quarta-feira, junho 21

O homem que inventou o futuro

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1984
Autor : Jean Marie Javron

A moderna sociedade industrial não teria surpreendido Leonardo da Vinci. O museu Clos-Lucé está repleto de máquinas inventadas por ele há cinco séculos.

Sabe quem inventou a chave-inglesa? O odômetro? Quem, pela primeira vez, pensou em construir uma lanterna mágica, antepassado dos projetores de cinema? Quem foi o inventor do instrumento que mede a velocidade dos aviões em relação ao solo? Quem imaginou a caixa de velocidades? Todas estas perguntas e muitas mais tem a mesma resposta: Leonardo da Vinci, o grande pintor florentino renascentista, autor da Mona Lisa, e que foi igualmente um dos mais espantosos engenheiros e sábios de todos os tempos.
Você pode verificar tudo isto se se juntar às 70 mil pessoas que, todos os anos, se dirigem a Amboise a fim de aí visitarem o Museu Clos-Lucé. Foi nesse solar restaurado, de pedra branca e tijolo rosado, que Leonardo passou os últimos cinco anos da sua vida e veio a morrer, no dia 2 de maio de 1519. “Em Clos-Lucé, Leonardo da Vinci inventou o ano 2.000”, lê-se num cartaz nas paredes de Amboise. Quem pensar que essas palavras são um slogan sem o menor significado, mudará de idéia quando penetrar no andar térreo da velha mansão senhorial, cujo teto baixo ainda conserva suas vigas seculares. É ali que se encontram as maquetas construídas a partir dos projetos que Leonardo desenhou nos seus cadernos.
Essas maquetas foram feitas por engenheiros da IMB francesa, em princípios da década de 1960, com materiais que o próprio Leonardo poderia ter utilizado. Foi um trabalho meticuloso, mas relativamente fácil, graças à riqueza de detalhes fornecidas por Leonardo. Depois de terem sido exibidas na França e na maioria das grandes cidades do mundo, acabaram ficando definitivamente instaladas no Clo-sLucé. O museu está aberto durante todo o ano, exceto em janeiro. Além das maquetas, os visitantes podem ver a sala de trabalho de Leonardo, a cozinha e a capela, onde, sob a orientação do mestre, os aprendizes pintaram três afrescos: uma Anunciação, uma Assunção e uma Virgem Glorificada.
Entre as maquetas expostas, a do antepassado do helicóptero talvez seja a que mais concretamente revela o poder criativo deste homem, que, graças à sua prodigiosa imaginação, estava mais de quatro séculos adiantado em relação à sua época. O helicóptero, que mede 50 cm de altura, é feito de madeira e lona. Sua peça essencial é uma hélice acionada por manivelas, manobradas pelo piloto, que lhe imprimem um movimento rotativo através de uma série de engrenagens. Teoricamente a hélice, em movimento, criaria energia suficiente para elevar o aparelho, que possui igualmente um estrado de madeira para passageiros.

Teoria e prática. Ao que sabemos, Leonardo limitou-se a desenhar os planos detalhados do aparelho e nunca foi além disso; mas, em 1901, um menino de 12 anos, da cidade russa de Kiev, construiu um modelo acionado por um elástico, inspirando-se num estanho esboço que vira num fac-símile dos cadernos de Leonardo que sua mãe, cientista, lhe mostrara. Quando lançou o modelo, este elevou-se, de fato, alguns centímetros e depois caiu. O rapaz chamava-se Igor Sikorsky. Trinta e oito anos mais tarde, tendo-se tornado engenheiro e cidadão norte-americano, ele montou o VS-300, antecessor dos helicópteros atuais.
Leonardo acalentava o sonho de um dia libertar completamente o homem de sua prisão terrestre. No Clo-Lucé, encontra-se ouro modelo, com 1m de comprimento, que reproduz fielmente o esquema de um avião de asas fixas, acionado pela força humana. O piloto está deitado de bruços, com os pés presos em estribos. Servindo-se dos braços e das pernas, faria bater as asas do avião, que depois regressariam à posição inicial por meio de molas. Embora o aeroplano só tenha surgido depois da invenção do motor de combustão interna, Leonardo foi o primeiro homem que imaginou o vôo humano de modo cientifico. Seus esboços para a construção de um avião foram fruto de vários anos estudando a mecânica do vôo das aves. Terá Leonardo alguma vez tentado construir, a partir de seus esboços, um modelo que realmente funcionasse? É pouco provável. Seria insolente da nossa parte pensar que ele ignorava a distância existente entre a teoria e a prática.
Numa sala contígua ao museu, encontra-se suspenso no teto o bisavô do pára-quedas, feito de madeira e tecido. Tem uma forma cônica e, embora os pára-quedas modernos se assemelhem mais a guarda-sóis do que a cones, baseiam-se no mesmo princípio. Limitamos-nos a acrescentar ao modelo de Leonardo uma abertura no topo e um sistema de cabos, a fim de orientar a descida.
Profeta industrial. Também a construção naval seguiu as pegadas de Leonardo. Foi ele quem concebeu a proa bulbiforme de que hoje são dotados os navios modernos. Por baixo do corte transversal de um casco de madeira, com 40cm de altura, construído de acordo com um esboço de Leonardo, vê-se a fotografia de um transatlântico italiano, apropriadamente chamado Leonardo da Vinci, lançado em 1960; a proa é extraordinariamente parecida com o do projeto original do grande mestre florentino.
Leonardo também se revelou profético no modo como imaginou os modernos engenhos bélicos. Em 1482, escreveu ao duque Ludovico Sforza, de Milão que, mais tarde, viria a ser seu protetor: “Construirei veículos cobertos, tão seguros e invulneráveis que, por mais numeroso que seja o exército inimigo, debandará, em pânico, quando o avistar.” A sua proposta só foi rejeitada porque, entretanto, tinha sido assinado um tratado de paz na Lombardia.
O “veículo” que ele concebeu, e que está reproduzido no Clo-Lucé, corresponde ao moderno carro de assalto: um cone cilíndrico de madeira, revestido de uma chapa metálica e encimado por uma pequena torre de observação. Como se pode ver na maqueta, Leonardo imaginou um sistema de cilindros e engrenagens para acionar as rodas.
Nos seus cadernos, encontra-se o esquema de uma bomba, equipada com aletas de estabilização, prevista para explodir com o impacto – a moderna granada de morteiro. Pensou também num submarino, mas não registrou nos seus cadernos a técnica que imaginara.
Teria Leonardo uma visão ta sombria do futuro que só conseguiu pensar em máquinas de guerra? De modo algum. Fez projetos de pontes sobre rodas, que podiam ser deslocadas de um lado para outro, e de um veículo automático, que se aciona retesando e distendendo alternadamente um conjunto de molas que fazem girar duas grandes rodas num complexo sistema de engrenagens. Parece inacreditável, mas o veículo até tem um diferencial que permite que as rodas girem a velocidades diferentes nas curvas, requinte automobilístico que só veio a ser posto em prática nos finais do século XX.
A maior parte dos inventos de Leonardo não precisa sequer de uma maqueta para se provar que funciona. Ele fez um projeto de um barco, acionado por meio de manivelas e de rodas de pá, que é quase uma réplica dos barcos a pedal que vulgarmente se vêem nas praias européias. Há também um curioso engenho, cujos pormenores foram desenhados por um discípulo de Leonardo e que não apresenta o estilo cuidadoso do mestre. Consiste em duas rodas com cubos, ligadas a pedais por meio de uma corrente, num guidão e num selim – uma bicicleta, em suma.
Na universidade do seu gênio, Leonardo foi o primeiro grande profeta da era industrial. Os desenhos que revestem as paredes do museu mostram como ele se propunha construir 10 cidades na Itália, cada uma com 10 mil casas ( um número extraordinário para a época ), à beira-mar ou na margem de um rio, de modo que os esgotos ( que invadiam de cheiros nauseabundos as cidades do seu tempo ), fossem canalizados e lançados à água, solução que ninguém ainda tinha imaginado. Concebeu igualmente ruas que se cruzavam perpendicularmente a diferentes níveis ( hoje freqüentes nos projetos de modernas cidades ), e sistemas para exaustão de fumaça. Outro plano consistia em drenar os insalubres pântanos de Pontine, perto de Roma – o que só veio a ser concretizado quando Mussolini subiu ao poder.
Visto que os cadernos só foram publicados no fim do século XIX , quando os cientistas já haviam reinventado tudo o que eles continham de verdadeiramente revolucionário. Leonardo exerceu pouca influência há história da tecnologia.
Ao deixar as maravilhosas salas do Clos-Lucé, a gente se pergunta como é que Leonardo ainda arranjava tempo para pintar?

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