quinta-feira, novembro 2

"Cuidado com esse vaso, idionta!"

fonte : Revista Seleções
data : Maio de 1977
autor : Ray Vicker

Na Grécia, os arqueólogos não estão cavando elogios.

A arqueologia é uma profissão de gente erudita e, geralmente, não é considerada um esporte que atraia espectadores... a não ser na Grécia. Ali, qualquer pá que se enterre no quintal pode levar à descoberta de uma relíquia da era pré-cristã. Algumas horas depois, chega uma equipe de arqueólogos do Departamento de Antiguidades, trazendo atrás de si um grupo de espectadores especialistas no assunto que daria para encher um estádio de futebol.
Foi isso que ocorreu há pouco tempo, numa tarde ensolarada em Atenas, quando alguns trabalhadores realizavam escavações a alguma distância da Acrópole. Procuravam um leito de rochas para as fundações de um novo edifício. Como sempre, estavam sendo observados pelo grupo habitual de “superintendentes de calçada” que, de vez em quando, resolvia gritar algumas instruções.
De repente, a escavação parou. Em vez de rochas, os operários tinham posto a descoberto algo que parecia ser uma série de grandes lajes de pedra calcária. Os operários rápido conferenciaram com o capataz. Este telefonou para o dono do terreno, que, como manda a lei, notificou o Departamento de Antiguidades.
Uma inspeção rápida, feita por um especialista do Departamento de Antiguidades, revelou que aquele local era digno de ser investigado. Os operários que iam construir o prédio foram embora, sendo colocado ali um guarda. Combinou-se peneirar a terra das escavações no dia seguinte.
Quando a equipe arqueológica apareceu na manhã desse dia, várias dezenas de pessoas já se tinham reunido ao longo da frágil cerca. Que iriam eles descobrir? Outra Vitória de Samotrácia? Uma Vênus de Milo?
Um arqueólogo, sujeito magro, vestido de shorts, era quem estava dirigindo os trabalhos. Embora não houvesse dúvida alguma quanto à sua competência, mesmo assim ele teve de ouvir as inevitáveis instruções dadas pelos espectadores.
“Por que você não começa ali daquele lado?” gritou um, apontando para um canto afastado.
“A terra ali é mais macia”, aconselhou outro.
Enquanto isso, operários cavavam e atiravam a terra para longe, com pás. A multidão soltou num grito sufocado quando apareceram as formas de um arco. Um frêmito de excitação percorria a turba, agora ampliada com a maioria dos fregueses de um bar situado mais abaixo na rua.
O período crucial ocorreu no princípio da tarde, depois de cerca de seis horas de só cavar e limpar. Sob o arco, apareceu uma adega. Em volta, havia vestígios de outras paredes, como o alicerce de um edifício. Então, um dos vários trabalhadores que estavam na vala levantou sua picareta, bateu em algo e gritou.
A multidão em torno da cerca inclinou-se para frente, ameaçando cair toda dentro da escavação. Alarmado, o arqueólogo gesticulou e gritou palavras de admoestação. Depois, baixou-se e examinou a terra onde a picareta do trabalhador tinha atingido o objeto. Apareceu a face de um vaso de barro, uma ânfora – um desses vasos de um metro de comprimento em formato oval com uma base estreita, nos quais os antigos guardavam óleo, mel ou vinho. A picareta do trabalhador tinha estilhaçado o vaso.
Um murmúrio de protesto perpassou pela multidão: “Desajeitado idiota!” gritou alguém.
O arqueólogo examinou o objeto mais de perto, e mandou que os operários raspassem cuidadosamente a terra circundante, dois centímetros de cada vez. Apareceu outra ânfora ao lado da primeira, depois outra e mais outra. A multidão aplaudiu.
“É do século IV A C”, sugeriu um espectador.
Um dos fregueses do bar espiou para dentro do buraco. “Isto deve ter sido uma casa onde se vendia vinho”, disse, satisfeito.
“Sim”, gritou outro homem. “É um bar do século IV A C.” Pareciam estar chegando todos a um acordo.
“Não”, gritou outro. “É uma loja de venda de óleo.”
Seguiu-se uma furiosa discussão. Os participantes chamaram o arqueólogo para resolver a questão, mas ele abanou a cabeça, irritado.
A tensão começou a subir em outro lugar. Todas as ânforas estavam em perfeito estado, exceto a primeira; mas, quando um trabalhador tentou retirar o segundo vaso, o gargalo quebrou. A multidão gemeu de pesar. Um homem mostrou o punho cerrado ao trabalhador. “Açougueiro!” berrou outro.
Tiveram mais cuidado ao retirar o terceiro vaso. Foi removido intacto do seu leito por um trabalhador corajoso, mas, quando este a levantou da vala, escorregou e o vaso caiu, estilhaçando-se no chão.
“Palhaço!”
“Imbecil!”
“Estúpido desajeitado!”
De repente, aquilo foi demais para um dos espectadores. Ele saltou a barreira para dentro da escavação. Ia mostrar àqueles idiotas como se deviam fazer as coisas. Seus amigos soltavam gritos de encorajamento. Antes, porém, que ele pudesse chegar ao vaso, dois trabalhadores o agarraram e levaram-no, não muito gentilmente, para fora do buraco.
Com o escore das ânforas em 3 a 0 contra eles, os trabalhadores recuaram, pouco propensos a tentarem novamente. Ruborizado e arquejante, o arqueólogo foi tratar pessoalmente da remoção do quarto vaso, cavando a terra cuidadosamente com os dedos. Em poucos instantes, levantou uma ânfora intacta e deu-a a um dos trabalhadores. Cautelosamente, este levou-a por uma rampa até o caminhão. A multidão aplaudiu.
Então, quando outra e mais outra foram removidas em perfeito estado, todo mundo bateu palmas. Virando-se e encarando os espectadores, o arqueólogo sorriu abertamente e levantou as mãos acima da cabeça como se fosse o vencedor de uma luta de boxe. A honra da arqueologia grega estava salva.

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