quarta-feira, junho 7

O milagre da travessa de peixe

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1981
Autor : Patrick F. Mcmanus

A prima Edna, vinha jantar e a despensa da família estava vazia. A humilhação parecia inevitável...

Quando eu era pequeno, minha família pertencia à aristocracia latifundiária da região, isto é, possuíamos a parede contra a qual nos encontrávamos acuados. Parte da nossa ração usual naquela época era uma coisa que minha avó chamava “papa”, como quando dizia “Fique quieto e coma a sua papa!”
Minha mãe preferia chamar à papa “presunto assado” ou “rosbife ou “waffles”, como quando dizia “Fique quieto e coma os seus waffles”.
Num Natal em que estávamos na pior, ela teve a idéia de engrossar a papa, esculpi-la e chamá-la “peru”. Fomos salvos dessa aberração culinária por um faisão que jovialmente se atirou através do vidro de uma janela, proporcionando-nos uma das melhores ceias de Natal que já tive o prazer de participar: faisão e papa.
Naquele tempo e lugar a caça era considerada uma espécie de dádiva divina. Caça e pesca eram uma mistura feliz de esporte, religião e economia e, como resultado, seus produtos eram tratados com respeito e reverência. Ainda encaro o ato de caçar primordialmente como uma indagação religiosa. Prender uma grande truta no anzol é entrar em comunhão com uma dimensão diferente, um domínio espiritual, algo selvagem e misterioso. Esta teoria foi confirmada pelo padre com quem ocasionalmente eu dividia a água da pescaria.
“Meu rapaz”, dizia ele, “sempre que você pega qualquer peixe grane é um milagre que acontece.”
Eu não chegaria ao ponto de afirmar que o fato de eu pescar um peixe entrasse na categoria dos milagres, exceto... bem, sim, houve uma vez.

Quando eu tinha nove anos e era o único pescador da nossa família, cada vez que apanhava um peixe era uma ocasião de considerável regozijo por parte não só de mim, mas também de minha mãe, minha irmã e minha avó. Coisa que não tinha nada a ver com os falsos elogios que se ouvem ocasionalmente hoje em dia, empilhados sobre um garoto (“Nossa! Olhe o peixão grandão que o Chiquinho apanhou! Você é mesmo um homem!”) Não, não tinha nada a ver com essas baboseiras.
“Ei”, em geral gritava minha irmã, “o imprestável pegou um peixe!”
“Tem jeito de dar para umas três garfadas”, continuava minha avó, “mas é melhor do que nada.”
“Ponha na travessa de peixe”, dizia minha mãe. “Quem sabe aí pelo domingo teremos pescado o suficiente para servir peixe em vez de ‘presunto assado’ para o jantar.”
O conceito de travessa de peixe requer uma explicação. Minhas pescarias estavam limitadas a um pequeno riacho que corria nos fundos da nossa casa. Por vezes passavam vários dias sem que eu sentisse a mínima beliscadela; mas, vez por outra, brilhando num arco de prata sobre minha cabeça, vinha uma truta capturada, que normalmente se ia depositar, pendurada pela linha, num galho de árvore se não ficasse pulando no matagal a uns 10 passos de mim.
Assim, uma por uma, eu ia acumulando trutazinhas durante vários dias, até que houvesse suficientes para uma refeição. O local de coleta para esses peixes era uma travessa que guardávamos sobre o bloco de gelo do congelador. Era a chamada “travessa de peixe.”
O verão do Milagre da Travessa de Peixe foi bastante típico. Nós estávamos apenas a papa e verduras; a horta ia secando por falta de chuva; minha mãe estava sem emprego. Vacas gordas, entretanto, não podem durar para sempre, e em pouco tempo entramos num período das ditas magras. Foi então que recebemos uma carta de uma parenta rica que atendia pelo nome de prima. Edna, informando-nos que tinha a intenção de passar um dia conosco.
Sua carta caiu como um raio. A grande questão era: “Que é que vamos dar para a prima Edna comer?” Ela era uma pessoa educada, uma senhora que nunca, em toda a sua vida, se tinha sentado em frente de um prato de papa. Não gostaríamos, certamente, que tivesse a impressão de que estávamos empobrecidos.
“Tudo o que podemos fazer é servir peixe ao jantar”, disse minha mãe depois de uma longa deliberação. “Como está a travessa de peixe?”
“Tem dois peixes de 15cm”, disse eu.
“Fuh!” exclamou minha avó. “Ele não vai conseguir de jeito nenhum pescar trutas suficientes até a prima Edna chegar. Esse garoto não tem paciência e é barulhento demais para pescar.”
“não me digam que vamos depender do imprestável!”, gemeu minha irmã. “Vamos ficar humilhados!”
“Vou pescar todos os peixes de que precisamos!”, gritei.
“Fique quieto”, disse mamãe, apaziguadora. “Se o pior acontecer, vamos preparar para a prima Edna os dois peixes que temos e o resto de nós vai fingir que prefere ‘presunto assado!”
“Não vai dar certo”, disse vovó. “Nossa única esperança é outro faisão transtornado.”
A luva tinha sido jogada no meu rosto. Estava em minhas mãos salvar o orgulho da família ou morrer tentando.
Na manhã seguinte, na luz feia e triste da madrugada, arrastei-me através do matagal molhado e das urtigas picantes até um lugar onde eu sabia que uma bela truta de 20 cm estava encurralada embaixo de um tronco submerso. Esperei, ensopado, os dentes batendo baixinho. Quando os primeiros raios do sol da manhã começaram a ascender por entre os pinheiros, mergulhei uma soberba minhoca na água indolente.
Nunca isca melhor foi apresentada com tal naturalidade, com tal finesse. A linha afrouxou e o anzol seguiu a correnteza no labirinto de raízes. Um pequeno tremor subiu pela linha. Puxei a vara com força e a pequena truta gorducha de 20cm saiu brilhando de sob o tronco. Cuspiu o anzol e aterrou na margem a três metros de mim.. precipitei-me e agarrei-a com força. Ela escorregou, soltou-se e caiu na água. Mergulhei atrás dela, na esperança de capitalizar sua momentânea confusão. Infelizmente a água era mais profunda do que eu imaginara e se fechou sobre a minha cabeça como o baque da fatalidade. Enquanto ia nadando estilo cachorrinho para o raso, me dei conta de que encher a travessa de peixe podia ser ainda mais difícil do que eu previra.
Nos dois dias que se seguiram o total da minha coleta foram dois peixinhos, e a prima Edna chegava no dia seguinte. Eu tinha me tornado um existencialista de nove anos de idade, despojado de fé e de esperança. Primeiro o peixe me abandonara, depois Deus e agora, quando o dia final ia avançando, até o sol deslizara para trás das montanhas.
Diante de mim jazia o trecho mais desanimado, raso e estéril do riacho. Nunca, em toda a minha vida, eu pescara um só peixe naquele lugar, principalmente porque teria até sido inútil tentar. A água se encrespava sobre um leito de cascalho branco sem um único esconderijo, mesmo para a menor das trutas. Bom, possivelmente haveria um lugar. Em sentido diagonal à correnteza um pequeno cepo estava enterrado no cascalho, e em sua ponta mais avançada, no sentido em que corria a água, parecia haver uma pequenina poça.
Entrei na água e me empoleirei na extremidade do tronco. Nisto me dei conta de que a água tinha levado todo o cascalho de debaixo dele, formando uma vala estreita de água escura e parada. Mergulhei minha última minhoca, um verme pálido e cansado, nessa vala e deixei que a água a fosse levando ao longo do tronco, tropeçando no cascalho, em galhos e tocos, até que parou.. “Enganchou”, pensei. Furioso, puxei a linha. Minha vara vergou mas o anzol não se soltou. Em vez disso a linha começou a cortar um arco lento através da água, tomou impulso e então, explodindo para fora da água na altura da barreira de cascalho, veio uma enorme, uma imensa truta!
Não posso contar-lhes quanto tempo durou a batalha subseqüente, porque ao primeiro vislumbre que tive do peixe o tempo deixou de existir e a truta e eu nos tornamos um único espírito pulsando, suspenso no infinito. Quando, por fim, vestimos novamente nossas identidades separadas, foi como vencedor e vencida. Na luz que desmaiava, a truta tombou, presa entre meus joelhos doloridos, sobre uma praia de cascalho branco.
Subitamente fui invadido por uma alegria desconhecida e por uma inusitada tristeza. Eu sabia. Sem a menor sombra de dúvida, eu sabia que, sob o tronco, esperando, estava uma truta igual àquela. Removi o anzol delicadamente das mandíbulas poderosas, pendurei os farrapos daquela heróica minhoca o melhor que pude nele e voltei para cima do tronco. Quando um milagre está acontecendo, você nunca quer desperdiçar a mínima parte dele. Tudo se passou exatamente como eu previra.
O jantar da prima Edna foi um grande sucesso. Quando acabou todos estavam satisfeitos, ainda sobravam grandes postas de truta frita na travessa, que, suponho ser desnecessário contar-lhes era a nossa travessa de peixe.
“Deus do céu!” exclamou a prima Edna. “Nem sei quando foi que comi uma refeição melhor.”
“Ainda não acabou”, disse vovó. Então serviu à prima Edna uma tigela de morangos silvestres que minha irmã havia colhido. Eles fizeram que os lhos da prima Edna dessem voltas. Eram tão bons! “Espero que vocês não estejam me dando todos os morangos”, disse ela subitamente, notando nosso ar.
“Ora bolas”, disse vovó, “nós os comemos tão freqüentemente que estamos cansados dos bandidinhos...” Olhei incrédulo para vovó. Era a primeira vez que eu a ouvia mentir.
“Resolvemos que preferíamos um bom pudim”, disse minha mãe, distribuindo algumas tigelas. Olhei para dentro da minha.
“Ei”, disse eu, “isto está parecendo...”
“Pssiu!, querido”, disse minha mãe, com uma expressão dura que nem granito. “Coma o seu pudim.”

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