as sarjetas e lavam as grades de proteção das estradas.
Fiquei muito embaraçado quando, sabendo como sei que quarta-feira é o dia da recolha do lixo para incinerar, deixei sem querer, dentro de nossa lata de lixo, uma latinha. Quando saí, lá estava ela muito arrumadinha ao lado da lata vazia. Alguém tinha separado nosso lixo.

Opostos. A vida aqui parece cheia de contradições: a gente se lava antes de entrar na banheira. Nas lojas de departamentos, a seção de preços de promoções, em vez de ser no subsolo, como nos Estados Unidos, é no último andar. O romantismo é associado não ao crepúsculo mas sim ao nascer do sol. No Dia dos Namorados, são as mulheres japonesas que dão presentes. As mães ameaçam os filhos mal comportados mandando-os brincar lá fora.

Comunicação. Além da barreira normal que é a língua japonesa, existe uma complexa linguagem muda. Essa linguagem por implicação é preferida à outra, e muitas vezes torna aquilo que você não diz mais importante do que aquilo que diz. Uma noite, nossa professora de japonês sugeriu duas vezes que os meninos, ali brincando na sala, podiam estar com frio. Foi só 15 minutos mais tarde, quando ela vestiu um casaco, que nós entendemos o que ela na verdade estava querendo dizer.

Chuva. Muito da vida no Japão é semelhante a assistir a uma tempestade numa noite escura. Há um relâmpago, e, no instante entre o clarão e o trovão, você vê através da chuva algo mais profundo.
Em Kioto, existe um templo budista que tem uma goteira no chão em vez de no telhado. O sulco está cheio de pedras, e durante as chuvas as gotas pingam e salpicam junto do jardim de meditação. Perto há uma cascata escondida nas moitas. Você só ouve o barulho da água caindo. A aparência da cachoeira é deixada à imaginação das pessoas.
Dia após dia, surgem encantadoras descobertas: há o velhote que viaja no metrô com um periquito para distrair as crianças. A carrocinha iluminada por lanternas que para perto da nossa casa todas as noites às 9:10 para vender talharim quente. Os relógios juntos dos telefones de moedas que marcam os três minutos, momento em que os telefonemas de dez ienes são automaticamente cortados. E música nos sinais luminosos de trânsito para avisar os cegos quando podem atravessar a rua com segurança.
Até mesmo o imprevisível dessas situações é de alguma forma previsível. No Japão, as coisas funcionam segundo um plano. Não se dá valor à surpresa. Os trens saem e chegam no horário. Se a seta pintada na plataforma diz que o Vagão nº 5 vai parar ali, ele para mesmo – ali, precisamente.
Sabemos, é claro, que é impossível chegarmos a entender completamente esta complexa sociedade. Quando você pensa que conseguiu, abre-se uma nova porta que dá para um quarto inacabado. Um dia, eu ia num trem expresso quando reparei num aviso que dizia: “R 45,5”. Perguntei ao maquinista o que aquilo queria dizer, e ele me disse: “Ah, é o raio da próxima curva – que é muito fechada.”
No entanto, um incidente recentemente ocorrido demonstrou que nossa família adaptou-se firmemente no Japão. Uns amigos nossos norte-americanos passaram por Tóquio há pouco tempo, e falaram no alto preço que tinham pago pelas passagens de avião – cerca de 1.300 dólares cada.
Foi quando Christopher perguntou: “Quanto é isso em ienes?”

quarta-feira, outubro 18

"Culto da carga" no Pacífico Sul

fonte : Revista Seleções
data : Setembro de 1971
autor : Ben Lucien Burman

Uma lenda dos negros do Pacífico Sul criou agora uma estranha religião nas ilhas da Melanésia.

O avião deu um mergulho violento. Voávamos às cegas entre nuvens negras de tempestade que ocultavam o Mar de Bismarck. O australiano de tez fortemente bronzeada sentado ao meu lado, médico do governo a caminho de um novo posto, apertou o cinto.
“Não se pode misturar a Idade da Pedra e a era espacial sem criar complicações”, disse ele. “O senhor descobrirá isso antes de passar uma semana nessas ilhas da Melanésia.”
Uma resga de verde apareceu momentaneamente através de uma abertura na nuvem. O médico continuou.
“Embaixo de nós está um exemplo perfeito do que estou dizendo. É a ilha de Nova Hanover. Os nativos desta ilha querem comprar o presidente ianque.”
O homem magro e louro da poltrona ao lado, um engenheiro inglês com longa residência nas ilhas, confirmou com a cabeça.
“Isso faz parte da crença chamada ‘Culto da Carga’, que predomina em toda esta parte negra do Pacífico Sul”, disse ele. “É uma coisa tão doida que chega a ser incrível, mas infelizmente é verdadeira.”
O médico entregou sua xícara de chá vazia à aeromoça que passava.
“Essa loucura começou quando chegaram os primeiros europeus. Vendo as maravilhas trazidas pelos recém-chegados, os nativos, que ainda viviam na Idade da Pedra, pensaram que era mágica. Como tudo aquilo vinha em navios e era chamado de carga, tudo o que pertencia ao homem branco passou a ser conhecido Por esse nome. E foi assim que nasceu a nova religião da Carga.”
O inglês tomou a palavra.
“Vocês americanos também entraram na história, e de maneira muito curiosa. Na antiga religião dos negros havia a lenda de que seus antepassados, um dia transformados em brancos, voltariam com toda sorte de novidades milagrosas que distribuiriam grátis aos habitantes das ilhas. Os europeus tentavam explicar-lhes que essas coisas só podiam ser obtidas a custa de muito trabalho, mas os nativos não acreditavam.”
“Depois vieram a Segunda Guerra Mundial e os americanos com centenas de navios cheios de suprimentos. Boa parte do que eles levavam deram aos nativos para conquistar-lhes a boa vontade ou recompensa-los por serviços prestados. Quando terminou a guerra, os americanos deixaram montes de coisas nas praias. E agora não há quem possa convencer os negros de que a lenda não é verdadeira.”
O avião começou a baixar e eu espichei o pescoço para dar uma última olhada a Nova Hanover, que ia ficando para trás.
“Esse negócio de quererem comprar o presidente foi resultado direto da guerra”, disse o médico. “Chegou a época de recolher o diminuto imposto que os nativos pagam todos os anos, e as autoridades verificaram que o dinheiro não estava entrando como de costume. Investigaram o caso, e com assombro descobriram a razão. Os nativos estavam economizando para comprar o presidente americano.
“Afinal de contas”, continuou o médico, “a idéia era perfeitamente lógica. Os Estados Unidos eram o pais mais rico do mundo, e sendo o presidente o seu chefe, ele era o homem indicado para lhes dar Carga.”
Um dia, há alguns anos, chegou ma remessa de motores de popa Johnson, adquiridos pelo governo das ilhas. Os nativos haviam ouvido que um homem chamado Johnson era o presidente. Quando as autoridades recusaram-se a entregar-lhes os motores, ele protestaram violentamente. Estavam certos de que os motores eram parte da Carga que o presidente Johnson lhes tinha mandado.
“Antes da guerra houve um incidente parecido com esse dos motores”, disse o engenheiro. “Um líder nativo chamado Batari iniciou um culto de carga que conquistou milhares de adeptos. Por esse tempo chegou um grande carregamento de caixas com a indicação ‘Battey’(bateria, ou pilha, em inglês). Batari ficou furioso com os brancos que não lhe quiseram dar as caixas. Quem não via que elas eram propriedade dele, enviadas pelos deuses dos seus antepassados?”
Minutos depois pousamos no aeroporto de Kavieng, na costa verdejante da Nova Irlanda. Novos passageiros embarcaram – rudes mercadores recém-saídos de algum navio de cabotagem, missionários em licença com suas famílias, agricultores que iam fiscalizar suas colheitas de cacau ou copra. Logo decolamos novamente. A água embaixo de nós era um espelho iridescente coalhado de jóias verdes, os famosos atóis do Pacífico Sul. Surgiu um grande vulcão desprendendo um fio de fumaça. Nas suas imediações espalhavam-se as edificações de uma vasta cidade, cintilando ao sol claro. Era Rabaul, na Ilha de Nova Bretanha, não longe de Bougainville e a umas seis horas de vôo de Guadalcanal, nas Ilhas Salomão, teatro de sangrentas lutas na Segunda Guerra Mundial. Aterrissamos.
Um fazendeiro que eu conhecera no avião conduziu-me no seu carro pelas ruas cheias de negros de cabelo crespo que usavam coloridas tangas chamadas lava-lavas. Acompanhava-nos um técnico da escola de agronomia local, que me apontou os magníficos hospitais australianos, num esforço hercúleo para incutir o espírito da autonomia de governo àquela população primitiva.
“A Carga é a velha filosofia dos deserdados da sorte. Essas escolas e os rapazes que nelas se formam e iniciam uma plantação ou algum outro negócio por conta própria são o melhor remédio”, disse o agrônomo. “Mas os outros são um terrível problema. Há pouco tempo os habitantes de uma aldeia aqui perto destruíram todas as plantações, mataram todos os porcos e queimaram as casas. Estavam convencidos de que, se mostrassem desse modo a sua fé na Carga, os deuses lhes mandariam 100 vezes mais.”
“O Culto da Carga”, emendou o fazendeiro, “faz irrupções aqui com a mesma regularidade com que um australiano toma a sua cerveja das cinco.”
Ainda ontem ouvi a história mais recente, que se está espalhando como fogo no matagal. Segundo essa história, num dia desta semana centenas de aviões americanos deixarão cair ovos enormes na casa de cada indígena de Rabaul. Cada um desses ovos se abrirá e soltará um pelotão de soldados americanos carregados de latas de conservas, máquinas de lavar roupa e carros novos.
Nessa noite jantamos com um grupo de líderes indígenas da ilha, homens sérios e solenes, alguns dos quais falavam excelente inglês, outros apenas pidgin, essa curiosa língua tão disseminada no Pacífico Sul. O homem sentado ao meu lado, escultural figura preta com uma cabeleira que se elevava uns 25 centímetros acima da cabeça, falou em tom pesaroso.
“A Carga é uma das tristes ilusões do meu povo”, disse ele. “Na Ilha de Manus eles enrolaram todo o dinheiro em cartuchos de papel e os plantaram. Pensavam que os cartuchos dariam dinheiro, como de uma batata nasce uma batateira.”.
“Não muito longe daqui”, disse outro convidado, “levamos semanas tentando persuadir o povo a construir uma escola. Mas sempre respondiam que estavam muito ocupados. Estavam levantando um vasto armazém para receber carga.”
No dia seguinte voamos para Port Moresby, capital do Território de Papuásia e Nova Guiné, a enorme ilha que é uma das últimas regiões selvagens do globo. Por toda parte vagueavam ociosamente indígenas cuja tez variava do preto reluzente ao moreno-claro, alguns com esquisitas tatuagens no peito. Em toda parte havia estranhas mesclas do antigo e do novo. No ultramoderno palácio do parlamento falaram-me de um candidato recentemente derrotado, cuja única promessa eleitoral fora converter em realidade os milagres da Carga para todos os homens, mulheres e crianças da Nova Guiné.
Dirigi-me para a fronteira da antiga Nova Guiné Holandesa, agora sob controle da Indonésia. Chegando a Wewak, que fina na Nova Guiné Australiana, transferi-me para um pequenino avião em que só iam o piloto e Colin, funcionário do governo em giro de inspeção.
“Para quem ao é daqui deve ser difícil compreender a Carga. Nós, que vivemos nesta terra, acabamos por aceita-la e até por contar com ela”, disse Colin.
Voamos sobre um amplo vale cortado por um rio sinuoso e lamacento, e pousamos numa pista perto de um minúsculo povoado. O inspetor do distrito era um moço de uns 24 anos e que, com uma meia dúzia de policiais nativos, era o único representante da lei para 10.000 negros, muitos dos quais talvez fossem ainda canibais.
“O Culto da Carga assumiu aqui uma forma estranha”, disse ele enquanto nos servia o chá. “Alguns homens estiveram em Wewak e viram refrigeradores. Na volta fizeram imitações de refrigeradores com sobras de madeira trazida de avião e as ligaram com cipós para servirem de fios elétricos. Depois sentaram-se diante da sua obra, rezaram aos seus antepassados e ficaram esperando o milagre. Estavam certos de que, se rezassem com fé, a madeira se transformaria em metal, os motores apareceriam e eles só teriam de abrir as portas e tirar o sorvete e os refrigerantes que desejassem, como faziam os brancos de Wewak.”
Ao amanhecer partimos num aviãozinho, transpondo picos inóspitos e a densa selva do planalto ocidental, vasta região ainda há 30 e poucos anos desconhecida dos europeus.
“O Culto da Carga não chegou a pegar aqui como na costa”, disse Colin, “provavelmente porque os indígenas quase não tem contato com os brancos. Mas aparece aqui e ali.”
Estamos a uns 240 quilômetros em linha reta da costa marítima mais próxima, e de permeio há uma cadeia de montanhas de 4.000 metros de altura. Entretanto já vi aqui uma enorme doca construída pelos nativos para os navios transoceânicos atracarem com carga. Em outro lugar vi uma pista de pouso feita segundo a concepção deles, atravancada por milhares de troncos de árvores, e junto dela uma estrada de três ou quatro quilômetros que não leva a parte alguma. Eles não sabiam se a carga chegaria de caminhão ou pelo ar, e queriam estar preparados para ambas as eventualidades.
Pousamos junto de um punhado de choças, num lugar tão remoto que do outro lado da montanha nunca um branco pôs os pés. Descemos do avião sob os olhares de indivíduos fantasticamente pintados, alguns empunhando machados de pedra, outros uma estranha arma feita de pata de casuar com cabo de madeira, destinada a arrancar as entranhas dos inimigos. De quando em quando um nativo mais curioso do que os outros aproximava-se para apalpar a minha roupa e tocar na minha pele.
Na manhã seguinte, sob um magnífico nascer do Sol, estávamos a caminho de Monte Hagen, centro administrativo do planalto. Aí os constastes e contradições entre os sistemas de vida antigo e moderno, que tínhamos notado em outros lugares, alcançavam um ponto absurdo. À porta da loja que vendia refrigerantes e as mais recentes histórias em quadrinhos estavam encostados selvagens de aspecto feroz, com as narinas arreganhadas com presas de javali, os rostos pintados compondo máscaras aterradoras. Contaram-me que os montanheses, devido às profundas gargantas que separam as suas aldeias, comunicam-se por meio de cantos gritados, como os habitantes dos Alpes Suíços. Daí a extraordinária popularidade dos discos de música tirolesa entre as populações das cidades da região.
Fora do pequeno mas moderno hotel de Monte Hagen uma figura alta, nua, ornada de madrepérola e um brilhante cocar de plumas de ave do paraíso, esperava junto à porta. Quando me aproximei, ele estendeu-me um pedaço de papel.
“Patrão dar mim dinheiro muito”, disse ele em pidgin.
Olhei o papel, provavelmente jogado à cesta por algum branco, igual aos outros papéis em que o nativo vira o branco traçar alguns sinais mágicos diante de um guichê de banco e receber maços de libras ou dólares em troca. Era um cheque em branco do Commonwealth Bank of Austrália. Era a Carga do Pacífico Sul!

terça-feira, outubro 17

Regresso a casa

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1972
Autor : Peter Hamill

Qual seria a mensagem do grande carvalho?

Ouvi esta história pela primeira vez há alguns anos, contada por uma jovem que conheci no Greenwich Village, em Nova York, e que me disse ter sido uma das protagonistas. Depois disso, pessoas a quem contei disseram-me que já tinham lido outra versão num livro qualquer, ou ouvido de um conhecido, dizendo que acontecera a um amigo.
Provavelmente, trata-se de uma daquelas misteriosas lendas folclóricas que emergem, de tantos e tantos anos, do subconsciente de uma nação, para serem de novo contadas, de uma maneira ou de outra.
O elenco varia, mas a mensagem mantém-se a mesma. Gosto de pensar que aconteceu, de fato, em algum lugar, num dia qualquer...

Eram três rapazes e três moças e iam à Florida. Quando se meteram no ônibus, levavam sacos de papel com sanduíches e bebida, e, à medida que a cinzenta e fria Nova York ficava para trás, sonhavam com praias douradas e ondas do mar.
Enquanto o ônibus avançava para o sul, começaram a reparar em Vingo. Ia sentado à sua frente, metido num terno simples, que lhe caia mal no corpo. Não se mexia e o rosto empoeirado parecia uma máscara a ocultar-lhe a idade. Mordiscava sem parar o interior do lábio, petrificado, em silêncio.
Alta noite, já Washington ficara para trás, o ônibus parou defronte de um restaurante de beira de estrada, onde todos desceram, menos Vingo, que parecia preso ao banco por raízes. Os jovens começaram a especular a seu respeito, tentando imaginar a sua vida. Talvez fosse um lobo do mar, alguém que fugira à mulher, um velho soldado que regressava a casa... Quando voltaram, uma das moças sentou-se ao lado dele e apresentou-se.
“Vamos à Flórida”, começou, sorridente. “Dizem que é muito bonita.”
“É sim”, concordou serenamente, como recordando algo que fizera força para esquecer.
“Quer um gole de vinho?”
Vingo sorriu e bebeu um trago. Depois agradeceu e tornou a mergulhar no seu silêncio. Passados alguns momentos, a garota voltou a juntar-se aos amigos, Vingo começou a cabecear, e por fim dormiu.
De manhã, acordaram à porta de outro restaurante, e, desta vez, Vingo também desceu. A jovem insistiu em que lhes fizesse companhia, e ele acedeu. Parecia muito constrangido. Pediu café simples e fumou nervosamente, enquanto os jovens falavam de como seria bom dormirem na praia. Quando regressaram ao ônibus, a garota sentou-se de novo ao lado de Vingo, e, passado algum tempo, lenta e penosamente, ele contou a sua história.
Estivera quatro anos preso em Nova York, e agora regressava a casa.
“É casado?”
“Não sei.”
“Não sabe?”
“Bem, quando estava na cadeia, escrevi à minha mulher. Disse-lhe que estaria ausente muito tempo e que, se ela não agüentasse, se os nossos filhos começassem a fazer perguntas e fosse muito doloroso, me esquecesse. Eu compreenderia. ‘Arranje outro homem’, disse-lhe. Ela é uma mulher formidável, especial..… ‘Arranje outro homem e não pense mais em mim...’ Disse-lhe que não precisava de me escrever, e ela não escreveu. Isso faz três anos e meio.”
“E você está indo para casa sem saber?”
“Pois é”, respondeu acanhado.
“A semana passada, quando tive a certeza de que me concederiam livramento condicional, escrevi-lhe de novo. Há um grande carvalho na entrada da cidade onde vivíamos, e eu disse que, se ela me quisesse de volta, deveria amarrar um lenço amarelo à árvore. Nesse caso, desço e vou para casa. Se não me quisesse, não amarraria lenço nenhum e eu continuaria viagem.”
“Meu Deus!”, exclamou a moça, estupefata.
Contou aos outros, e pouco depois, com a cidade de Vingo se aproximando, todos admiravam as fotografias que ele lhes mostrava, da mulher e dos três filhos. A mulher era bonita, de uma beleza simples, e os garotos ainda não tinham feições formadas, nas fotografias velhas e muito manuseadas.
Encontravam-se a 30 quilômetros da cidade, e os jovens sentaram-se à janelas, à direita, atentos ao grande carvalho. A atmosfera dentro do ônibus tornou-se carregada, pesada de ansiedade, do silêncio da ausência e dos anos perdido. Vingo deixou de olhar e seu rosto tornou-se inexpressivo atrás da máscara de ex-presidiário, como preparando-se para mais uma decepção.
Agora só faltavam 15 quilômetros, 10... De súbito, os jovens levantaram-se todos, gritando, chorando, dançando de felicidade, numa grande alegria. Mas Vingo não se mexeu.
Deixou-se ficar, petrificado, olhando para o carvalho, que estava coberto de lenços – 20, 30, talvez centenas de lenços! A árvore sobressaía na paisagem como uma bandeira de boas vindas ondulando ao vento. Enquanto os jovens gritavam, o ex-presidiário levantou-se e dirigiu-se para a frente do ônibus, pronto para ir para casa.