quinta-feira, outubro 5

Por amor a Silas

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1973
Autora : Margaret Lewerth

Não deixe jamais um cachorro perder a sua dignidade

A manhã brilhava com o dourado de setembro e o ar tinha a suavidade do verão que reluta em partir. Ao lado da minha cadeira, Silas respirava pesadamente no vazio do sono de um cachorro velho. Seu flanco subia e baixava. Acariciei uma pata dianteira grisalha. Ela a encolheu, roncou e afundou mais no seu leito de raios de sol.
A penosa decisão havia sido tomada na noite da véspera. A hora havia sido marcada para as 11 da manhã. “Você não vê?” meu marido dissera. “É um ato de caridade.” Mas agora, ao sorrir para o velho cão ao meu lado, eu não podia ver. Ainda há tempo, murmurei. Não hoje!

Foi há 15 anos que Silas tomou conta de nós. Meninos e cães de raça se entendem, um amigo que conhece cachorros nos havia dito, e nós fomos ver uma ninhada de recém-nascidos. Meu filho de 11 anos ficou olhando, maravilhado, a agitada massa preta-marrom-e-branca. Um cachorrinho saiu daquela confusão, veio andando, cheirou um tornozelo magro que saía de umas calças que se haviam tornado curtas para o seu dono e abanou o rabo. A um sinal do dono do canil, meu filho tomou-o nas mãos. O cachorrinho bocejou e se aconchegou, uma bolinha de confiança sonolenta nos braços do menino.
Era o auge do verão quando Silas chegou à casa, e as portas abertas eram um convite para os prazeres do ar livre. Imediatamente dois planos foram cuidadosamente elaborados para ele.
A caixa na qual Silas dormiria fora colocada ao lado da porta da cozinha, onde, meu marido raciocinava, ele poderia imediatamente assumir seus deveres de cão de guarda. Silas pensava diferente. Quando seu primeiro latido chegou aos ouvidos do meu filho, Silas foi recolhido e instalado ao pé de uma cama estreita, que lhe convinha perfeitamente. Daí ele abriu caminho até ao travesseiro, e em seguida para debaixo dos cobertores, onde dormiu até que o seu companheiro de cama, no inevitável processo de crescer, se foi embora.
O segundo dos nossos planos era treina-lo. “Silas não vem quando eu chamo”, queixou-se meu filho. “Vai levar 20 anos para educar você”, explicou meu marido. “Como é que você espera educar um cachorrinho em duas semanas?”
“Ele nem me olha.”
“Leva tempo”, disse meu marido. “Mas não será difícil treina-lo.”
Começaram com o truque da corda. A idéia é atar uma corda de 15 metros á coleira de um cachorrinho novo, andar até estica-la e chamá-lo. O cachorrinho é delicadamente puxado em sua direção, e ganha um biscoito quando chega. O que chegava ás mãos do meu marido sempre, porém, era uma corda vazia. Silas podia ser visto pulando com o rabo para cima num curso firme norte-nordeste, em direção aos campos abertos.
O cachorrinho era obviamente inteligente; também era teimoso, decidido, cabeça-dura e insidiosamente sedutor. Dentro de casa, percebia os mais leves passos do meu filho, e de qualquer lugar ouvia quando a porta da geladeira era aberta ou a carne assada estava sendo tirada do forno. Ouvia, e lá vinha ele. Mas, na rua, Silas era o seu próprio senhor. Ao ser chamado, virava-se polidamente, abanava o rabo e continuava no seu caminho.
“Que vamos fazer?”, perguntou meu filho.
“Vamos nos acostumar”, respondeu meu marido. “Cachorros tem defeitos, como as pessoas. Você não manda uma pessoa embora porque não é perfeita. Talvez ele melhore com o tempo.”
Não melhorou. O recado era claro, e nós o entendemos: “Não me chamem, eu os chamarei.” Isso o meteria em apuros.
Numa verde manhã de primavera, Silas desapareceu. Não era a primeira vez, mas em geral podíamos espera-lo uma hora depois, as patas e orelhas enlameadas, cabeça, cauda e coração altos. Desta vez, não.
Quase ao fim da tarde, eu fingia podar touceira que haviam brotado cedo demais quando ouvi o gemido fraco. Ajoelhei-me, Silas estava deitado, encolhido sob um arbusto, seus olhos baços de dor. Puxei-o com cuidado. Estava quase em estado de choque. Sua orgulhosa cauda de ponta branca, estava reduzida a um toco escuro e aleijado.
“Não há outra marca nele”, disse o veterinário. “Portanto, não foi briga, nem foi atropelado por um carro. A cauda pode ter ficado presa na porta de um carro, se o apanharam. Uma armadilha? Pode ser...”
A cauda ficou boa, reduzida a uns 10 centímetros, e vieram a aparecer até uns dois centímetros de branco na ponta. Ele aprendeu a abanar o toquinho aleijado, e dormia com ele escondido no corpo. Esqueceu e perdoou as forças ocultas – nunca soubemos a verdade – que o haviam machucado.
O Sol havia subido no céu até a sua luz cair direta sobre o velho caçador. Ao lado da minha cadeira, seu sono era tão pesado que seu flanco movia-se apenas levemente. Endireitei-lhe a orelha desbotada e trigueira, quente como seda à luz do sol.
Aquelas orelhas eram tão sensíveis como teimosas. Silas anunciava o caminhão do leite muito antes de ele entrar na nossa estradinha. Meu marido podia sair à noite para ir a uma reunião, que Silas continuava a dormir, sem se incomodar. Mas, se ele saísse para comprar algo para o lanche, Silas sentava-se na cozinha, ereto, orelhas alerta. Seus latidos fortes começavam antes de o carro virar para entrar na garagem.
Como o cachorro sabia, antes de o carro sair, que uma refeição estava a caminho, é coisa que escapa ao entendimento humano. Mas o segredo mais bem guardado de Silas era o seu sexto sentido sobre as visitas do meu filho à casa. Ele tinha 12 anos, um velho grisalho pelos padrões da sua raça, quando meu filho telefonou, certa noite: “Estarei em casa no sábado, mamãe, e” – uma hesitação de fracão de segundo – “estou trazendo comigo uma pequena.”
Outras garotas já tinham vindo com ele, mas aquela vibração na sua voz dizia que esta era diferente. Sábado à tarde, Silas colocou-se perto da porta, às vezes de pé, depois deitado com a cabeça nas patas. Fazia uma hora que estava lá quando o jovem casal chegou.
A moça era linda, timidamente elegante, olhos profundos e mãos capazes e esguias. Ficamos encantados. Quando nos sentamos para conversar, o cachorro havia desaparecido.
“Silas!”, chamou o meu filho. Ele riu, embaraçado, ao incluir a jovem na família. “Você terá de aprender que Si nunca vem quando o chamam. ‘Não me chamem, eu os chamarei’, a gente aqui já sabe.”
“Si!” a garota chamou, com a sua voz suave e musical. Debaixo de sua cadeira apareceu, arrastando-se, o nosso velho cachorro. Olhou ao redor, agitou o toco de cauda e deixou-se cair aos seus pés. As mãos finas acariciaram suas orelhas, e Si fechou os olhos. Era a sua pequena, alegre rendição, diante da namorada do meu filho.
À medida que envelhecia, os passeios de Silas foram ficando mais curtos. Os coelhos já não o atraíam muito longe, e não se podia mais contar com o gato do vizinho para fazer ferver o seu sangue e retesar os seus músculos. No entanto, numa noite fria de novembro – terá sido somente há um ano? – ouvimos Silas latir um inconfundível pedido para sair. Era quase meia-noite, mas meu marido levantou-se e desceu. Eu fiquei tremendo à janela, vendo Si sair trotando, não para circular pelo quintal, como de costume, mas em linha reta através dos campos prateados.
“Melhor voltar para a cama”, disse meu marido. “Ele não volta tão cedo. É lua de caçador. A maioria de nós não conhece isto, mas Silas conhece.”
Faltava um quarto para as cinco quando um latido forte cortou a escuridão. Meu marido levantou-se e desceu para abrir a porta.
“Muito bem!” ouvi-o dizer. Fez-se silêncio. Logo o cheiro de comida de cachorro esquentando chegou até o quarto. Ouvi as patas de Si baterem com alegria. Às cinco da manhã, meu marido estava dando uma refeição quente ao nosso cão vadio e falando com ele não só com aprovação, mas com orgulho.
“Grande cachorrinho!”, disse meu marido, voltado para cima. “Ele teve uma noite realmente formidável. E na sua idade!” E sorriu para mim.
O cachorro adormecido ao sol moveu-se, levantou a cabeça e deixou-a cair de novo. O caminhão de leite havia parado. O leiteiro fez um barulho alegre com as suas garrafas.
“Acho que o velho Si me esqueceu”, disse o homem. “Como vai ele?” “Ele... ele está bem”, gaguejei. E depois, não conseguindo evitar: “Você sabe que horas são?”
“Passa das dez.”
O sol nunca esteve tão luminoso, nem o céu mais azul. Dali a uma hora este dia dourado estaria no auge. Uma hora... Não! Que direito tínhamos nós de negar a qualquer criatura seu tempo na Terra, de tira-la da luz? E, no entanto, ontem à noite...
Na noite passada, o vento e a chuva haviam lacerado a casa. Silas havia-se levantado, com um esforço desajeitado, para sair. Mas não se havia voltado para a porta, como de costume. Em vez disso, voltara-se vagamente para a parede.
“Vamos deixa-lo sair?”
“Ela não entenderia se não o deixássemos”, disse meu marido;
“Venha, Si.”
Uma rajada de vento frio e úmido empurrou Silas para a porta aberta. Com um abanar da sua cauda curta, ele saiu para a noite.
O latido anunciando o seu retorno veio logo. Ele tropeçou no patamar, equilibrou-se, caiu de novo. Nós o ajudamos a entrar. Mas ele não se deitou, Em vez disso, ficou parado sob a luz da lâmpada, suas pernas tremendo, os olhos turvos olhando para longe.
Meu marido observou-o de perto. “Si?”
O cachorro permaneceu imóvel. “Silas!”
Silas voltou a cabeça, mas para longe de nós, como se escutasse um eco distante.
“Amanhã ele estará bem.” As palavras saíam-me através de um nó na garganta. Não eram as mesmas palavras que usara ontem, há uma semana, há duas semanas?
“Vou chamar o veterinário”, disse meu marido, muito calmo.
“Não!”, gritei. “Ainda não!”
Silas continuava de pé, tremendo, não enxergando nenhum de nós, nem a sala que conhecia tão bem. Estendi a mão, chamei o seu nome. Ele não reagiu.
“Você não percebeu?” A voz do meu marido tornou-se áspera. “Ele não nos consegue ouvir. É um fardo para si próprio, e está com esse fardo.”
“Não podemos simplesmente deixa-lo ir dormir?”
“Isso é o que ele quer, e é a última bondade que podemos fazer-lhe”, disse meu marido, emocionado.
“Ele foi honesto conosco durante 15 anos! Não podemos falhar-lhe agora.”
Quando meu marido voltou do telefone, trazia um cobertor, com o qual embrulhou Silas. A língua de Si brilhou cor de rosa contra a mão firme e familiar, e ele adormeceu. Por cima da cabeça amarelada e confiante, os olhos do meu marido encontraram os meus.
Onze horas. Meu marido ajudou Si a levantar-se e prendeu a velha cadeira. Silas saiu trotando pesadamente ao seu lado. Na porta do carro, o cachorrinho cansado voltou-se e olhou para trás. Por um instante, eu vi a imagem borrada de um filhote dançando nas suas patinhas. “Não me chamem, eu os chamarei.” E eles se foram.
Ouvia-se o tique taque do relógio que soava alto na cozinha. De alguma parte, voltaram-me à mente as palavras de um amigo: “Não deixe jamais um cachorro perder a sua dignidade. Seja uma decisão de amor.”
Senti então o alívio das lágrimas. Não apenas pelo cachorro, cuja existência, cumprida, tinha de terminar. Não pela casa, agora vazia da sua alegria, como estava vazia da voz de uma criança e do assobio de um menino. Mas de gratidão pelas pequenas alegrias, os breves, estranhos momentos de beleza, rápidos e iridescentes como a luz sobre a água. E pelos bens de amor e lealdade que haviam sido meus para desfrutar.
E para deixa-lo partir.

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