quinta-feira, novembro 9

Uma surpresa para as meninas

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1972
Autor : Thomas Bolton

A história de uma festa de aniversário “faça você mesmo” – e uma lição de autoridade... digamos assim.

Sentamo-nos para o café da manhã com a espontânea e alegre despreocupação de delegados que chegam para as negociações de Limitação das Armas Estratégicas. Rodeado de mulheres, aguardei o tiro de partida na discussão do Ponto 1 da agenda: o próximo aniversário de Cathy e a festa de comemoração.
Cathy, quase nove anos de idade, o temperamento de um buldogue num corpo de princesa, pigarreou antes de anunciar:
“Na festa de Andréa tinha um mágico.”
“Truques, papai!”, pediu Betsy, de cinco anos, os olhos muito arregalados na carinha terna.
“Truques”, repeti. “Vejam o mágico caro fazendo desaparecer o dinheirinho do papai! Escutem todas: esta família está tentando fazer economia. É por isso que eu próprio ando pintando o porão e mamãe, pobrezinha, faz toda a sua roupa.”
Liz, minha mulher, suspirou delicadamente, num canto neutro, segurando o bebê, que estava agourenta e desusadamente calado.
“Na festa de Patty”, continuou Cathy a enumerar metodicamente, “tinha um palhaço. Tinha até um macaco!”
“Embora os maçados andem nas árvores, não é nelas que cresce o dinheiro”, retruquei, muito rápido.
Liz abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas desistiu e tornou a fecha-la.
“Na festa de Berverly, todas andamos a cavalo.”
“Basta”, interrompi, calmamente. “As festas de aniversário nesta família não serão transformadas em extravagâncias milionárias. Um bolo simples, alguns amiguinhos, canções, um ou dois jogos... Vamos fazer tudo muito simples aqui em casa. Alguma dúvida?”
De súbito, o bebê meteu a mão na taça de ovos quentes da mãe. O grito de Liz sacudiu a louça e Betsy entornou o seu 62º copo de leite consecutivo. Apressei-me a sair para a paz e o sossego do trânsito na hora do rush.
Não voltei a pensar na festa de aniversário até ao momento em que dei a Liz um beijo de boa noite.
“Durma bem, papaizinho querido”, disse-me.
Quando se está casado já há alguns anos, adivinha-se o sarcasmo, por muito velado que seja.
“Você acha que estou sendo duro demais com Cathy?”, perguntei.
“Só espero que ela não se sinta roubada”, respondeu Liz. “Que não pense que não ligamos a ela...”
‘Quer saber de uma coisa, meu bem? Vou fazer eu mesmo a festa! Organizarei tudo, vou levar a coisa de modo que todo o mundo fique feliz.” Vi-me de repente, generoso e sereno, cercado de menininhas alegres, com vestidinhos de festa...
“Mostrarei a Cathy que sinto um interesse profundo pela sua festa....e, ao mesmo tempo, dou-lhe uma lição de economia. Deixe tudo comigo.
Liz murmurou qualquer coisa no travesseiro, algo parecido com: “Deus se compadeça de todos nós!”
O grande dia começou frio e com neve. A festa só teria início às quatro da tarde. Ao meio-dia, encontrava-me deitado no sofá, tonto de ter soprado 50 balões e pensado em possíveis danos cerebrais por falta de oxigênio. No entanto, conseguia raciocinar com toda a minha lucidez e clareza habituais.
“Organizaremos as coisas no porão”, expliquei, sorrindo, para demonstrar que estava tudo correndo às mil maravilhas.
Às quatro em ponto, a campainha tocou. Adultos podem achar elegante chegar atrasados, mas numa festa de crianças os convidados são pontuais como fiscais de impostos. A primeira a chegar foi Abigail, uma gorduchinha, com uma voz extraordinária, ressoante e forte.
“Vai ter mágico?”, perguntou.
“Não, não!” Hoje nós próprios faremos o espetáculo.”
“O senhor é corajoso”, disse a mãe de Abigail, antes de ir embora.
Depois chegaram todas as outras crianças ao mesmo tempo. Passaram por mim, velozes como coloridos peixinhos tropicais, e foram entregar os seus presentinhos a Cathy, cheia de felicidade, que abria os embrulhos numa algazarra de gritos e risos.
Passados cerca de 15 minutos, levei as mãos em concha à boca e gritei:
“Todo o mundo para o porão!”
Estava realmente bonito e alegre lá embaixo, com todo o meu fôlego embrulhado em balões coloridos e dispostos ao longo das paredes recém-pintadas de azul e mesas de jogos floridas à espera do sorvete e do bolo.
As garotinhas corriam de um lado para o outro, ruidosamente. Por fim, consegui captar-lhes a atenção e começar:
“Antes de mais nada, vamos brincar de gato e rato. As regras são muito simples. Nós...
Mas Cathy puxou-me pela manga e interrompeu-me.
“Vou por um disco primeiro”, ela disse. “Podemos brincar depois de dançar e de comer o bolo. Tem um jogo que eu sei, muito bom...”
Quando o toca-discos começou a encher o ar com uma ode lamurienta a uma motocicleta morta, fugi pela escada, como se emergisse da sétima estação do Inferno de Dante. Liz estava na cozinha, pondo as velas no bolo, e disse-me:
“Pensei que você ia ficar lá embaixo, para manter as coisas em movimento...”
“Já está na hora de Cathy aprender a cuidar-se sozinha”, respondi, ao mesmo tempo que descalçava os sapatos, ligava a TV e me sentava par ver um jogo de futebol.
No intervalo, dei uma volta pela casa e parei diante do armário do vestíbulo, onde guardo o velho capacete de futebol americano, na esperança de um dia me nascer um filho. Impulsivamente, enfiei-o na cabeça. Estava apertadíssimo nas orelhas e ia ser difícil tira-lo!
Nesse momento, Liz apareceu e anunciou:
“O bolo já foi devorado. Se não estou interrompendo nada importante, gostaria que me ajudasse. Preciso fazer bainha nesta saia... É uma espécie de sari, dá até em você.”
E, sem me dar tempo a dizer palavra, enrolou uma saia florida na minha cintura.
“Você fica ridículo!”, disse rindo, com a boca cheia de alfinetes.
Das profundezas da casa chegou nesse instante um grito que teria arrepiado de terror o próprio Hitchcock. Descalço, corri pela escada do porão abaixo e mergulhei numa escuridão de poço.
“Que aconteceu?”, gritei. “Quem se machucou?”
“Ninguém, papai”, respondeu-me Cathy das proximidades da caldeira. “Estamos brincando de ‘Assassinato no escuro’. Abigail foi assassinada.”
Deslizei ao longo da parede, na direção do interruptor. De súbito, uma umidade viscosa molhou-me o pé esquerdo. Um relâmpago de intuição segredou-me que se tratava de tinta. Tinta azul, uma lata quase cheia. Antes que minha mão tocasse no interruptor, a luz jorrou, ofuscante. No alto da escada, estava a mãe de Abigail, cujos olhos iam do meu pé azul à saia florida e ao capacete de futebol.
Abigail, pelo seu lado, desatou a gritar, esganiçada, encantada:
“Genial! O pai de Cathy é palhaço! Tem palhaço, tem palhaço!”
“É uma surpresa para as meninas”, murmurei, atrapalhado, enquanto a mãe de Abigail continuava a observar-me cuidadosamente.
Depois, tão horrorizado quanto surpreso, dei comigo executando uns passinhos de dança. O capacete balançando, a saia florida a girar e o pé azul marcando o ritmo, comecei a cantar uma canção idiota.
As meninas gritavam e riam, felizes, e, quando me inclinei, para dar por terminado o número, fui recebido com gritos de bis. Cantei de novo. Apesar dos pedidos para que cantasse mais, dei por findo o espetáculo. Começavam a aparecer outras mães, que me observavam da cozinha, com uma expressão perplexa, muito semelhante à da mãe de Abigail.
Quando as convidadas partiram, Cathy deu-me um beijo de agradecimento e Liz ajudou-me a tirar o capacete.
“Nasceu uma estrela”, declarou, com o seu jeito especial para síntese.
Mais tarde, Cathy e eu tivemos uma longa conversa.
“O verdadeiro divertimento não é algo que se possa comprar”, frisei. “É muito melhor fazer que os bons momentos aconteçam espontaneamente, por si próprios!
Continuei no mesmo tom durante algum tempo, sem que os seus olhos atentos deixassem os meus, como se estivesse a beber as minhas palavras.
“Você hoje aprendeu alguma coisas, não é verdade, Cathy?”, perguntei, ternamente.
“Sim, papai” Em seguida, a realidade. “Não sei”, continuou ela, “mas deve ser a luz ou qualquer coisa, porque,quando você inclina a cabeça para lá e eu inclino a minha para cá, vejo um grande retrato meu nos seus óculos!”

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