sexta-feira, novembro 10

Ela vai sair de casa

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 2002
Autora : Sândi Kahn Shelton

Sempre fomos unidas, mas agora minha filha estava se afastando de mim.

Minha filha Allie vai embora para a universidade daqui a uma semana. Seu quarto está cheio de sacolas com cobertores, toalhas, jeans e suéteres.
Ela não quer falar sobre a partida. Eu digo: “Vou sentir saudade de você”, e Allie me lança um de seus olhares e sai do quarto. Depois, comento com uma voz tão simpática que eu mesma me espanto: “Você vai levar seus cartazes e quadros ou prefere comprar novos lá?” E ela responde, num tom aborrecido:
“Como é que eu vou saber?”
Minha filha passa a maior parte do tempo com as amigas. Ontem foi o último dia que teria com Katharine, que ela conhece desde o jardim da infância. Em breve será o último dia com Sarah, Claire, Heather...e depois será seu último dia comigo.
Minha amiga Karen me disse: “Quando eu também estava de partida para a faculdade, passei o mês inteiro gritando com minha mãe. Prepare-se”
Estou na cozinha, vendo Allie preparar um copo de chá gelado. Seu rosto, antes franco e confiante, está fechado para mim. Tento pensar em algo importante e afetuoso para lhe dizer. Quero que saiba que estou empolgada com a faculdade que escolheu, que sei que a aventura de sua vida está apenas começando e que me orgulho dela. Mas a expressão em seu rosto é tão irritada que ela poderia me bater se eu abrisse a boca.
Uma noite, após um longo período de silêncio entre nós, perguntei o que eu teria feito ou dito para deixa-la zangada comigo. Ela suspirou e disse: “Mãe, você não fez nada. Está tudo bem.” Está tudo bem – só que distante.
De algum modo, no passado, sempre conseguíamos nos comunicar. Quando Allie era bebê, eu a pegava na creche depois do trabalho. Encontrava um lugar tranqüilo e a amamentava – olhos nos olhos, ligando-nos uma à outra.
No fim do primário, quando outras mães já lamentavam o afastamento que sentiam das filhas adolescentes, arranjei uma solução: operações de resgate. De vez em quando eu aparecia na escola, pedia licença para ela sair e a levava para almoçar, ir ao cinema ou dar um longo passeio a pé na praia. Embora pareçam irresponsáveis, essas escapadas nos mantinham unidas, quando outras mães e filhas seguiam aos trancos e barrancos. Conversávamos sobre tudo nessas ocasiões, mantidas em segredo da família e dos amigos.
Quando Allie começou o secundário, eu me levantava com ela bem cedo para lhe preparar um sanduíche e, em silêncio, tomávamos uma xícara de chá enquanto esperávamos o ônibus.
Algumas vezes durante seu último ano no colégio fui ao quarto dela à noite, as luzes apagadas, mas antes que ela adormecesse. Sentava-me na beira da cama e Allie me contava seus problemas: uma professora que diminuíra sua nota porque ela era tímida demais para falar em aula, um garoto que a importunava, uma amiga que começara a fumar. Sua voz, no escuro, era jovem e questionadora.
Dias depois eu a ouvia repetir ao telefone frases que eu dissera e que ela adotara como suas.
Mas agora temos dois tipos de despedida. Eu quero a versão romantizada, na qual vamos almoçar e dizemos o quanto vamos sentir falta uma da outra. Quero sorrisos entre lágrimas, momentos agridoces de reminiscências e a oportunidade de oferecer os últimos toques de sabedoria.
No entanto, nos preparativos para a partida, os sentimentos de Allie ficaram soterrados. Quando tento tocar-lhe o braço, ela se afasta. Recusa todos os convites que faço. Fica deitada na cama, lendo Emily Dickinson até o momento em que digo que sempre adorei Emily Dickinson e aí ela fecha o livro.
Há quem diga que, quanto mais íntima a ligação com sua filha, maior a necessidade dela de se desligar, de firmar sua identidade no mundo. E também maior a dor. Uma amiga que passou por um período difícil com a filha, mas que hoje já se reaproximou dela, tenta me tranqüilizar:
“Ela vai voltar para você.”
“Não sei, não” digo.
Às vezes fico tão aborrecida que tenho vontade de sacudir Allie e ameaça-la: “Se você não falar comigo vai ficar de castigo!” Sinto vontade de dizer a mais horrível de todas as frases maternas: “Pense em tudo que eu fiz por você.”
Uma noite estou me preparando para dormir quando ela chega à porta do banheiro e fica me olhando enquanto escovo os dentes. Por um instante penso que devo estar escovando os dentes de um jeito que não aprova. Então ela diz: “Quero ler algo para você.” É um folheto da faculdade. “Sugestões para os pais.”
Observo seu rosto enquanto lê os conselhos em voz alta:
“Não pergunte à sua filha se está com saudades de casa. Pode ser difícil nas primeiras semanas, mas não se preocupe. É um período de transição natural. Escreva-lhe muitas cartas e telefone sempre. Mande um pacote de...”
Sua voz desaparece, ela se chega a mim e enterra a cabeça no meu colo. Afago seus cabelos de leve, com medo de que fuja se eu disser uma palavra. Ficamos ali juntas por muito tempo, balançando. Restabelecemos o contato.
Sei que vai ser difícil. É provável que briguemos. Mas me sinto grata por estar ali à meia-noite, as duas cansadas e tristes, a pasta de dentes espalhada em meu queixo, segurando com força – e ao mesmo tempo soltando – a minha filha, que está tentando dizer adeus.

Nenhum comentário: