quarta-feira, novembro 1

Antonio já tem sapatos para ir à escola

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1995
Autor : Jill Kinsey

Na história deste rapazinho moçambicano, órfão de guerra, o retrato de um país entre a apatia e a esperança.

“Me dê um dinheirinho aí. Por favor. Não tenho com que comer.”
Olhei para aqueles olhos negros muito redondos, para aquele rosto onde brilhavam um sorriso atraente e um olhar sabedor, e tive certeza absoluta de que o garoto já tinha feito aquilo muitas outras vezes
É uma das tragédias de Moçambique, onde milhares de meninos de rua sobreviveram à fome, à seca e a anos de guerra. Vivem do que conseguem encontrar nas latas do lixo, pedem, roubam, fazem de tudo para continuar vivos. Vim para este país devastado, situado na costa leste do continente africano, para ajudar a coordenar as cozinhas dos pobres dos Ministros de Jesus Vivo, uma organização evangélica sediada na África do Sul. Agora, enquanto estou à espera nos escritórios do serviço de imigração da pequena e poeirenta cidade de Tete, sou confrontada por esta criança baixinha e magra que não pode ter mais de 8 ou 9 anos. Baixando a mão que estendia para mim, ele se senta a meu lado com uma expressão séria no rosto. “Por que é que você está aqui sentada?”, me pergunta.
“Preciso da ajuda deste departamento para poder ir visitar o Zimbábue”, explico-lhe. “Tenho esperança de passar lá dois dias durante o Natal.”
Aqui não há quem não saiba que nas lojas do Zimbábue não falta nada. “Me traz alguma coisa?”
“E se eu dissesse que sim”, respondo-lhe, “que é que você gostaria que eu trouxesse?” Sua carinha pequena se enruga num sorriso. “Uma camisa?”, proponho. Ele sacode a cabeça. “E que tal um livro? Ou uns shorts?”
Ao fim de alguns minutos, ele acaba se resolvendo. “Podia me trazer uns sapatos? Por favor”, me pede ele. “Se for para a escola, quero ir de sapato!”
Ergue os olhos para ver qual é minha resposta. “Está bem”, concordo. “Se eu for, compro para você um par de sapatos.” Comparamos os pés dele com os meus e chego à conclusão que o número 35 ainda lhe deve durar uns bons tempos. Ele sorri de orelha a orelha.
“Como é que você se chama?”, pergunto.
“Antonio”, me responde ele.
Pego sua mão e a aperto. “Meu nome é Jill.”
Sem demora, ele se põe de pé num salto, me dá um tchau apressado e sai correndo do escritório.
Ao voltar do Zimbábue, trago comigo um par de tênis brancos. Guio lentamente através da cidade de Tete, apinhada de inúmeros refugiados, cabras, galinhas e crianças. “Jill! Jill!” Ouço a voz de Antonio antes de vê-lo. “Comprou meus sapatos?”, me grita ele.
Hoje não perde tempo com rodeios. “Comprei sim”, replico. “O melhor é você ir se encontrar comigo amanhã, no meu quarto lá na pensão, para apanha-los.”
Na manhã seguinte, bem cedo, ouço batidas fortes na porta de meu quarto. Gemma, minha pastora alsaciana, ladra desalmadamente. Embora seja uma fofura de bicho., muitas crianças daqui fogem assim que a vêem. Antonio, porém, não deixa que um simples cachorro lhe sirva de obstáculo quando o que está em jogo é uma coisa tão importante como um par de sapatos.
Senta-se numa cadeira. Gemma e eu ficamos observando-o, enquanto ele tira o tênis da sacola, os calça e aperta as tiras do velcro sobre o peito do pé. Estão grandes demais para ele, mas Antonio está tão feliz que mal consegui dizer obrigado. Acaricia os sapatos com as mãos. “Quero ir para a escola”, afirma. “Você pode me ajudar?”
Hesito por momentos. Se vou ajuda-lo a freqüentar uma escola, tenho de saber mais coisas sobre este diabrete. “Onde estão seus pais?”, pergunto. Antonio me informa que o pai morreu na guerra. Sua mãe vive lá para o lado do Malawi e ele em Tete com uma tia.
“Vai comigo amanhã ver se me deixam entrar na escola?”, me pede. Talvez já tenha tentado antes, ou até a tia, e o pessoal de lá tenha recusado. Como saber? Mas aceito ir com ele.
Às 7 da manhã seguinte nos juntamos à fila que se estende em frente de uma mesa comprida à qual estão sentados três homens. Quando chega nossa vez, o Sr. Alexandre, secretário da escola, mostra-se cooperante, mas sacode a cabeça. “Ele não pode freqüentar a escola”, me diz, para logo se explicar: “Não tem documentos.” Mas sorri bondosamente e sugere que falemos com a diretora, Dona Cecília.
Mulher pequena, com uma presença extremamente marcante, ela se enternece com Antonio. “Não tenho certeza de que consigam arranjar-lhe uma certidão de nascimento”, avisa, ”mas é por aí que vocês tem de começar.” Pegando um papel, escreve nele um nome. “Talvez este senhor possa ajudar”, sugere, explicando em seguida a Antonio onde devia ir para tanto.
O menino é o verdadeiro retrato da confiança. Não lhe restam quaisquer dúvidas de que vai começar a freqüentar a escola. Afinal, o que é que são uns meros papéis a menos? Pela parte que me toca, porém, não me sinto tão certa assim. Este país funciona à base de papel, e muitas vezes a obtenção de um documento em falta é uma tarefa monumental.
Parece-me então que é chegada a altura de fazer uma visita à “tia” do Antonio para verificar sua história. O carro segue por uma estrada de terra batida cheia de gado e semeada de buracos cheios de água escura.
“É aqui que minha tia vive”, anuncia o menino, ao mesmo tempo que aponta para um barracão humilde. Corre lá para dentro e volta a sair com a tia e, milagre dos milagres, com a mãe, que veio de Malawi de visita. Ela está incrivelmente magra e tem feridas abertas no rosto. Traz um bebê às costas e outro pela mão. Depois de nos cumprimentarmos, pergunto-lhe: “Veio para ficar?”
Sua resposta é lenta: “Na, vou-me embora amanhã.”
“E vai levar o Antonio?”, inquiro. Ela olha para mim com um ar admirado. “Não, ele nunca viveu em outro lado.”
“Mas não preferia que seu filho fosse com a senhora?” Ela baixa os olhos para o chão e encolhe os ombros. Está quente, quente demais para tentar encontrar respostas. “Ele pode começar a ir à escola aqui?”, insisto.
Ela encolhe os ombros mais uma vez. “Por que não? Se deixarem.” A apatia que se nota na África é tão assustadora quanto sua pobreza. É muito fácil condena-la do alto de todo nosso conforto, mas nós não sobrevivemos a uma guerra sangrenta, à fome, à seca e nunca vimos pessoas morrerem de fome à frente de nossos olhos.
Explico-lhe que talvez o Antonio possa começar a ir à escola, mas que precisamos saber onde nasceu e quando; quem era seu pai e o que lhe aconteceu. Ela me conta então que Antonio tinha nascido em 1981, em algum lugar da província de Tete, lá mais para o norte, e que o pai tinha sido morto em 87 ou 88. Chamava-se Samuel Traz. Mal consigo acreditar que Antonio já tenha 12 anos. É muito mirrado, o que, obviamente, se deve à má nutrição.
Voltamos à minha caminhonete. “Não posso ir morar com você?”, me pede ele.
“Não”, replico suavemente. “Eu nunca fico muito tempo no mesmo lugar, e você tem de assentar num lugar para poder ir à escola.” O rosto de Antonio fica triste. Não há dúvida de que esse menino está mesmo precisando de umas boas refeições e de muito amor e carinho. Mas por ora tenho de me limitar a conseguir que freqüente a escola. A educação é uma esperança para o futuro.

Estamos sentados à mesa do Sr. Paulo. Foi com este homem que Dona Cecília nos recomendou que falássemos. Ele tem um enorme impresso à sua frente, pronto para ser preenchido. “Como é que você se chama?”, pergunta, olhando para Antonio.
“Antonio.”
“Antonio de que?”
“Só Antonio.”
O Sr. Paulo sorri e explica pacientemente a ele que tem de lhe dizer mais do que um só nome. O menino responde: “Mas eu só tenho um nome.”
“E que tal se acrescentasse o nome do seu pai?”, proponho.
A idéia lhe agrada. “Meu nome é Antonio Samuel Traz.” O Sr. Paulo começa a escrever.
Uma hora depois, saímos do prédio com uma certidão de nascimento na mão – um autêntico milagre num país famoso por sua lentidão. Voltamos então a ir ter com Dona Cecília, que, a pouco e pouco, também está se metendo no espírito dessa aventura. “A seguir, ele tem de ir tirar fotografias e de ir tirar sua carteira de identidade”, nos informa ela, e nos entrega um novo papel com um nome e as indicações necessárias para localizarmos uma pessoa. E lá vamos nós outra vez. As fotos são fáceis de tirar. Podemos ir busca-las na manhã seguinte.
Nesse dia, depois de as termos apanhado, vamos à procura do juizado de menores. Outra secretária. Outro impresso. Outro homem. “Como é que você se chama?”
“Antonio Samuel Michael Traz”, responde nosso sorridente diabrete.
“Não é isso que diz aqui”, diz o jovem funcionário, lendo o que está escrito na certidão de nascimento, e volta a repetir a pergunta: “Como é que você se chama?”
“Antonio Samuel Michael Traz.”
Não posso acreditar. “Como é, Antonio?”, pergunto-lhe. “Que é isso?”
Ele encolhe os ombros. “Pronto, está bem, meu nome é Antonio Samuel Traz.”
O funcionário assente com a cabeça. “Data de nascimento?”
“1981”, responde o menino.
‘E o dia e o mês?”, pergunta o funcionário. Explico que Antonio é órfão e que só conhecemos o ano de seu nascimento. “Assim não dá”, explica por sua vez o funcionário, sacudindo a cabeça. “Ele tem de saber a data de seu nascimento.”
“Bom, então o que é que nós fazemos?”
Aquele homem pensa com certeza que sou de compreensão lenta. “Inventar!” Inventar uma data. Viro-me para o Antonio e pergunto-lhe. “Que dia você escolhe?”
Ele olha para mim sem saber o que fazer. “Escolha você, por favor”, me pede.
Olho para o céu em busca de inspiração. “Dia 25 de Dezembro”, decido. Volto-me para o Antonio e afirmo. “É a melhor data de nascimento do ano inteiro. Você pode partilha-la com Jesus Cristo.”
Todos ficamos contentes. Compramos os selos necessários para a carteira de identidade e entregamos as fotografias ao funcionário. Podemos vir busca-lo prontinha às 5 da tarde.
Saímos do prédio. “Mas que história foi aquela do Michael, menino?”, pergunto-lhe. “Você quase nos obrigou a lhe arranjar outra certidão de nascimento.!”
Ele parece envergonhado. Seus dentes muito brancos brilham num sorriso. “Ontem você disse que tinha um filho chamado Michael”, me explica ele. “Eu também queria me chamar Michael.”
Passo-lhe a mão pelos cabelos. “Receio que seja meio tarde para isso.”
Ele acena e concorda que Samuel também é um bom nome. Entrego-lhe o protocolo para ir pegar sua carteira mais tarde nesse mesmo dia. Afinal, não há razão para irmos os dois. “Você também tem de vir. Isso é muito importante”, me afirma Antonio, muito sério. Acabo concordando.
Depois do almoço, ouço as três pancadas com que ele sempre bate à minha porta. Abro-a e fico olhando para duas mãos estendidas que seguram uma manga dourada, absolutamente perfeita. “É para você, Jill”, me diz ele. “Tome.”
Eu quase que ia dizendo que não, que não tinha fome e que ele estava sempre faminto, mas contenho-me ao olhar para seus olhos escuros. Ele quer me dar um presente. “Antonio, adoro manga!”, afirmo. “Vou já comer esta.”
Sou de novo brindada pelo sorriso maravilhoso que me aquece o coração. Ao cortar profundamente a fruta carnuda, me interrogo se alguém alguma vez já me deu um presente tão precioso. Saboreio muito cada dentada e chupo o caroço até deixa-lo limpinho.
Mais tarde, vamos à repartição e ali ficamos à espera no meio de muitas outras pessoas. O funcionário surge vindo de outra sala com muitas identidades na mão e começa a chamar pelos nomes. “Antonio Samuel Traz.” Muito calmo e empertigado, Antonio avança para receber sua carteira. Depois, volta e me presenteia com um enorme sorriso. Cheio de orgulho, me entrega em seguida a identidade para que eu a guarde para ele.

Antonio começou a freqüentar a escola em janeiro último. Não é nada fácil para ele. Tem 13 anos, é o mais velho da turma. Sua vontade é voltar a correr em liberdade pelas ruas poeirentas, onde consegue ganhar mais num mês do que o salário mínimo de um adulto. Mas sabe que não vai ser sempre pequeno e atraente. Se quer ter um futuro honesto, tem de aprender a ler e a escrever. Vai consegui-lo.
A vida com o Antonio nunca é maçante. Vamos juntos ao pequeno templo da Assembléia de Deus, um edifício de telhado de ferro que se ergue batido pelo Sol, circundado por pequenas construções por todos os lados. As portas são mantidas fechadas para assegurar a privacidade da adoração e da oração. É um serviço religioso tipo sauna que nunca dura menos de três horas. Antonio sucumbe ao calor e adormece.
Olho para sua carinha preta e para seu cabelo encaracolado. Esta criança me tocou profundamente. Apesar de ter vivido os piores horrores que se possam imaginar, é um autêntico poço de esperança. Cada novo dia é uma aventura para ele, e ajudou-me a redescobrir o mundo fabuloso que nos rodeia pelos olhos de uma criança.
Penso no que o futuro lhe trará, mas de uma coisa estou absolutamente certa. Quando me for embora, as pessoas desta igreja lhes prestarão seu apoio, ao mesmo tempo que se irão manter em contato comigo. Quem sabe, talvez Deus tenha grandes planos para Antonio Samuel Traz.

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