terça-feira, outubro 31

Uma vida, um gato

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1974
Autor : Era Zistel

Apesar de sua deficiência, Marco era um intrépido explorador que me ensinou também como enfrentar a adversidade

O gato era meu, mas nem eu o conhecia muito bem. Quando filhote, havia se comportado de maneira ousada: fora o primeiro a explorar a casa e a sair. Por isso o chamamos de Marco Pólo, logo abreviado para Marco, nome a que ele atendia (se estivesse disposto) com a ligeira contração de uma orelha.
Passava a maior parte do tempo correndo ao redor das árvores no quintal. Algumas vezes eu tinha de ir busca-lo, e então era como se fossem dois estranhos se encontrando – mas ele sempre voltava para casa, na hora de comer e dormir. Assim, e pelo menos até certo ponto, ele era meu gato.
Talvez eu não tivesse sentido muito a falta de Marco se, um dia, ele não voltasse, mas algo diferente aconteceu. Ouvi o guincho de pneus freando com violência e corri, encontrando-o estirado no meio-fio, com os olhos esbugalhados e vidrados.
Não dava sinal de vida. Coloquei-o com cuidado dentro de uma caixa e comecei a procurar uma pá para lhe cavar um túmulo, quando ouvi um leve miado – Marco não estava morto. Tratei dele, da melhor maneira que pude, e finalmente se achava de novo de pé, completamente recuperado – foi o que pensei.
Pouco a pouco, percebi que algo havia acontecido a Marco. Um dia, quando estávamos no quintal, notei que ele andava de maneira estranha, quase cautelosa, levantando bem uma pata antes de recolhe-la lentamente, para movimentar a outra. Um exame apressado não me revelou nada de anormal, mas quando fiz um ruído repentino, ele saiu correndo – e se chocou de cabeça contra uma cesta deixada no pátio. Estava cego.
Há quanto tempo vinha tateando para achar o caminho, como uma pessoa cega usa a bengala? Quantas vezes não teria sentido fome por não conseguir driblar a hostilidade dos outros gatos, antes de chegar à comida? Talvez ignorasse mesmo onde havia coisas que comer. Eu sabia que os gatos costumam ser dotados de um olfato apurado, mas quando lhe púnhamos comida, ele nunca parecia descobri-la, até tropeçar nela. Passei então a dar algumas pancadinhas no solo, um sinal que ele logo aprendeu como sendo o da localização da comida.
Comecei a acompanhá-lo freqüentemente, tirando obstáculos de seu caminho, até compreender que, assim não lhe estava fazendo nenhum favor. Ele ainda era um explorador. Nada parecia lhe dar mais prazer do que descobrir qualquer coisa oculta. Por isso, mudei deliberadamente certas coisas de lugar, para acrescentar um pouco de emoção à sua vida agora restrita.
Na primeira vez que o vi sobre o telhado, tomando sol, meu coração quase parou. Percebendo minha presença lá em baixo, ele se levantou, deu um enorme bocejo e tateou até a beirada do telhado. Com a pata, localizou um galho de árvore, certificou-se de sua resistência, saltou, caminhou pelo ramo até o tronco e despreocupadamente pulou sobre mim.
À medida que se tornava mais confiante, mais longe passou a ir. Logo estava visitando o bosque atrás de nossa casa. Eu costumava observa-lo, espantado, enquanto ele encontrava o caminho entre as árvores sem se chocar com nenhuma. (Como as pessoas cegas, ele parecia ter desenvolvido uma espécie de radar, que o advertia dos obstáculos.) Outras vezes se divertia perseguindo folhas levadas pelo vendo, em galopes que me faziam rir e quase chorar.
Só raramente se perdia, quando o latido de um cão ou algum outro ruído ameaçador o fazia correr em pânico, desorientado como um peixe fora da água, e sem prestar atenção ao rumo. Aí, soltava um longo miado, que aprendi a reconhecer como um pedido de socorro.
Habituou-se a distinguir as variações do meu tom de voz, assim como as de meu temperamento. Quando eu não estava bem disposto, ele se dava conta, e se encolhia. Quando me sentia alegre, ele também sabia, e mesmo minha mania de cantarolar, que desagradava até a mim, deixava-o tão feliz que ele respondia com uma grande excitação, brincando como um gatinho recém-nascido.
A princípio, sua cegueira enfurecia os outros gatos, pois não podia evitar de colidir com eles. Um gato enorme chamado Pert era-lhe particularmente hostil e provocou-lhe mais de um arranhão. Depois, algo estranho aconteceu. Durante alguns dias, Pert limitou-se a olhar para Marco, intrigado: finalmente aprendeu que devia fazer algumas concessões. Sempre que Marco se encaminhava em sua direção, ele rapidamente pulava para o lado, abrindo passagem. Mais tarde, os outros gatos fizeram o mesmo, e Marco pode andar livremente.
Os anos se passaram. Todos tínhamos nos habituado de tal forma à deficiência de Marco que já não conseguíamos imagina-lo de outro modo – e, talvez à medida que a memória de sua antiga visão se esvanecia, ele também se sentisse assim. Quando fez 12 anos, começou a mostrar sinais de declínio. Já não tomava sol no telhado e parecia se contentar em ficar estirado no quintal. Então, aos 13 anos, teve um ataque. Enquanto eu lutava com a idéia de elimina-lo, descobri que não era necessário. Ele não tinha nenhuma intenção de abandonar a luta.
Dia após dia, exercitava as pernas paralisadas, movendo-as lentamente a princípio, depois um pouco mais depressa. Tentava se levantar e caía, tentava de novo e caía outra vez, e continuou tentando até conseguir se pôr de pé, vacilante, mas triunfal. Quando caminhava, as pernas se arrastavam, dando-lhe um curioso gingado. De vez em quando, costumava cair, mas parecia decidido. Pedindo para sair, ele rolava pelos degraus, levantava-se e chegava ao lugar onde tinha decidido ir.
Aos 15 anos, houve uma notável transformação em seu comportamento. Mal podia esperar para sair de manhã, mas em vez de ir tomar sol, ficava olhando na direção do bosque e miando. Marco queria voltar às suas queridas árvores, mas não conseguia chegar até lá.
Eu também apreciava o bosque e assim, toda tarde, chamava-o e ele vinha se juntar a mim. Atravessar o bosque era um problema. Tentava carrega-lo, mas ele se debatia com impaciência, querendo ser independente, mesmo não conseguindo encontrar mais o caminho. Finalmente, lembrei-me do sinal das pancadas e passei a bater com o calcanhar sobre cada pedra, para que ele pudesse localiza-la. Isso deu certo, embora por vezes ele errasse o passo e caísse. Não importava. Agarrava-se de novo à pedra com as garras, recompunha-se e continuava. Andávamos por toda parte e ele até fazia suas pequenas explorações, sem nunca perder a noção de minha presença.
Meu desejo era o de que o fim lhe chegasse ali, no bosque, onde mais gostava de estar, mas ele continua conosco. Seu mundo agora se tornou muito pequeno, não mais do que um caixote perto do aquecedor da cozinha. Nos dias mais quentes, quando brilha o sol, ele sai e se senta num degrau, virando a cabeça de um lado para o outro, ouvindo pequenos sons, como o vôo de um pássaro ou o ruído de um inseto sobre uma folha seca.
Quando o vejo ali sentado, esperando pelo fim, não sinto pena – Marco detestaria isso, tanto quanto ser carregado – mas gratidão. Ele me ensinou como enfrentar a adversidade e como derrota-la pela coragem.

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