quarta-feira, novembro 29

Assuma a sua casca de laranja

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autora : Robin Worthington

Trata-se de um remédio seguro para os casos de aparências descuidadas.

A saúde mental, tal como a caspa, surge quando menos se espera. Um dia, por exemplo, entrei num supermercado com um lenço atado sobre os papelotes, tentando passar desapercebida. Normalmente, nunca saio de rolinhos. Mas, estavam para chegar umas visitas que tinham avisado em cima da hora, e na minha despensa só encontrei um pacote de marshmallow e duas latas de alimentos para cães.
Enfim, eu não esperava encontrar nenhum conhecido no caminho. Por favor, entendam, nenhuma das pessoas elegantes que conheço. Mas, lá estava Helen, diante do mostruário de iogurtes, absolutamente gloriosa, num conjunto de calças de linho coral. Bati em retirada com o carrinho, e rodei com ele, até ser cumprimentada com um Olá! por minha vizinha Liz, muito esbelta num conjunto turquesa.
“Olá”, respondi debilmente, tentando explicar os rolinhos.
“Nunca faço compras desta maneira.”
Certamente, pensei, deve haver alguém aqui tão mal vestida como eu. Foi quando apareceu a boa Sally, usando uma camisa desbotada, um slack todo manchado e uns tênis de florzinhas.
“Você está linda”, disse-lhe.
“Escute, por que será que topo com todos os conhecidos justamente quando estou assim?”
“O que você precisa é de algumas cascas de laranja na sua vida”, disse Sally.
“Algumas o que?”, perguntei.
“Cascas de laranja. Vou te contar um caso. No verão passado, um namorado do meu tempo de ginásio resolveu me visitar, de surpresa. Abri a porta, e dei com ele – trazendo, “a tiracolo”, a loura esposa, podre de chique.
“Alguns momentos antes de chegarem, nosso cachorro basset tinha vomitado sobre o tapete da sala de visitas. Assim, em desespero de causa, levei-os para a sala de jantar, esquecendo que o enxugador de roupas estava quebrado, e que havia calções e camisetas molhadas enfeitando os encostos de todas as cadeiras. Na cozinha, os pratos estavam ainda na pia. E enquanto eu tentava pedir desculpas e concentrar minha atenção no café, reparei naquilo que parecia simbolizar não só o desgoverno da minha casa, mas o da minha própria vida, naquele momento: uma imensa casca de laranja enrugada e suja, grotescamente encaracolada no chão da sala, como se estivesse ali há semanas.”
“Ela a viu, é claro, e ela também, e ambos me viram tentando chuta-la disfarçadamente para debaixo da mesa. Só que a casca grudou no meu tênis e eu tive de me curvar e puxa-la como se ela fosse um esparadrapo. Não me lembro do que conversamos. Só me lembro daquela miserável casca de laranja no meio do chão.”
“E o que disse o seu marido, quando você lhe contou isso?”, perguntei.
“Ele riu, e depois disse: Pense em como você os fez felizes. Ele está feliz por não ter casado com você, e ela imagina que a velha namorada não constitui nenhuma ameaça. Não pense no seu ego; pense no que está fazendo pelo casamento deles.”
“Meu ego estava ferido, mas a idéia, de tão louca, até que era interessante. Agora tornou-se uma tradição oficial da família. Sempre que um de nós é flagrado em desmazelo, dizemos simplesmente, lembre-se da casca de laranja, e as coisas mudam de figura.”
Nessa noite, ao servir aos convidados o strogonoff feito às pressas, minha lista automática de desculpas logo entrou em ação. “Normalmente, quando faço strogonoff, uso carne e cogumelos frescos e... “De repente, vi uma espiral de casca de laranja balançando diante dos meus olhos como um enfeite de árvore de Natal. Eu sabia que, se não fosse reprimida, continuaria a pedir desculpas. Firmemente, comecei tudo de novo. “Agora, falem de sua viagem.” Quando nossos convidados saíram, disseram que a noite tinha sido “reconfortante”.
Foi quando me convenci à “filosofia da casca de laranja”. A batalha para guardar desnecessariamente as aparências (ou seja qual for o nome que você dê ao perfeccionismo bajulador) rouba-nos as energias, e não contribui nem um pouquinho para nos valorizar aos olhos daqueles que estamos tentando impressionar. Como disse William James: “Desistir de pretensões é um consolo tão abençoado como o de vê-las realizadas.”

terça-feira, novembro 28

Todos gostam de trabalhar para Bill Marriott

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1972
Autor : John G. Hubbell ( condensado de Sun-Times, de Chicago)

A história exemplar de um dos mais imaginosos empresários americanos.

É raro começar com menos que J. Willard (“Bill”) Marriott e aproveitar tanto graças apenas ao trabalho honesto, às oportunidades que lhe foram oferecidas; igualmente raro é alguém dividir tão generosamente as vantagens e a abundância resultantes com os que o ajudaram a vencer.
Marriott é um ex-vendedor de refrigerantes em pequena escala, que viu a sua minúscula firma crescer até se transformar num negócio de 350 milhões de dólares anuais. Sua empresa prospera em três setores principais:
Restaurantes. A Marriott Corporation opera 300 restaurantes e tem outros 300 operando sob licença. Entre eles encontram-se restaurantes de tipo familiar, lanchonetes de grande capacidade para refeições rápidas e algumas casas de luxo – como, por exemplo, o Cassino Valadier, que Bill Marriott insiste em classificar como “o melhor restaurante italiano em Roma.” A firma também fornece refeições para universidades, hospitais e grandes empresas.
Serviço para aviões. Só em 1970, foram servidas cerca de 50 milhões de refeições preparadas por Marriott para os passageiros de 85 linhas aéreas do mundo, o que faz dele o maior operador independente do ramo.
Hotéis. Durante o ano de 1970, quando os níveis de ocupação dos hotéis americanos estiveram abaixo de 70%, os 15 hotéis da cadeia de Marriott (mais sete estão em construção) permaneceram cerca de 80% cheios. Além disso, foram construídos novos Marriott Inns – motéis de alta qualidade – nos arredores de seis cidades do Meio-Oeste americano.
Há uma quase palpável aura mística à volta da companhia de Marriott, uma espécie de certeza entre os empregados de que a sua empresa é, merece ser e será sempre a Nº 1 no ramo. Esta mística deve-se em grande parte à personalidade afável e aos sensatos instintos, livres de qualquer egoísmo, que sempre orientaram o homem que construiu a companhia.
Primeiras influências. John Willard Marriott nasceu em 17 de setembro de 1900, na aldeia de Marriott, perto de Ogden, no Estado de Utah, e é o segundo dos oito filhos de Hyrum e Ellen Marriott.
Suas recordações de infância são de um barraco de madeira junto de um canal de irrigação infestado de mosquitos e de toda a família doente com febre tifóide. Aos oito anos, já ganhava para o seu próprio sustento, usava roupas de cowboy que não eram exatamente fantasia, levava à cinta um revolver que não era de brinquedo, vivia da terra e trabalhava longos e quentes verões e ainda mais longos e gélidos invernos com os pastores bascos que tratavam dos rebanhos de seu pai. Quando tinha 15 anos, Bill levou milhares de ovelhas de trem até Omaha para vende-las. Com esta espécie de responsabilidades, a auto-confiança e o tino comercial desenvolveram-se rapidamente.
A família Marriott era muito unida e profundamente religiosa, e, ao fazer 19 anos, Bill estava ansioso para servir como missionário mórmon. Passou dois anos em Connecticut e Vermont, em busca de almas para converter em todo o lugar por onde passava. Este período exerceu profundo efeito sobre ele e viria a influenciar os muitos milhares de vidas com que ele entraria em contato. O rapaz adquirira uma fé baseada no conhecimento da mensagem mórmon, que exalta o trabalho honesto como virtude fundamental e insiste em enérgica independência, parcimônia e auto-respeito que advém de prover a família, a igreja e os irmãos e irmãs de fé menos afortunados da vida.
Logo que voltou para casa, Bill teve amplas oportunidades de ajudar os outros. O mercado de ovelhas estava arruinado. Mais de 15.000 ovelhas que seu pai havia comprado a 14 dólares a cabeça tiveram de ser vendidas a três dólares. Hyrum Marriott faliu e nunca mais conseguiu recuperar-se.
Companheiros de trabalho. Como filho mais velho, Bill passou a assumir cada vez maior responsabilidade pela família. Estava decidido a assegurar uma educação completa para si próprio e para seus irmãos e irmãs. Matriculou-se na Universidade de Weber, em Ogden, e trabalhou para o jornal da escola, tomou conta de uma livraria e de um pequeno teatro e ensinou inglês para estudantes ginasiais. Embora calouro, serviu também como presidente do grêmio estudantil. Estudava nas horas vagas – mais ou menos das quatro às sete da manhã.
Durante o verão que se seguiu ao seu primeiro ano na escola, ele e um amigo ganharam mais de 3.000 dólares cada um vendendo produtos de lã à base de comissões. O seu notável desempenho como vendedor valeu-lhe a oportunidade de se tornar, no verão seguinte, gerente de vendas para sete estados do oeste americano. Não havia salário, mas a percentagem que ele ganhou nas vendas da sua equipe, naquele ano, renderam-lhe quase 5.000 dólares.
Depois de dois anos, ele passou para a Universidade de Utah, onde viria a conhecer Alice Sheets, a linda filha de um proeminente advogado de Salt Lake City, que era também bispo mórmon. Assim que a viu pela primeira vez no grêmio estudantil, Marriott decidiu que se casaria com ela. Derrotou um pequeno exército de pretendentes e ficaram noivos quando ele se formou, em 1926. Alice formou-se um ano mais tarde, com 19 anos.
Com a ajuda financeira de um amigo, Bill comprou uma concessão para venda de refrigerantes em Washington. Para instalar o negócio, alugou metade de uma padaria no centro da cidade, ergueu uma parede divisória e começou a trabalhar no dia em que Lindbergh atravessou o Atlântico de avião – 20 de maio de 1927. Algumas semanas mais tarde, ele foi até Utah para casar com Alice, que se tornou imediatamente tesoureira da empresa em Washington. “Nós trabalhávamos todo o tempo”, conta ela. “Abríamos às nove da manhã e geralmente caíamos exaustos na cama pela uma ou duas da madrugada.”
De frio a quente. Quando o outono chegou, com os seus ventos frios, as vendas de refrigerantes caíram rapidamente. Bill decidiu vender refeições ligeiras quentes, sanduíches e pratos mexicanos baratos. Passou uma noite inteira removendo um enorme barril de refresco e instalando fogões e banquinhos no balcão. Com receitas gentilmente oferecidas pela Embaixada mexicana, Alice tornou-se cozinheira e Bill garçom.
Ao longo dos anos da depressão econômica da década de 30, enquanto restaurantes de luxo fechavam em todo o lado, os lucros aumentavam sempre na atmosfera clara e limpa do restaurante de Marriott, onde o principal eram os pratos baratos e de alta qualidade e o bom serviço. Os Marriott aumentaram o negócio e a variedade de pratos e trouxeram o conceito de drive-in para o Leste. Em 1932, Marriott tinha sete restaurantes em Washington. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando os americanos começaram a viajar de carro como nunca, os restaurantes de Marriott começaram a pontilhar as estradas desde Nova York até à Flórida, com alguns pontos a oeste.
Ao expandir a sua força de trabalho (presentemente mais de 27.000 empregados), os Marriott não procuravam necessariamente pessoas com experiência, mas sim com entusiasmo – gente disposta que se interessasse e se preocupasse com o serviço que ofereciam e que não tivesse medo de sete jornadas de 12 horas por semana. Quase imediatamente, Bill começou a pensar em maneiras de fazer os seus empregados participarem nos lucros da empresa. Era uma iniciativa dentro da mais pura tradição mórmon, porque inspirava iniciativa, aplicação e espírito de colaboração. Era também, muito simplesmente, um bom negócio.
Oportunidades ilimitadas. Até agora, a política de participação utilizada por Marriott nas relações com os seus empregados deu origem a uma lista de gente rica, e parece não haver dúvida de que virá a produzir alguns milionários. É o caso, por exemplo, de um gerente regional de um grupo de restaurantes de Marriott, que começou a sua carreira há 34 anos como garçom de drive-in e que acaba de se aposentar – aos 50 anos!
Naturalmente, nem todos os garçons, cozinheiros e contadores estão habilitados a tornarem-se gerentes e futuros milionários. Mas aqueles que investem regularmente no fabuloso plano de participação nos lucros de Marriott (os empregados podem contribuir com cinco a 10% do seu salário, enquanto a companhia entra com 8% dois seus lucros brutos) não precisam de se preocupar com a velhice. Numa cozinha de aeroporto, por exemplo, um gerente de operações pode aposentar-se aos 55 anos com 500.000 dólares de pé de meia.
Existe também um plano de aquisição de ações à prova de riscos. Qualquer empregado efetivo pode pedir que cinco a 10% do seu salário líquido seja posto de parte para adquirir, no fim do ano, ações, ao preço em vigor em janeiro do ano posterior. Por exemplo, se o preço for de 39 dólares em janeiro, mas subir para 40 dólares durante o ano, o empregado compra ao preço mais baixo. Por outro lado, se o valor da ação cair, o empregado tem o direito de levantar o seu dinheiro a qualquer momento. Só o que ele arrisca é o lucro que poderia obter numa conta que renderia juros.
Conforme comprovou com alegria uma empregada de um restaurante quando comparado com o comportamento normal das ações de Marriott. Depois de vários aumentos a longo prazo, três bonificações e duas por uma e dividendos anuais de um a 4%, o investimento inicial de 1.000 dólares desta mulher, feito em 1953, vale agora aproximadamente 60.000 dólares.
Os empregados de Marriott são praticamente perseguidos com oportunidades para obter o máximo de si próprios. A companhia paga parte das despesas dos que desejam completar os estudos para obter diploma secundário ou entrar para cursos universitários e comerciais relacionados com as suas funções. Em 1969, a firma lançou um programa de “desenvolvimento profissional”. Depois de apenas três meses, qualquer novo empregado cujo supervisor o recomende como merecedor da oportunidade para tentar uma outra função entre várias possíveis, trabalhando nas tarefas experimentais durante uma ou duas horas por dia.
Quase 750 empregados de Marriott já se beneficiaram do programa; muitos que nunca imaginaram que isso pudesse acontecer estão se transferindo para tarefas de maior responsabilidade. Se qualquer empregado demonstrar possuir aptidões especiais, é enviado para o Centro de treinamento Marriott, uma espécie de universidade de administração e desenvolvimento da indústria de hotéis e restaurantes, que funciona na sede da companhia, em Washington, onde está submetido a um programa de “treinamento por imersão total.”
Por outro lado, os salários e os benefícios extras oferecidos por Marriott são comparáveis ou superiores aos das demais organizações do ramo. Em resumo, Bill Marriott construiu uma força de trabalho que, durante mais de 40 anos, tem sido caracterizada por uma lealdade quase cega para com a companhia.
Se algum dia o capitalismo progressista de Marriott for adotado em larga escala, é possível prever as alturas econômicas que poderão ser alcançadas.

segunda-feira, novembro 27

O edifício Empire State

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Lowell Thomas

Alguns leitores discordarão de minha escolha do mais famoso edifício de Nova York. Os que odeiam arranha-céus não verão nada de maravilhoso a seu respeito. Outros argumentarão que o Empire State, com seus 102 andares e, durante 40 anos, a estrutura mais alta do mundo, é hoje desafiado pelos 110 andares do World Trade Center de Nova York, pela espantosa nova Sears Tower de Chicago e pela agulha da antena de televisão Ostankino de Moscou, com os seus 537 metros equivalentes a 150 andares.
Mas, para o milhão e meio de visitantes que sobem anualmente aos 558,5 metros de altura do Empire State e se extasiam com a vista de 130 quilômetros, o rei dos arranha-céus nunca será destronado. Considerem algumas de suas principais características. Apesar da elegância de suas linhas, ele pesa mais de 360 mil toneladas. Como uma cidade dentro de outra, ele provê todos os serviços concebíveis para ao seus 16 mil habitantes permanentes, desde bancos e escritórios de corretagem até restaurantes, lojas de roupas e supermercados.
Para seus ocupantes de passagem e visitantes, há 73 elevadores de alta velocidade, mais quatro escadas rolantes que dão acesso aos andares inferiores. Para servir as suas necessidades de comunicações dispõe de 5.600 quilômetros de fios telefônicos e telegráficos, além de 18 mil telefones. Para lhe fornecer energia e aquecimento, dispõe de outros 750 mil metros de fios elétricos. E, para mantê-lo impecavelmente limpo e em ordem, exige uma equipe de manutenção de 400 pessoas, entre as quais 200 arrumadeiras e um batalhão de lavadores para suas 6.500 janelas. Só em números, o Empire State é um rei.

sábado, novembro 25

O canal do Panamá

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Lowell Thomas

Durante séculos, os homens e os governos sonharam com uma passagem que unisse o Atlântico ao Pacífico através do Istmo do Panamá, com os seus 80 quilômetros de largura. Já em 1534, Carlos V da Espanha tinha iniciado um estudo sobre a sua viabilidade. Mas seu sucessor, Filipe II, foi informado das inúmeras dificuldades previstas pelos engenheiros, e decidiu que o projeto era “contrário à vontade divina”. Trezentos anos depois, uma companhia francesa, chefiada por Ferdinand de Lesseps, construtor do canal de Suez, e financiada pelas economias de milhares de franceses, foi levada à “espantosa catástrofe” de uma arrasadora falência.
Uma nova empresa, formada para salvar o que restava, igualmente fracassou e, em 1902, vendeu a sua participação ao governo dos Estados Unidos, por 40 milhões de dólares.
Sentindo-se felizes com o negócio, os Estados Unidos deram um passo decisivo, estimulados pelas constantes exortações de Teodoro Roosevelt, de fazer “acabar com a sujeira”. Parecia incrivelmente fácil, mas nunca, na história da humanidade, qualquer construção tinha enfrentado tão grandes dificuldades. O Panamá, como os construtores do canal logo descobriram, estava empestado de cólera, malária e febre amarela. Depois, o terreno era um viveiro de cobras e insetos, assolado por traiçoeiras correntes, pântanos, areias movediças e ressacas – para não falar nos terremotos e deslizamentos de terra, que chegavam a mover até 55 mil metros cúbicos de terra de cada vez, soterrando casas, trens e pás mecânicas, e exigindo semanas de trabalho para desenterra-las.
Não obstante, o canal foi completado em 1914 – e tão bem construído que ainda serve, hoje, quase da mesma forma pela qual foi inicialmente criado. Tem sido admirado em todo o mundo, e alguém se referiu a ele como “a maior façanha de engenharia de nossa época, o mais generoso impulso ao comércio do mundo que qualquer nação já concebeu para todas as outras nações”.

sexta-feira, novembro 24

A grande pirâmide

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Lowell Thomas

Até hoje, a maior estrutura de pedra do mundo, esse gigantesco monumento à vaidade de um soberano, merece permanecer no topo de qualquer lista de maravilhas construídas pelo homem. Cobrindo 53mil metros quadrados de deserto, e medindo 230 metros de comprimento de cada lado da base, a estrutura tem 140 metros (a altura de um edifício de 40 andares) do chão até o ápice.
Sua construção por Quéops, um dos mais importantes faraós do Egito, consumiu aproximadamente 2,5 milhões de blocos de pedra, alguns pesando mais de 70 toneladas, e manteve centenas de milhares de trabalhadores empregados por mais de 20 anos. Usando primitivos martelos e talhadeiras de cobre, os operários cortaram os imensos blocos com tanta precisão que se sobrepõem sem mais de meio milímetro de espaço entre si. As cordas, trançadas nas molduras semi-cilíndricas e atadas aos rolamentos e carros de arrasto, permitiram que os blocos fossem arrastados por uma rampa, onde foram empilhados em sua posição pelos esforço muscular. Depois, a estrutura foi toda revestida de alto a baixo, com calcário branco e muito bem polido.
O interior da pirâmide é uma abra prima ainda maior de habilidade, engenharia e design. Lá foi construída a câmara ardente do faraó, com os seus seis telhados sustentando um peso maciço. E também lá foi erigida a Grande Galeria, com aproximadamente 47 metros de comprimento e oito e meio de largura, além dos corredores que sobem e descem. Não admira que esse leviatã de pedra mereça a admiração dos modernos visitantes – como fazia com a dos antigos, há quase 50 séculos

quinta-feira, novembro 23

A grande muralha da China

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Lowell Thomas

Construída há 22 séculos, a grande muralha foi criação de Shih Huang Ti, um governante fronteiriço que, por volta de 221 a . C. , recrutou um grande exército, e usou suas poderosas legiões para dominar diversos estados dissidentes, formando com eles algo semelhante a uma China Unida. Assumindo o grandioso título de ”Primeiro Imperador”, fundou a dinastia Chin, da qual se deriva o nome China.
O imperador tinha duas manias: um desprezo pelos intelectuais e um horror aos bárbaros da Mongólia, que sempre vinham do norte para atacar. Para cuidar dos primeiros, perseguiu todos os homens letrados; e, para ligar com os últimos, construiu a grande muralha – em parte, como se diz, para manter os bárbaros afastados, mas também para manter os seus súditos ocupados demais para se rebelar.
Mais de um milhão de operários foram empregados na obra, que durou 18 anos. Um escritor a chamou de “o maior cemitério do mundo”, calculando que 400 mil operários morreram nela, de frio, calor e tempestades de areia.
Mas a muralha, uma vez completada, era algo de se ver. como um gigantesco dragão, ela se estende por 2.500 quilômetros pelos desertos, sobre montanhas de 1.500 metros de altitude e através de vales abaixo do nível do mar, das proximidades de Pequim ao norte da China. Sua altura varia entre 4,5 e 15 metros; sua espessura, entre 4,5 e 9 metros. Uma estrada corre sobre toda a sua extensão, cercada por ameias feitas para proteger contra as armas inimigas. A intervalos regulares, em guaritas aproximadamente construídas para esse fim, postam-se milhares de sentinelas.
Impossível dizer quantos invasores se viram bloqueados pela grande muralha. Exceto por breves períodos, a China esteve sujeita a contínuas invasões bárbaras, vindas do norte, e foi várias vezes conquistada. Hoje, desmoronando em muitas de suas partes, a muralha é um trambolho inútil, embora impressionante. Como todas as barreiras erigidas pelas nações para manter os seus habitantes do lado de dentro e os estrangeiros do lado de fora, ela fracassou e, atualmente não é mais do que um monumento histórico, com interesse apenas para turistas.

quarta-feira, novembro 22

A Potala

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Lowell Thomas

No ano de 1949, na cidade de Lassa, capital do Tibet, meu filho Lowell Jr. e eu tivemos muita sorte conseguindo visitar a fabulosa Potala, reverentemente chamada em toda a Ásia “o palácio dos deuses”. Durante séculos, ela foi a residência do Dalai Lama, o chefe espiritual de milhões de budistas. Até então, poucos visitantes ocidentais tinham sido admitidos naquela terra silente e fechada.
Nunca esquecerei o momento em que, depois de semanas nas escarpadas trilhas do Himalaia, saímos por um vale e vimos Lassa diante de nós, com o impressionante palácio. A Potala, com as suas 1.400 salas, fica no topo de uma colina sobranceira à cidade. Surgindo pelos lados e coroando o topo, o palácio parecer ter crescido da rocha. Com seus muitos andares de branco e vermelho, encimados por cúpulas douradas, e com as salas abarrotadas de inestimáveis tesouros, acumulados durante séculos, a Potala tem mais de 135 metros de altura e 275 metros de comprimento. Sua construção foi iniciada em 1641 pelo 5º Dalai Lama, e continuou por quase 50 anos. A Potala é hoje uma relíquia da arquitetura mundial.
Meu filho e eu fomos dos últimos ocidentais a fazer a viagem até Lassa. Na primavera de 1959, as legiões da China comunista entraram rápida e furiosamente no Tibet, assumindo o controle, depois de uma das mais sangrentas invasões dos tempos modernos. O rei deus escapou, e vive ainda hoje exilado na Índia.

terça-feira, novembro 21

Três maneiras de fazer alguma coisa

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1972
Autor : James E. Rofer

Um estudante universitário, um piloto comercial e um cientista – os três com aquele “pequeno e magnífico impulso” que existe em quase todos nós – ajudaram a fazer do mundo um lugar melhor para se viver.

Denis Detzel, um estudante de 26 anos, do curso de Pedagogia da Universidade Northwestern, tinha uma idéia que o perturbava: muita gente quer aprender e muita gente tem conhecimentos para transmitir, mas os dois grupos raramente se encontram fora das salas de aula.
Então, pensava ele, por que não provocar esse encontro?
Com grandes esperanças e 25 dólares no bolso, Detzel e cinco colegas criaram o que chamaram de Intercâmbio de Ensino. Distribuíram panfletos oferecendo-se para anotar o nome de qualquer pessoa que desejasse ensinar, aprender ou simplesmente discutir qualquer assunto. Pessoas que tivessem interesses semelhantes seriam postas em contato. Conseguiram emprestado um telefone para ser usado à noite e organizaram turnos para responder às chamadas. No primeiro mês, receberam menos de uma dúzia delas.
“Todo o mundo dizia que era uma grande idéia”, lembra Detzel, “mas ninguém telefonava.”
Detzel e um colega, Bob Lewis, saíram pelas redações de jornais e estações de rádio divulgando o programa. Outros estudantes fizeram cartazes para afixar em lojas, bibliotecas e lavanderias. Pouco a pouco, as consultas foram aumentando – uma dúzia por semana, depois uma dúzia por noite, até que em certas noites o telefone ficava ocupado até depois das 10 horas, quando deveriam encerrar o expediente.
Os encontros começaram. Um professor aposentado foi encarregado de instruir alunos de escola primária. Outro ajudou uma mulher a passar num teste de equivalência do curso secundário, o que a qualificava para um cargo mais bem remunerado num hospital. Um locutor de rádio ensinou radio-jornalismo a um porto-riquenho que planejava voltar para a sua terra natal e usar ali os seus novos conhecimentos. Uma chinesa ensinou a culinária de seu país para Sandy, mulher de Lewis; esta, por sua vez, deu aulas de piano aos filhos da sua professora. Depois de um ano de funcionamento, o intercâmbio tinha instrutores para 191 assuntos e estudantes para 209. os campos de interesse variavam entre artes, ciências, línguas, história, passatempos, religião, política e atletismo – mas abrangiam também assuntos menos convencionais, como meditação transcendental e e mahjongg.
Diz Detzel: “Com um telefone e um fichário, qualquer um pode começar o seu próprio Intercâmbio de Ensino. Não custa praticamente nada”.

William I. Guthrie, piloto da Eastern Airlines, com uma bolsa de vôo na mão, caminhou rapidamente, sob o sol de Miami, em direção a um DC-8 que o esperava, e, mais sério que de costume, tomou seu lugar na cabina. Enquanto procedia à verificação dos instrumentos, Gutrie sabia que aquele dia – 1º de agosto de 1970 – seria importante para ele. Era o seu 30º aniversário como piloto da Eastern, mas era também o seu Dia da Independência pessoal.
Durante 10 anos, Gutrie vinha sofrendo com a idéia de que as companhias de aviação comercial estavam poluindo a atmosfera descarregando combustível no ar desnecessariamente. Cada vez que se desligava uma turbina, o circuito de abastecimento do motor desviava combustível para uns depósitos existentes no revestimento do motor – a fim de evitar que ele continuasse a alimentar a seção do queimador. Quando o avião decolava, este combustível era automaticamente lançado no ar.
Guthrie havia mencionado aos seus superiores na Eastern que os depósitos poderiam ser facilmente esvaziados antes da decolagem. Havia também escrito cartas de protesto a funcionários do Governo. Todos lhe diziam que ele estava se preocupando com ninharias. Na realidade, um avião quadrimotor libertava pouco mais de três litros de combustível em cada decolagem. Mas o total atingia umas incríveis 6.000 toneladas de querosene lançadas anualmente só sobre os Estados Unidos.
Guthrie escolheu o seu vôo de aniversário para cuidar sozinho do problema. Antes de o seu gigantesco avião decolar da pista de Miami, ele foi descarregado. Depois, a caminho de San Juan, em Porto Rico, Guthrie enviou uma mensagem pelo rádio avisando que os depósitos teriam de ser descarregados novamente antes de ele levantar vôo para a próxima etapa rumo a Nova York. Em San Juan, o pessoal de terra fez o trabalho em quatro minutos. Guthrie pediu que os depósitos também fossem descarregados em Nova York, antes de retornar a Miami.
“Completei três viagens sem qualquer incidente”, diz ele. “Outros pilotos da Eastern começaram também a exigir que esvaziassem os seus depósitos. Dava a impressão de que a Eastern lideraria o movimento”.
Mas funcionários da Eastern deram instruções ao pessoal de terra para não esvaziar os depósitos. Quando Guthrie insistiu, foi despedido por insubordinação. O sindicato dos pilotos, considerando a demissão ilegal, ameaçou entrar em greve. A Administração Nacional para o Controle da Poluição Atmosférica, pressionada por cidadãos que aplaudiam a ação de Guthrie, ordenou às empresas de aviação que fizessem planos para suspender a descarga de combustível nas zonas dos aeroportos. A Associação de Transportes Aéreos, representando as empresas, prometeu atacar o problema, “agora que foi trazido à atenção”.
A Eastern e outras empresas aéreas americanas iniciaram uma série de testes que revelaram, ironicamente, que nem era preciso descarregar o combustível: não há qualquer inconveniente em manter o querosene no circuito de combustível. Quando todos os dados recolhidos nos testes tiverem sido compilados, as empresas de aviação poderão muito bem abandonar completamente o sistema de descarga.
A Eastern readmitiu Guthrie, pagou-lhe os salários atrasados e nomeou-o consultor da companhia para controle de resíduos. Diz um porta-voz da Eastern: “Preferimos tê-lo conosco do que contra nós. Trata-se de um individuo realmente valioso.”
Diz Guthrie: “Eu tentei ajudar.”

Um velho ônibus pára numa zona rural e dele salta uma dúzia de garotos sorridentes. Alguns empunharam ferramentas para trabalhar no meio dos pinheiros; outros entraram em estufas para plantar azáleas e outras flores em vasos ou reuniram-se a garotas que estavam preparando arranjos florais, numa sala de aula. Todos os jovens trabalhavam com dedos desajeitados ou caminhavam com passadas incertas. Quando alguns paravam de sorrir, suas faces perdiam toda a expressão. Eram todos retardados mentais. Alguns eram mongolóides.
No passado, a maioria dessas crianças retardadas ficaria em suas casas ou em instituições públicas ou privadas, mal equipadas para fazer deles adultos auto-suficientes. Mas, em 1962, Samuel L. Scheinberg, um geneticista do Departamento da Agricultura dos Estados Unidos que trabalhava na estação de pesquisas de Beltsville, em Maryland, sugeriu que os pais das crianças retardadas montassem uma escola para treina-las em trabalhos de horticultura, onde o ritmo é lento e grande a necessidade de mão-de-obra; Scheinberg e um engenheiro agrônomo de Beltsville, Bill Bailey, receberam permissão para usar 28.000 metros quadrados de uma área federal abandonada, perto da cidade de Upper Marlboro, e fundaram ali o Centro de Treinamento Hortícola de Melwood.
O centro conta hoje com 60 estagiários. Cada um dos jovens tem de andar vários quarteirões até um ponto de ônibus, o que os acostuma a serem independentes. Todos recebem “treinamento para sobrevivência” em Melwood – como ler os sinais de trânsito, fazer uma chamada telefônica ou pagar a conta num bar ou restaurante. Durante uma recente visita ao centro, pude observar os rapazes plantando em vasos algumas mudas de flores que eles haviam semeado e tratado em estufas. Em seguida, garotas numa linha de montagem embrulhavam os vasos com papel colorido e uma fita. Outras trabalhavam com flores artificiais e velas, fazendo grinaldas e centros de mesa. À medida que adquirem experiência, os estagiários começam a receber pequenos salários, com aumentos freqüentes de acordo com o desenvolvimento das capacidades. Tudo que eles produzem é vendido através de supermercados, lojas de departamentos e na própria loja de Melwood. Um estagiário, ao fazer uma venda, acionou a máquina registradora com gestos dolorosamente desastrados, mas deu o troco certo – e sorriu triunfante.
As vendas de produtos e serviços já cobrem um terço do orçamento anual de 300.000 dólares de Melwood, e o resto vem de subsídios do Governo ou donativos particulares. Mais importante que tudo, o centro de Melwood permitiu que 40 jovens ali formados – que antes mal conseguiam cuidar das suas necessidades pessoais – ocupassem cargos competitivos em hortas, floristas e serviços públicos.
Numa sala de aula vazia, deparei com um novo aluno sentado no chão ao lado de um fichário. O garoto sorriu, levantou-se e desapareceu. “Não se preocupe”, disse-me um dos assistentes. “Ele acabará conseguindo.” Como para confirmar, um garoto com longa experiência em Melwood disse, cheio de confiança: “Eu também já fui retardado.”

segunda-feira, novembro 20

Empresas que se auto-destroem

Fonte : Revista Época
Data : Novembro de 2006.
Autor : Max Gehringer

Empresários não são cegos. Eles são míopes. Existem mesmo empresas que se auto-destroem. É como se elas trabalhassem para diminuir, e não para crescer. Obviamente, qualquer empresa pretende ser a maior, a melhor e a mais eficiente.
Só que, na prática, as ações não condizem com as palavras. Existem dez sintomas de que uma empresa possa estar se auto-destruindo.:

01 – Uma dificuldade muito grande para implantar idéias novas.

02 – Muito trabalho que é feito tem de ser refeito, porque no fim se descobre que não era bem aquilo.

03 – Documentos são produzidos sem uma clara finalidade. São memorandos, e-mails, relatórios e cópias de relatórios, que vão para o arquivo, ou para o lixo, sem ninguém ler.

04 – Existe uma grande dificuldade para achar alguém que realmente tome uma decisão. Um sempre manda falar com o outro.

05 – Projetos raramente são implantados na data prevista, e não raramente são adiados para uma data indefinida, mas nunca muito próxima.

06 – Os subordinados tem dificuldade para conseguir falar com os superiores, que estão sempre muito ocupados, e não podem atender naquele momento.

07 – A comunicação é falha. Os funcionários não são informados das coisas, eles descobrem as coisas.

08 – A inconsistência é a regra. O mesmo problema é tratado de um jeito hoje e de outro jeito amanhã.

09 – Exemplos positivos que ocorrem fora da empresa são citados de modo negativo. Por exemplo, um concorrente lança um produto e a empresa se preocupa mais em achar defeitos nele que em tentar enxergar suas possíveis qualidades.

10 – O clima é pesado. Os funcionários passam o dia sentindo uma espécie de desconforto, que ninguém consegue explicar. A explicação é que a empresa está, lentamente, se desmanchando.

sábado, novembro 18

Os dez mandamentos do chefe

Fonte : Revista Época
Data : Novembro de 2006.
Autor : Max Gehringer

Os dez mandamentos de como se dar bem com o chefe.

01 – nunca falar mal do chefe. As orelhas do chefe são do tamanho de todas as paredes e de todos os corredores da empresa.

02 – Nunca tentar ofuscar o chefe. Seja na roupa, seja no comportamento, seja pelo conhecimento.

03 – Jamais colocar a culpa no chefe, principalmente quando a culpa é do chefe.

04 – Não assumir responsabilidades que são do chefe. Se não existe um subchefe oficial, isso não significa que a função será de quem pegar primeiro.

05 – Não tratar o chefe como amigo íntimo na frente de colegas ou de clientes.

06 – Não interromper o chefe quando ele está falando. Não é que chefes não gostam de ser interrompidos. Eles detestam.

07 – Nunca dizer “Chefe, temos um problema”. Isso é o que se chama de delegar para cima. O chefe não quer problemas, quer soluções.

08 – Jamais perguntar se um trabalho é urgente. Se o chefe em pessoa pediu, então é urgentíssimo.

09 – Nunca dizer que cometeu um erro porque não entendeu bem o que o chefe tinha pedido. Se o chefe fala gótico, o subordinado precisa aprender gótico.

10 – Nunca tentar explicar para os colegas alguma coisa que o chefe disse. Chefes não apreciam o subordinado porta-voz. Se alguém tem dúvida, deve perguntar diretamente para o chefe.

Comentário final de Max Gehringer:
Você tem todo o direito de dirigir sua carreira. Mas lembre-se que, no elevador da vida profissional, o chefe é o ascensorista.

sexta-feira, novembro 17

Espelho da minha disposição

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1977
Autor : Bil Gilbert

Este cão de pêlo avermelhado não verá outro inverno; é altura de meditar em como decorreram nossas vidas.

No início do inverno, há certos dias límpidos e luminosos em que devem ser feitas determinadas coisas que, antes dessa época, são despropositadas ou completamente impossíveis, tais como rachar lenha. Esperamos até que uma leve camada de neve cubra o solo e os raios solares estejam suficientemente quentes para derrete-la ao meio-dia. Com madeira seca, uma serra afiada, um bom machado e tempo suficiente, parece não haver mais nada que devêssemos ou quiséssemos fazer do que ficar rachando lenha. Temos a sensação de que éramos capazes de continuar naquilo o dia todo...
Meu velho cão de pêlo avermelhado, Dain, sobe a ladeira caminhando com dificuldade e se esgueira por baixo da cancela. Procura um lugar ao sol, do lado da pilha de toros que fica abrigado do vento, deita-se com lentidão e se enrosca sobre o casaco que eu despi e joguei no chão. Aí fica o dia inteiro, enquanto o trabalho prossegue. Sedentário como é, ele está de serviço, fazendo aquilo que toda a vida fez sempre junto de mim, no banco do carro a meu lado, sobre meu saco de dormir, sob minha cama, por baixo de minha secretária. Dain é um cão de companhia; especificamente, de minha companhia. Corresponder a meus estados de espírito e atividades tem sido seu trabalho a vida inteira.
Dain me observa rachando lenha com um ar pouco interessado. Se lhe falo ou o afago durante uma pausa, levanta a cabeça e bate com a cauda no chão em resposta. De contrário, esgaravata, ergue o focinho para farejar quaisquer odores, dormita ao sol.
Foi em tempos um cão corpulento de 45kg, capaz de correr durante horas, trepar a penhascos como uma cabra, obrigar um guaxinim a se refugiar numa árvore. Está agora com 11 anos e pesa menos 10kg, seus flancos está magros, seu traseiro perdeu firmeza, seu pêlo, outrora lindo ( uma farta pelagem vermelho dourada da cor das folhas dos carvalhos no outono e abundante como a de um castor), está agora rareando, e com malhas brancas. Ele próprio já vai estando um pouco surdo, e algumas vezes também desmemoriado.
Sua idade e doenças tem feito alterar o padrão de nossas duas vidas. Por uns tempos, não haverá mais caçadas no mato; seria cruel pedir-lhe isso. Agora, é uma questão de cortesia dizer-lhe com um pouco de antecedência que estou indo a qualquer lugar, a fim de que ele não tenha de levantar-se rapidamente para seguir-me. Quando quero bater papo, que não se sinta obrigado a pôr-se de pé ou, pior do que isso, tentar faze-lo e não ser capaz.
Enquanto está deitado apanhando sol encostado à pilha de lenha, ele por vezes geme quando muda de posição. Alguns de seus achaques são aqueles que sobrevêm normalmente a qualquer cão grande de idade avançada, mas, devido à maneira como ele abusou de si próprio e os outros abusaram dele, os anos se tornaram especialmente duros para Dain.
Quando ele tinha dois anos, caminhamos três mil quilômetros através de uma cadeia de montanhas; mais precisamente, eu caminhei três mil quilômetros e Dain talvez seis mil. Ele explorava atalhos laterais, corria à frente, voltava, ficava para trás a fim de investigar o que quer lhe chamasse a atenção. Desde então, percorreu talvez mais oito mil quilômetros em matas, montanhas e desertos, através de pedras e gelo, e pelo meio da neve. Suas pernas estão agora artríticas, com cicatrizes deixadas por rochas calcárias e fragmentos de gelo, por arame farpado, por espinhos de roseira brava.
Recordo-me de ter partido numa quente manhã de junho para percorrer 25km através de um grande deserto. Não levávamos água porque, com meu orgulho, pensei que quando dela precisasse podia encontra-la em qualquer lugar da região, mas enganei-me. Dain caminhava com um ruído surdo, respirando com dificuldade, de língua pendente. Ele ainda prosseguia, meio morto; depois, começou a cambalear e, finalmente, teve um colapso, entrando em coma. Foi arrastado e levado às costas durante os últimos oito quilômetros até que chegamos a uma cisterna na qual tropecei e onde me sentei, segurando sua cabeça acima da água até ele se reanimar.
Uma noite, dormimos juntos de um pequeno lago num bosque. Três trutas, já limpas e envolvidas em folhas, ficaram escondidas na forqueta de uma árvore; para comermos pela manhã. O cheiro do peixe atraiu um urso noturno. Dain se ergueu e desapareceu na escuridão; após algumas corridas para cá e para lá, o urso sumiu fugindo pelo matagal de abetos, mas Dain ficou com algumas costelas fraturadas.
Ele já foi muito maltratado pelas presas de um coati, escoiceado por um cavalo, dilacerado pelas garras de um açor, mordido por uma serpente venenosa; caiu num poço de mina; sua perna esquerda foi esmagada por um caminhão. Agora, são evidentes os indícios de que seus dias estão contados; ele já não verá outro inverno.
Dain e eu temos sido bons companheiros, um exemplo do que é possível entre o homem e o cão. Parte de nossa linguagem mútua é tradicional: sente-se, fique, venha, me siga, vá buscar, não; o abanar da cauda, a cabeça no colo, o chorar à porta, uma variedade de ganidos e latidos. Quando anda vagueando lá fora, há um latido especial como resposta a um estranho que passa na estrada, a um desconhecido que entra na picada, a pessoas que conhece, às que vão de carro e às que vão a pé. Há certos latidos para cães, outros para gatos e outros ainda para seres que não são pessoas, nem cães nem gatos. Dain não solta latidos com o fim de dar qualquer informação específica, mas como manifestação externa de seu sentir interior. O resultado, porém, é o mesmo do que se estivesse emitindo palavras.
Dentre uma variedade de sinais, eu sei quando Dain está excitado, alarmado, contente, fatigado, confuso. Ele sabe tudo isso acerca de mim... e ainda mais. Reconhece diferentes graus de minha ira, alegria, incerteza, receio, triunfo, dor, doença, júbilo, impaciência, aborrecimento, satisfação – e responde a todos eles. Houve uma época em que meus amigos e eu celebrávamos as noites de fim de ano de forma exuberante e pouco moderada. Eu costumava me levantar na manhã seguinte e dar um passeio pelas montanhas com alguém que estivesse disposto a isso. Há nove anos, ninguém foi comigo. Estava um dia carregado de nuvens e sombrio. Eu caminhava, evidentemente de ressaca, com mau gosto na boca, má disposição no estômago, cabeça a latejar e meditando na fraqueza do caráter e na estupidez geral.
Nesse tempo, quando Dain era mais jovem, se eu não lhe pedisse que ficasse, ele tomava gostosamente parte em nossos passeios sem destino, desfrutando um prazer canino dos sons e aromas com que deparava. Naquela manhã de Ano Novo, estando tão preocupado comigo próprio, não lhe prestava muita atenção. Então, olhei para baixo e o vi caminhando silenciosamente a meu lado, de cabeça e cauda pendentes – a imagem da depressão. “Meu Deus!”, lembro-me de pensar, “ele está de ressaca por simpatia.”
Um cão de companhia reage ao nosso estado de espírito imitando-o, funcionando como uma espécie de espelho vivo. À medida que os anos foram passando, houve ocasiões em que Dain, por seu comportamento, me mostrou como eu me estava sentindo. Eu podia não saber até que ponto me estava achando bem disposto ou deprimido, entusiasmado ou irritado, mas então ficava sabendo, quando, por acaso, surpreendia a atitude e disposição do meu cão.
O amor, disse alguém, é o desejo de entender os conhecimentos de outrem. Se for assim, as afirmações de que os cães amam os homens não são tão piegas como por vezes parecem. Este velho cão de pêlo avermelhado me conhece de uma forma tal que nenhum outro ser vivo jamais me conheceu ou virá a conhecer. Um cão não pode aconselhar ou discutir ou criticar. Não tem possibilidade de exprimir algo como: “Você se sente mal porque bebeu demais e é um imbecil.” Há momentos em que ser objeto de um amor sem críticas é provavelmente uma coisa triste, mas também há ocasiões em que isso se torna uma sensação imensamente agradável.
Certa noite, os acontecimentos me deram uma rápida e temerosa compreensão daquilo que Dain podia realmente valer para mim. Nós nos encontrávamos sozinhos numa cabana num ermo desfiladeiro, através do qual serpenteia uma horrível estrada pedregosa. Má como é, essa estrada só serve para trânsito de indivíduos cujas intenções não são das melhores. Nessa noite, eu estava na cabana trabalhando à luz de uma lanterna em apontamentos de campo relacionados com coatis. Ouvi um carro lá embaixo e depois vozes; então, houve alguns tiros. Peguei num rifle e saí com Dain. Descemos silenciosamente um pouco do atalho que se perdia através de um denso bosque de carvalhos. Ouvimos vozes, depois passos no atalho que passava lá embaixo e vimos o clarão dos faróis. Dain avançou na direção de onde vinham os ruídos, ladrando ferozmente.
“Mata esse cachorro maldito!” ouvi alguém dizer – e, logo a seguir, dois tiros. Praticamente sem refletir, desatei a correr na direção dos carvalho e comecei a gritar ameaças.
As vozes e ruídos se afastaram. Pouco depois, ouviu-se o bater da porta de um carro e este se pôs em marcha. Fiquei trêmulo, não tanto pelo encontro com o perigo, que provavelmente era mínimo, mas devido à minha reação perante ele. Estava tremendo porque, num momento de ira cega, parecia que teria morto outro homem em defesa de um cão. É bastante duvidoso que haja circunstâncias em que valha a pena uma pessoa pagar esse preço, mas, por alguns instantes, considerei Dain digno dele.
Enquanto continuava rachando lenha, pensava no velho cão de pêlo avermelhado, observava-o e falava com ele. Quando ele dormitava ao sol dos primeiros dias de inverno, eu refletia sobre outro preço que, dentro em pouco, teria de pagar por Dain. Num dia já muito próximo, talvez mesmo antes de chegar a primavera, aconteça o que acontecer, antes que sua idade e debilidade se tornem para ele um estado de permanente humilhação e dor, eu o matarei. Não será um veterinário a faze-lo com uma agulha, numa sala esterilizada. Se Dain puder, me seguirá; se não, eu o levarei para um lugar tranqüilo e o matarei com minhas próprias mãos. Será essa a última coisa que faremos juntos; então, quando esse doloroso momento tiver de chegar, os soluços, a dor e a perda constituirão o preço derradeiro que eu terei de pagar.

quinta-feira, novembro 16

Uma boa educação é tudo

Fonte : Internet
Data : Desconhecido
Autor : Desconhecido

História Número Um.
Muitos anos atrás, Al Capone possuía virtualmente Chicago. Capone não era famoso por nenhum ato heróico. Ele era notório para empastar a cidade com tudo relativo a contrabando, bebida, prostituição e assassinatos.
Capone tinha um advogado apelidado "Easy Eddie". Era o seu advogado por um excelente motivo. Eddie era muito bom! Na realidade, sua habilidade, manobrando no cipoal legal, manteve Al Capone fora da prisão por muito tempo. Para mostrar seu apreço, Capone lhe pagava muito bem. Não só o dinheiro era grande, como Eddie também tinha vantagens especiais.
Por exemplo, ele e a família moravam em uma mansão protegida, com todas as conveniências possíveis. A propriedade era tão grande que ocupava um quarteirão inteiro em Chicago. Eddie vivia a vida da alta roda de Chicago,mostrando pouca preocupação com as atrocidades que ocorriam à sua volta.
No entanto, Easy Eddie tinha um ponto fraco. Ele tinha um filho que amava afetuosamente. Eddie cuidava que seu jovem filho tivesse o melhor de tudo: roupas, carros e uma excelente educação. Nada era poupado. Preço não era objeção. E, apesar do seu envolvimento com o crime organizado, Eddie tentou lhe ensinar o que era certo e o que era errado. Eddie queria que seu filho se tornasse um homem melhor que ele. Mesmo assim, com toda a sua riqueza e influência, havia duas coisas que ele não podia dar ao filho: ele não podia transmitir-lhe um nome bom ou um bom exemplo.
Um dia, o Easy Eddie chegou a uma decisão difícil. Easy Eddie tentou corrigir as injustiças de que tinha participado. Ele decidiu que iria às autoridades e contaria a verdade sobre Al "Scarface" Capone, limpando o seu nome manchado e oferecendo ao filho alguma semelhança de integridade. Para fazer isto, ele teria que testemunhar contra a quadrilha, e sabia que o preço seria muito alto. Ainda assim, ele testemunhou.
Em um ano, a vida de Easy Eddie terminou em um tiroteio em uma rua de Chicago. Mas aos olhos dele, ele tinha dado ao filho o maior presente que poderia oferecer, ao maior preço que poderia pagar. A polícia recolheu em seus bolsos um rosário, um crucifixo, uma medalha religiosa e um poema, recortado de uma revista.

O poema:
O relógio de vida recebe corda apenas uma vez e nenhum homem tem o poder de decidir quando os ponteiros pararão, se mais cedo ou mais tarde.
Agora é o único tempo que você possui. Viva, ame e trabalhe com vontade. Não ponha nenhuma esperança no tempo, pois o relógio pode parar a qualquer momento.

História Número Dois
A Segunda Guerra Mundial produziu muitos heróis. Um deles foi o Comandante Butch O'Hare. Ele era um piloto de caça, operando no porta-aviões Lexington, no Pacífico Sul. Um dia, o seu esquadrão foi enviado em uma missão.
Quando já estavam voando, ele notou pelo medidor de combustível que alguém tinha esquecido de encher os tanques. Ele não teria combustível suficiente para completar a missão e retornar ao navio. O líder do vôo instruiu-o a voltar ao porta-aviões. Relutantemente, ele saiu da formação e iniciou a volta à frota. Quando estava voltando ao navio-mãe viu algo que fez seu sangue gelar: um esquadrão de aviões japoneses voava na direção da frota americana.
Com os caças americanos afastados da frota, ela ficaria indefesa ao ataque. Ele não podia alcançar seu esquadrão nem avisar a frota da aproximação do perigo.
Ha via apenas uma coisa a fazer. Ele teria que desvia-los da frota de alguma maneira. Afastando todos os pensamentos sobre a sua segurança pessoal, ele mergulhou sobre a formação de aviões japoneses. Seus canhões de calibre 50, montados nas asas, disparavam enquanto ele atacava um surpreso avião inimigo e em seguida outro. Butch costurou dentro e fora da formação, agora rompida e incendiou tantos aviões quanto possível, até que sua munição finalmente acabou. Ainda assim, ele continuou a agressão. Mergulhava na direção dos aviões, tentando destruir e danificar tantos aviões inimigos quanto possível, tornando-os impróprios para voar.
Finalmente, o exasperado esquadrão japonês partiu em outra direção. Profundamente aliviado, Butch O'Hare e o seu avião danificado se dirigiram para o porta-aviões. Logo à sua chegada ele informou seus superiores sobre o acontecido. O filme da máquina fotográfica mon-tada no avião contou a história com detalhes. Mostrou a extensão da ousad ia de Butch em atacar o esquadrão japonês para proteger a frota. Na realidade, ele tinha destruído cinco aeronaves inimigas.
Isto ocorreu no dia 20 de fevereiro de 1942, e por aquela ação Butch se tornou o primeiro Ás da Marinha na WW II, e o primeiro Aviador Naval a receber a Medalha Congressional de Honra. No ano seguinte Butch morreu em combate aéreo com 29 anos de idade. Sua cidade natal não permitiria que a memória deste herói da WW II desapare-cesse, e hoje, o Aeroporto O'Hare, o principal de Chicago, tem esse nome em tributo à coragem deste grande homem.
Assim, na próxima vez que você passar no O'Hare International, pense nele e vá ao Museu comemorativo sobre Butch, visitando sua estátua e a Medalha de Honra. Fica situado entre os Terminais 1 e 2.
O que têm estas duas histórias de comum entre elas?
Butch O'Hare era o filho de Easy Eddie.


quarta-feira, novembro 15

É só uma questão de estilo

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : John Ennis

Sabe aquelas pequenas façanhas, que algumas pessoas executam com naturalidade, e que você nunca foi capaz de fazer?

Conheço um homem que não consegue fazer nada certo, exceto omeletes. É baixote, morre de medo do cãozinho de sua irmã caçula, e parece incapaz de prestar a atenção necessária para não descer do ônibus no ponto errado, num dia de chuva. Mas, com uma só mão, ele consegue quebrar ovos com uma rapidez incrível, e despeja-los na vasilha sem derramar uma gota.
Com um único movimento, ele pega um ovo, quebra a pontinha na borda da caçarola, esvazia o seu conteúdo, enfia uma metade da casca vazia na outra, e joga tudo na cesta de lixo. Morro de inveja ao vê-lo desempenhar esta façanha com tanta elegância e eficiência.
Gostaria de ter o meu quinhão dessa faculdade que eu chamo de “estilística” – a atitude despreocupada que algumas pessoas assumem, ao fazer diariamente certas coisas, de uma maneira muito especial, que as torna diferentes das outras.
Infelizmente, a maioria desses truques fascinantes, tão simples para os outros, não estão ao meu alcance. Não consigo pular uma cerca dom uma só mão, nem girar enquanto danço, nem levantar uma sobrancelha, nem estacionar meu carro de uma vez só, e nem mesmo olhar as horas em meu relógio de pulo, sem antes tirar ambas as luvas, e afrouxar a abotoadura esquerda. Algumas pessoas carregam seus guarda-chuvas como se eles fossem uma Winchester 44; para mim, é como carregar uma barraca de praia.
Tem sido assim, durante toda a vida. Devo ter sido o único bebê que nunca conseguiu jogar de propósito o ursinho de brinquedo fora do carrinho, para que a babá tivesse de apanha-lo. Cheguei depois a andar bem de bicicleta – mas minhas infrutíferas tentativas de andar, largando as mãos, me causavam mais vergonha do que a dor provocada pelos inúmeros tombos que levei.
Dirigindo o meu primeiro automóvel, eu ficava fascinado por aquele som de Brambramm, que os outros faziam, na hora de arrancar. Eu só conseguia fazer um brambramm clóinc tinque tinque!, arranhando a mudança. Desisti. Mesmo os truques mais simples com um carro, era incapaz de fazer. Quando saía do automóvel, e tentava fechar a porta, fazendo aquele ruído seco de clank! a porta sempre ficava entreaberta.
Algumas pessoas não encontram a menor dificuldade em segurar a porta de um escritório apinhado, para que os clientes saiam por ela. Não sei porque, quando faço isso, as pessoas praticamente tem de ser baixar, e passar sob o meu braço, pois pareço sempre estar no caminho. Fico tenso quando vou atravessando uma rua, e vejo uma bola rolar em minha direção, não pedindo mais do que um chute certeiro que a devolva aos moleques. E lá ficam eles, a alguma distância, esperando. Aqui, estou eu, preparando-me para desferir o pontapé inábil; e ali, a um ângulo de 45 graus, está a vidraça que será a vítima dessa minha imperícia.
Por toda parte, vejo pessoas que parecem capazes de fazer as coisas mais elegantes, e com a maior naturalidade. Admiro particularmente aqueles que, como Frank Sinatra, conseguem levar a capa e o sobretudo atirado ao ombro, e usar o chapéu empinado para trás. Eu só conseguiria fazer isso, se não me importasse de ficar com um dos ombros caídos e com o queixo a me enterrar no peito.
Mesmo na monotonia de um escritório, consigo demonstrar minha incapacidade para esse tipo de coisas. Suspiro de frustração quando vejo alguém prender o telefone entre o ombro e o ouvido, e usar ambas as mãos para fazer qualquer outra coisa, enquanto fala ao aparelho. Essa simples façanha faz com que eu os anote em meu caderninho, como elementos merecedores de promoção.
Outro dia, uma importante chamada me pegou, exatamente quando estava às voltas com um maço de papel e alguns clipes – uma tarefa que requer o uso das duas mãos e alguma delicadeza. Levantando o ombro esquerdo, tentei prender o fone ao ouvido. Duas vezes o fone e a orelha entraram em desacordo com o ombro, e o fone caiu. Endireitando os ombros, virei o queixo para o ombro esquerdo, e prendi o fone com firmeza; mas, como pasta de dentes saindo pelo tubo, o fone deslizou pelas minhas costas, e acabou no bolso do meu casaco. Quando consegui refazer a importante ligação, a pessoa com que eu falava já tinha partido para três semanas de férias na Lapônia.
No terreno atlético, vi certa vez um “estilista” num trampolim, que depois de contemplar com indiferença os demais banhistas da piscina, se deixou cair, com os braços colados ao corpo, e quando ficou paralelo à água, a cerca de 30 centímetros, girou os tornozelos em parafuso, e mergulhou como uma lontra, sem levantar uma gota de água.
Foi genial e parecia fácil, por isso resolvi tentar. Tudo ia muito bem, mas, no momento vital, meus tornozelos falharam inexplicavelmente, e meu rosto foi o primeiro a descobrir isso. “Antes de repetir a façanha”, gritou um ensopado espectador, “grite Cuidado!”
Uma noite, numa festa, eu meditava sobre minhas deficiências “estilísticas”, enquanto admirava a habilidade com que meu anfitrião despejava cerveja de três garrafas, em sua mão direita, nos três copos que segurava com a mão esquerda, sem derramar uma gota. Para me consolar, eu estava jogando amendoins para o ar, e os apanhando na boca.
Um colega me contemplava, fascinado, quando deixei de abocanhar um amendoim, mas, antes que ele fosse ao chão, rebati-o com um golpe do ombro e, dando-lhe um peteleco com o punho, enviei-o diretamente à boca. “Hei!”, ele exclamou, “eu sempre quis fazer isso!”
Mastigando o amendoim, olhei para ele, e perguntei: “Para que?’

terça-feira, novembro 14

Uma família em Beirute.

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1978
Autora : Diane Willman

Durante quase dois anos, uma trágica guerra civil assolou Beirute, deixando cicatrizes permanentes na cidade e em seus habitantes; o instinto humano de sobrevivência, no entanto, prevaleceu de maneira maravilhosa. Eis a história, contada por uma mulher, do que era ser dona de casa e mãe de um bebê, numa cidade onde a violência e a morte eram lugar comum.

Moro em Beirute desde 1969. Cheguei como jornalista free-lance e fiquei seduzida pelo seu estilo de vida cosmopolita. Em 1971, conheci Jihad Bisher, funcionário de serviços num campo de refugiados da Organização de Obras e Assistência das Nações Unidas.
Casamos no ano seguinte e nosso filho Tarek nasceu em janeiro de 1975.
Três meses depois, rebentou a guerra civil; durante os dois anos seguintes, vivi uma existência cômico-macabra, representando diariamente uma imitação de uma dona de casa urbana, enquanto sangrento conflito se alastrava violentamente entre cristãos e muçulmanos, facções libanesas e palestinas, e, mais tarde, forças invasoras vindas da Síria.
Nós não queríamos continuar ali depois que a luta chegou a Beirute, mas Jihad é palestino, e a Organização da Frente de Libertação da Palestina tomou uma atitude ameaçadora em relação a qualquer palestino que tentasse ir embora.
Passaram-se vários meses antes de termos consciência das alterações que se verificavam em nossa cidade – e muito mais tempo escoou antes que percebêssemos quanto a guerra nos tinha mudado. A princípio, quando ainda tínhamos água, combustível e eletricidade, o que eu mais temia era o fechamento da única lavanderia automática de Beirute; isso quase aconteceu quando, certa manhã, granadas de morteiro caíram numa rua próxima. Uma porção de roupas nossas estavam lá nessa ocasião. Não havia nada a fazer; e, então, eu trouxe o bebê no carrinho, de volta para a casa, e deitei-o na cama para dormir o sono matinal.
Foi quando uma granada caiu perto da porta da nossa cozinha, atirando pedras e estilhaços contra as paredes. Agarrei Tarek e deitei-me no chão com ele, num corredor estreito. As granadas e os foguetes assobiavam por cima de nós. Arrastei-me pelo chão da sala de estar e carreguei o telefone e o rádio para o nosso canto, mais ou menos protegido. Enquanto Tarek brincava com os botões do rádio, eu conversava com amigos pelo telefone. Poder falar com alguém, comparar informações, saber o que havia ou apenas bater papo, era um conforto para todos nós.
Dois dias depois, a lavanderia reabriu. Naquele período, houve gente da vizinhança que teve morte violenta – mas minha maior preocupação era o monte de roupa suja que jazia sob uma película cinzenta de espuma dos extintores. Só passada uma semana é que aquele cheiro de coisas estragadas desapareceu.
À medida que as tenazes dos combates apertavam a cidade, o insólito começou a parecer cada vez mais normal. Quando eu ia ao banco buscar dinheiro para fazer compras (em Beirute, poucas pessoas guardavam dinheiro em casa, a não ser que pudessem pagar a guardas pessoais armados), já nem ligava aos guerrilheiros palestinos à porta, de metralhadora ao ombro, revistando cada cliente que entrava.
Às vezes, se os guardas me faziam parar, a fim de brincarem com Tarek, eu reagia como se um porteiro, num banco de Sydney, fizesse a mesma coisa. Dentro do banco, colocava o carrinho de Tarek bem afastado da parede de vidro que dava para a rua, para o caso de uma granada de morteiro cair ali. Dias depois, já fazia isso sem pensar.
Certa vez, quando eu ia a caminho do banco, um rapaz que brincava com uma pistola numa esquina baleou-se no peito, cambaleou sangrando e morreu. Juntamente com outros transeuntes, parei apenas o tempo suficiente para me assegurar de que não iria haver nenhum tiroteio entre grupos rivais e segui meu caminho, com o pensamento ocupado com as lojas que poderiam estar abertas e com os gêneros alimentícios que precisava comprar.
Minha alegre cidade tornara-se uma aldeia fantasma. Na nossa rua, os edifícios de apartamentos tem de 8 a 14 andares, mas, no princípio de 1976, ficaram apenas duas ou três famílias em cada um. Um por um, meus amigos estrangeiros abandonaram Beirute; quase todas as semanas, ouvíamos falar de algum amigo árabe que tinha sido morto ou ferido.
Metida nos quatro cômodos de nosso apartamento como num casulo, muitas vezes eu achava que meu pior inimigo era o tédio. Em algumas tardes, enquanto Jihad estava trabalhando e Tarek dormindo, a única coisa que eu tinha para fazer era decidir que latas ia abrir para o jantar. A biblioteca do Britsh Council era um consolo; quando não havia bombardeios, a biblioteca abria. Lá dentro, só se ouvia o tilintar das xícaras de chá, e a atmosfera era de calma e expectativa. Nas noites em que tínhamos pouca água, em que não havia eletricidade e as granadas caíam mais perto, eu abria um livro de P. G. Wodehouse que trouxera da biblioteca, aproximava de mim a vela e fugia para Blandings Castle, enquanto Jihad ouvia o rádio e cochilava.
Durante 1976, a água tornou-se uma obsessão. A maior parte do tempo eu tinha de entrar em filas, na rua, para encher baldes de plástico com água que jorrava dos canos rebentados –e aprendi que, quanto mais a gente entrava numa zona de combate, mas probabilidade havia de encontrar canos rebentados.
Se tínhamos eletricidade – o que acontecia talvez uma vez por semana -, eu ligava as bombas, enchia minha velha máquina de lavar roupa (a lavanderia tinha fechado), dava um banho em Tarek, tomava uma chuveirada, lavava os pratos sujos e enchia uns baldes e dois tambores de gasolina. Finalmente, se as torneiras ainda davam água, eu lavava o chão e regava as plantas.
Minhas plantas, contudo, não resistiram muito tempo à guerra. Uma a uma, foram morrendo – rosas australianas que nos tinham sido presenteadas durante nossa lua de mel, crisântemos da Bulgária que Jihad e eu havíamos comprado durante as primeiras férias que passamos juntos, pequenos tufos de camélias plantados quando Tarek nasceu. Fiquei espantada com o desgosto que senti pela morte das minhas plantas; afinal, nos campos de refugiados da cidade havia pessoas morrendo por falta de água.
Tarek, que era um bebê acostumado com a guerra, raramente tinha dificuldade em adormecer devido aos ruídos da guerra. Uma vez, no entanto, quando os soldados colocaram um tanque numa rua próxima e começaram a atirar num inimigo que nós não víamos, Tarek acordou gritando de medo.
Saí do apartamento que nem uma fera e berrei para os homens que rodeavam o tanque: “Vocês estão assustando meu filho!” Mostrei-lhes uma foto de Tarek. Os soldados sorriram com um ar forçado e pediram desculpas. O tanque foi embora. Um pedacinho da guerra tinha mudado de lugar porque assustava uma criança.
O trabalho de Jihad obrigava-o a ir para os campos de refugiados. Esperar que ele voltasse para casa era sempre uma experiência muito preocupante, mas eu me consolava um pouco pensando que ele estava bem habituado à guerra.
Uma vez, uma granada de morteiro explodiu alguns metros à frente do carro dele. Jihad sabia que muitas vezes três granadas são atiradas no mesmo alvo, em questão de minutos; por isso, acelerou, passando na frente dos outros carros abandonados pelos donos, que procuravam abrigo. A segunda e a terceira granadas caíram mesmo atrás dele.
De minha parte, cada vez que saía (para fazer compras, trabalhar ou ir duas vezes por mês doar sangue no hospital americano), tinha de tomar decisões táticas. A que horas o tiroteio seria mais esparso? Que caminho seria o mais seguro?
Uma mulher de traços europeus era pouco comum, e isso ajudava. Ao andar pela cidade, como correspondente, eu às vezes passava por duas ou três barreiras nas ruas, cada uma erguida por membros de diferentes facções combatentes. Por vezes, os guerrilheiros revistavam meu carro (quando eu tinha a sorte de Jihad poder empresta-lo) ou verificavam meus documentos de identidade, mas, quase sempre, simplesmente mandavam a maluca mulher ocidental seguir.
Quando ia fazer minhas reportagens, tentava deixar Tarek com vizinhos, mas às vezes tinha mesmo de leva-lo comigo. Logo que ouvia tiros, enfiava o carrinho de Tarek atrás de uma parede ou num vão de porta, e, assim que o tiroteio acabava, lá ia eu pisando os cacos de vidro e nos destroços. De vez em quando, os guerrilheiros faziam de babás; ficavam sentados no chão de um abrigo ou atrás de sacos de areia, e davam a Tarek cápsulas de balas para brincar. Imaginem!
Estaria eu sendo imprudente? Agora, há momentos em que acho que sim... mas naquela época não achava. Quando a luta estava no auge, todos os lugares eram igualmente perigosos.
Em julho de 1976, os Estados Unidos organizaram uma retirada dos estrangeiros, e eu concordei, devido à insistência de Jihad, em levar Tarek à Austrália. Foi muito duro separar-me de meu marido; se já não estivéssemos habituados à constante incerteza sobre a segurança um do outro, não teria conseguido partir. Com freqüência, durante a primeira parte de nossa viagem, a bordo de um transporte anfíbio norte-americano, Tarek, de pé no convés, acenava para longe dizendo: “Adeus, papai!”
A sensação de segurança lá na Austrália era como um sonho. Todos aqueles banhos de chuveiro, toda aquela carne e frutas frescas! Três meses na tranqüilidade de Sydney fizeram que os horrores e as privações da guerra se tornassem mais reais do que no momento em que eu estava passando por eles.
Mas, quando Tarek e eu voltamos em outubro de 1976, imediatamente o absurdo se tornou de novo comum. Levei horas para encontrar um motorista de táxi que estivesse disposto a levar-nos de Damasco a Beirute. Várias vezes tivemos de fugir de balas de atiradores esparsos, vindas de aldeias que ainda resistiam ao controle do exército sírio que avançava.
Quando cheguei a casa, Jihad estava fora, trablhando. Duas famílias que tinham ficado durante os piores meses da guerra vieram dar-nos as boas vindas.
O apartamento estava um caos. Assim que Jihad regressou, a meio da tarde, Tarek correu para os braços dele com um grito de alegria: “Papai!” Amargamente, queixei-me das baratas e das cascas de nozes de pistache debaixo das cadeiras.
“Eu me preocupando que nem doida, e você sentado aqui, comendo pistache!”, berrei.
“Não havia mais nada para fazer”, disse Jihad com um sorriso sarcástico.
Muito mais tarde, depois que Tarek foi dormir, Jihad e eu olhamos bem um para o outro. Disse-lhe que não parecia mudado; ele comentou que eu estava na mesma. Levamos tempo para compreender que estávamos completamente errados... e quanto os últimos 18 meses nos haviam modificado. Nossa pequena família resistira, mas a euforia apenas por estarmos vivos em breve desapareceu. Nosso desejo de sobrevivência tinha-se tornado de tal forma um instinto animal, tão preocupado em evitar a destruição, tão entranhado, que continuava sendo a força dominante de nossas vidas.
Nesse aspecto, éramos também vítimas da guerra, e, por essa razão, iremos deixar Beirute logo que Jihad arranje um novo lar para nós.
Queremos um lugar onde as pessoas não guardem pistolas nos carros e metralhadoras nos quartos de dormir, onde possamos esquecer a tortura e a morte, onde o insólito não seja aceito como normal.

segunda-feira, novembro 13

Canivete suiço, uma mão na roda

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1981
Autor : Roul Tunley

Instrumento utilíssimo, ele é um dos campeões da entrada de divisas no seu país natal.

Numa estradinha remota, na Argentina, o automóvel do estudante de antropologia José Luis Botti ficou preso na neve. A temperatura era extremamente baixa e José sabia que sua vida corria perigo. Recorrendo ao seu canivete do exército suíço, ele cortou um galho de árvore com 15cm de diâmetro e bolou uma alavanca para fazer o carro sair dali.

O canadense David Cox passeava na sua lancha motorizada, quando se soltou o anel de aperto do eixo da hélice, e o pobre David ficou “no mato sem cachorro”, que é como quem diz no mar sem força propulsora. Utilizando seu canivete suíço, ele conseguiu fazer o conserto necessário.

Ao escalarem a face sudoeste do monte Everest, no Nepal, os montanhistas britânicos Doug Scott e Dougal Haston foram surpreendidos por uma violenta nevasca que congelou os condutores do sistema de fornecimento de oxigênio de Dougal, entupindo-os. Com seu canivete suíço, Doug quebrou o gelo, e os dois puderam continuar na escalada até o cume.

Tal como milhões de pessoas em todo o mundo já tiveram oportunidade de constatar, esse instrumento que traz a cruz suíça gravada no cabo vermelho é uma invenção de aplicações quase ilimitadas. Simples, compacto e funcional, o canivete do exército suíço cabe em qualquer bolsa ou bolso. Fabricado por duas companhias (a Victorinox, de Ibach/Schwys, e a Wenger, S. A . , de Delémont, no cantão francófono do Jura), ele é vendido no mercado com mais de 250 variações. A maioria, tem o punho de plástico vermelho; as outras partes são de aço inoxidável, resistente à corrosão. O modelo menor tem apenas duas lâminas, e não custa mais de seis francos suíços. O do tipo usado pelos pescadores tem uma lâmina própria para escamar, e a outra imanizada, para extração de anzóis. Existem igualmente modelos para caçadores, ciclistas e esquiadores.
No ônibus espacial. De toda a série, o maior e mais versátil é o Champion, equipado com 16 lâminas ou acessórios que equivalem a 24 instrumentos diferentes – lima de unhas, abridor de garrafas e descascador de fio elétrico, chave de fenda, uma pequenina serra e até mesmo uma lupa. Tudo isso, e ainda mais, num estojo de ferramentas que cabe comodamente na mão, pesa menos de 170g e custa cerca de 57 francos suíços.
Com todos esses instrumentos abertos, a navalha faz lembrar uma enorme centopéia. O certo é que ela tem sua beleza: o Museu de Arte Moderna de Nova York, tem uma na sala reservada ao design moderno.
Desde há muito um objeto de grande popularidade na Suíça, e atualmente um dos mais importantes produtos de exportação suíços, este canivete é vendido a uma média de mais de quatro milhões de unidades por ano e apreciado em mais de 90 países. O falecido presidente norte-americano Lyndon Johnson ofereceu 400 canivetes suíços, com as suas iniciais gravadas, a personalidades que visitavam a Casa Branca; e, quando o conselheiro federal helvético Pierre Aubert percorreu diversas nações africanas em janeiro de 1979, seus anfitriões também receberam como presente o famoso instrumento. “Sem o meu canivetezinho, eu me sinto como se estivesse nu”, asseverou um tenente-coronel. Um outro sujeito escreveu aos fabricantes uma carta onde desabafava: “Separar-me dele, eu? Antes, da minha mulher...”
O canivete suíço também tem a preferência dos pilotos de aviões. Quando o aparelho espião norte-americano U2, pilotado por Francis Gary Powers, foi abatido sobre a União Soviética em 1960, os russos exibiram todos os dispositivos secretos que o piloto levava, entre eles a sua faquinha vermelha. A Força Aérea da Nigéria encomendou grande quantidade de canivetes suíços com mais uma folha, recurvada. (Se todos os outros acessórios falhassem, essa folha extra servirá para cortar as cordas emaranhadas dos pára-quedas.) Os tripulantes do futuro ônibus espacial norte-americano levarão consigo um canivete desses com nove acessórios básicos, e mais uma tesoura, uma pinça, um palito de dentes, uma lima para metal e uma chave Phillips.
O maior. A história do canivete do exército suíço principiou em 1884, quando Carl Elsener, de 24 anos, regressou à sua terra, na parte central da Suíça, depois de um período de aprendizagem em Tutlingen, tradicional centro de cutelaria alemã. Com um ajudante, começou a fazer facas numa pequena fabriqueta em Ibach, povoado no cantão de Schwyz. Em 1891, as navalhas já eram de tão boa qualidade que Carl conseguiu convencer o exército suíço a compra-las, em vez dos canivetes alemães.
Não tardou que Carl Elsener tivesse a idéia de revolucionar a industria de cutelaria. Até então, todas as navalhas se abriam apenas para um dos lados do punho, tendo uma só mola que atuava sobre as duas lâminas. O jovem industrial de Schwyz inventou um canivete com seis folhas que funcionavam com apenas duas molas e se abiram para ambos os lados do punho. Carl batizou-o de “canivete dos oficiais”. O invento foi patenteado em 1897, e passou a ser conhecido no mundo inteiro como “canivete do exército suíço”. Durante certo tempo, Elsener dominou completamente o mercado; mas então, em 1912, o governo suíço, considerando que deveria haver dois fabricantes, passou a comprar igualmente os seus canivetes à Wenter, do cantão francófono de Delémont. Presentemente estas são as duas únicas firmas que tem licença para fabricar o canivete com a cruz suíça no punho. A de Carl Elsener, que usa o nome comercial de Victorinox , continua sendo a maior, com 75% da produção. Nos últimos cinco anos, esta firma tornou-se o maior fabricante mundial de canivetes de folhas múltiplas.
Cruz e águia. Desde o princípio estes objetos se venderam muito bem, até para civis, na Suíça; internacionalmente, começaram a ser conhecidos depois da Segunda Guerra Mundial, quando os soldados norte-americanos em férias na Suíça principiaram a compra-los. Daí a pouco, estavam sendo vendidos particularmente nos armazéns de artigos militares supérfluos, nos Estados Unidos.
Hoje, o exército suíço compra cerca de 80 mil anualmente, distribuindo um a cada um dos novos recrutas. O canivete faz parte do equipamento regulamentar do soldado (tal como o fuzil e a farda), e todos os anos é inspecionado.
Desde há pouco tempo, as forças militares da República Federal da Alemanha vem comprando os seus canivetes na suíça. (Claro que o modelo para o exército alemão não traz a cruz suíça no punho, mas uma águia.)
Faz muita falta. Recentemente estive em Ibach, onde Carl Elsener III, neto do fundador, me mostrou a sua moderna fábrica, que tem 650 operários. Todos os anos, num conjunto de edifícios cujas sombras se projetam sobre os rústicos chalés dos arredores, 1.200 toneladas dos melhores aços franceses, alemães e austríacos se convertem em sete milhões de facas de vários tipos, inclusive peças de cutelaria para usos especiais. Para produzir um Champion são necessárias 348 operações. Enormes prensas são alimentadas com longas bobinas de chapa de aço, e delas saem estampadas as lâminas das facas, que, em seguida, são cortadas e temperadas. Os operários encarregam-se então de afiar os gumes das lâminas e de lhes dar o polimento final. Os canivetes são montados um por um. No final da linha de montagem, 40 mulheres, com velocidade espantosa, abrem e testam cada uma das lâminas. Por incrível que pareça, nenhuma dessas operárias tem cortes nos dedos!
Os sucessores de Carl Elsener tem mantido a capacidade inventiva do fundador. Oito engenheiros dedicam-se a melhorar constantemente a qualidade dos produtos, e esse esforço é compensado: as fábricas de cutelarias de Ibach estão permanentemente tentando satisfazer a demanda dos seus produtos. Por toda parte, no estrangeiro, vem surgindo diversas imitações, mas as diferenças de qualidade são óbvias, e o canivete do exército suíço continua sem ter rival à altura. Carl Elsener III garante orgulhosamente: “Clientes da Alemanha e da Grã-Bretanha – países com tradicionais indústrias de cutelaria – hoje já exigem com freqüência canivetes com a cruz suíça.”
Antes de eu vir embora, o diretor de exportações Xaver Ehrler fez-me uma demonstração com o último modelo Champion. Umas após as outras, foi abrindo as lâminas, tesoura, escareador e o novo abridor de latas, de grande eficiência. Fez com tanto orgulho a demonstração que, enquanto ele ia abrindo e fechando as lâminas, a mim me parecia estar observando a própria Suíça e as razões por que ela é um país tão funcional.
Aquilo é realmente mais do que um simples canivete. “Por que é que ele tem tanta aceitação entre rapazes e moças, pescadores, turistas e pilotos de jatos?’, perguntei a Carl Elsener III, que anda sempre com um no bolso. Ele o apanhou, e me respondeu com um sorriso: “Pense um pouco e vai ver que não há ninguém que não sinta falta deles.”

sexta-feira, novembro 10

Ela vai sair de casa

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 2002
Autora : Sândi Kahn Shelton

Sempre fomos unidas, mas agora minha filha estava se afastando de mim.

Minha filha Allie vai embora para a universidade daqui a uma semana. Seu quarto está cheio de sacolas com cobertores, toalhas, jeans e suéteres.
Ela não quer falar sobre a partida. Eu digo: “Vou sentir saudade de você”, e Allie me lança um de seus olhares e sai do quarto. Depois, comento com uma voz tão simpática que eu mesma me espanto: “Você vai levar seus cartazes e quadros ou prefere comprar novos lá?” E ela responde, num tom aborrecido:
“Como é que eu vou saber?”
Minha filha passa a maior parte do tempo com as amigas. Ontem foi o último dia que teria com Katharine, que ela conhece desde o jardim da infância. Em breve será o último dia com Sarah, Claire, Heather...e depois será seu último dia comigo.
Minha amiga Karen me disse: “Quando eu também estava de partida para a faculdade, passei o mês inteiro gritando com minha mãe. Prepare-se”
Estou na cozinha, vendo Allie preparar um copo de chá gelado. Seu rosto, antes franco e confiante, está fechado para mim. Tento pensar em algo importante e afetuoso para lhe dizer. Quero que saiba que estou empolgada com a faculdade que escolheu, que sei que a aventura de sua vida está apenas começando e que me orgulho dela. Mas a expressão em seu rosto é tão irritada que ela poderia me bater se eu abrisse a boca.
Uma noite, após um longo período de silêncio entre nós, perguntei o que eu teria feito ou dito para deixa-la zangada comigo. Ela suspirou e disse: “Mãe, você não fez nada. Está tudo bem.” Está tudo bem – só que distante.
De algum modo, no passado, sempre conseguíamos nos comunicar. Quando Allie era bebê, eu a pegava na creche depois do trabalho. Encontrava um lugar tranqüilo e a amamentava – olhos nos olhos, ligando-nos uma à outra.
No fim do primário, quando outras mães já lamentavam o afastamento que sentiam das filhas adolescentes, arranjei uma solução: operações de resgate. De vez em quando eu aparecia na escola, pedia licença para ela sair e a levava para almoçar, ir ao cinema ou dar um longo passeio a pé na praia. Embora pareçam irresponsáveis, essas escapadas nos mantinham unidas, quando outras mães e filhas seguiam aos trancos e barrancos. Conversávamos sobre tudo nessas ocasiões, mantidas em segredo da família e dos amigos.
Quando Allie começou o secundário, eu me levantava com ela bem cedo para lhe preparar um sanduíche e, em silêncio, tomávamos uma xícara de chá enquanto esperávamos o ônibus.
Algumas vezes durante seu último ano no colégio fui ao quarto dela à noite, as luzes apagadas, mas antes que ela adormecesse. Sentava-me na beira da cama e Allie me contava seus problemas: uma professora que diminuíra sua nota porque ela era tímida demais para falar em aula, um garoto que a importunava, uma amiga que começara a fumar. Sua voz, no escuro, era jovem e questionadora.
Dias depois eu a ouvia repetir ao telefone frases que eu dissera e que ela adotara como suas.
Mas agora temos dois tipos de despedida. Eu quero a versão romantizada, na qual vamos almoçar e dizemos o quanto vamos sentir falta uma da outra. Quero sorrisos entre lágrimas, momentos agridoces de reminiscências e a oportunidade de oferecer os últimos toques de sabedoria.
No entanto, nos preparativos para a partida, os sentimentos de Allie ficaram soterrados. Quando tento tocar-lhe o braço, ela se afasta. Recusa todos os convites que faço. Fica deitada na cama, lendo Emily Dickinson até o momento em que digo que sempre adorei Emily Dickinson e aí ela fecha o livro.
Há quem diga que, quanto mais íntima a ligação com sua filha, maior a necessidade dela de se desligar, de firmar sua identidade no mundo. E também maior a dor. Uma amiga que passou por um período difícil com a filha, mas que hoje já se reaproximou dela, tenta me tranqüilizar:
“Ela vai voltar para você.”
“Não sei, não” digo.
Às vezes fico tão aborrecida que tenho vontade de sacudir Allie e ameaça-la: “Se você não falar comigo vai ficar de castigo!” Sinto vontade de dizer a mais horrível de todas as frases maternas: “Pense em tudo que eu fiz por você.”
Uma noite estou me preparando para dormir quando ela chega à porta do banheiro e fica me olhando enquanto escovo os dentes. Por um instante penso que devo estar escovando os dentes de um jeito que não aprova. Então ela diz: “Quero ler algo para você.” É um folheto da faculdade. “Sugestões para os pais.”
Observo seu rosto enquanto lê os conselhos em voz alta:
“Não pergunte à sua filha se está com saudades de casa. Pode ser difícil nas primeiras semanas, mas não se preocupe. É um período de transição natural. Escreva-lhe muitas cartas e telefone sempre. Mande um pacote de...”
Sua voz desaparece, ela se chega a mim e enterra a cabeça no meu colo. Afago seus cabelos de leve, com medo de que fuja se eu disser uma palavra. Ficamos ali juntas por muito tempo, balançando. Restabelecemos o contato.
Sei que vai ser difícil. É provável que briguemos. Mas me sinto grata por estar ali à meia-noite, as duas cansadas e tristes, a pasta de dentes espalhada em meu queixo, segurando com força – e ao mesmo tempo soltando – a minha filha, que está tentando dizer adeus.

quinta-feira, novembro 9

Uma surpresa para as meninas

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1972
Autor : Thomas Bolton

A história de uma festa de aniversário “faça você mesmo” – e uma lição de autoridade... digamos assim.

Sentamo-nos para o café da manhã com a espontânea e alegre despreocupação de delegados que chegam para as negociações de Limitação das Armas Estratégicas. Rodeado de mulheres, aguardei o tiro de partida na discussão do Ponto 1 da agenda: o próximo aniversário de Cathy e a festa de comemoração.
Cathy, quase nove anos de idade, o temperamento de um buldogue num corpo de princesa, pigarreou antes de anunciar:
“Na festa de Andréa tinha um mágico.”
“Truques, papai!”, pediu Betsy, de cinco anos, os olhos muito arregalados na carinha terna.
“Truques”, repeti. “Vejam o mágico caro fazendo desaparecer o dinheirinho do papai! Escutem todas: esta família está tentando fazer economia. É por isso que eu próprio ando pintando o porão e mamãe, pobrezinha, faz toda a sua roupa.”
Liz, minha mulher, suspirou delicadamente, num canto neutro, segurando o bebê, que estava agourenta e desusadamente calado.
“Na festa de Patty”, continuou Cathy a enumerar metodicamente, “tinha um palhaço. Tinha até um macaco!”
“Embora os maçados andem nas árvores, não é nelas que cresce o dinheiro”, retruquei, muito rápido.
Liz abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas desistiu e tornou a fecha-la.
“Na festa de Berverly, todas andamos a cavalo.”
“Basta”, interrompi, calmamente. “As festas de aniversário nesta família não serão transformadas em extravagâncias milionárias. Um bolo simples, alguns amiguinhos, canções, um ou dois jogos... Vamos fazer tudo muito simples aqui em casa. Alguma dúvida?”
De súbito, o bebê meteu a mão na taça de ovos quentes da mãe. O grito de Liz sacudiu a louça e Betsy entornou o seu 62º copo de leite consecutivo. Apressei-me a sair para a paz e o sossego do trânsito na hora do rush.
Não voltei a pensar na festa de aniversário até ao momento em que dei a Liz um beijo de boa noite.
“Durma bem, papaizinho querido”, disse-me.
Quando se está casado já há alguns anos, adivinha-se o sarcasmo, por muito velado que seja.
“Você acha que estou sendo duro demais com Cathy?”, perguntei.
“Só espero que ela não se sinta roubada”, respondeu Liz. “Que não pense que não ligamos a ela...”
‘Quer saber de uma coisa, meu bem? Vou fazer eu mesmo a festa! Organizarei tudo, vou levar a coisa de modo que todo o mundo fique feliz.” Vi-me de repente, generoso e sereno, cercado de menininhas alegres, com vestidinhos de festa...
“Mostrarei a Cathy que sinto um interesse profundo pela sua festa....e, ao mesmo tempo, dou-lhe uma lição de economia. Deixe tudo comigo.
Liz murmurou qualquer coisa no travesseiro, algo parecido com: “Deus se compadeça de todos nós!”
O grande dia começou frio e com neve. A festa só teria início às quatro da tarde. Ao meio-dia, encontrava-me deitado no sofá, tonto de ter soprado 50 balões e pensado em possíveis danos cerebrais por falta de oxigênio. No entanto, conseguia raciocinar com toda a minha lucidez e clareza habituais.
“Organizaremos as coisas no porão”, expliquei, sorrindo, para demonstrar que estava tudo correndo às mil maravilhas.
Às quatro em ponto, a campainha tocou. Adultos podem achar elegante chegar atrasados, mas numa festa de crianças os convidados são pontuais como fiscais de impostos. A primeira a chegar foi Abigail, uma gorduchinha, com uma voz extraordinária, ressoante e forte.
“Vai ter mágico?”, perguntou.
“Não, não!” Hoje nós próprios faremos o espetáculo.”
“O senhor é corajoso”, disse a mãe de Abigail, antes de ir embora.
Depois chegaram todas as outras crianças ao mesmo tempo. Passaram por mim, velozes como coloridos peixinhos tropicais, e foram entregar os seus presentinhos a Cathy, cheia de felicidade, que abria os embrulhos numa algazarra de gritos e risos.
Passados cerca de 15 minutos, levei as mãos em concha à boca e gritei:
“Todo o mundo para o porão!”
Estava realmente bonito e alegre lá embaixo, com todo o meu fôlego embrulhado em balões coloridos e dispostos ao longo das paredes recém-pintadas de azul e mesas de jogos floridas à espera do sorvete e do bolo.
As garotinhas corriam de um lado para o outro, ruidosamente. Por fim, consegui captar-lhes a atenção e começar:
“Antes de mais nada, vamos brincar de gato e rato. As regras são muito simples. Nós...
Mas Cathy puxou-me pela manga e interrompeu-me.
“Vou por um disco primeiro”, ela disse. “Podemos brincar depois de dançar e de comer o bolo. Tem um jogo que eu sei, muito bom...”
Quando o toca-discos começou a encher o ar com uma ode lamurienta a uma motocicleta morta, fugi pela escada, como se emergisse da sétima estação do Inferno de Dante. Liz estava na cozinha, pondo as velas no bolo, e disse-me:
“Pensei que você ia ficar lá embaixo, para manter as coisas em movimento...”
“Já está na hora de Cathy aprender a cuidar-se sozinha”, respondi, ao mesmo tempo que descalçava os sapatos, ligava a TV e me sentava par ver um jogo de futebol.
No intervalo, dei uma volta pela casa e parei diante do armário do vestíbulo, onde guardo o velho capacete de futebol americano, na esperança de um dia me nascer um filho. Impulsivamente, enfiei-o na cabeça. Estava apertadíssimo nas orelhas e ia ser difícil tira-lo!
Nesse momento, Liz apareceu e anunciou:
“O bolo já foi devorado. Se não estou interrompendo nada importante, gostaria que me ajudasse. Preciso fazer bainha nesta saia... É uma espécie de sari, dá até em você.”
E, sem me dar tempo a dizer palavra, enrolou uma saia florida na minha cintura.
“Você fica ridículo!”, disse rindo, com a boca cheia de alfinetes.
Das profundezas da casa chegou nesse instante um grito que teria arrepiado de terror o próprio Hitchcock. Descalço, corri pela escada do porão abaixo e mergulhei numa escuridão de poço.
“Que aconteceu?”, gritei. “Quem se machucou?”
“Ninguém, papai”, respondeu-me Cathy das proximidades da caldeira. “Estamos brincando de ‘Assassinato no escuro’. Abigail foi assassinada.”
Deslizei ao longo da parede, na direção do interruptor. De súbito, uma umidade viscosa molhou-me o pé esquerdo. Um relâmpago de intuição segredou-me que se tratava de tinta. Tinta azul, uma lata quase cheia. Antes que minha mão tocasse no interruptor, a luz jorrou, ofuscante. No alto da escada, estava a mãe de Abigail, cujos olhos iam do meu pé azul à saia florida e ao capacete de futebol.
Abigail, pelo seu lado, desatou a gritar, esganiçada, encantada:
“Genial! O pai de Cathy é palhaço! Tem palhaço, tem palhaço!”
“É uma surpresa para as meninas”, murmurei, atrapalhado, enquanto a mãe de Abigail continuava a observar-me cuidadosamente.
Depois, tão horrorizado quanto surpreso, dei comigo executando uns passinhos de dança. O capacete balançando, a saia florida a girar e o pé azul marcando o ritmo, comecei a cantar uma canção idiota.
As meninas gritavam e riam, felizes, e, quando me inclinei, para dar por terminado o número, fui recebido com gritos de bis. Cantei de novo. Apesar dos pedidos para que cantasse mais, dei por findo o espetáculo. Começavam a aparecer outras mães, que me observavam da cozinha, com uma expressão perplexa, muito semelhante à da mãe de Abigail.
Quando as convidadas partiram, Cathy deu-me um beijo de agradecimento e Liz ajudou-me a tirar o capacete.
“Nasceu uma estrela”, declarou, com o seu jeito especial para síntese.
Mais tarde, Cathy e eu tivemos uma longa conversa.
“O verdadeiro divertimento não é algo que se possa comprar”, frisei. “É muito melhor fazer que os bons momentos aconteçam espontaneamente, por si próprios!
Continuei no mesmo tom durante algum tempo, sem que os seus olhos atentos deixassem os meus, como se estivesse a beber as minhas palavras.
“Você hoje aprendeu alguma coisas, não é verdade, Cathy?”, perguntei, ternamente.
“Sim, papai” Em seguida, a realidade. “Não sei”, continuou ela, “mas deve ser a luz ou qualquer coisa, porque,quando você inclina a cabeça para lá e eu inclino a minha para cá, vejo um grande retrato meu nos seus óculos!”

quarta-feira, novembro 8

Com o amor na garupa

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 2002
Autor : Peter Michelmore

Sobre duas rodas – Roy Hutchison dividiu com Tiffany as dores e alegrias da vida.
O motoqueiro salvou um bebê que ninguém queria

Roy Hutchison abriu a porta e, devagar, tirou o bebê de dentro do carro. Com todo o cuidado, como se estivesse carregando porcelana entre os braços musculosos, levou-o pela calçada até sua casa de tijolos vermelhos, na cidade de Independence, no Missouri. A partir daquele instante, a criança, bem enrolada e aquecida nas cobertas, com um fiapinho de cabelo louro aparecendo, tocou-lhe o coração. Ela parecia perfeita – mas não era. O corpo frágil de Tiffany tinha sido gravemente afetado no nascimento. Já dentro de casa, Roy Hutchison colocou a neném no sofá e virou-se para a mulher, Judy:
“Compramos todas aquelas roupinhas novas e bonitas”, disse. Vamos dar banho nela e ver se servem.”
Roy e Judy havia muito pensavam em adotar uma criança. Quando o casal soube de uma menininha deficiente, que ninguém queria, o Serviço de Assistência Social concordou que eles fizessem aulas de treinamento e cuidassem dela por um tempo. Cada um tinha dois filhos de casamentos anteriores, mas ambos queriam ter um bebê em casa.
A história de Tiffany era de cortar o coração. Cerca de oito meses antes, em setembro de 1984, uma adolescente com problemas mentais dera à luz no banheiro de um hospital, em Kansas City. O cordão umbilical tinha se enrolado no pescoço do bebê, cortando o fluxo de oxigênio, o que provocara sérios danos no cérebro. A menina tinha paralisia cerebral e era quase de todo cega e surda. E pior, uma curvatura na espinha dorsal, com o tempo, acabaria provocando problemas respiratórios e muito provavelmente lhe encurtariam a vida. Ela jamais conseguiria falar ou brincar como as outras crianças. Jamais se formaria, casaria ou teria filhos.
Posta sob custódia da Justiça, foi oferecida para adoção. Suas necessidades, porém, era um fardo pesado demais para que as pessoas cuidassem dela – até que os Hutchison apareceram.
Talvez algumas pessoas tenham se surpreendido em saber quer Roy, 37 anos, assumira tamanha responsabilidade. “Mas ele tem um coração enorme”, disse aos amigos sua filha, Bárbara. Técnico em emergências médicas, Roy estava certo de ter o treinamento ideal para assumir a tarefa.
Tiffany precisava ser alimentada, de quatro em quatro horas, por uma sonda estomacal; também precisava receber regularmente, pela mesma sonda, remédios destinados a evitar ataques epiléticos. Ela dormia num berço no quarto do casal, enquanto Roy e Judy se mantinham em vigília permanente. Mesmo assim, na primeira semana, Tiffany, ao remexer as pernas, prendeu os dedinhos do pé na sonda, que se deslocou. Roy e Judy tiveram de correr ao hospital para que o tubo fosse recolocado.
Apesar de assustadora, a rotina tinha suas compensações. Quando Roy colava o rosto de Tiffany no seu, ela se contorcia de prazer, e os olhos azul-esverdeados se iluminava. “Estão faiscando como diamantes, Tiffany”, dizia Roy. Havia uma forte ligação entre eles. Pouco depois do segundo aniversário de Tiffany, os Hutchison a adotaram.
Mas as pressões de cuidar da menina não diminuíram. Algum tempo depois, Roy e Judy se divorciaram, vendo-se diante de um dilema. O que seria melhor para Tiffany? Receber o tratamento médico que só uma família completa poderia oferecer? Ou o mais importante era a atenção individual? Roy acreditava nesta última hipótese. Não podia abrir mão de Tiffany. Em novembro de 1988, ele conseguiu a guarda da menina.
Como já não podia passar horas e horas de plantão na Emergência, Roy foi trabalhar como motorista de um caminhão de entregas. Sua vida girava em torno da filha: dava-lhe banho com esponja, administrava os remédios para evitar as crises e preparava a alimentação noturna, que às vezes chegava a durar oito horas. À medida que Tiffany foi crescendo, passou a leva-la a uma escola especial para crianças deficientes, além das freqüentes visitas ao médico.
Quando a trazia para casa à noite, ela ficava sentadinha em sua cadeira de rodas enquanto Roy preparava o jantar. ‘O que vamos comer hoje, Tiffany?’ perguntava em voz alta, brincando e acariciando-lhe o rosto. “Frango frito ou bife?’ a menina, que não podia comer nada, alimentava-se de afeição.
Às vezes, no meio da noite, Roy encontrava Tiffany arqueada para trás, com o corpo enrijecido por um ataque epilético. Ele então massageava-lhe as pernas e os braços até que o corpo voltasse a relaxar e ela adormecesse. Havia naquela menina, bem lá no fundo – Roy sentia isso – uma enorme vontade de viver. “Enquanto você lutar, meu bem”, dizia-lhe baixinho, “eu vou lutar com você.”
Tudo o que Roy fazia, Tiffany fazia também. Como ela não podia brincar, ele a fazia participar de suas atividades. Se ia ao cinema, a um restaurante, ao shopping, à igreja, ou mesmo se tinha um encontro com alguém, Tiffany ia junto. “Nós somos um pacote”, ia logo dizendo. Mas, mesmo assim, não eram todas as mulheres que entendiam. Uma vez, chegando à casa de Roy para comer uma pizza e assistir a um filme, uma mulher viu uma tabuleta na porta de um dos quartos. “Quarto de Tiffany”. Ela pensava que “a filha deficiente” morava numa instituição. “Acho que nosso encontro acaba por aqui”, disse a mulher a Roy.
Embora houvesse essa lacuna em sua vida, Roy vivia ocupado demais para se sentir sozinho. O emprego, os cuidados com a filha, o tempo que passava com os dois outros filhos e o trabalho que fazia com motocicletas preenchiam todo o seu tempo. Ao longo dos anos, Roy deixou a barba crescer e amarrou o cabelo castanho num rabo de cavalo, além de fazer várias tatuagens, daquelas que os motoqueiros usam. Até que, em 1992, comprou uma nova Harley-Davidson e a reformou com peças de metal cromado, a fim de participar de exposições de motos personalizadas.
À noite ele acomodava Tiffany na garagem, botava a toda altura a música favorita da menina e começava a trabalhar na motocicleta. Embora Tiffany quase não pudesse ouvir, Roy tinha descoberto que ela sentia a percussão. Ela detestava heavy metal, mas adorava as suaves vibrações da música country. Assim, Roy colocava sua cadeira de rodas num canto e conversava com ela sobre rodas de magnésio e freios a disco em meio à batida dos sucessos de Nashville.
No início de 1993, pai e filha levaram a enorme Harley preta, em cima de um trailer puxado por um caminhão, para sua primeira exposição de motocicletas, em Kansas City. Tiffany, que já estava com 8 anos, pareceu adorar o enorme auditório onde o ronco dos motores das motos era de estremecer. E deu mostras de grande excitação quando Roy a levou para passear na cadeira de rodas, mostrando-lhe as motos em exposição. A cada parada, os donos das máquinas, uns sujeitos barbudos, vestidos com jaquetas de couro, aproximavam-se para cumprimentar o pai e dizer “oi” à filha.
Roy ganhou um prêmio e logo se tornou assíduo nas exposições daquele tipo em todo o meio-oeste americano. O mesmo aconteceu com Tiffany – e com seus “tios”. Tudo começou em Kansas City, quando Roy não pode entrar com o caminhão no salão de exposições e teve de levar todo o equipamento carregando Tiffany, o que era complicado. “Roy, pode deixar que eu tomo conta dela”, ofereceu-se um motoqueiro.
Pelos anos afora Roy e Tiffany percorreram quase todos os estados americanos e nunca faltou quem ajudasse a tomar conta da menina. Quando os motoqueiros amigos de Roy iam visitá-los em casa, ela parecia reconhece-los. Percebia as passadas pesadas de suas botas e o toque suave daquelas mãos ásperas. Eles se autodenominavam seus “tios” – e havia montes deles. Na estrada, sua aparência era um tanto barra pesada – mesmo ameaçadora para algumas pessoas - , mas Tiffany era capaz de lhes derreter o coração. Por causa dela, alguns rodavam quilômetros extras a fim de participar de eventos em benefício de crianças deficientes.
O impacto de Tiffany na vida deles muitas vezes era sutil. Um “tio”, Bill Young, 56 anos, trabalhava como pintor na fábrica da Ford no Missouri. Magro e careca, de jeito rude e todo tatuado, Young trabalhava sete dias por semana para sustentar a mulher e os seis filhos. Mas, depois de observar Roy e Tiffany juntos, ele sentiu inveja. “Nunca amei meus filhos desse jeito”, admitiu. “Achava que amar era comprar tudo de que eles precisassem.” Inspirado em Roy, Bill passou a trabalhar menos horas por semana na fábrica e a ficar mais tempo com a família.
Entretanto, ainda faltava alguém na família Hutchison, alguém que não era nada fácil de encontrar. Até que, em 1999, Roy conheceu Eilene Brown, uma mulher alta e de fala mansa, divorciada e mãe de uma adolescente. No primeiro encontro, ela viajou 160 quilômetros na garupa da moto dele. Mas ainda havia um teste em que Eilene precisava passar: Tiffany.
Uma noite, a caminho de um restaurante, Roy acomodou Tiffany no assento do caminhão e deixou Eilene sentar-se entre eles. Numa curva, Eilene, meio indecisa, abraçou a menina para que não tombasse e Tiffany se aconchegou a ela. Olhando-as com o canto dos olhos, Roy ficou pensando que ali talvez estivesse a mulher de coração suficientemente generoso para acolher uma menininha doente.
Em pouco tempo, Eilene já estava usando jaqueta de couro e passeando na garupa de Roy nos fins de semana. Eles se casaram algumas semanas depois de Tiffany completar 15 anos.
Até então, o amor mantivera Tiffany viva por muito mais tempo do que os médicos haviam previsto. Mas a escoliose começava a pressionar os pulmões e o coração, e não havia como reverter isso. Ela precisou sair da escola e foi confinada em casa, presa a uma cama hospitalar.
Na segunda-feira anterior ao Dia dos Pais de 2000, os pulmões de Tiffany começaram a se encher de líquido. Ela ofegava com falta de ar quando Roy chegou em casa correndo. Mesmo com o oxigênio e todo o cuidado que ele lhe dedicou, passaram-se horas até que melhorasse.
Dia após dia Tiffany lutava para respirar. No domingo de manhã, Eilene deu a ela um relógio que havia comprado e embrulhado em papel brilhante. “Isso é para você dar ao papai pelo Dia dos Pais”, disse à menina. Mais tarde, naquela manhã, Roy encontrou Tiffany segurando com força seu presente. Por todo o dia e toda a noite ele permaneceu ao lado dela. “Prometi que ficaria com ela até o fim”, disse a Eilene.
Às 14h30 do dia seguinte, Tiffany ergueu fracamente a cabeça, parecendo olhar para Roy com uma expressão de ternura. “Está tudo bem, querida”, tranqüilizou-ª “Está na hora de você ir.”
Pouco depois, Tiffany afundou a cabeça no travesseiro. Seu rosto foi tomado por uma expressão de paz e ela parou de respirar. “Agora você não vai mais sentir dor, meu bem”, sussurrou Roy. ‘Chegou a sua vez de sorrir, cantar e brincar.”
“Venham de moto e com todas as roupas de couro”, disse Roy aos muitos amigos que quiseram ir ao funeral. Ele desejava que seu grupo de “tios e motoqueiros” se vestisse exatamente como Tiffany estava acostumada e gostava de vê-los.
Na manhã ensolarada do enterro, uma multidão de motoqueiros tomou a rua dos Hutchisons. Terminado o serviço fúnebre, uma guarda de honra de seis motocicletas foi à frente do cortejo, acompanhando Tiffany da capela até o túmulo simples, na colina do cemitério. Uma fila interminável de motos acompanhava o carro funerário.
Seguiram lentamente pela estrada sinuosa que cortava os campos, em meio ao trovejar dos motores – um som que Tiffany adorava. Aquilo foi um consolo para Roy, e ele se sentiu orgulhoso de repente. Nós somos vencedores, Tiffany, pensou. Nós conseguimos.
Com seu amor, ele lhe dera a vida. E, com sua vida, ela lhe dera o amor.