quarta-feira, junho 28

A recompensa de uma boa ação

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1999
Autor : Peter Godwin

Um ato de bondade pode ter repercussões inesperadas

Filho de colonos ingleses, cresci na África e muitas vezes acompanhava minha mãe, médica, nas rondas. Saíamos em seu carro, que parecia uma clínica móvel.
Percorríamos centenas de quilômetros nos arredores de Melsetter, lugarejo na região rural e montanhosa no leste do que era então a Rodésia. Ali se via de tudo, às vezes até a morte.
O recurso mais importante que minha mãe possuía para salvar vidas era o programa de vacinação. As longas jornadas a fim de imunizar as pessoas contra varíola, dfteria, tuberculose e poliomielite tornaram-se parte de nossa rotina durante a estação seca.
Certa vez subimos até as cintilantes montanhas de granito de Chimanimani, na fronteira da parte mais remota e inexplorada de Moçambique, onde a guerrilha contra o domínio português estava em marcha.
Quando chegamos, milhares de pessoas pertencentes à etnia local Ndau estavam reunidas – muitas delas procedentes do outro lado da fronteira. Não era responsabilidade nossa vacinar moçambicanos. Entretanto, mamãe achou que deveria faze-lo porque os Ndau cruzavam livremente a fronteira.
Eu ajudava a vacinar as crianças contra pólio. Carregava uma bandeja com torrões de açúcar e dava um para cada criança. Atrás de mim vinha um auxiliar de enfermagem com um frasco da vacina. Ele pingava uma gota da solução cor-de-rosa em cada torrão. Então eu pedia que colocassem a língua para fora e percorria a fileira para verificar se todas as crianças tinham engolido o açúcar. Meu maior problema era evitar que elas voltassem em busca de novo torrão de açúcar.
Aqueles foram dias de relativa paz. Mas quando atingi a idade adulta, na década de 70, a guerra pelo poder da maioria negra ampliou-se na Rodésia. Nosso distrito, de longa fronteira com Moçambique, foi devastado. Quase todas as fazendas foram atacadas. As montanhas Chimanimani transformaram-se em um vasto campo minado. Estrondos ecoavam pelos vales quando antílopes e outros animais explodiam, seus pedaços voando pelos ares. Durante quase dez anos nenhum ser humano se aventurou por aquelas paragens.
Fui para a Inglaterra. Tentei esquecer a África, repudiar minha terra natal – agora chamada Zimbábue – como um lugar de recordações demasiadamente brutais e violentas. Um lugar de morte.

Formei-me em jornalismo e logo comecei a trabalhar para o Sunday Times, de Londres. Em 1986 o jornal me enviou para a África do Sul, onde os distritos de negros estavam freqüentemente em chamas. Foi de minha base em Johannesburgo que me aventurei a voltar a Moçambique pela primeira vez desde a infância.
Na época, Moçambique estava devastado por décadas de guerra e fome. Era considerado o país mais pobre do mundo. O próprio governo marxista lutava contra nova geração de rebeldes.
Divulgava-se que os rebeldes moçambicanos tinham bases na vizinha Malauí, embora não houvesse provas disso. Malauí em geral expulsava os jornalistas estrangeiros. Mas, aproveitando-me de uma viagem do Príncipe de Gales, consegui entrar como parte da comitiva oficial de imprensa que o acompanhava.
Logo me separei do grupo e me dirigi para o sul. Por um dia e meio rodei ao longo da fronteira de Moçambique, conversando com habitantes do local e missionários. Por fim, na metade do segundo dia, parei em um estabelecimento comercial.
O interior da loja estava escuro, em contraste com a forte luz do sol lá de fora. Perguntei ao comerciante se ele já vira rebeldes desse lado da fronteira. Meus olhos haviam se acostumado à escuridão a tempo de ver seu amplo sorriso desaparecer. Do canto mais distante ouvi um clique metálico.
- Quem quer saber? – perguntou uma voz grave.
Naquele canto havia seis homens envoltos em cartucheiras, com granadas marrons pendendo dos cinturões. Os fuzis russos Kalashnikov estavam apoiados na parede. Um lança-bombas descansava sobre a mesa de concreto, enquanto os homens bebiam refrigerantes.
- Você vem com a gente até a base – disse um deles.
Todos se levantarem para sair, o equipamento tilintando.
Caminhamos penosamente através da vegetação de arbustos, em direção ao sul. O membro da patrulha que falava inglês separou-se do grupo e me vi na companhia de cinco guerrilheiros fortemente armados e sem nenhum meio de me comunicar. O líder era um sargento violento que, apesar do intenso calor, estava com boina de lã, do tipo usado por aviadores russos, com protetores de orelha de pele que iam até os ombros como as orelhas de um cão spaniel.
Em cada acampamento rebelde por que passávamos, eu percebia que a história da minha “captura” era dramatizada. Eu estava armado. Resistira. Era um espião. Às vezes a narrativa era acompanhada por tapas e chutes. Quanto mais dagga – maconha – meus captores fumavam, mais heróicos se tornavam por me terem dominado. Comecei a temer que o sargento de olhos injetados atirasse em mim como um truque alucinógeno para impressionar os camaradas.
No segundo dia, finalmente, alcançamos a base. Recebi alimentos e permissão para limpar-me com um pano úmido. Então fui apresentado ao comandante do campo, um homenzinho de uniforme de campanha verde-oliva.
Sentado à mesa de fórmica arranhada, ele bebia vinho direto da garrafa. Enquanto ouvia o longo relato de minha captura, seu jantar chegou, servido com grande cerimônia por um criado com uma toalhinha gasta pendurada no braço. Recebi ordens de esperar.
Até então eu não entendera as línguas em que tinham falado – mistura de moçambicano do norte com dialetos malauianos, intercalada com frases em português. Mas agora ouvia distintamente o comandante dar ordens a seu servente em chindau, dialeto usado pelo povo Ndau. Escutei um pouco mais para ter certeza e então, hesitante, saudei o comandante com o que pude lembrar-me do dialeto chindau.
Ele ficou perplexo.
- Onde você aprendeu essa língua? – perguntou.
Disse-lhe que tinha vivido nas montanhas Chimanimani, no lado rodesiano, quando era garoto.
- Qual o nome da sua família? – ele quis saber.
- Godwin.
- Godwin – repetiu ele, pensativo, revirando o nome na mente.
- Sua mãe era médica daquela região?
- Era – disse eu.
- Era a chefe do serviço médico do governo no distrito de Melsetter.
Ele sorriu e balançou a cabeça, oferecendo a mão aberta voltada para baixo, no aperto de mão africano.
- Então foi sua mãe quem me vacinou quando eu era criança.
Suspendendo a manga, ele me mostrou a pequena cicatriz da vacina no ombro.
- Você costumava ir com sua mãe para ajudar? – perguntou.
Assenti com a cabeça.
- Isso mesmo – disse ele.
- Você me deu o açúcar com remédio. Lembro-me bem agora. A gente colocava a língua para fora e você percorria a fila com a bandeja de torrões de açúcar, pondo um em cada língua.
Por fim, soltou minha mão.
- Veja como cresci forte! – acrescentou.
Em poucos minutos eu passara de refém a hóspede de honra. Fui conduzido para uma cadeira ao lado direito do comandante. Meu sargento captor evaporou-se.
No dia seguinte fui levado de volta a Malauí. Na fronteira, minha escolta cerimoniosamente me devolveu os objetos confiscados. Antes de partirem, insistiram em fazer uma fotografia do grupo. O dono da loja bateu a foto: quatro rebeldes e eu, o sargento ainda usando a boina de lã, o braço descansando em meu ombro num gesto de possessiva camaradagem.
Até hoje guardo essa foto – prova de que uma boa ação permanece sempre viva.

terça-feira, junho 27

A foca que fala como gente

Fonte : Revista Seleções
Data : ?
Autor : Richard Wolkomir

Que é que parece foca, ginga como foca... e fala inglês com sotaque da Nova Inglaterra?

George e Alice Swallow não se admiraram quando, certa manhã de maio de 1971, apareceu Scotty, irmão de Alice, perguntando se eles não queriam uma foca. Na pequenina colônia de pescadores em Cundys Harbor, no Maine, os Swallow são conhecidos por acolherem animais feridos ou órfãos. O caso, porém, é que as focas podem pesar várias centenas de quilos.
“O melhor é a gente soltá-la”, disse George ao cunhado.
“Mas ela é tão pequenininha! Mais ou menos do tamanho do seu pé!”, insistiu Scotty. “E vive acompanhando o meu cachorro.”
George levou uns 10 minutos para chegar à casa do cunhado. Lá, na praia pedregosa, o pastor alemão de Scotty latia para uma bolinha de pelo prateado que se arrastava atrás dele por sobre as pedras. George, que então contava 57 anos, fitou os enormes olhos negros do bichinho. Era um ser patético: normalmente as focas comuns, quando nascem, pesam cerca de 10kg, mas o animalzinho não passava de 4,5kg. Pendurado na sua barriga havia ainda um pedaço de cordão umbilical.
Esquadrinhando a praia, George não viu nenhuma foca-mãe. Era bem possível que ela tivesse sido morta, pois há pescadores que consideram as focas como concorrentes deles. “É melhor você ir para casa comigo” disse George ao filhote, segurando o corpinho magro e frágil.
Aspirador. Pareciam sombrias as perspectivas de ela sobreviver. Na casa dos Swallow, a foquinha se recusou a beber leite. George ficou preocupado, mas descobriu uma pessoa que lhe ensinou o que fazer: triturar uma cavala, e enfiar a mistura obtida pela goela da bichinha. Foi com grande alegria que ele a viu engolir aquilo, e, segundo ele, “desse momento em diante, nada mais a deteve. Comia tanto que parecia um aspirador de pó, e por isso lhe demos o nome de Hoover.”
Dentro de três dias, Hoover já estava gorducho e parecia uma bola de rugby. A princípio, vivia feliz, dentro da banheira, espiando, curiosamente, por cima da beirada, toda vez que alguém passava por perto. Depois, George o levou para o laguinho atrás da casa. Aí o filhote começou a nadar e a explorar a margem oposta por entre rabos-de-gato. Satisfeito, o rapaz voltou para casa. Meia hora depois ouviu-se uma pancada na porta; nos degraus da entrada estava Hoover, esperando, impaciente, para poder entrar.
Compreendendo que o animalzinho ficaria exposto a raposas e outros predadores se dormisse às margens do lago, George resolveu armar uma barraquinha para ele no lado de fora da porta da cozinha; e, atentamente observado pelo interessado, instalou uma cerca de arame para proteger a barraca. Mal a levantou, Hoover entrou rastejando com entusiasmo e desapareceu em seus novos alojamentos. Na manhã seguinte, entretanto, os Swallow ouviram a já conhecida batida à porta da cozinha; Hoover tinha aprendido a erguer a cerca com o focinho, e a se contorcer para poder entrar ou sair à vontade.
Não tardou em estabelecer uma rotina. À noite ele se recolhia à barraca, e pela manhã percorria, rastejando, o longo caminho até o lago. A qualquer momento, porém, os Swallow podiam ouvir um barulho à porta e um choramingo impaciente: era Hoover, pedindo que o deixassem entrar.
Muitas vezes George carregou o filhote até o lago; mas, devorando entre 4kg e 4,5kg de peixe por dia, ele em pouco tempo ficou pesado. Um dia George colocou-o num carrinho de mão e levou-o até o lago. Hoover ficou em êxtase. Daí em diante estava sempre tentando subir no carrinho e pechinchando passeios.
Para ele a vida era uma brincadeira sem fim. “Levou menos de 10 minutos para aprender a saltar por um arco”, diz George. Obedecendo a outras instruções, aprendeu também a dar cambalhotas lentas dentro da água, e executava essas manobras com a precisão de um piloto de acrobacias aéreas.
As façanhas que ele mais curtia, entretanto, era nadar de mansinho até chegar debaixo de uma tartaruguinha que com ele partilhava o lago, dar um piparote no infeliz réptil, e com o focinho atira-lo para o alto. Outras vezes ele agarrava George ou Alice suavemente pela mão ou pela bainha da calça, e puxava-os para dentro do lago.
Quando George ia à sua procura, Hoover escondia-se entre as plantas. “Ei, sai daí”, gritava George com sua voz áspera e intonações características da Nova Inglaterra. Desprezando a ordem, Hoover mergulhava lentamente, divertindo-se à grande, conforme o revelava o brilho de seus olhos.
A foca passou a ser uma personalidade do bairro, e o quintal da casa muitas vezes se enchia de crianças que achavam um barato empurrar o carrinho de mão para que ela pudesse passear. Dentro do lago e diante da sua platéia entusiasmada, Hoover nadava em círculos, executava cambalhotas lentas e dava piparotes na desditosa tartaruga. À guisa de apoteose, ele ia nadando como um torpedo até a beira, onde se achavam as crianças às gargalhadas e dava-lhes um banho de borrifos de água.
Embora curtisse o carrinho de mão, Hoover gostava mais ainda de andar no automóvel dos Swallow, com George na direção e ele, deitado, atravessado no colo do motorista, olhando atentamente pela janela.
A fala! George conversava muito com Hoover. Toda vez que entrava com o carro, trazendo um carregamento de peixes para a foca, ele batia na porta com a mão e chamava: “Ei, seu burrão, vem cá!”. Quando Hoover se escondia entre as plantas do lago, ele gritava: “Sai daí.” Outras vezes perguntava: “Como vai, bicho?’
Hoje em dia George relembra: “Eu não estava tentando ensinar Hoover a falar; apenas conversava naturalmente. Quando ele fazia algum barulho engraçado, eu o imitava. Talvez isso tenha lhe metido qualquer idéia na cabeça.”
Umas seis a oito semanas depois de a foca ter ido morar com os Swallow, apareceram algumas crianças alvoroçadas correndo, vindas do lago, e disseram a George: “Hoover está falando! Ele disse: “Alo´, você ai!” George sorriu. “Claro, claro”, respondeu.
Uma tarde, porém, encontrou Hoover no caminho que conduzia ao lago, e disse a ele. “Alo, você ai”, ao que a foca respondeu com um ruído esquisito, meio estridente, dando a impressão de estar repetindo as mesmas palavras. Alguns dias depois George ouviu distintamente Hoover dizer “Sai daí!” quando ele se aproximou do lago, mas achou difícil acreditar no que estava ouvindo.
Em agosto de 1971, Hoover já estava pesando 35 kg, e George começou a leva-lo para se alimentar nas águas da baía. Além disso, raciocinava ele, estava na hora de o bicho começar a conviver com seus semelhantes.
Hoover, entretanto, não se considerava uma foca. Ele e George passavam horas perambulando pela praia rochosa, o bichinho saltando para dentro e para fora do esquife vermelho de George, brincando com as plantas marinhas e com pedaços de madeira que boiavam.
De momento parecia impossível devolver Hoover à natureza. Saberia ele defender-se sozinho? Além disso, havia perigo no hábito que ele tinha de saltar para dentro dos barcos. Portanto, quando o New England Aquarium, de Boston, se prontificou a ficar com Hoover, George e Alice sentiram-se aliviados... mas logo depois caíram em si. Aposto que no aquário ele não vai passear de carrinho de mão”, resmungou George. O casal já estava sentindo um vazio em suas vidas.
“Chorei durante toda a viagem até Boston”, relembra Alice.
No aquário, George mencionou o fato de ter ouvido, em duas ocasiões, Hoover falar, mas a equipe não se impressionou. Nunca houvera qualquer registro científico de mamíferos que imitassem a fala humana. Além disso, as focas comuns, geralmente consideradas espécie mansa, nem sequer ladram tanto como as outras.
Naquela noite, os Swallow permaneceram muito tempo ao lado de Hoover, na beira da piscina das focas, comentando os velhos tempos e acariciando o filhote já crescidinho. Por fim George disse: “Bom, acho que chegou a hora, seu burrão.” Levantou Hoover nos braços, e este lhe sapecou no rosto um beijo molhado e bigodudo. George o pôs no chão e o casal se afastou depressa. Atrás deles a foca começou a berrar, indignada e surpresa. Nem George nem Alice disseram muita coisa durante a viagem de volta a Cundys Harbor.
A princípio o casal ia visitar Hoover com freqüência, mas, cada vez que os dois se despediam dele, era um sofrimento horrível. Por fim resolveram que seria melhor para Hoover deixa-lo em paz.
Enquanto isso, em Boston, começou a acontecer algo de estranho na piscina das focas. Todos os dias os tratadores anotavam suas observações sobre os animais. Em 1974 a ficha de Hoover revelava que ele estava fazendo ruídos ásperos e grunhidos.
No decorrer dos anos seguintes esses sons se aceleraram, e no dia 11 de novembro de 1978 o tratador escreveu. “Ele diz ‘Hoover’ claramente... tenho testemunhas!” Em pouco tempo o vocabulário da foca desabrochou e ela passou a enunciar as frases de George... com sotaque da Nova Inglaterra.
Não tardou que se tornasse um astro nos veículos de comunicação, e os cientistas da Smithsonian Institution, de Washington, acorreram para estudar o estranho talento daquele animal. Continua, entretanto, sendo um mistério para os pesquisadores o motivo por que só ele imita a fala humana.
Em Cundys Harbor, os Swallow ouviram as notícias sobre Hoover, o superastro falante... e isto veio tornar mais difícil ainda respeitar a proibição das visitas que eles mesmos se haviam imposto. Foi assim que, cinco anos depois de o verem pela última vez, George disse a Alice: “Ele não deve lembrar-se de nós. Vamos visita-lo.” No dia seguinte o casal tomou o carro e foi para Boston.
Quando chegaram ao aquário, o que eles viram foi uma foca plenamente desenvolvida, com um manto mosqueado preto e cinza – uma foca que falava diante de câmaras de televisão.
Naquele dia Hoover se tinha recusado a comer, devido a um mal-estar qualquer. Enquanto os Swallow observavam a cena, um tratador tentou atrair o animal com um arenque, mas Hoover não ligou. George então foi até a beira da piscina. “Ei, seu Burrão, vem até aqui!” gritou.
Ao ouvir aquela voz áspera, o grande mamífero fez uma pausa nos rodopios, e olhou para os recém-chegados. Então explodiu de alegria dentro da água. Com um estalo, veio deslizando até sair da piscina, e com a maior delicadeza pegou com a boca a mão de Alice, procurando puxa-la para a borda, exatamente como, em seus tempos de filhote, ele tentava fazer naquele laguinho do Maine.
George pegou no balde de peixes e atirou um para Hoover. “Vocês precisavam ver como ele avançou!” conta George com um tremor na voz rude. “Devorou aqueles peixes todos num piscar de olhos!”
Hoje, Hoover é o orador residente do aquário, “entrevistado” com freqüência pelos jornalistas, e aparecendo em programas de televisão.
Toda vez que os Swallow vão à Boston, passam por lá para ver o velho amigo. Enquanto isso, Hoover continua a impressionar os cientistas e também os não-cientistas. Muitas vezes um passante que olhe para a piscina das focas, altas horas da noite, se assusta ao ouvir uma voz rouca, vinda das águas escuras, a perguntar: “Como vai, meu chapa?”

quarta-feira, junho 21

O homem que inventou o futuro

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1984
Autor : Jean Marie Javron

A moderna sociedade industrial não teria surpreendido Leonardo da Vinci. O museu Clos-Lucé está repleto de máquinas inventadas por ele há cinco séculos.

Sabe quem inventou a chave-inglesa? O odômetro? Quem, pela primeira vez, pensou em construir uma lanterna mágica, antepassado dos projetores de cinema? Quem foi o inventor do instrumento que mede a velocidade dos aviões em relação ao solo? Quem imaginou a caixa de velocidades? Todas estas perguntas e muitas mais tem a mesma resposta: Leonardo da Vinci, o grande pintor florentino renascentista, autor da Mona Lisa, e que foi igualmente um dos mais espantosos engenheiros e sábios de todos os tempos.
Você pode verificar tudo isto se se juntar às 70 mil pessoas que, todos os anos, se dirigem a Amboise a fim de aí visitarem o Museu Clos-Lucé. Foi nesse solar restaurado, de pedra branca e tijolo rosado, que Leonardo passou os últimos cinco anos da sua vida e veio a morrer, no dia 2 de maio de 1519. “Em Clos-Lucé, Leonardo da Vinci inventou o ano 2.000”, lê-se num cartaz nas paredes de Amboise. Quem pensar que essas palavras são um slogan sem o menor significado, mudará de idéia quando penetrar no andar térreo da velha mansão senhorial, cujo teto baixo ainda conserva suas vigas seculares. É ali que se encontram as maquetas construídas a partir dos projetos que Leonardo desenhou nos seus cadernos.
Essas maquetas foram feitas por engenheiros da IMB francesa, em princípios da década de 1960, com materiais que o próprio Leonardo poderia ter utilizado. Foi um trabalho meticuloso, mas relativamente fácil, graças à riqueza de detalhes fornecidas por Leonardo. Depois de terem sido exibidas na França e na maioria das grandes cidades do mundo, acabaram ficando definitivamente instaladas no Clo-sLucé. O museu está aberto durante todo o ano, exceto em janeiro. Além das maquetas, os visitantes podem ver a sala de trabalho de Leonardo, a cozinha e a capela, onde, sob a orientação do mestre, os aprendizes pintaram três afrescos: uma Anunciação, uma Assunção e uma Virgem Glorificada.
Entre as maquetas expostas, a do antepassado do helicóptero talvez seja a que mais concretamente revela o poder criativo deste homem, que, graças à sua prodigiosa imaginação, estava mais de quatro séculos adiantado em relação à sua época. O helicóptero, que mede 50 cm de altura, é feito de madeira e lona. Sua peça essencial é uma hélice acionada por manivelas, manobradas pelo piloto, que lhe imprimem um movimento rotativo através de uma série de engrenagens. Teoricamente a hélice, em movimento, criaria energia suficiente para elevar o aparelho, que possui igualmente um estrado de madeira para passageiros.

Teoria e prática. Ao que sabemos, Leonardo limitou-se a desenhar os planos detalhados do aparelho e nunca foi além disso; mas, em 1901, um menino de 12 anos, da cidade russa de Kiev, construiu um modelo acionado por um elástico, inspirando-se num estanho esboço que vira num fac-símile dos cadernos de Leonardo que sua mãe, cientista, lhe mostrara. Quando lançou o modelo, este elevou-se, de fato, alguns centímetros e depois caiu. O rapaz chamava-se Igor Sikorsky. Trinta e oito anos mais tarde, tendo-se tornado engenheiro e cidadão norte-americano, ele montou o VS-300, antecessor dos helicópteros atuais.
Leonardo acalentava o sonho de um dia libertar completamente o homem de sua prisão terrestre. No Clo-Lucé, encontra-se ouro modelo, com 1m de comprimento, que reproduz fielmente o esquema de um avião de asas fixas, acionado pela força humana. O piloto está deitado de bruços, com os pés presos em estribos. Servindo-se dos braços e das pernas, faria bater as asas do avião, que depois regressariam à posição inicial por meio de molas. Embora o aeroplano só tenha surgido depois da invenção do motor de combustão interna, Leonardo foi o primeiro homem que imaginou o vôo humano de modo cientifico. Seus esboços para a construção de um avião foram fruto de vários anos estudando a mecânica do vôo das aves. Terá Leonardo alguma vez tentado construir, a partir de seus esboços, um modelo que realmente funcionasse? É pouco provável. Seria insolente da nossa parte pensar que ele ignorava a distância existente entre a teoria e a prática.
Numa sala contígua ao museu, encontra-se suspenso no teto o bisavô do pára-quedas, feito de madeira e tecido. Tem uma forma cônica e, embora os pára-quedas modernos se assemelhem mais a guarda-sóis do que a cones, baseiam-se no mesmo princípio. Limitamos-nos a acrescentar ao modelo de Leonardo uma abertura no topo e um sistema de cabos, a fim de orientar a descida.
Profeta industrial. Também a construção naval seguiu as pegadas de Leonardo. Foi ele quem concebeu a proa bulbiforme de que hoje são dotados os navios modernos. Por baixo do corte transversal de um casco de madeira, com 40cm de altura, construído de acordo com um esboço de Leonardo, vê-se a fotografia de um transatlântico italiano, apropriadamente chamado Leonardo da Vinci, lançado em 1960; a proa é extraordinariamente parecida com o do projeto original do grande mestre florentino.
Leonardo também se revelou profético no modo como imaginou os modernos engenhos bélicos. Em 1482, escreveu ao duque Ludovico Sforza, de Milão que, mais tarde, viria a ser seu protetor: “Construirei veículos cobertos, tão seguros e invulneráveis que, por mais numeroso que seja o exército inimigo, debandará, em pânico, quando o avistar.” A sua proposta só foi rejeitada porque, entretanto, tinha sido assinado um tratado de paz na Lombardia.
O “veículo” que ele concebeu, e que está reproduzido no Clo-Lucé, corresponde ao moderno carro de assalto: um cone cilíndrico de madeira, revestido de uma chapa metálica e encimado por uma pequena torre de observação. Como se pode ver na maqueta, Leonardo imaginou um sistema de cilindros e engrenagens para acionar as rodas.
Nos seus cadernos, encontra-se o esquema de uma bomba, equipada com aletas de estabilização, prevista para explodir com o impacto – a moderna granada de morteiro. Pensou também num submarino, mas não registrou nos seus cadernos a técnica que imaginara.
Teria Leonardo uma visão ta sombria do futuro que só conseguiu pensar em máquinas de guerra? De modo algum. Fez projetos de pontes sobre rodas, que podiam ser deslocadas de um lado para outro, e de um veículo automático, que se aciona retesando e distendendo alternadamente um conjunto de molas que fazem girar duas grandes rodas num complexo sistema de engrenagens. Parece inacreditável, mas o veículo até tem um diferencial que permite que as rodas girem a velocidades diferentes nas curvas, requinte automobilístico que só veio a ser posto em prática nos finais do século XX.
A maior parte dos inventos de Leonardo não precisa sequer de uma maqueta para se provar que funciona. Ele fez um projeto de um barco, acionado por meio de manivelas e de rodas de pá, que é quase uma réplica dos barcos a pedal que vulgarmente se vêem nas praias européias. Há também um curioso engenho, cujos pormenores foram desenhados por um discípulo de Leonardo e que não apresenta o estilo cuidadoso do mestre. Consiste em duas rodas com cubos, ligadas a pedais por meio de uma corrente, num guidão e num selim – uma bicicleta, em suma.
Na universidade do seu gênio, Leonardo foi o primeiro grande profeta da era industrial. Os desenhos que revestem as paredes do museu mostram como ele se propunha construir 10 cidades na Itália, cada uma com 10 mil casas ( um número extraordinário para a época ), à beira-mar ou na margem de um rio, de modo que os esgotos ( que invadiam de cheiros nauseabundos as cidades do seu tempo ), fossem canalizados e lançados à água, solução que ninguém ainda tinha imaginado. Concebeu igualmente ruas que se cruzavam perpendicularmente a diferentes níveis ( hoje freqüentes nos projetos de modernas cidades ), e sistemas para exaustão de fumaça. Outro plano consistia em drenar os insalubres pântanos de Pontine, perto de Roma – o que só veio a ser concretizado quando Mussolini subiu ao poder.
Visto que os cadernos só foram publicados no fim do século XIX , quando os cientistas já haviam reinventado tudo o que eles continham de verdadeiramente revolucionário. Leonardo exerceu pouca influência há história da tecnologia.
Ao deixar as maravilhosas salas do Clos-Lucé, a gente se pergunta como é que Leonardo ainda arranjava tempo para pintar?

segunda-feira, junho 12

Na cadeira

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1999
Autor : Edward Gross

O físico mundialmente famoso Stephen Hawking, que tem a doença de Lou Gehrig e está condenado à cadeira de rodas, estava visitando os cenários de Star Trek: A nova geração, quando se encontrou com o produtor executivo, Rick Berman. “Perguntei-lhe se gostaria de ver mais alguns cenários, e ele, com seu sintetizador de voz computadorizado, respondeu que sim”, relembra Berman. “Quando chegamos à ponte da nave Enerprise, Hawking começou a tocar nos botões para dizer algo mais. Depois de lê já estar teclando nos botões há cerca de 60 segundos, saiu uma frase do computador, dirigida aos seus ajudantes.
Nunca a esquecerei: “Podiam me colocar no assento do comandante? ‘Foi sem dúvida, uma visão extraordinária com um dos maiores gênios em matemática aplicada e física especulativa a desejar, mais do que qualquer outra necessidade naquele momento, sentar-se na cadeira do comandante Picard.”

sexta-feira, junho 9

Quanto vale uma idéia

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereeiro de 1978
Autor : Willam D. Ellis

A gente vê um novo empreendimento indo de vento em popa e diz: “Ora essa! Ora essa! Eu já tive essa idéia.”

Numa grande loja de departamentos de Toronto, os clientes viram com espanto dois homens do serviço de vigilância pegarem um ladrão e o arrastarem para o escritório da firma, enquanto ele se debatia e protestava. Uma vez fechada a porta, porém, o “suspeito” foi libertado, com uma pancadinha nas costas. “Bom trabalho! Próxima exibição na seção de esportes dentro de 15 minutos.
O “Gatuno” era contratado – em geral, um ator ( ou atriz ) profissional, ou um estudante de arte dramática. “Tivemos a idéia”, explica Lês Cohen, de 29 anos, diretor da firma Rent A Thief And Sweet Revenge Corp. (Empresa Alugue um Ladrão e Doce Vingança) “quando percebemos que o receio da humilhação pública é o mais forte elemento de dissuasão em furtos de lojas.”
Tais cenas de prisões fictícias dão tão bons resultados que há gerentes de grandes lojas que pagam, satisfeitos, 100 dólares pelo aluguel de um ladrão por uma única atuação. “Não é uma coisa formidável”, explica Lês, sorrindo, “mas dá certo.”
A idéia é insignificante de fato, mas há ideiazinhas assim que resolvem problemas e fornecem trabalho ou novas carreiras a milhares de pessoas. As grandes idéias são excelentes, mas podem exigir capital, tempo e oportunidade para serem postas em prática; já as pequenas podem ter uma validade imediata e não são tão caras. A imaginação criadora é uma característica bastante comum; o que é raro é termos respeito pelas nossas próprias idéias.
Pouco depois de se formar numa faculdade em Nova York, Stephanie Winston notou que muitas pessoas deixavam que suas vidas profissionais se complicassem por causa de relaxamento e hábitos de rotina. Essa gente vivia numa confusão louca de mau planejamento, contas a pagar, mais de um compromisso tomado para a mesma hora. O auxílio de uma secretária de tipo tradicional teria pouco valor. Por que não se estudar, então, a pessoa, seus hábitos de trabalho e suas carências, e depois idealizar um sistema de ordenamento operacional exclusivamente para ela?
Um executivo de empresa que Stephanie conhecia não apenas tinha o escritório em desordem, mas ainda costumava começar um trabalho, pondo-o depois de lado para iniciar outro, que abandonava em seguida por um terceiro. Stephanie começou por delinear um sistema especial de arquivo para ele, convencendo-o a classificar todos os seus projetos por ordem de importância. Sua orientação demonstrou que, durante 18 meses, o dirigente continuou a consulta-la quando surgiam problemas especiais.
Em seguida, ela foi chamada por um psiquiatra muito ocupado, a fim de por em ordem o emaranhado em que se encontrava sua agenda de consultas, e, logo depois, um conhecido autor de artigos para revistas, que nunca conseguia respeitar prazos. Stephanie descobriu que, em dois períodos de oito horas, este nunca se entregava a mais de meia hora seguida de trabalho produtivo. Estabeleceu, então, para ele um plano de trabalho muito rigoroso, dividindo o dia em períodos invioláveis: para escrever, chamadas telefônicas, visitantes, ocupações elementares. Hoje, a idéia simples de Stephanie está transformada em eficiente serviço de consultoria.
Quando se trata de uma grande idéia, hoje em dia, é preciso fazer pesquisas de mercado, pr´-testes e testes posteriores para proteger um vasto investimento; com as pequenas idéias podemos permitir-nos movimentos de intuição.
Mike Garrihy, de Elyria, Ohio, é um piloto jovial, de cabelos ondulados, que gosta de aviões pequenos. Há cinco anos, quando estava fazendo um charter com seu avião, um dos passageiros, banqueiro, explicou-lhe que a necessidade de fazer chegar ao banco de origem os cheques sacados contra este e ainda não compensados representava uma enorme economia se considerado o juro horário sobre bilhões de dólares em cheques emitidos.
Garrihy teve uma idéia: se lhe entregassem esses cheques ao cair da tarde, podia traze-los de volta de avião, para os seus bancos de origem, a tempo de estarem lá na hora de abertura do dia seguinte. Propôs isso à agência do Federal Reserve Bank, em Cleveland, sendo-lhe facultada uma experiência sobre dez cidades. Hoje, Garrhy e outro piloto, Gilbert Singerman, exploram a Midwest Air Charter, Inc., com 37 aviões servindo 37 cidades. Os aparelhos transportam cerca de dez milhões de cheques todas as noites, utilizando o aeroporto de Elyria como ponto central, onde montes de cheques são transferidos e encaminhados para seus destinos.
Por vezes, uma pequena idéia é na verdade um pedacinho de outra maior. De regresso de seu trabalho como publicitário, Joe Davis viu operários substituindo nas ruas velhos lampiões de bronze por outros modernos. “Alguém gostaria de ter esses velhos lampiões”, pensou ele. Na manhã seguinte, com um simples telefonema, comprou os 63 antigos, a cinco dólares cada um. Não teve qualquer dificuldade em vende-los por 35 dólares, mais tarde.
Quando ouviu falar de um lote de velhos lampiões de gás, Joe pediu dinheiro emprestado e comprou 1.365 deles, a 50 dólares cada. Depois, tendo que pagar o empréstimo, deixou o emprego para se ocupar com a venda dos lampiões. Um de seus clientes em perspectiva disse :”Não preciso de lampiões, mas sabe onde posso encontrar cavalos de madeira desses de carrossel?” Outro queria aqueles antigos plafonniers de estanho a fim de fazer um trabalho de restauração. Hoje, Joe e a mulher ( que formaram a firma Finders, Inc. ) possuem uma rendosa empresa que procura em todo canto coisas raras e exóticas que outras pessoas queiram possuir.
Você já ouviu dizer: “Puxa! Basta uma idéia e o ‘cara’ está feito!” O que com freqüência não imaginamos é que aquela foi provavelmente a 15º idéia que ele teve. Tomemos o caso de Ray Kroc, fundador da MacDonald’s. Ele era um vendedor de equipamento para restaurantes, com 52 anos, que tinha experimentado dezenas de empreendimentos, com resultados médios, mas, pelos menos, estava adquirindo prática em por em marcha suas próprias idéias criadoras. Sua concepção da agora famosa cadeia de self-service não era nada de grande nem complicado – extrema ênfase era dada à rapidez, limpeza e economia, assim como à qualidade. Porém, por experiência própria, ele sabia como faze-la funcionar.
Ainda outra idéia fecunda foi concebida por Glenn Matthews, experiente vendedor de livros didáticos que começou a pensar nos pequenos editores que não podiam dar-se ao luxo de ter vendedores próprios. Bons livros estavam dando prejuízo simplesmente por não chegarem aos olhos do público. Ele deixou seu emprego, equipou uma caminhonete para transportar livros e estabeleceu um programa de visitas a universidades. Num só dia, 60 a 100 membros das faculdades podiam examinar esses livros que, de outra maneira, continuariam sendo desconhecidos para eles. Glenn ganhou 11 mil dólares em 1974, seu primeiro ano. Agora tem três livrarias móveis em caminhonetes, que visitam 300 faculdades, com livros de estudo de 250 editores. O volume de vendas aproxima-se dos 750 mil dólares.
É esta a beleza de uma pequena idéia que acaba frutificando em bons resultados. Normalmente é simples, talvez mesmo óbvia, mas, se percebermos que é útil a alguém, há probabilidade de que dê bons resultados.

quarta-feira, junho 7

O milagre da travessa de peixe

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1981
Autor : Patrick F. Mcmanus

A prima Edna, vinha jantar e a despensa da família estava vazia. A humilhação parecia inevitável...

Quando eu era pequeno, minha família pertencia à aristocracia latifundiária da região, isto é, possuíamos a parede contra a qual nos encontrávamos acuados. Parte da nossa ração usual naquela época era uma coisa que minha avó chamava “papa”, como quando dizia “Fique quieto e coma a sua papa!”
Minha mãe preferia chamar à papa “presunto assado” ou “rosbife ou “waffles”, como quando dizia “Fique quieto e coma os seus waffles”.
Num Natal em que estávamos na pior, ela teve a idéia de engrossar a papa, esculpi-la e chamá-la “peru”. Fomos salvos dessa aberração culinária por um faisão que jovialmente se atirou através do vidro de uma janela, proporcionando-nos uma das melhores ceias de Natal que já tive o prazer de participar: faisão e papa.
Naquele tempo e lugar a caça era considerada uma espécie de dádiva divina. Caça e pesca eram uma mistura feliz de esporte, religião e economia e, como resultado, seus produtos eram tratados com respeito e reverência. Ainda encaro o ato de caçar primordialmente como uma indagação religiosa. Prender uma grande truta no anzol é entrar em comunhão com uma dimensão diferente, um domínio espiritual, algo selvagem e misterioso. Esta teoria foi confirmada pelo padre com quem ocasionalmente eu dividia a água da pescaria.
“Meu rapaz”, dizia ele, “sempre que você pega qualquer peixe grane é um milagre que acontece.”
Eu não chegaria ao ponto de afirmar que o fato de eu pescar um peixe entrasse na categoria dos milagres, exceto... bem, sim, houve uma vez.

Quando eu tinha nove anos e era o único pescador da nossa família, cada vez que apanhava um peixe era uma ocasião de considerável regozijo por parte não só de mim, mas também de minha mãe, minha irmã e minha avó. Coisa que não tinha nada a ver com os falsos elogios que se ouvem ocasionalmente hoje em dia, empilhados sobre um garoto (“Nossa! Olhe o peixão grandão que o Chiquinho apanhou! Você é mesmo um homem!”) Não, não tinha nada a ver com essas baboseiras.
“Ei”, em geral gritava minha irmã, “o imprestável pegou um peixe!”
“Tem jeito de dar para umas três garfadas”, continuava minha avó, “mas é melhor do que nada.”
“Ponha na travessa de peixe”, dizia minha mãe. “Quem sabe aí pelo domingo teremos pescado o suficiente para servir peixe em vez de ‘presunto assado’ para o jantar.”
O conceito de travessa de peixe requer uma explicação. Minhas pescarias estavam limitadas a um pequeno riacho que corria nos fundos da nossa casa. Por vezes passavam vários dias sem que eu sentisse a mínima beliscadela; mas, vez por outra, brilhando num arco de prata sobre minha cabeça, vinha uma truta capturada, que normalmente se ia depositar, pendurada pela linha, num galho de árvore se não ficasse pulando no matagal a uns 10 passos de mim.
Assim, uma por uma, eu ia acumulando trutazinhas durante vários dias, até que houvesse suficientes para uma refeição. O local de coleta para esses peixes era uma travessa que guardávamos sobre o bloco de gelo do congelador. Era a chamada “travessa de peixe.”
O verão do Milagre da Travessa de Peixe foi bastante típico. Nós estávamos apenas a papa e verduras; a horta ia secando por falta de chuva; minha mãe estava sem emprego. Vacas gordas, entretanto, não podem durar para sempre, e em pouco tempo entramos num período das ditas magras. Foi então que recebemos uma carta de uma parenta rica que atendia pelo nome de prima. Edna, informando-nos que tinha a intenção de passar um dia conosco.
Sua carta caiu como um raio. A grande questão era: “Que é que vamos dar para a prima Edna comer?” Ela era uma pessoa educada, uma senhora que nunca, em toda a sua vida, se tinha sentado em frente de um prato de papa. Não gostaríamos, certamente, que tivesse a impressão de que estávamos empobrecidos.
“Tudo o que podemos fazer é servir peixe ao jantar”, disse minha mãe depois de uma longa deliberação. “Como está a travessa de peixe?”
“Tem dois peixes de 15cm”, disse eu.
“Fuh!” exclamou minha avó. “Ele não vai conseguir de jeito nenhum pescar trutas suficientes até a prima Edna chegar. Esse garoto não tem paciência e é barulhento demais para pescar.”
“não me digam que vamos depender do imprestável!”, gemeu minha irmã. “Vamos ficar humilhados!”
“Vou pescar todos os peixes de que precisamos!”, gritei.
“Fique quieto”, disse mamãe, apaziguadora. “Se o pior acontecer, vamos preparar para a prima Edna os dois peixes que temos e o resto de nós vai fingir que prefere ‘presunto assado!”
“Não vai dar certo”, disse vovó. “Nossa única esperança é outro faisão transtornado.”
A luva tinha sido jogada no meu rosto. Estava em minhas mãos salvar o orgulho da família ou morrer tentando.
Na manhã seguinte, na luz feia e triste da madrugada, arrastei-me através do matagal molhado e das urtigas picantes até um lugar onde eu sabia que uma bela truta de 20 cm estava encurralada embaixo de um tronco submerso. Esperei, ensopado, os dentes batendo baixinho. Quando os primeiros raios do sol da manhã começaram a ascender por entre os pinheiros, mergulhei uma soberba minhoca na água indolente.
Nunca isca melhor foi apresentada com tal naturalidade, com tal finesse. A linha afrouxou e o anzol seguiu a correnteza no labirinto de raízes. Um pequeno tremor subiu pela linha. Puxei a vara com força e a pequena truta gorducha de 20cm saiu brilhando de sob o tronco. Cuspiu o anzol e aterrou na margem a três metros de mim.. precipitei-me e agarrei-a com força. Ela escorregou, soltou-se e caiu na água. Mergulhei atrás dela, na esperança de capitalizar sua momentânea confusão. Infelizmente a água era mais profunda do que eu imaginara e se fechou sobre a minha cabeça como o baque da fatalidade. Enquanto ia nadando estilo cachorrinho para o raso, me dei conta de que encher a travessa de peixe podia ser ainda mais difícil do que eu previra.
Nos dois dias que se seguiram o total da minha coleta foram dois peixinhos, e a prima Edna chegava no dia seguinte. Eu tinha me tornado um existencialista de nove anos de idade, despojado de fé e de esperança. Primeiro o peixe me abandonara, depois Deus e agora, quando o dia final ia avançando, até o sol deslizara para trás das montanhas.
Diante de mim jazia o trecho mais desanimado, raso e estéril do riacho. Nunca, em toda a minha vida, eu pescara um só peixe naquele lugar, principalmente porque teria até sido inútil tentar. A água se encrespava sobre um leito de cascalho branco sem um único esconderijo, mesmo para a menor das trutas. Bom, possivelmente haveria um lugar. Em sentido diagonal à correnteza um pequeno cepo estava enterrado no cascalho, e em sua ponta mais avançada, no sentido em que corria a água, parecia haver uma pequenina poça.
Entrei na água e me empoleirei na extremidade do tronco. Nisto me dei conta de que a água tinha levado todo o cascalho de debaixo dele, formando uma vala estreita de água escura e parada. Mergulhei minha última minhoca, um verme pálido e cansado, nessa vala e deixei que a água a fosse levando ao longo do tronco, tropeçando no cascalho, em galhos e tocos, até que parou.. “Enganchou”, pensei. Furioso, puxei a linha. Minha vara vergou mas o anzol não se soltou. Em vez disso a linha começou a cortar um arco lento através da água, tomou impulso e então, explodindo para fora da água na altura da barreira de cascalho, veio uma enorme, uma imensa truta!
Não posso contar-lhes quanto tempo durou a batalha subseqüente, porque ao primeiro vislumbre que tive do peixe o tempo deixou de existir e a truta e eu nos tornamos um único espírito pulsando, suspenso no infinito. Quando, por fim, vestimos novamente nossas identidades separadas, foi como vencedor e vencida. Na luz que desmaiava, a truta tombou, presa entre meus joelhos doloridos, sobre uma praia de cascalho branco.
Subitamente fui invadido por uma alegria desconhecida e por uma inusitada tristeza. Eu sabia. Sem a menor sombra de dúvida, eu sabia que, sob o tronco, esperando, estava uma truta igual àquela. Removi o anzol delicadamente das mandíbulas poderosas, pendurei os farrapos daquela heróica minhoca o melhor que pude nele e voltei para cima do tronco. Quando um milagre está acontecendo, você nunca quer desperdiçar a mínima parte dele. Tudo se passou exatamente como eu previra.
O jantar da prima Edna foi um grande sucesso. Quando acabou todos estavam satisfeitos, ainda sobravam grandes postas de truta frita na travessa, que, suponho ser desnecessário contar-lhes era a nossa travessa de peixe.
“Deus do céu!” exclamou a prima Edna. “Nem sei quando foi que comi uma refeição melhor.”
“Ainda não acabou”, disse vovó. Então serviu à prima Edna uma tigela de morangos silvestres que minha irmã havia colhido. Eles fizeram que os lhos da prima Edna dessem voltas. Eram tão bons! “Espero que vocês não estejam me dando todos os morangos”, disse ela subitamente, notando nosso ar.
“Ora bolas”, disse vovó, “nós os comemos tão freqüentemente que estamos cansados dos bandidinhos...” Olhei incrédulo para vovó. Era a primeira vez que eu a ouvia mentir.
“Resolvemos que preferíamos um bom pudim”, disse minha mãe, distribuindo algumas tigelas. Olhei para dentro da minha.
“Ei”, disse eu, “isto está parecendo...”
“Pssiu!, querido”, disse minha mãe, com uma expressão dura que nem granito. “Coma o seu pudim.”

sexta-feira, junho 2

Dicas culinárias de um cozinheiro-cientista

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1984
Autor : Arthur E. Grosser

Um químico explica por que a gema do ovo fica verde, o espaguete gruda e a massa da torta endurece – e ensina como evitar desastres culinários.

Quanto tinha seis anos, adoeci com catapora. Depois de ter esgotado a sua reserva de passatempos, minha mãe me explicou como se coze um ovo. “Bota-se sal na água”, começou ela. “Isso evita que os ovos estalem... mas, mesmo assim, estalam”. Ficamos a pensar um pouco sobre o assunto, e depois abanei a cabeça concordando. Quer a casca estalasse ou não, era evidente que o ovo tinha de ser “aplacado” com uma oferenda de sal.
Passados anos, eu continuava botando sal na água de cozer os ovos, e, se uma receita exigisse a utilização de uma colher de pau e eu só tivesse uma de metal, escolhia outro prato. Era tão supersticioso como um homem da Idade da Pedra, e seguia à risca todas as indicações, sem compreender por que. Era absolutamente indispensável meter essas receitas tirânicas na ordem. Na minha qualidade de químico, resolvi descobrir os princípios científicos em que se apóiam as instruções dos livros de receitas. As dicas que a seguir vou dar são resultado da minha pesquisa sobre o modo de por a química da culinária ao nosso serviço. Comecemos pelos ovos.

AVE OVO. Costuma-se dizer que uma recém-casada que não sabe cozer um ovo só é superada, em termos de incompetência doméstica, pela que deixa queimar uma torrada. A verdade, porém, é que os ovos tem o aborrecido hábito de estalar, o que deixa a panela cheia de filamentos brancos de aspecto pouco convidativo. Ainda pior é a detestável camada cinzento-esverdeada que se forma à volta da gema cozida. Todas estas “catástrofes” ensombram a delicada operação de cozer um ovo.
Comecemos pela primeira: a casca que estala. Isso acontece quando o aquecimento rápido impede que o ar ( que aumentou de volume ) contido no ovo seja expelido através dos poros na extremidade mais larga da casca. Uma das maneiras de evita-lo é fazer um furo nessa extremidade. Quando o ovo esquentar, vê-se o ar saindo por esse orifício. A casca também pode estalar quando um ovo acabado de sair da geladeira é colocado em água fervendo; portanto, ponha os ovos na água antes de leva-lo ao fogo.
Depois, bote um pouco de sal. Absurdo? De modo algum. O sal não evita que os ovos estalem, mas, se a água estiver salgada, é menos provável que se formem todos aqueles desagradáveis filamentos brancos. O sal dissolvido ajuda a acelerar a coagulação na racha e tapa-a instantaneamente.
Em seguida, tempos a pouco apetitosa camada verde. Ao esquentar, o ovo produz gás sulfídrico, a que se costuma, apropriadamente, chamar “cheiro de ovo podre” – tão desagradável é o seu odor. O ovo não está podre, está simplesmente cozendo. Se ele esfriar lentamente, o gás reage sobre a superfície da gema quente. O ferro nela contido expulsa hidrogênio e forma um depósito escuro de sulfeto de ferro. Basta passar os ovos cozidos por água fria que a gema esfria rapidamente, ficando bem amarelinha.

A MISS MASSA. O único problema com a preparação das massas é que seus canudinhos, por vezes, se grudam uns nos outros. Isso acontece quando o amido é expulso da massa e se transforma em cola, ao esfriar. Uma das soluções consiste em passar o espaguete por água quente depois da cozedura.
Existem mais duas alternativas para evitar que o espaguete grude. A primeira é coze-lo em muita água. O amido ficará distribuído por um maior volume de água; depois de escorrida, a massa ficará com menor quantidade dessa substância.
A segunda alternativa é acrescentar uma colher ( das de sopa ) de azeite, de margarina ou de outra gordura à água de cozedura. A gordura revestirá os fios de espaguete, que, desse modo, não se grudarão uns aos outros; esta solução evita igualmente a formação de espuma.

ALHOS SEM BOGALHOS. O alho contém um produto químico, a aliina, e uma enzima a aliinase. Quando estas duas substâncias entram em contato, produzem o “gosto de alho”. As membranas das células, contudo, evitam, normalmente, essa reação, que só ocorre quando se tira a barreira da membrana. Isso significa que o sabor a alho será tanto mais pronunciado quanto mais picado ou esmagado ele for, pois é durante essa operação que as membranas são destruídas. A cozedura também reduz o gosto de alho, visto que diminui a reação enzímica.
Nas cebolas produz-se uma reação semelhante, que excita as glândulas lacrimais da pessoa que as descasca. Como as moléculas que provocam as lágrimas são solúveis em água, se você descascar as cebolas sob água corrente, essas moléculas serão eliminadas antes de atingirem seus olhos.

LOUVE SUA COUVE. Tanto as couves-de-bruxelas, como as couves comuns, os brócolos, os nabos e as couves-flores contém elementos que produzem igualmente gás sulfídrico.
O cheiro durante a cozedura pode tornar-se desagradável para os que apreciam esses legumes. A solução é coze-lo rapidamente.
Utilize grande quantidade de água, e coloque os legumes só quando ela estiver fervendo, para que a ebulição recomece pouco depois.

FRUTOS E FRUTAS. Alguns frutos ( maçãs, damascos, abacates, bananas, cerejas, figos, uvas, pêssegos e pêras ) ficam marrons à temperatura ambiente, depois de serem cortados ou descascados. Esses frutos sensíveis contém uma substância que se torna marrom ao oxidar-se ( ou seja, quando átomos de oxigênio vão juntar-se à sua estrutura ). A reação começa assim que a polpa do fruto é cortada, porque esse composto pode então absorver rapidamente o oxigênio do ar.
Há duas maneiras de evitar esse fenômeno. Uma é impedindo, por meio de um revestimento de maionese, a absorção de oxigênio; é o método utilizado na salada Waldorf. A outra consiste em borrifar as superfícies cortadas com suco de limão. O suco de abacaxi e o vinagre dão o mesmo resultado.

CAFÉ COMO É. Há tantas maneiras de estragar o café que parece quase impossível preparar uma boa xícara. Para começar, há quem deixe a água ferver demasiado – o que expele todo o ar e provoca um sabor insípido. Em qualquer bebida quente, utilize sempre água acabada de sair da torneira e ferva-a ao menos possível.
Lavar, lavar, lavar.... é uma regra de ouro na preparação de um bom café. Os utensílios devem estar impecavelmente limpos, pois o café contém um óleo, que dificilmente se retira do metal, e um pouco mais facilmente da cerâmica e do vidro. Como qualquer outra gordura, essa película oleosa pode rançar e dar origem a sabores desagradáveis.
Os grandes apreciadores de café apostam nos moinhos ( que devem estar sempre limpos )... e tem razão. Muitos dos componentes que dão ao café todo o seu aroma são voláteis e a moagem liberta-os. O café moído e guardado dentro de um saco de papel à temperatura ambiente perderá rapidamente o aroma. É muito melhor conserva-lo num recipiente hermético dentro da geladeira, onde a baixa temperatura preservará o sabor e o aroma.

TORTA DIREITA. Qual é o pormenor indispensável de uma boa torta? Uma massa quebradiça. Como consegui-la? Preparando-a com elasticidade suficiente, para ser estendida sem quebrar, e espalhando pedacinhos de gordura regularmente por toda a massa.
Se estiverem frios e consistentes, esses pedacinhos de gordura não terão tempo de derreter e de se incorporar na massa enquanto você a estende. Esfrie previamente a tigela e o rolo, e use água gelada. O emprego de uma espátula para introduzir a gordura na massa, e de um garfo para incorporar a água, evitará que os seus dedos a aqueçam.
Antes de estender a massa esfrie-a . Durante a cozedura formam-se bolhas de vapor em volta da gordura e a massa fica quebradiça.

Além de melhorarem os seus cozinhados, espero que estas dicas de ciência culinária satisfaçam sua curiosidade a ajudem a surpreender as amigas. Bom Appétit!

O maior papel da minha vida

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1972
Autor : Michiyo Kogur

Uma das maiores atrizes japonesas conta sobre um encontro casual que a levou a um papel inesquecível num drama da vida real

No verão de 1958, certa manhã, recebi uma carta dos Estados Unidos. “Carta de fã”, pensei, e abri o envelope. Para surpresa minha, começava: “Permita-me chamá-la de minha mãe.” Pensei que tivesse aberto uma carta de alguém. Examinei o envelope, e era, sem dúvida, para mim mesma.
O remetente, Yukio Ito, explicava que estudava numa universidade americana e, além de querer chamar-me de mãe, queria que eu escrevesse o prefácio de um livro a sair – Crianças Andando à Luz – da autoria de Hiroshi Shinagawa, do Lar de Meninos Aisei. Se eu lesse o livro, cuja chegada Yukio garantia pelo próximo correio, compreenderia porque me pedia o prefácio e porque ele desejava pensar em mim como sua mãe.
Por mais que pensasse, não conseguia localizar Yukio Ito nem Hiroshi Shinagawa. Quando o livro chegou, eu e meu marido – que passara a mexer comigo chamando Yukio de “outro filho” – o lemos com grande curiosidade.
Havia na obra um ensaio de Yukio; explicava que as sementes da história tinham sido lançadas havia uma década, quando ele e eu nos encontráramos por acaso. Fora logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando centenas de crianças sem lar perambulavam pelo país. Yukio era uma delas. Mas deixemos que ele conte como foi.
“Era um dia extremamente frio para o começo de março”, escrevia ele. “A chuva da manhã se transformara na geada da tarde, que penetrava nos buracos dos meus tênis. Pouca gente andava pela Ginza. Não se via qualquer dos nossos melhores fregueses, os soldados americanos. Como engraxate novato, eu estava desesperado. Com o meu amigo Nakamura, estávamos encostados à parede do American Post Exchange. Nakamura lamentava-se de ter deixado o orfanato, onde pelo menos teria o que comer”.
“Eu morria de saudade de um prato de guisado feito pela minha falecida mãe. Mal conseguia agüentar as câimbras de fome, e estava pensando em começar a bater carteiras quando uma voz estranha me arrancou dos sonhos. “Coitadinho! Você deve estar morrendo de frio! Tome isto, coma alguma coisa quente!” Diante de mim estava uma mulher linda, com um casaco branco e parecendo um anjo. Ela meteu-me 200 yens na mão e desapareceu. ‘Muito obrigado’, foi tudo que deu tempo de dizer”.
“Yukio, exclamou meu companheiro. ‘Você é um cara de sorte! Sabe quem era? Michiyo Kogure, a famosa artista de cinema! Nunca vi uma mulher tão bonita!”
“Meu corpo foi envolvido numa onda gostosa de calor. De repente, era mais luminoso o mundo à minha volta. Jamais esquecerei a bondade dela, disse para mim mesmo. Lembrarei para sempre de como ela trouxe esperança quando eu me sentia tão desesperado”.
Pouco depois desse encontro, aconteceu que Yukio foi aceito no Aoi-ryo, um lar para órfãos de guerra na cidade de Hamamatsu. Um dos assistentes sociais do orfanato era Hiroshi Shinagawa, que tomou o menino sob seus cuidados e acabou seu grande amigo.
Shinagawa sonhava com a construção de um lar para os meninos de Maebashi, sua cidade natal. Para seus assistentes, escolheu Yukio e cinco outros garotos. No começo, parecia inatingível. Enquanto Hiroshi buscava ajuda financeira, Yukio e seus amigos ganhavam a vida engraxando sapatos e vendendo peixe. Até que um dia, em dezembro de 1953, o sonho tornou-se realidade. O novo lar ficava numa colina com um campanário em ponta. Chamaram-no Aisei – a casa do amor e da sinceridade.
Hiroshi Shinagawa, em seu livro, contava a história emocionante de como seu sonho se realizara. Era tão triste, às vezes, que vinham-me lágrimas nos olhos.
Ficamos tão emocionados, meu marido e eu, que ali mesmo decidimos que concordaríamos com o pedido de Yukio. Algo dentro de mim fazia-me sentir inseparavelmente ligada àquele intrépido grupo de meninos de Aisei. Seria o começo de uma longa amizade entre Yukio ( que ganhara uma bolsa nos Estados Unidos, graças aos seus conhecimentos de inglês ), os meninos de Aisei e a nossa família, em Tóquio.
Em suas cartas, Yukio contava as suas dificuldades em adaptar-se à vida americana. Mas não desistira, e finalmente tornou-se professor de Espanhol e Francês num ginásio. Aí, sua personalidade ativa e bondosa tornou-o logo um dos professores mais populares, não só com os alunos, mas também com os pais. Ao saberem de como ele e seus amigos haviam construído Aisei, os pais dos seus alunos ficaram tão comovidos que, com a ajuda de outras pessoas, começaram a enviar mensalmente contribuições de 200 a 300 dólares. Aquele a quem um dia tinham dado esperança começava agora a conquistá-la para outros.
Quanto ao próprio Yukio, ele cedo percebeu que, cercado de tanta bondade, lançara raízes na América. Suas cartas eram sempre motivos de alegria para nós. Hoje, leio-as para os meus filhos, na esperança de que, como Yukio, eles aprendam a não perder a esperança.
Foi um dia maravilhoso quando, depois de seis anos de correspondência, soubemos que Yukio viria ao Japão. Sua chegada apareceu na imprensa. Ele foi meu “convidado-surpresa” num programa de TV, e foi realmente um encontro dramático. Quando Yukio me beijou, dizendo “Cheguei, mamãe!” parecia-me que o conhecia havia anos. “Era ele realmente aquele garotinho que tremia de frio naquele dia de neve?” eu me perguntava entre lágrimas. Não era só eu que chorava: Hiroshi Shinagawa, o entrevistador da TV, os técnicos do estúdio – todo o mundo estava chorando.
Embora ocupadíssimo, Yukio teve tempo de conhecer uma garota de quem ficou noivo. Nesse mesmo ano, pelo Natal, voltou ao Japão e casaram-se. Mas ele se defrontava com obstáculos intransponíveis. As leis americanas de imigração impediam-no de levar a mulher com ele.
De volta aos Estados Unidos, Yukio esperou durante um ano e meio. Finalmente, não vendo perspectivas, resolveu vender sua casa recém-adquirida e voltar para o Japão. A essa altura, algo dramático aconteceu. Os alunos do Ginásio Franklin ergueram-se em sua defesa.
“Nós queremos que Itó fique conosco! Mudem as leis de imigração, esse muro do Pacífico!” exigiam eles, e conseguiram o apoio de outras escolas na petição ao Governo. O movimento alastrou-se, com apelos, inquéritos públicos, desfiles. O movimento chegou à atenção do ex-Presidente Johnson, que escreveu às autoridades escolares dizendo que se interessaria pelo problema. E por fim, a 1º de dezembro de 1965, Yukio recebeu permissão de trazer a mulher para sua nova casa.
Entoando o hino Deus Seja Contigo Até Nos Encontrarmos Novamente, Hiroshi Shinagawa e as crianças de Aisei foram despedir-se da mulher de Yukio no aeroporto.
“Yukio merece a sua felicidade”, Hiroshi exclamou, comigo ao seu lado, na rampa do aeroporto. “Seu espírito indômito nos inspira e estimula a todos em Aisei.”
No cinema, já desempenhei papéis de boa mãe e de vagabunda. Representei também o papel de uma pessoa que, sem se dar conta, fez mudar o curso da vida de um estranho. Mas, de todos os meus papéis, nenhum se compara com esse que Deus me destinou na vida de Yukio Ito.