quarta-feira, outubro 3

A noite do lobo

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Kathy Cook

Na floresta escura, um par de olhos observava as pessoas dormindo no acampamento.

Em pé junto ao acampamento da família, Zachariah Delventhal, 11 anos, jogou uma pedra no lado Tom Thomson, Ontário, fragmentando o reflexo da floresta em volta. Quando o irmão de 10 anos, Elijah, atirou outra pedra, Zach olhou para o céu, brilhante e avermelhado, o sol começando a se por atrás dos morros. “Venha, papai”, chamou. “Vamos ver o por do sol no lago. Eli e eu vamos remar.”
Exausto de um longo dia de canoagem, Thom Delventhal sorriu para a esposa, Tracy, que brincava com Willem, 3 anos. “Certo”, gritou, “desde que eu não tenha de pegar nos remos!”
Zach, Elijah e Thom remaram tranqüilamente e, ao escurecer, voltaram ao acampamento. No caminho, encontraram alguns escoteiros com as canoas presos em círculo. Tinham visto um lobo durante o dia, e começaram a encenar um “chama lobo” – ritual no qual imitam o uivo do lobo e esperam obter resposta. Os Delventhal trouxeram sua canoa e juntaram-se à “cerimônia”. Uivos encheram a noite. Momentos depois, o uivo de um lobo solitário ecoou na outra margem do lago.
Era dia 17 de agosto de 1996, última noite da viagem de nove dias da família pelos lagos e rios do Parque de Algonquin. Tracy e Thom estavam tristes por estar terminando. Logo voltariam as suas vidas atribuladas em Pittsburgh, onde Thom ensinava arte dramática na Universidade Carnegie Mellon e Tracy dirigia uma companhia de teatro.
Naquela noite, Thom e Tracy decidiram que todos dormiriam sob as estrelas. O acampamento, com acesso apenas pela água, era cercado de pinheiros. Enrolados em sacos de dormir na noite escura, sem lua, logo foram tomados pelo sono.
A dez metros dali, numa árvore da floresta, um par de olhos inspecionava a cena.
Zach estava sonhando quando, de repente, uma pressão martirizante no rosto o acordou. Viu as árvores correrem violentamente, enquanto era atirado a dois metros do saco de dormir. Gritou, e a criatura o soltou.
“Fui mordido!”
Tracy levantou-se num pulo. Olhando no escuro, correu em direção ao vulto de Zach e o abraçou. Em pânico, o menino lutou para soltar-se do abraço da mãe.
“Está tudo bem, Zach”, repetiu ela, tentando conforta-lo.
Não muito longe, o animal observava, parado.
Tracy viu um grande corte sob o olho de Zach, mas a escuridão escondia os ferimentos. Ao levantar o braço para afastar o cabelo do rosto, ela notou que sua roupa estava ensopada de sangue. Zach está perdendo muito sangue! Agarrou o saco de dormir e comprimiu o rosto do filho.
“Thom, preciso de você!”, gritou.
Naquele momento, Thom viu o vulto do animal a cerca de um metro da mulher e do filho. Pulou do saco de dormir e correu, gritando para o intruso. A criatura afastava-se e aproximava-se de Tracy e Zach.
Os olhos de Thom examinavam o acampamento, enquanto ele tentava adivinhar de que direção o animal viria a seguir. A voz aterrorizada de Zach se ouviu:
“O que é?”
De novo o animal cruzou o acampamento, mantendo distância de Thom.
“É um lobo!’, exclamou Thom.
Elijah engatinhou até Tracy e entregou-lhe a lanterna que ela usava na floresta.
Enfurecido, Thom correu para o lobo novamente e afugentou-o para a floresta. “Preciso de algo para o rosto de Zach”, gritou Tracy em meio ao caos. A parte de cima do saco de dormir azul estava cheia de sangue. Thom atirou-lhe uma toalha. Enquanto Tracy cuidava de Zach, Thom pegava a lanterna e continuava a examinar as árvores. Voltando para Zach e Tracy, acendeu a luz sobre o filho.
“Oh, meu Deus”, pensou.
O rosto do garoto fora dilacerado. O nariz estava destruído. Partes da boca e da bochecha direita estavam penduradas. O sangue esguichava das feridas sob os olhos, e a parte inferior da orelha direita fora arrancada.
“Termos de ir ao hospital”, disse Thom, o mais calmo possível.
O coração de Tracy disparou. Eram 2 horas da manhã e não haveria luz nas próximas cinco horas. O carro encontrava-se estacionado no posto da guarda florestal, a dezesseis quilômetros de canoa. Ela não fazia idéia de onde ficava o hospital mais próximo. No entanto, Zach perdera muito sangue e os ferimentos não paravam de sangrar. Não podemos deixa-lo morrer, pensou, olhando para a criança ensangüentada tremendo em seus braços. Precisamos ir agora.
Para distrair o lobo, Thom atirou na floresta o saco de dormir ensangüentado. Pegou o mapa do parque, desamarrou a canoa e pôs a família a bordo.
“Há um acampamento infantil em Teppe Lake”, disse. “Deve haver telefone.”
Teriam de remar na direção sul pelo enlameado canal do lago Tom Thomson até o lago Litledoe e encontrar o canal para o lago Teppe. Vamos levar cerca de duas horas, pensou Thom. Impulsionou a canoa e, junto com Tracy, começou a remar com toda a força.
Em segundos estavam imersos na escuridão, incapazes de distinguir árvores, terra e água. Thom olhou para o céu procurando guiar-se pelas estrelas. Remaram às cegas até o canal rumo a Litledoe, mas a canoa logo se chocou contra um obstáculo.
Aquilo foi uma faísca?, perguntou-se Tracy com medo. Sentindo a canoa curvar sob os pés, acendeu a lanterna e viu um tronco submerso forçando o fundo.
Depois de se soltarem, ela gritou:
“Acho que não consigo mais remar. É melhor eu ficar olhando.”
Thom concordou. Com um dos filhos mais velhos gravemente ferido e o pequeno que não sabia nadar, não podiam correr o risco de afundar.
Segurando a lanterna à frente, Tracy inclinou-se sobre a proa para ver se havia pedras e troncos. As pilhas estavam ficando gastas e, com a luz fraca, tudo se tornava cinza.
Um movimento errado e a canoa vira, pensou.
Thom remava sem parar, ignorando os músculos doídos. No escuro intenso, os minutos pareciam infinitos.
Entorpecido pela dor, Zach lutava para falar. Afastou a toalha levemente e perguntou:
“Pai, acha que vou sangrar até morrer?”
“Não”, respondeu Thom. “Mas quero que use a cabeça, Zach, e concentre-se para conter o sangramento.”
Thom ouvira que as pessoas eram capazes de reduzir o próprio batimento cardíaco. Talvez ajudasse.
Após algum tempo. Thom percebeu que a água se tornara mais encrespada. “Deve ser o Lago Litledoe”, disse. Olhou o mapa e as estrelas.
O lago Teppe deve ser nesta direção, pensou. Remou até onde pensou haver passagem, porém não havia nada. Agitado, olhou para as estrelas novamente. Estou perdendo tempo!, percebeu de repente. Como o sol, as estrelas parecem mover-se de acordo com a hora do dia. Na ansiedade, esquecera de considerar o fato. Logo a água se tornou mais calma. Estavam no canal sudoeste, dirigindo-se para Teppe. Thom remara durante duas horas. Finalmente o canal se alargou.
“Acho que é aqui!”, avisou.
Fizeram a curva e viram as luzes distantes do acampamento brilhando na água.
“Estamos quase lá!”
No meio do lago, Thom gritou: “Ei, pessoal. Precisamos de ajuda!”
Acordados pelos gritos, o diretor e a enfermeira do acampamento correram para o cais. Tiraram Zach da canoa e o levaram ao doutor Fred Harris, no pavilhão médico.
Harris deitou-o na maca, olhou os ferimentos e ligou para o Hospital Infantil de Toronto, a 320 quilômetros.
Dois membros do acampamento conduziram Tracy e Zach ao hospital. Lá, o cirurgião plástico levou quatro horas na cirurgia de reconstrução da face, dando mais de 80 pontos para fechar os ferimentos.
As cicatrizes de Zach talvez desapareçam. Embora ainda assaltado por pesadelos ocasionais, age como freqüentemente o fazem crianças que sofrem trauma. Sempre sensível, tornou-se extremamente protetor de Eli e Will.
Thom e Tracy também se sentem mais fortes pela vitória na corrida desesperada contra a escuridão. Em abril, Tracy deu à luz uma menina. Anya Eve, e a família planeja acampar outra vez neste verão.

Quase todos os lobos tem medo de seres humanos. Por alguma razão, aquele não tinha. Na mesma época do ataque a Zach, uma sacola desapareceu de sob a cabeça de alguém que dormia no acampamento, e objetos sumiram de outros acampamentos. As autoridades do parque interditaram o local e, cinco dias após o ataque, mataram um lobo macho de 30 quilos. Seu estômago continha cenouras, feijões, barbante e papéis. Desde sua morte, não houve relatos de agressão por lobos na área.

quinta-feira, agosto 30

Breve encontro com Hemingway

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1997
Autor : Arthur Higbee ( do International Herald Tribune )

Durante duas décadas, Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald viveram amizade de altos e baixos. . Deve ter sido num dos baixos que Fitzgerald observou: “Ernest sempre daria a mão a um homem que estivesse acima dele.”

Encontrei Hemingway certa vez quando estava abaixo dele. Eu era correspondente da United Press no escritório em Paris – patamar de respeitável altura – mas Hemingway ganhara o prêmio Nobel. O encontro aconteceu no bar do Ritz, à época decorado com belos murais de cavaleiros do século 16.
O ano era 1956. Uma daquelas lindas noites de verão em que o ar da Île de Fance parecia cheio de ouro em pó. Eu estava a uma mesa com a garota. Era nossa despedida. No dia seguinte, toda a paixão se esgotaria, ela estaria voltando para os Estados Unidos. Eu, com o fim do amor, da esperança e sem razão para viver, entraria para a legião estrangeira francesa, iria para um mosteiro ou talvez até pulasse daquele patamar.
Começáramos uma rodada de bloody mary. Ela deu um gole, olhou em volta e subitamente, com mais vivacidade do que eu vira em semanas, exclamou:
“Aquele não é Ernest Hemingway?”
No fim do bar, falando ao telefone, havia um homem alto de barba branca, bonito e imponente o bastante para ser Deus, o Todo Poderoso.
“Sim, é Hemingway”, respondi.
“Por que não o convida para tomar um drinque conosco?”, perguntou ela, sabendo que eu não ousaria.
Que importava se o barman do Ritz me pusesse para fora? Minha vida acabara mesmo.
“Vou chamá-lo”
“Não, não!”, exclamou. “Eu estava brincando.”
“Pois eu não”, respondi, ajeitando os ombros e indo até lá.
Hemingway terminara a conversa telefônica.
“Senhor Hemingway, a jovem da última mesa e eu gostaríamos que nos acompanhasse num drinque, se tiver tempo.”
Ele olhou para mim, depois para ela. Ou porque eu estava tão obviamente em apuros ou porque ela era tão linda – mistura de Gene Tierney com Audrey Hepburn – ele respondeu:
“Tenho uma ligação para fazer, depois vou até lá.”
Quando voltei, a garota perguntou: “O que ele disse?”
“Que vem tomar um drinque conosco. Talvez estivesse só brincando.”
Minutos depois, quando ela e eu evitávamos olhar para o outro lado do bar, uma sombra surgiu sobre a mesa e Hemingway sentou-se. Pedimos outra rodada de boody Mary.
Ele nos contou que iria assistir às touradas na Espanha e que se havia recuperado completamente dos ferimentos sofridos quando seu pequeno avião caíra na selva africana meses antes. Perguntou que tipo de carro eu dirigia. Quando respondi que tinha um Triumph TR-2 – grande motor com chassis bem pequeno -, ele comentou: “Com um desses se anda mesmo!”
Conversamos alguns instantes. Depois ele olhou para o relógio e disse: “Gostaria de ficar, mas tenho um jantar. Foi bom falar com vocês.”
A garota pegou minha mão e sorriu calorosamente pela primeira vez em semanas: “Você é corajoso”, elogiou.
Pedi a conta. “Monsieur Hemingway a payé”, respondeu o garçom. O senhor Hemingway pagara os drinques.
A noite revelou-se linda – tudo como havia sido um dia. Embora a garota fosse partir na manhã seguinte – tinha compromissos familiares nos EUA – prometeu que voltaria no outono, e voltou. Mas isso é outra história.
Anos depois li que Hemingway, famoso mundialmente mas nem sempre reconhecido, gostava quando estranhos chegavam para pedir autógrafo ou oferecer-lhe um drinque.
De qualquer forma, ele estendeu-me a mão quando eu estava abaixo dele.

quarta-feira, agosto 29

Quando os pais são ambiciosos demais

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1999
Autor : Helmut Zoepfl

Não negue às crianças o direito de desfrutar a infância!

Três mães estão sentadas num banco da pracinha observando os filhos com satisfação. Uma senhora se junta a elas. Depois de algum tempo, uma das mães diz:
“Olhem só a minha filha. Ela reuniu um monte de pedras e está contando. Ouçam! Ela já sabe contar até cem!”
“Grande coisa!”, contesta a segunda mãe. “Olhem só! Meu filho tem 4 anos e meio e sabem o que tem nas mãos? Um livro. Acreditem ou não, o garoto já sabe ler perfeitamente.”
“E o que pensam vocês que meu garoto está fazendo?”, replica a terceira mãe.
“Não está só rabiscando naquele papel, não. Está escrevendo uma pequena redação intitulada ‘Uma tarde agradável no parque.’”
“E então?”, perguntam as três mães à senhora que chegou depois.
“Em sua opinião, qual das crianças é a mais esperta?”
“Crianças?”, contesta a senhora tristemente. “Que crianças? Não estou vendo criança nenhuma!”
Sejamos francos: que pais não estão convencidos de que os filhos possuem dotes excepcionais? Essa confiança na habilidade de suas proles é admirável. Não há nada mais prejudicial, porém, do que estabelecer muito cedo uma rotina intelectual para os filhos.
Nos últimos anos, soluções engenhosas vem surgindo, uma trás da outra. E se os pais não aderem à última moda, acabam se culpando por haver prejudicado as possibilidades de sucesso dos filhos. É o que vem acontecendo, em nome da ‘educação de elite’ e do ‘incentivo às crianças superdotadas’.
A mera definição do termo já é problema. Tanto ‘elite’ quanto ‘superdotado’ não são conceitos cientificamente precisos e aceitos – cada qual entende tais conceitos a seu modo. O termo ‘inteligência’ é ainda pior. No campo da psicologia aplica-se a seguinte definição inespecífica: “Inteligência é aquilo que pode ser medido por meio de um teste de inteligência.” A definição não revela alto grau de inteligência por parte daqueles que desejam criar um programa em torno dela.
Qualquer cientista honesto irá admitir que existem limites à nossa habilidade de medir características humanas e que os métodos dos testes são freqüentemente questionáveis. Além do mais, sabe-se que quanto mais jovem o indivíduo mais difícil é julgar se possui algum talento. São poucos os casos em que é possível prever as habilidades que se desenvolverão mais tarde. São muitos os fatores que atuam no desenvolvimento de um talento: influências genéticas, ritmo individual de desenvolvimento, efeitos do relacionamento social, encontros fortuitos, bem como acontecimentos que possam motivar ou bloquear o desenvolvimento da criança.
Só há um prognóstico seguro: se o estímulo às crianças superdotadas não for tratado com a maior sensibilidade, as conseqüências poderão ser desastrosas. Pais exageradamente ambiciosos são propensos a diagnosticar – de forma errada – os filhos como superdotados. Imediatamente após o nascimento, incentivam desigualmente as habilidades cognitivas da lógica, fala e pensamento, negligenciando o corpo e a alma.
Equipes das escolas maternais continuam reclamando de pais que desejam transformar a escola em laboratório de ensino que inclua treinamento em leitura, escrita e aritmética. Vigiam e questionam cada minuto que o filho esteja ‘simplesmente’ cantando, desenhando ou brincando.

terça-feira, agosto 28

Uma escola para Dave

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereito de 1999
Autor : Peter Michelmore

Ele tinha mais a aprender com Frank do que imaginava.

Numa tarde do outono de 1993, Dave Blair, 17 anos, estava mais uma vez “matando” aula, seguindo para a porta da escola.
Dave não gostava de estudar e deixava isso claro. Conseqüentemente, os professores nem sempre gostavam de Dave. Eles o acusavam de ser “impulsivo e grosseiro”. Talvez fosse mesmo, mas Dave não se importava com isso. O rapaz de cabelos escuros era extrovertido e popular entre os colegas, mas se sentia perdido na sala de aula. Lia com dificuldade e, quando empacava em algum trecho, percebia o desagrado dos professores.
“A escola não adianta nada para mim”, costumava dizer. “Acho que vou desistir.”
Ele só hesitava porque iria desapontar a mãe divorciada, que mantinha três empregos para poder pagar as contas. Agora, fora da escola, Dave viu um amigo aproximar-se de um trailer estacionado nos fundos do prédio desde agosto.
“O que esse trailer está fazendo aí?” perguntou.
“Vou mostrar a você”, respondeu o garoto.
Numa área ampla, oito adolescentes espalharam-se por algumas mesas.
“Eis aqui alguém que pode ajudar você” disse o amigo de Dave, apresentando-o a Sue Scott, mulher de cabelos castanhos e uns trinta e poucos anos, de pé, diante do grupo.
Dave não sabia o que pensar daqueles garotos estranhos. Estava claro que se tratava de uma turma para deficientes – adolescentes com autismo, paralisia cerebral, deficiência mental. Um deles disse algumas palavras incoerentes, em voz alta, mas a maioria permaneceu em silêncio.
Apontando para um jovem de ombros largos, olhos estreitos e oblíquos, Sue Scott disse:
“Este é Frank Howard, ele vai apresentar você a todos.”
Sorrindo timidamente, Frank, um rapaz de 20 anos portador da síndrome de Down, acompanhou Dave até cada um deles, enquanto a professora pronunciava em voz alta seus nomes. Nem Frank nem Dave disseram palavra.
“Este é o nosso recreio”, explicou Sue Scott, fingindo não perceber a surpresa no rosto de Dave. “Estamos brincando com um jogo de dados chamado Yahtzee.”
Dave observou os garotos chocalharem e lançarem os dados. A princípio sentiu pena deles. Mas, à medida que iam dominando o jogo, Dave viu o rosto deles brilhar. Logo Dave também estava participando.
“Muito bem, Frank!” gritou quando o jovem lançou os dados, conseguindo boa jogada.
Ei, gostei disso, disse Dave a si mesmo quando retornava às suas aulas. Talvez eu volte para outra visita.

A melhor fase de sua vida. Dave descobriu que Frank Howard fazia parte de um projeto experimental para integrar jovens deficientes à escola Hayes. E soube que a professora Sue Scott desenvolvia um programa destinado a levar jovens a agirem como defensores, mentores e amigos dos deficientes.
Para alegria de Sue Scott, Dave reapareceu no trailer na tarde seguinte. Quando entrou, Frank Howard correu para o seu lado.
“Oi!”, disse Frank, ansioso.
Os dois sentaram-se juntos enquanto Sue Scott e alguns voluntários faziam uma demonstração da comunicação por sinais. Toda vez que Frank entendia corretamente um gesto, Dave assentia com a cabeça e Frank abria um largo sorriso.
Um dia Frank, com uma expressão de orgulho nos olhos, encontrou Dave na porta. Frank tinha falado muito pouco com ele, mas agora parecia estar a ponto de dizer algo. Finalmente conseguiu.
“Dave”, disse ele, em voz baixa mas clara.
Esse simples som, seu nome, emocionou Dave de uma forma que o surpreendeu.
Ele logo percebeu que poderia ser útil na turma de Sue Scott. Ela enfatizava as capacidades e não as deficiências. Isso lhe disse alguma coisa. Sabia o que era enfrentar as próprias dificuldades. Também viu como Frank estava sempre ávido por aprender, embora tudo fosse difícil para ele. As visitas de Dave ao trailer tornaram-se uma rotina diária.
O espírito alegre e caloroso de Frank despertou o senso de humor de Dave. Um dia, fazendo palhaçadas, Dave imitou o rosto severo de um professor e ordenou a Frank que deixasse de brincadeiras. Sabendo que o outro estava fingindo, Frank começou a imitar o modo como Elvis Presley dançava, o que fez Dave rolar de rir.
Mais tarde, quando alguns amigos, intrigados, perguntaram por que ele andava com Frank, Dave respondeu:
“Temos mais coisas em comuns do que diferenças.”
Em um bilhete para Sue Scott, a mãe de Frank, Donna, escreveu:
“Meu filho está vivendo a melhor fase de sua vida.”
Não era só divertimento, porém. Usando fotos de sinais de trânsito, Dave ajudava Frank a reconhecer palavras como perigo e pare. Com o auxílio de um livro de receitas com ilustrações, ensinou Frank a fazer panquecas. Com a ajuda de Dave, Frank também praticava caligrafia, preenchia cronogramas e aprendia a encontrar as salas de aula.
Dave, por sua vez, sentia-se útil. Durante uma aula de química queimou a mão acidentalmente em vidro derretido. Na aula que se seguiu, com a queimadura latejando, pediu à professora permissão para ir buscar uma bolsa de gelo.
“Você está fingindo”, censurou ela. “Não pode estar doendo tanto.”
Magoado com a repreensão, Dave saiu tempestuosamente da sala. Ainda estava zangado quando entrou pisando forte no trailer.
“Para mim chega!”, disse para Sue Scott. “Vou abandonar a escola”
Nesse momento, seu olhar fixou-se em Frank, que acenava para ele. Aos poucos a mágoa de Dave passou. Ele não podia simplesmente ir embora. Não sentiria mais pena de si mesmo, decidiu, não falaria mais em sair da escola.
“O que há, grande Frank?”, disse por fim, indo até ele.

Dançando num concerto de rock.
Durante o inverno e a primavera de 1994, Dave ajudou a promover a integração dos jovens deficientes na vida estudantil. Um rapaz começou a freqüentar regularmente as aulas de matemática; outros, as de economia doméstica, trabalhos com madeira e educação física. A maior parte deles estava aceita.
Um dia, quando fazia compras com o filho, Donna viu um grupo de adolescentes vir na direção deles.
“Oi Frank!”, disseram calorosamente.
“Vocês estudam na escola Hayes?”, perguntou Donna.
“Estudamos, foi lá que conhecemos Frank”, respondeu um garoto.
Donna logo percebeu por que eles eram tão amáveis com Frank.
“Tchau, Frank, dê um alô para o Dave”, disse um deles quando se afastaram.
No piquenique do fim de ano escolar, ela notou como Dave e seu filho eram amigos.
“Dave está ajudando Frank a desenvolver todas as suas potencialidades”, contou-lhe Sue Scott. “E Frank deu a Dave a oportunidade de se destacar quando mais precisava disso.”
Instintivamente Donna confiou em Dave e pensou como seria bom se Frank saísse uma noite com o amigo. Lembrou-se das quatro entradas que tinha comprado para um show de rock, duas das quais eram para a sua filha, Aimee, e uma amiga.
Armando-se de coragem, Donna perguntou a Dave:
“Você levaria meu filho ao show do Aerosmith?”
“Seria um grande prazer”, respondeu Dave.
No anfiteatro Frank pulava ao ritmo da música e dedilhava uma guitarra imaginária, os olhos cheios de entusiasmo. Mais tarde, espremidos na multidão, Dave emprenhava-se em não se perder do amigo. Aimee ficou observando os dois descerem a escada.
“Dave não se importa com o que as pessoas pensam”, disse para a amiga. “Ele está segurando a mão de Frank.”

“Amigos para sempre”. Quando Dave conseguiu um emprego à noite e nos fins de semana em um restaurante, encontrou um jeito de incluir Frank Uma organização não lucrativa tinha um programa de treinamento profissional para deficientes. A organização concordou em treinar Frank para lavar pratos no restaurante. Dave, porém, tinha outras idéias.
Os membros do programa de amigos dos deficientes que paravam para comer ficavam encantados em ver Frank arrumando e tirando as mesas.
“Quero que ele conviva com as pessoas”, dizia-lhes Dave.
Mas as muitas horas no restaurante aumentavam os problemas de Dave na escola.
“Nesse ritmo você não vai se formar”, observou o orientador no último ano. “Você corre o risco de voltar no próximo período.”
Enquanto isso, Sue Scott elaborou para seus alunos uma escala de notas avaliando assiduidade, atenção, comportamento, asseio e companheirismo. Frank iria obter o certificado e formar-se com o restante da turma.
Quando Dave soube da notícia, disse para Sue:
“Vou me formar com Frank. Não perco isso de jeito nenhum.”
E estudou como nunca.
Num belo dia de sábado, em junho de 1995, Dave ouviu com orgulho o nome de Frank Howard ser chamado e viu o amigo receber o certificado. Os olhos de Donna Howard brilhavam quando ela ouviu os aplausos e testemunhou a aceitação do filho. Nunca tinha sonhado que isso fosse possível. Então Dave atravessou o palco para receber seu diploma. A mãe dele estava eufórica por ver o filho concluir o curso.
Mais tarde, na festa, Dave tirou do bolso dois cordões de prata com pendentes também de prata em formato de trevo e deu um deles para Frank. Em um dos lados de cada trevo ele mandara gravar seus nomes e a data da formatura. No outro estava escrito: “Os melhores amigos.”
Nesse momento, o rosto de Dave estava molhado de lágrimas. É verdade que conseguira o diploma, mas tinha feito algo que prezava ainda mais. Fora importante para a vida de alguém. Abraçando Frank, ele disse:
“Vamos ser amigos para sempre!”

Hoje Dave dirige um caminhão da prefeitura de Delaware e faz o curso de educação especial. Frank Howard trabalha numa linha de montagem. Eles se encontram com freqüência e foram a outro concerto do Aerosmith.

segunda-feira, agosto 27

Meu primeiro emprego

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1999
Autor : Marcelo Carneiro

Brasileiros de sucesso contam que o importante não é o salário, mas sim o que se aprende

A professorinha de inglês
Aos 18 anos, às vésperas de ingressar na Faculdade de Psicologia – um sonho antigo -, decidi procurar meu primeiro emprego. Não foi difícil. Quase uma década debruçada sobre livros de inglês e uma fluência invejável me garantiram uma vaga como professora no curso Ibeu (Instituto Brasil Estados Unidos), à época um dos mais conhecidos. Era um trabalho até certo ponto tranqüilo, afinal sempre gostei de ensinar e parecia preparada para a função. Controlar alunos na fase entre infância e adolescência foi o maior desafio.
Lembro-me de um dos alunos. Era simplesmente impossível concluir uma aula na sua presença. As intervenções fora de hora, a conversa a todo instante, a desatenção na hora das provas, tudo contribuía para que eu pensasse a todo momento que não conseguiria lidar com aquela situação. Mas aos poucos fui impondo meu estilo. O moleque nunca virou um santo – acho que até hoje, já adulto, deve aprontar das suas -, mas ao fim de um ano eu já havia conseguido controlar a turma. Impor respeito diante de pessoas que tinham quase a minha idade me ajudou a pensar mais sobre as relações humanas, a importância do equilíbrio emocional em momentos de tensão, a necessidade de estar sempre pronta a ouvir, mesmo nos momentos em que talvez fosse necessário falar, às vezes até de maneira mais dura. Anos depois, vi em meu consultório que o comportamento das crianças como aquelas é bem mais comum do que eu imaginava. Agora elas eram, para mim, um caso clínico. Mais isso já é outra história.
Maria Tereza Maldonado, 50 anos, psicóloga especializada em família, tem 23 livros publicados e 800 mil exemplares vendidos.

O motorista dos ‘bacanas’.
Certo dia meu amigo Peter viu anunciado num jornal o carro que todo garoto de nossa idade sonhava dirigir. O carro estava em Búzios, balneário a duas horas e meia do Rio de Janeiro, onde eu costumava passar as férias. Resolvemos, então, ir até lá. De repente, à nossa frente, vimos um enorme Landau azul brilhante. No vidro da frente, o anúncio: vende-se.
Pelo estado do carro, percebemos logo que se tratava de uma pechincha. A negociação não durou nem cinco minutos e lá estávamos Peter e eu a bordo daquele transatlântico sobre rodas.
Na volta para o Rio, tratamos do carro com carinho. Rodas zero quilômetro, polimento no pára-choque e uma nova pintura deixaram o carro mais apresentável. Mas o que fazer com ele? Nem Peter nem eu tínhamos dinheiro sequer para pagar o combustível do nosso beberrão de luxo. A solução veio com o apelo de uma amiga. Ela decidira se casar, e mal tinha dinheiro para a festa, quanto mais para alugar um carro que a levasse até a igreja. Não tive dúvida: “Seu problema acabou, sou o mais novo motorista na praça.”
O primeiro salário não pagou nem o que eu tinha gastado com o terno, a camisa social e a gravata que precisei comprar para minha nova função. Seis meses depois, porém, não havia do que reclamar. Peter e eu tínhamos ganho dinheiro suficiente para passar o verão seguinte sem precisar da ajuda dos pais. Isso, porém, não foi o mais importante. Para mim, um garoto de classe média carioca, acostumado a transitar por todo tipo de festa como convidado, a experiência de motorista de noiva foi algo inesquecível. Por vários meses meus fins de semana à noite foram passados em frente às mansões onde se realizavam as melhores festas. Eu já tinha estado lá, só que com meus amigos, sem ter hora para sair ou qualquer responsabilidade. Agora, meus colegas de festa eram copeiros, cozinheiros e outros motoristas que se juntavam para quebrar o tédio enquanto todos se divertiam. Para mim, no entanto, aquilo também era diversão, e mais do que isso, uma lição. Ao me colocar no lugar deles, aprendi não só o valor do dinheiro, mas também o valor de qualquer trabalho, independentemente do quão grandioso ou humilde ele possa ser.
Eduardo Paes, 29 anos, foi eleito deputado federal pelo Rio de janeiro nas últimas eleições.

O garoto do armazém
Minha vida profissional começou quando eu tinha 13 anos de idade. Até então, era um menino como todos os outros de Jatobá, vila próxima de Petrolina, uma das mais importantes cidades do interior de Pernambuco. Levava a vida entre banhos no Rio São Francisco e o apoio a meu pai, um lavrador com pequenas plantações de milho, feijão e mandioca. Minha mãe, professora, tinha jurado a si mesma dar a todos os cinco filhos o ginásio, já que ela e o marido só tinham conseguido concluir o primário. Jatobá era pequena demais para esse sonho. E lá fui eu – em definitivo – para Petrolina, no lombo de um jegue.
A primeira providência foi arrumar emprego para as horas de folga do estudo. Encontrei no seu Benedito Mousinho, piauiense forte e ambicioso, o personagem que me marcaria para sempre. Dono de mercearia, seu Benedito vendia tudo que se possa imaginar: de produtos alimentícios a enxadas usadas na roça. Seus clientes eram vaqueiros do agreste pernambucano e barqueiros que cruzavam o São Francisco. Tímido e mirrado, eu não podia fugir da dura rotina do armazém. Às vezes tinha de levar no braço sacos de 60 quilos de arroz ou feijão na venda para o atacado. O esforço físico, porém, não era a tarefa mais difícil. Aprendi logo que, mesmo com a pouca idade, teria de mostrar responsabilidade. Em um ano e meio de trabalho, antes de completar 15 anos, já tinha assumido o controle da loja durante as várias viagens de Seu Benedito. Apesar de até hoje não ter entre as minhas especialidades a arte de lidar com o dinheiro – característica peculiar aos artistas -, aprendi a reconhecer o valor de alcançar, pelo próprio esforço, algo que se deseja muito. Com o dinheiro acumulado nos primeiros salários, pude comprar o tão sonhado blusão, igual ao usado por James Dean no filme Juventude Transviada. Deixava, então, de ser o menino envergonhado, bicho do mato de Jatobá. Começava a minha vida.
Geraldo Azevedo, 54 anos, é cantor e compositor, e tem 18 discos gravados.

sexta-feira, agosto 24

Minha vergonha secreta

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereito de 1999
Autor : Simon Hoggart

É o pior pesadelo de todo homem e está me levando à loucura

Sofro de um mal desolador. Algo de que as pessoas nunca falam, porque é embaraçoso demais. Se você é homem, com certeza sabe que esse é um assunto que jamais pode ser levantado em uma conversa com outros homens.
Minha mulher tem se mostrado compreensiva, mas é tão difícil para ela que até já sugeriu, algumas vezes, que eu procurasse um especialista. Um dia talvez o faça, mas tenho relutado, por causa do medo já profundo de que talvez seja muito tarde para isso: não há mais nada que possa me ajudar.
Veja você, não consigo estacionar. Sou incapaz de estacionar um carro. Aposto que esta é a primeira vez que um homem admite isso, por escrito. É muito vergonhoso.
Eu consigo colocar o carro em um estacionamento vazio ou quase vazio, ou até mesmo estacionar em acostamentos, se houver pelo menos o espaço correspondente a três carros, para que eu possa entrar – sempre de frente, claro.
Conheço as regras de estacionamento, como entrar de marcha à ré, olhando para trás sobre o ombro, esperando o momento exato de virar todo o volante. Sei perfeitamente como é que se deve calcular a distância entre o pára-choque e o carro da frente. Se um marciano chegasse à Terra e quisesse saber como estacionar, provavelmente conseguiria explicar a ele, verbalmente. Também conheço todas as regras do xadrez, embora não saiba jogar direito.
Minha mulher sabe estacionar. Aponte-lhe uma vaga, digamos apenas uns dois centímetros maior do que o nosso carro, e escorregará para dentro dela com a maior graciosidade, com um único movimento, só interrompido para um sorrisinho sarcástico diante do meu oferecimento para saltar e ajudar.
Outros homens sabem estacionar. É algo que todos os homens que se prezam sabem fazer, assim como aqueles consertos domésticos. É como se me faltasse algum gene vital.
Geralmente deixo o carro com a traseira afastada do meio-fio, num ângulo de 30º em relação à calçada, o que faz lembrar aquela cena em Noivo neurótico, noiva nervosa, na qual, num esforço extremo para agradar a Diane Keaton, Woody Allen diz: “Está bem! A gente pode caminhar daqui até o meio-fio.”
No meu trabalho como jornalista, é comum eu me ver quase em apuros. Em época de eleições, seguir os políticos pela cidade pode exigir grande habilidade na direção. Os colegas normalmente pedem carona, que tenho prazer em oferecer. Começamos, então, a percorrer o longo caminho até onde deixei o carro.
“Mas está a uma distância quilométrica!” exclamam, observando minutos vitais serem desperdiçados.
Invento qualquer desculpa esfarrapada, como estacionei ali para tomar um cafezinho, ou digo que errei ao consultar o mapa – qualquer coisa, menos admitir que aquela havia sido a primeira vaga que encontrara, onde achava que haveria alguma chance de conseguir entrar.
Costumo percorrer distâncias enormes tentando disfarçar minha fraqueza. Certa vez, precisei me hospedar em Bordeaux. Os franceses são campeões mundiais de estacionamento. Conseguem parar em vagas menores que seus carros, empurrando-os, sem que ninguém perceba, para a frente e para trás. Meu hotel não tinha garagem, mas o proprietário muito amável, disse que havia guardado uma vaga, duas ruas adiante. Se eu o seguisse, ele tiraria seu carro da vaga e eu poderia entrar bem rápido, antes que algum motorista voasse para dentro dela.
Mas é claro que eu não consegui entrar. Tentei a primeira vez e o carro ficou com a mala na calçada e o capô quase no meio da rua. Tentei novamente e quase amassei o Mercedes na vaga da frente. A terceira tentativa foi melhor – quase aceitável -, a não ser pelo fato de que a velha e estreita rua ficou bloqueada a qualquer coisa um pouquinho maior do que uma motoneta.
Atrás de mim, alguns franceses zombeteiros observavam, assombrados com meu desempenho. Atrás deles, dezenas de outros motoristas se penduravam na buzina. Minha vergonha foi tamanha que dirigi por alguns quilômetros, até um subúrbio distante, onde achei vagas com o comprimento de uma quadra de esportes e onde pude ter certeza de que não encontraria nenhuma daquelas testemunhas da humilhação por que havia passado um pouco antes.
Então peguei o ônibus, de volta.

terça-feira, agosto 21

Toquem o alarme

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Nick Jans

Quando a catástrofe assola esta vila, todos correm para ajudar.

Um barulhento trenó motorizado passa em alta velocidade a pequena distância. Garotos, penso, sacudindo a cabeça. Enquanto continuo trabalhando na pilha de lenha sob temperatura de 5 graus abaixo de zero, ouço cães latindo. Lá no alto, a luz difusa da aurora boreal cintila em meio às estrelas com arcos e faixas de um colorido brilhante.
Logo em seguida escuto o ruído de dois outros trenós motorizados, bem como gritos. Deixo o machado cair, corro para o outro lado de minha cabana e quase me choco com Ronald Cleveland, um dos meus alunos da escola de primeiro grau. Ele está correndo, tentando salvar a vida. Outros garotos fazem o mesmo, um pouco atrás.
“O que está acontecendo?”, pergunto.
“Fogo lá em casa!”, grita. “Fogo!”
Olho na direção da cabana da família e vejo a fumaça subindo, em forma de pluma branca, brilhando no céu. A casa próxima à deles, a de número 73, lar da família Greist, está em chamas.
A brisa muda de direção e me vejo envolvido pelo manto pungente do fogo. Um vizinho leva baldes. Corro em direção à minha cabana em busca do meu balde. Enquanto estou correndo pela trilha, ouço o barulho da sirene da vila dando o alarme. Todos os cães do povoado – centenas deles – começam a uivar em coro.
Pouco mais de 250 pessoas moram em Ambler, pequena vila esquimó no Alasca, onde sou professor. Entretanto, mais de 20 esquimós continuam chegando a cada minuto. A maioria das casas do povoado tem rádio CB (faixa de cidadão) e a mensagem transmitida – “Incêndio na 73” – fez com que todos viessem rápido. Alguns trouxeram baldes, machados e extintores.
“Todo mundo está a salvo?”, perguntam as pessoas.
“E as crianças?”
Os menores estavam dentro da cabana com uma babá e ninguém sabe onde se encontram agora. Dois homens tentam entrar para verificar, mas a fumaça os impede. Há um momento de pânico, porém logo chega a notícia de que as crianças estão salvas.
Aariga!” Isso é bom!”, exclamam as pessoas, aliviadas.
A densa fumaça sai pela porta e pelas janelas, porém as chamas ainda não são visíveis. Meu amigo Clarence Wood usa o machado para quebrar a janela e aqueles que tem extintores conseguem penetrar na cabana. A fumaça parece estar mais densa do que nunca. Um trenó chega com uma lata de lixo cheia de água e todos pedem mais.
“Onde é o hidrante?”, grita um homem. Assim como na maioria dos lugarejos da região, poucas casas tem hidrante. Esta cabana está situada a quase 300 metros do mais próximo. Não existe Corpo de Bombeiros ou caminhão de bombeiros em Ambler; somente algumas mangueiras e um grande extintor químico. Em caso de emergências, as pessoas dependem dos vizinhos e de si próprias.
Apanhando três baldes vazios, pergunto qual casa tem água corrente. “A casa de Katherine”, responde um estudante de segundo grau. Saímos em disparada vencendo os cem metros que nos separam da casa dos Cleveland. Rena, de 10 anos, abre a porta.
“O banheiro é logo ali!”, grita ela, apontando.
“Encha todas as panelas que você encontrar!”, peço-lhe. Ela concorda, fazendo movimento com a cabeça. Dois bebês seminus choram no sofá. Rena conta-me que eles estavam dentro da cabana quando o incêndio começou. Com os baldes cheios, saio correndo, espalhando água pelo piso.
Lá fora, a noite é banhada pelo brilho alaranjado. O fogo, saindo pela janela aberta, chegou ao teto da cabana e está crescendo a cada segundo.
Abaixando-me para escapar do calor e da fumaça, corro até a janela e jogo 40 litros de água bem no foco do incêndio. Não ouço sequer um chiado. Sufocado pela fumaça, afasto-me e outro homem se aproxima. O fogo nos ignora, elevando-se em nuvem exuberante, enquanto a observamos assustados.
“Afastem-se!”, alguém grita enquanto um trenó se aproxima trazendo o grande extintor químico. Vários homens o colocam em posição e direcionam a mangueira para as chamas. Durante trinta segundos ouvimos forte ruído. Uma nuvem branca cobre as chamas e a multidão aplaude. O extintor, entretanto, começa a chiar e pára de funcionar; estava com menos da metade da carga total.
Jogamos toda a água que temos, e em seguida usamos as pás para lançar neve sobre as chamas, esforçando-nos para conter a vantagem obtida pelo extintor. Porém, a língua laranja se eleva no meio da fumaça. Logo a seguir, outra ainda maior, e o teto é tomado pelo fogo, impedindo nossa aproximação.
Saio em busca de mais água. Katherine e Rena estão com vários recipientes cheios e em poucos segundos já tenho o suficiente para voltar à cabana em chamas.
Cinco viagens; seis; as chamas estão cada vez mais altas e o calor mais intenso. Lanço a água sobre o fogo e me viro para correr outra vez, mas meu vizinho Stanley segura-me o braço.
“Não adianta, camarada”, diz balançando a cabeça. “Deixe-a queimar.”
Ajoelho-me ofegando e tossindo, a 20 metros do incêndio. Meu macacão está congelado pela água derramada sobre ele; o rosto chamuscado. O teto desaba, lançando fagulhas em direção às estrelas.
Fred e Arlene Greist encontram-se de pé entre amigos e parentes, observando tudo o que tem desaparecer em meio às chamas. Enfrentando muitas dificuldades para começar – sem poupança nem seguro – só possuíam a casa que construíram juntos, onde estavam criando os filhos. Agora, em questão de minutos, vêem-se reduzidos às roupas do corpo.
Tragédias como esta acontecem em todo lugar. Mas aqui, ilhados numa região tão deserta, a perda parece maior. Os limites da vida são mais tênues e aparentes. A temperatura está abaixo de zero e continua caindo. Sem ajuda, a família Greist não sobreviveria a essa noite.
Embora o fogo já se esteja apagando, poucas pessoas vão embora. Compartilham aquele infortúnio, oferecendo apoio, simplesmente ficando juntos no meio da noite. Uma viga de madeira cede e cai, provocando explosão de fagulhas. Chamas surgem novamente.
A multidão se dispersa devagar, mas ninguém vai aceitar a derrota. Um pedido de ajuda é feito. Quando termino de trocar as roupas, Fred e Arlene já foram acomodados para passar a noite e receberam oferta de uma casa disponível que, na realidade, é melhor do que a que perderam. Voluntários vão de porta em porta recolhendo doações de comida, roupas e dinheiro.
As pessoas dão o que podem. Amanhã, um pedido de ajuda às vilas da região será enviado pelo rádio, e muitos responderão. Preencho um cheque, atiço fogo em meu fogão a lenha e vou para a cama, abalado pela experiência, porém de alguma forma animado e menos só do que antes.
Existe generosidade e auto-suficiência inerentes ao povo esquimó que me atraíram muito quando me mudei para a vila, há mais de 15 anos. Embora eu saiba que sempre serei forasteiro entre eles, sei também que encontrei meu lar.
O fogo entrou “em casa”. Estávamos todos lá.

segunda-feira, agosto 20

Corridas de dromedários em Dubai

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Mary Roach

Nos Emirados Árabes Unidos camelos já estariam obsoletos se não fossem extremamente velozes.

Glaysa é um camelo corredor de elite, embora não seja fácil para ninguém chegar a essa conclusão. Assim como todos os camelos, ela tem dentes semelhantes às velhas teclas de um piano, cílios tão longos quanto os bigodes de um gato e cobertura que parece mais um tapete do que pele. Olha para as pessoas de cima para baixo, insinuando presunção, mas isto é apenas questão anatômica, nada pessoal. O rosto dos camelos se molda por um declive.
Glaysa não é igual a qualquer camelo, pois nada com freqüência numa piscina. Camelos selvagens não costumam nadar. Vê-los mergulhar num oásis é tão difícil quanto ver um peixe fora da água tomando sol. Mas Glaysa nunca foi um camelo selvagem.
Nasceu no curral do Xeque Mohammed. Esta é a forma simplificada para Sua Alteza o Xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, príncipe herdeiro de Dubai, proprietário de 1.500 camelos de corrida.
Aqui estão algumas peculiaridades do curral do Xeque Mohammed: esteira para os camelos se exercitarem, ducha para tomarem banhos, caminho a fim de manter as patas adequadamente aparadas para as corridas, além de vagões de transporte com o interior acolchoado. A piscina também é especial, projetada especificamente para camelos, com raia única e 23 metros de comprimento, apresentando ligeiro declive nas extremidades.
Embora os camelos saibam nadar, não o fazem de boa vontade. Para convencer um camelo de que nadar é algo agradável, você tem de coloca-lo ao lado de outro que já o saiba. O camelo nadador se movimenta e o outro o acompanha – pelo menos na teoria.
Nossa personagem Glaysa já está na metade da piscina. Outro camelo, Museha, está de joelhos, empacado. Um camelo empacado emite som peculiar e inesquecível, algo como uma gaita sendo pisoteada.
As travessuras de Museha terminam ensopando o domador. Não consigo imaginar esse camelo do outro lado da piscina. Não é mais fácil fazer um camelo passar pelo buraco da agulha, porém deve ser, no mínimo, mais tranqüilo e menos problemático.
Alheia ao burburinho, Glaysa nada em sistemático e lânguido estilo “cachorrinho”, a corcova fora da água tal qual barbatana de tubarão. Cruza o azul turquesa da piscina, como se estivesse correndo. Não fosse pelo suave “murmúrio” da água, Glaysa pareceria estar correndo no céu.
A atividade do xeque com os camelos não tem fins lucrativos: a jogatina não é permitida nos Emirados Árabes Unidos e o acesso às corridas é gratuito. Ele também financia um centro de reprodução de camelos, e seu irmão, o xeque Hamdan, um hospital para camelos, que dispõe de mesa de operações com abertura no meio para acomodar as corcovas do animal.
Xeques como Mohammed, que transformaram dromedários em valiosos passatempos, vêem na atividade esforço de preservação cultural. Com o advento do transporte de quatro rodas, os camelos caíram de posição. O navio do deserto não é mais o camelo e sim o Land Cruiser.
À medida que menos camelos eram usados para transporte, mais a família real injetava dinheiro nas corridas. A idéia era de não apenas preservar tradição secular, mas também, informa o Ministério de Informação e Cultura, “garantir que a geração mais jovem tenha oportunidade de aprender algo sobre o modo de vida de seus antepassados e compara-lo com as facilidades atuais”.
Isso é reiterado pelo administrador de pistas de corrida de camelo, Mohammed Saeed, proprietário de dois Land Cruisers e25 camelos. Saeed leva-me para passear pela pista. “Durante muitos séculos, o camelo esteve presente em nossas vidas. Dependíamos dele para transporte, alimentação e recreação. Costumávamos fazer tendas de pele de camelo. Era como dormir num hotel”, revela Saeed. Ele ajeita a touca Kaffiyeh na cabeça, amarra-a e joga-a para o lado. “Dubai, a cidade, é apenas metade da vida. A outra metade é o deserto.”
Saeed e eu debatemos se é bom para os xeques usarem meninos, geralmente paquistaneses, como jóqueis de camelos. “Estamos cuidando deles como crianças, de acordo com a nossa religião. São remunerados pelo trabalho e freqüentam a escola desde os 12 anos de idade.”
Pergunto a Saeed quanto os meninos ganham e ele muda de assunto. É hora de falar sobre camelos. Os animais atingem a velocidade de 16km/h. A palavra camelo vem, em parte, da palavra jamal que, imaginem, tem a mesma raiz da palavra que significa beleza em árabe. Pergunto a Saeed se ele anda de camelo. “Com esta idade? Com essa barriga?” Dá tapinhas na barriga. Agora entendo por que os homens parecem tão elegantes em seus frouxos roupões Djellaba: não se consegue ver as gorduras.
Os pés dos camelos foram feitos para a areia: são grandes e chatos, como queijos gigantes. Não fazem clipt-clopt, e sim cush-cush-cush. Camelos andam ao longo de uma trilha com eficiência graciosa, mais deslizando do que galopando. Podemos ouvi-los respirar ao passar.
Eu mesmo os ouço, enquanto estou de pé ao lado da cerca com Saeed. Não fosse por sua hospitalidade, eu estaria nas arquibancadas assistindo à corrida através do monitor de vídeo. As arquibancadas tem apenas seis ou sete filas de cerca de 30 metros de comprimento, divididas em grupos de três. Membros da elite governante acomodam-se no centro, diante de monitores individuais, em sofás de couro branco e mesas forradas com toalhas de seda, protegidos por guardas armados. Os habitantes locais sentam-se em cadeiras de plástico de cor laranja, em ambos os lados, 20 para cada monitor de vídeo, sem mesa e sem toalha de seda. Ninguém parece empolgado, pois não há apostas e, além disso, não é uma grande corrida.
A história já é diferente na super Mercedes que se desloca pela pista, fazendo sombra ao bando de animais. Nele, o locutor e duas dúzias de acalorados proprietários de camelos, pendurados nas janelas, gritam instruções aos seus jóqueis. Eles utilizam intercomunicadores – embora não pareça ser necessário.
Saeed conseguiu colocar-me no ônibus para a segunda corrida. O veículo pára ao lado da linha de partida. Ao contrário dos cavalos de corrida, camelos não tem portões individuais. Ficam todos juntos e os animais se atiram para a frente.
Os camelos começam a sair e o locutor a narrar. Ele parece um leiloeiro. Além dos nomes dos camelos, também cita os nomes dos proprietários – alguns nomes árabes podem ser bastante longos. Felizmente, os donos dos camelos não tem habilidade para nomes excêntricos, como no caso das corridas de cavalos.
Acompanhar a corrida lado a lado cria sensação de tranqüilidade para o evento. Os jóqueis sacolejam para cima e para baixo com as longas passadas dos camelos, parecendo sossegados e até um pouco entediados. Se os proprietários não estivessem gritando nem escorresse espuma das bocas dos camelos seria difícil dizer se isso é corrida ou mero passeio.
Chegamos à última etapa da corrida de 8 quilômetros e cruzamos a linha de chegada. Os jóqueis saltam das selas feitas de cobertores enrolados para os braços de seus treinadores, pela primeira vez parecendo crianças e não pequenos adultos fanfarrões.
Os vencedores recebem o modesto prêmio em dinheiro no escritório, mistura de “alta tecnologia” com “baixa tecnologia”. A sala de vídeo ostenta monitores do chão ao teto. Um homem fica rebobinando e avançando a corrida, fazendo os camelos dançarem na tela. Na sala ao lado, Saeed está sentado numa cadeira desbotada, que usa há 16 anos. Tornozelos cruzados sobre os joelhos, anota os nomes dos vencedores na velha prancheta. É assim que as coisas são no Golfo: algumas mudam, outras continuam do mesmo jeito.
Após cada corrida, os animais vencedores são submetidos a um teste anti-doping feito pelo veterinário da casa. É homem alto e sério – tão sério quanto pode ser um homem que coloca fraldas num camelo. Ele me corrige. Não é fralda, e sim bolsa coletora de urina, com a qual os camelos parecem não se incomodar. Ele insiste em que os animais tem boa índole e nega que cospem nos seres humanos. “São muito cooperativos quando comparados com outros animais. Se você entra no curral das vacas, elas se juntam em grupo para tentar avançar em você.”
“É verdade?”, pergunto.
“Foi o que aconteceu comigo.”
Mais tarde, no centro de reprodução de camelos, a aparência é de cena de presépio: três homens usando djellabas e turbantes, uma bela jovem e um camelo deitado próximo a eles.
A semelhança, no entanto, só vai até aí. Lulu Skidmore é especialista britânica em transferência de embriões de camelo. Nesse momento ela está fazendo uma ultra sonografia. Quando os embriões estiverem prontos, ela os transferirá para ventres de outros camelos. A idéia é reproduzir camelos melhores de forma mais rápida. Normalmente, um camelo pode ter duas crias em três anos. No entanto, Skidmore pode produzir 30 crias por ano usando embriões de uma única fêmea. É o mais avançado equipamento de reprodução que o dinheiro pode comprar. Se é possível para o petróleo, é possível para o camelo.
O progresso é o tema de unificação no Golfo. O povo dessa nação castigada pela areia passou de nômade e comerciante a milionário em 30 anos. Se eles tiverem camelos, então serão os mais avançados do mundo.
Ainda sentado, o camelo 484 estica o pescoço para fora, fuçando a tigela de ração. Certo dia, um de seus embriões do tamanho de uma ervilha poderá vencer a maior das corridas nos Emirados , onde o primeiro prêmio será um Land Cruiser de quatro rodas capaz de alcançar 560 quilômetros sem comida ou água.
Mas jamais será tão interessante quanto o camelo.

quinta-feira, agosto 16

Vizinhos difíceis

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Carlos Tautz

A maioria de nós já teve um destes conflitos, grande ou pequeno – saiba como evita-los daqui para a frente.

A professora Regina Coeli há anos se irrita com o pontual asseio do vizinho. Todos os dias, exatamente às seis da manhã e às sete da noite, a água do banho do vizinho escorre pela parede do banheiro de Regina. “Bastava ele abrir o chuveiro e pronto”, lembra Regina.
O problema começou em 1994. A professora se queixou várias vezes à proprietária do apartamento vizinho e nada. Reclamou na imobiliária que alugava o imóvel para ele e nada. O inquilino não queria consertar o vazamento. Pensou em contratar alguém para quebrar a parede e reparar tudo, mas temeu que desse em briga. Afinal, desistiu.
Infelizmente, situações como esta não são raras. A maioria de nós já teve conflito, grande ou pequeno, com algum vizinho. Nos Juizados Especiais – denominação dos antigos Juizados de Pequenas causas -, problemas com vagas na garagem, barulhos, festas, crianças indisciplinadas, animais, vazamentos e até obscenidades são os mais comuns.
O juiz Luiz Felipe Salomão, que desde 1989 trabalha nos Juizados Especiais do Estado do Rio de Janeiro, recebe 45 novos casos todos os dias em seu gabinete. Cerca de 70% dos processos são decididos em uma simples audiência de conciliação entre as partes.
“Algumas vezes não há saída e as disputas acabam parando na justiça Comum”, observa o juiz Ricardo Cunha Chimenti, do Juizado Especial Cível Central, o maior do estado de São Paulo. Junto com outro juiz, ele comanda equipe de 216 conciliadores na comarca, tem 11 mil ações em andamento sob sua responsabilidade e recebe de 600 a 700 novas causas todos os meses. Apenas parte delas diz respeito a brigas entre vizinhos. Umas realmente são sérias, outras nem tanto.
“Num bairro de classe média do Rio de janeiro”, lembra o juiz Salomão, “uma bela senhora de meia-idade costumava tomar banho de sol no terraço da casa. Quando um vizinho percebeu que o bronzeamento acontecia todos os dias às mesmas horas, começou a acompanha-lo de longe, utilizando binóculo. A esposa do observador levou ao Juizado Especial a mulher bronzeada, acusando-a de assédio sexual.”
“Depois de ouvir a moça, o rapaz e a esposa”, recorda Salomão, “chegamos a um acordo e uma tela foi colocada no terraço para que os atributos da mulher não fossem mais admirados por espectadores indesejados.” Ao final da conciliação, o homem disse que valia a pena ter enfrentado um juiz porque a vizinha era realmente muito bonita.
“Ame o próximo”, ensina a Bíblia. No entanto, é difícil imaginar que alguém possa ter sempre sentimentos positivos por aquela vizinha fofoqueira. “Às vezes é complicado conviver em sociedade”, reconhece a advogada e antropóloga Ângela Moreira Leite, que desde 1995 pesquisa as disputas nos Juizados de Pequenas Causas.
Como evitar o envolvimento numa briga entre vizinhos ou resolver uma desavença que não pode ser evitada? As dicas estão abaixo.

Seja cortês
Se está planejando fazer aquela festa que vai durar até a madrugada, convide os vizinhos – ou pelo menos alerte-os de que haverá barulho até tarde. Caso a mangueira do quintal jogue folhas no terreno do vizinho, ofereça-lhe algumas frutas.

Faça amigos
O filho do vizinho bateu em seu carro no estacionamento do condomínio, quando manobrava o automóvel do pai. “Para que seu carro seja consertado, é necessário que o responsável pela batida dê entrada no seguro dele primeiro”, observa Salomão. “Se ele quiser, pode atrasar a operação de propósito e você perderá dinheiro se vender o carro amassado. Com uma boa conversa é possível apressar os trâmites burocráticos e o conserto do carro.”

Converse antes e procure soluções que atendam aos dois lados
Em São Gonçalo, Rio de Janeiro, duas senhoras viviam brigando porque as folhas da árvore que ficava no quintal de uma delas voavam para o outro lado do muro, entupindo a bomba da piscina. Na audiência de conciliação, no Juizado Especial, elas concordaram em fazer a poda da árvore e limpar o terreno duas vezes por semana. “Saíram do Juizado amigas”, lembra Ângela Moreira Leite.
Quando a disputa é iminente, planeje com cuidado o que fazer e falar. Ataque objetivamente o problema, não a pessoa. Se o vizinho gosta de ouvir o som alto, calmamente informe a ele ou a ela como isso afeta você. “Tenho de levantar cedo para trabalhar. Que tal diminuir o volume depois das dez horas da noite?”
Se possível, escolha campo neutro para conversar sobre o problema: Calçada, elevador ou playground. “Isto reforça os laços de convívio social”, ensina Gustavo Tepedino, diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UEJR).

Tome notas
Pode parecer muito burocrático, mas vale a pena. “Anote o dia, local e atitudes do vizinho que incomoda”, recomenda Tepedino. “Ao mostrar as anotações ao vizinho é possível ele simplesmente parar de aborrecer.”
Por outro lado, você pode rastrear algum exemplo incontestável. E terá evidências para apresentar ao vizinho. “Freqüentemente, perceberá que seu vizinho não está atento ao problema, até que este lhe seja indicado”, afirma Cora Jordan, advogada e autora do livro “A lei do vizinho” (Neighbor Law). Se o vizinho se mostrar rude, as anotações terão grande importância caso você decida propor uma ação.

Pesquise as leis
A maioria das cidades tem códigos de posturas e leis de edificações que regulamentam , no município, níveis de ruído, ocupação de calçadas, horários e dias de festividades e até a coleta do lixo. Esses regulamentos, em geral bem objetivos, determinam exatamente medidas de estacionamento, volume da música do clube ao lado ou horários em que se pode fazer obra em prédios de apartamentos.
Procure na prefeitura e nas bibliotecas municipais, tire cópias e as envie pelo correio para seu vizinho, mas de forma educada: “O senhor provavelmente não se deu conta de que é proibido fazer barulho em seu apartamento antes das sete da manhã.” O juiz Chimenti ensina: “Registre a carta descrevendo o problema e exija dos correios um Aviso de Recebimento da correspondência.”

Organize apoios
“Vários vizinhos e eu reclamamos da síndica de um prédio onde morei há 11 anos. Todas as sextas-feiras, ela fazia festas que varavam a madrugada e botava nas alturas o volume da música. Depois de quase o prédio inteiro se colocar contra ela, as festas terminaram”, lembra a dona de casa Antonia Barbosa dos Santos, que viveu por quase cinco anos em um edifício à primeira vista tranqüilo, na Freguesia, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. “Tente sempre o diálogo. Se for impossível, reúna outros que também estejam incomodados”, explica o juiz Chimenti.

Pense bem antes de chamar a polícia
Na realidade, há várias situações em que apenas a autoridade policial tem poderes para resolver. “No entanto, nem sempre resolve”, atesta, no Rio de Janeiro, a conselheira da Associação dos Moradores da Lauro Muller, Henriette M. Krutman. Munida da portaria de interdição emitida pela Secretaria Municipal do meio Ambiente, ela já chamou a radiopatrulha várias vezes na tentativa de suspender os “bailes” do clube próximo à sua residência. “Os policiais, quando vêm, somente conversam com o organizador do baile – cujo ruído diminui enquanto eles estão ali - e depois vão embora. Aí a música recomeça a todo o vapor e vai até quatro ou cinco horas da madrugada.”
Ainda assim, se aquela festa de arromba continua a impedir o sono às cinco da manhã, um carro de polícia pode dar resultado. E nem sempre a polícia é tão condescendente quanto no caso reclamado por Henriette.
Lembre-se de que outras autoridades – Saúde Pública, Corpo de Bombeiros e até secretarias do meio ambiente – podem ser muito mais indicados para resolver determinados problemas.

Encontre um mediador
Atualmente estão em funcionamento no Brasil mais de 300 juizados Especiais, que oferecem intermediação gratuita em pequenas causas. “Eles são, por excelência, o fórum adequado para se resolver brigas de vizinhos”, alerta o juiz Salomão.
A mediação permite que as partes sejam plenamente ouvidas. Pesquisa realizada pela cientista política Maria Celina D’Araujo, da Fundação Getúlio Vargas, mostra que em 63% das ações propostas em quatro Juizados no Rio de Janeiro a conciliação é alcançada em apenas uma sessão, que acontece menos de três meses após a primeira “visita” do Autor ao Juizado.
Se houver concordância, as partes selam ali mesmo, na presença do mediador, um acordo que tem força de decisão judicial. Mas se as partes não se acertarem ocorre a segunda etapa do processo, momento em que um juiz de direito dará a palavra final sobre a disputa.
“Além de eficaz e rápida, a mediação é a maneira mais democrática de se ter acesso à justiça”, observa a pesquisadora Celina. Mas tanto ela quanto a advogada e antropóloga Ângela Moreira Leite apontam que o início promissor dos Juizados Especiais criou uma avalanche de ações que já começa a contaminar com certa lerdeza essa ramificação da justiça, antes considerada maneira rápida para “amenizar a recorrente ‘crise’ do Judiciário”, como aponta Celina em sua pesquisa.

Entrar na justiça
Se a diplomacia não funcionar, o jeito é apelar par a justiça. “Só utilize a justiça se o vizinho não quiser de forma alguma negociar”, enfatiza Chimenti. Se o valor da causa se mantiver no limite de 20 salários mínimos, não há qualquer custo. No entanto, se ficar entre 21 e 40 salários mínimos, será necessária a contratação de advogado ou a assistência judiciária instituída pelo próprio juizado.
“Nessas circunstâncias, a mediação pode se estender por mais tempo. Existe ainda a possibilidade de seu vizinho levar o caso à Justiça Comum através do procedimento ordinário ou sumário, apenas por vingança. Aí estaríamos quase caindo nos mesmo casos em que se levam até anos para resolver disputas na Justiça”, lembra José Rubens Morato leite, que dirige o escritório modelo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
Porém não deixe que a raiva contamine você: “Uma disputa entre vizinhos não precisa transformar-se em verdadeira guerra”, ensina Terry Amler, mediador de causas semelhantes nos Estados Unidos, país com mais de 30 anos de tradição em resolução de conflitos entre vizinhos. “Só é necessário um pouco de paciência para sentar, ouvir o que o outro lado tem a dizer e conversar”.

quinta-feira, agosto 2

Comemorando toda uma vida

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Mary E. Potter

Era o dia dele, mas era nosso também – um momento de olhar para o futuro e para o passado.

Os diplomados estão enfileirados, posando como uma tribo de índios guerreiros num filme clássico do faroeste. Mas, em vez de se precipitarem pelo gramado bem cuidado, gritando e fazendo baderna, marcham lenta e decorosamente, com suas becas pretas agitando-se na brisa fresca da manhã.
O vento também capta a música da banda, elevando-a sobre as cabeças dos espectadores, enquanto nos mexemos e viramos em nossas cadeiras dobráveis, esforçando-nos para ver o desfile. Um rastro de bolhas cristalinas, refletindo as cores do arco-íris, flutua atrás de uma garota que, sem constrangimento, sopra num canudo de plástico. Nas compridas fileiras de barretes pretos de formatura, inclinados em todos os ângulos, consigo ver meu filho.
No momento em que Jeff passa, vem-me à cabeça a imagem dele aos 10 anos, vestindo uma roupa velha de professor. Naquele ano, Jeff usou beca feita em casa e um barrete, com cabelos de barbante; velhos óculos de aros de metal escorregavam pelo nariz, enquanto ele, com dificuldade, carregava um dicionário com os dois braços.
A recordação daquele menino se esforçando está justaposta à visão do belo rapaz que vai marchando. Hoje, o barrete e a beca são verdadeiros, mas ele carrega os conhecimentos – além das responsabilidades que acompanham este privilégio – na cabeça e no coração, e não nos braços.
O reitor da universidade pede aos pais que se levantem. Todos aplaudem, reconhecendo que este também é o nosso dia. Lá na frente, a garota continua sua atuação. Torrentes de bolhas flutuam preguiçosamente até nós, em meio a brilhantes manchas douradas da luz do sol. Cada uma delas me parece trazer recordação de Jeff quando estava crescendo.
Eu o vejo aos 2 anos de idade, sentado no colo de Richard, apontando as letras do alfabeto, construindo uma fortaleza no mato e instalando o escritório em seu quarto – que sempre foi um foco de atividade, onde cada espaço disponível ficava empilhado de livros, coleções de pedras, tampas de garrafas, figuras de jogadores e selos. Meus pensamentos saltam para uma lembrança de Jeff, aos 12 anos, sentado à mesa da cozinha, aprendendo sozinho a datilografar, “catando milho” na velha Remington que comprara com o próprio dinheiro numa liquidação. E depois assisto ao diretor chamar o autor da peça de Natal da sexta série. No palco aparece Jeff, vindo dos bastidores, as faces coradas de orgulho e constrangimento diante dos aplausos.
As bolhas continuam a esvoaçar. No meio delas estão minhas recordações. Eu me pergunto como passei tão depressa da cadeira em que assisti à peça de Natal da sexta série para a cadeira onde estou assistindo hoje à formatura. Como todos aqueles dias – de reuniões de escoteiros, treinos dos juvenis e longas viagens à escola – transformaram-se em anos tão rapidamente? No final da cerimônia, que de certo modo marcará o fim de nossos anos de mentores de Jeff, o que devo dizer? Encontramos nosso rapaz no largo gramado verde atrás das cadeiras. Todos estão circulando por ali com alegria. É hora dos cumprimentos. Mas quando me sinto envolvida pelos braços carinhosos de Jeff, em sua beca preta, não encontro palavras.
Tudo bem. Não tenho nenhum aforismo apropriado nem palavras polidas de sabedoria engarrafada para meu filho levar em sua viagem pela vida, como excesso de bagagem. Meu trabalho como mãe já foi feito, em momentos tranqüilos, quando lhe contava histórias na hora de dormir, nas longas conversas na cozinha, nos ensinamentos e sermões, assim como nas demonstrações através de exemplos das nossas vidas diárias
Agora, minha cunhada Gloria nos faz posar para uma foto. Os garotos mais novos, Robert e John, ficam na frente, sorridentes e orgulhosos. Jeff se posta na fila de trás, entre Richard e eu. Sinto a mão de Richard em meu ombro. Gloria bate a foto e nos congela no tempo.
Amanhã, Jeff pode passar ao futuro. Por hoje, vamos parar só um instante, festejar e aplaudir uns aos outros, dirigindo nossa visão tanto para a frente quanto para trás, enquanto as bolhas deslizam por nós, delicadas, efêmeras, esvoaçando pelo sol e pela sombra e, por fim, erguendo-se para o céu límpido e sem fim.

terça-feira, julho 31

Promessa de primavera

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Jeff Rennicke

Até mesmo os dias mais gelados de inverno apresentam... promessa de primavera.

Nada. Nenhum rastro além do meu está pontilhado na camada de neve recente – branca como a casca do vidoeiro – caída durante a noite. Nenhum alvoroço de sombras nas árvores, nem sinal de cantos de pássaros no ar.
O pouco sol que existe nessa época do ano brilha fraco, sem vontade, através da fina névoa de nuvens brancas, não oferecendo a menos pretensão de calor. Já faz quase uma semana que a temperatura perto de minha cabana no Wisconsin se mantém abaixo de zero. O mercúrio parece estar preso à base do termômetro. Sinto arrepio enquanto bato com os pés para me aquecer e novamente espero escutar algum sinal de vida.
O único ruído vem das pontas despidas dos galhos, rangendo como dentes. À primeira vista, a natureza não parece ter investido muito nesse dia de fim de inverno. A floresta tem ar de gravura tosca – árida, cinzenta e sem vida. Os flocos de neve caindo como pára-quedas no gramado da frente, que nos encantaram no dezembro – agora significam apenas que temos de raspar o pára-brisa do carro. Há belezas sutis – os galhos de pinheiro envoltos em camada branca, o brilho azulado do luar sobre a neve. Mas, nessas profundezas do inverno, procuramos menos a beleza do que sinais de que a primavera não foi esquecida.
Não é fácil encontra-los. Já houve época em que se acreditava que a natureza simplesmente fazia limpeza geral no inverno, espécie de apocalipse anual, seguida de renascimento milagroso a cada primavera. Pensava-se que os camundongos se regeneravam espontaneamente das pilhas de trapos. As rãs e tartarugas saíam das poças de água, geradas pelas chuvas mágicas da primavera. Pássaros se transformavam em outros animais para atravessar os meses gelados.
Os verdadeiros meios usados pela natureza para lidar com o frio são quase tão espantosos quanto essas velhas histórias. O inverno oferece duas opções básicas à vida silvestre: mudar-se ou lutar. Em alguns locais, a paisagem se esvazia como uma jarra de água derrubada. Os galhos curvam-se sob o peso de bandos mistos de melros, pássaros negros e estorninhos, às centenas de milhares, que se reúnem para migrações em massa. Dois terços das espécies de pássaros que tem os ninhos na América do Norte dirigem-se a locais de climas mais amenos.
Cem milhões de borboletas danis archipus, parecendo flores silvestres aladas, viajam às vezes até 6 mil quilômetros ao México, Texas e à Califórnia. Caribus saem em bandos do alto Ártico com as primeiras geadas do inverno. Baleias cinzentas viajam milhares de quilômetros procurando calor, alimento e sol.
Mas nem todas as migrações alcançam o globo terrestre. Muitas espécies fazem viagens curtas, por vezes apenas de alguns quilômetros, para aproveitar condições locais conhecidas como microclimas. Os alces do Colorado passam das terras altas para os vales vizinhos. As águias de cabeça branca do Alasca procuram o alto-mar. Os cervos de cauda branca das matas do Wisconsin buscam uma encosta voltada para o sul com o objetivo de aproveitar o sol da manhã.
Outras criaturas inventam meios próprios de enfrentar a dura realidade do inverno. Os bois postam-se de costas para o vento de temperaturas abaixo de zero, respirando devagar pelas narinas que aquecem o ar ártico supergelado antes que ele penetre nos pulmões. Os ursos polares se mantém aquecidos acumulando camadas de gordura de até 18 centímetros sob a pele de quase 10 mil pêlos por 6 centímetros quadrados. As patas ásperas são antiderrapantes.
A sobrevivência de certas espécies parece quase milagrosa. O chapim, por exemplo, que pesa apenas nove gramas, lembra minúscula centelha de vida para se lançar à mercê de ventos gélidos, de 60 km/h.
Para manter a fornalha interna estocada, os chapins comem, no inverno, o dobro do que comem no verão. Durante o dia, alimentam-se quase continuamente, para acumular camada de gordura que queimará lentamente durante a noite fria. No inverno, também tem mais 30% de penas e podem afofa-las, formando camada de ar quente.
Quando o frio se torna muito intenso, os chapins alcançam uma espécie de estado hipotérmico controlado, as temperaturas corporais baixando até 11 graus abaixo dos 40 normais, desse modo reduzindo o consumo de energia. A qualquer indício de calor, os chapins saem das cavernas de moitas cerradas, piando baixinho e comendo, sempre comendo.
Muitas espécies de sangue frio se enterram na lama para não congelar, reduzindo-se quase à morte. As rãs do mato na verdade se congelam, e degelam na primavera. A rã inunda a corrente sanguínea com glicose – anticongelador que impede lesão às células -, expediente também utilizado por insetos, tartarugas e cobras do gênero thamnophis.
Atravesso um riacho. Abaixando-me, raspo a neve da superfície e bato no gelo com a mão – de luvas -, imaginando uma tartaruga em algum lugar no fundo., ouvindo vagamente o ruído, enquanto pacientemente aguarda a primavera.
Nesse mato também estão os ursos negros hibernando. Em cada outono, levados por recordação ancestral do inverno, os ursos negros entram num frenesi alimentar. Chegam a consumir 20 mil calorias por dia, aumentando em 30% o peso corporal. Na primeira nevasca, eles se escondem no fundo de tocos, grutas e buracos rasos formados de capim. Às vezes se entocam a alturas de até quase 30 metros nos troncos quebrados de árvores antigas. As batidas cardíacas caem até 10 por minuto e eles estabelecem residência por um período de quatro a seis meses.
Não comem nem bebem, não urinam nem defecam. Pesquisas sobre o modo de os ursos reciclarem os detritos sem envenenar o organismo tem ajudado a tratar pacientes com insuficiência renal. O estudo da maneira de lidar com longos períodos de inatividade sem perda de cálcio nem atrofia muscular pode ajudar a evitar a osteoporose, além de ter conseqüências para os vôos espaciais de longa duração.
Fico pensando na confiança total do urso na volta da primavera. Postado ali na beirada, a alguns graus do clima impróprio à vida, é confortador saber que sob a neve os ursos dormem numa crença inocente de que o sol retornará para libertar os rios e fazer as flores desabrochar.
Quando volto para casa, ouço o ruído: o assobio dos chapins, baixinho, em dois tons. Quando os procuro, vejo um pica-pau penugento subindo em espiral pelo vidoeiro, o brilho vermelho vivo com uma língua de fogo. No solo, observo pegadas de coelhos, onde momentos antes só tinha visto neve lisa.
Esses ligeiros sinais de vida nos permitem acreditar de novo na primavera. Ajudam-me a apreciar a beleza do que resta do inverno e a me lembrar de que o frio não durará para sempre. Cada rastro, cada trechinho de canto de ave, cada legume congelado é uma afirmação de vida, desafio ao frio, promessa.
Ânimo, parecem dizer. A primavera chegará em breve.

segunda-feira, julho 30

Paixão pela leitura

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Anna Quindlen

O presente que todos os pais podem dar a um filho

A voz que uso quando as crianças se comportam mal é como uma casaca de inverno, carregada e severa. Usei o tom certa noite, quando meu filho mais velho apareceu à porta da cozinha uma hora depois de ter ido para a cama.
“Que está fazendo aqui?”, comecei a dizer, quando ele me interrompeu: “Acabei!”
O tom duro voou pela janela e nos sentamos para conversar sobre os pontos altos do livro que ele acabara de ler – o mesmo que li pela primeira vez quanto tinha 10 anos. Ainda hoje guardo o comentário que escrevi. Começava assim: “Este é o melhor dos livros.”
Todos nós temos aspirações semelhantes para os filhos: boa saúde, felicidade, trabalho interessante e satisfatório, estabilidade financeira. Mas, assim como uma casa modelo é diferente dependendo de quem escolhe os armários e venezianas, detalhes muitas vezes são diversos. Há pessoas que ficam alucinadas quando os filhos começam a andar, a jogar bola, a tentar tocar a Sonata ao luar ao piano. O dia em que percebi que meu filho sabia ler foi um dos mais felizes de minha vida.
A romancista inglesa Anita Brookner observou que “quando a pessoa cresce, torna-se civilizada, aprende a se comportar e conseqüentemente... as tentativas de recapturar...a espontaneidade estão condenadas”.
No entanto, quase sempre recuperamos a espontaneidade através dos mais jovens. Ver uma criança tocar as teclas do piano pela primeira vez, observar um corpinho romper a superfície da água num mergulho bonito, é experimentar o choque de revisitar o que é conhecido, como se fosse estranho e maravilhoso.
A leitura sempre foi, para mim, o desenrolar da vida, o modo de compreender o mundo e a mim mesma, tanto pelo desconhecido quanto pelo cotidiano. Se o fato de ser pai (ou mãe) muitas vezes consiste em passar adiante pedaços de nosso ser para receptores involuntários – e muitas vezes relutantes – então os livros representam meio simples e seguro de faze-lo. Ficaria satisfeita se meus filhos, quando crescessem, se tornassem o tipo de gente que acha que a decoração é sobretudo construir muitas estantes de livros. Isso daria a eles número infinito de mundos em que vagar, além da entrada para o mundo real. Assim como estranhos podem instalar-se amigavelmente para bater papo sobre os grandes jogadores de futebol do passado e do presente, também podemos ligar-nos a alguém pela paixão aos livros.
Lembro-me de que fazia listas de livros para minha irmã ler no verão, bem como do dia em que ela chegou em casa do trabalho tendo na bolsa minha cópia surrada e amarelada de Orgulho e preconceito e disse, irritada: “Diga-me se ela se casa com o senhor Darcy, porque se não se casar, não vou acabar de ler o livro.” E lembro-me, também, de como fiquei aturdida enquanto dizia, compenetrada, que nunca poderia revelar o final do livro, enquanto por dentro eu gritava e repetia: “Sim, sim, ela se casa com o senhor Darcy.”
Bastaria olhar para o rosto daquele menino ao dizer: “Acabei!”, para saber que algo deixara nele marca indelével. Acompanhei-o ao andar de cima com outro livro.
Então, quando saio do quarto, meu filho está lendo sob a luminária, a nave de sua mente viajando pelos mares com o auxílio de minha bússola. Pouco antes de fechar a porta, vejo de relance a formação de meu ser e a formação do ser dele, partes do mesmo tronco. E sou uma pessoa feliz.

sábado, julho 28

Aproveite a partida

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : James Dodson

A jornada chegava ao fim, e meu pai insistia em jogar à sua maneira

Meu velho era um cara que sempre via o lado bom de tudo. Quando adolescente, eu o chamava, nem sempre afetuosamente, de Oti, o místico, devido ao seu louco otimismo, eterno entusiasmo e imperturbável jeito de ver qualquer problema ou crise como “oportunidade de crescimento”.
Durante 30 anos, fora representante sênior de uma das maiores firmas de publicações industriais do mundo. Transformara o apático setor de publicidade em próspero território de milhões de dólares. Para Oti, o trabalho duro era forma de jogo, pois envolvia a solução de problemas. Esta visão se encaixava como luva na filosofia de seu jogo preferido – o golfe.
Ele pôs um taco em minhas mãos pela primeira vez quando eu tinha uns 10 anos. Atirei bastante mau humor pelos montículos da Carolina do Norte, e tacos também. Eu tinha tanta pressa de ser bom que ele me mandava “relaxar e aproveitar porque o jogo termina logo”. Não entendia o que ele queria dizer.
“O verdadeiro prazer do jogo”, explicava, “estava em decifrar o enigma de cada arremesso – interrupção injusta, horrível jogada em terreno áspero.” Para ele, o golfe também formava o caráter. Por isso, era rigoroso com as regras: você fixava os pinos no gramado; esperava a vez; cumprimentava o adversário por um bom lançamento. Ele achava as cortesias essenciais como o oxigênio, mas eu me sentia sufocado por elas.
Finalmente, quando me acalmei e cresci, o golfe tornou-se muito mais que um jogo entre nós. Era minha porta de entrada para o universo dele – modo de ver quem realmente era aquele filósofo esquivo, engraçado, excêntrico, e em quem eu precisava me tornar.
O campo de golfe transformou-se no lugar onde conversávamos. Nenhum tema ficava de fora: sexo, mulheres, Deus, carreira, dinheiro. Debatíamos sem rancor, encontrávamos pontos em comum, competíamos como loucos e aproveitávamos os momentos do jogo.
Jogamos no dia em que Neil Armstrong pisou na lua, na véspera do meu casamento e no dia seguinte ao nascimento de meu filho. Disputamos as partidas na chuva, no vento, no calor. Normalmente jogávamos tarde, seguindo nossos vultos ao escurecer.
Mas agora papai chegava aos 80, e enfrentava desagradáveis efeitos da colostomia radical e da prostatectomia. Os joelhos estavam fracos, a audição era ruim e ele sofria de catarata, porém nunca mencionava esses problemas. E, se eu o fazia, ele apenas ria de minhas preocupações.
Num dia frio e úmido de outubro, jogamos em Pinechurst, Carolina do Norte, um de seus campos preferidos. Ele errou e perdeu arremessos que antes fazia de olhos fechados. Em dado momento, estava preparando a jogada, quando o ouvi, timidamente, pedir ajuda. Peguei-lhe a mão, que tremia um pouco. Meu coração quase se partiu. Na volta para casa, disse: “Vamos fazer aquela viagem sobre a qual sempre falamos.”
A viagem era para St. Andrews, Escócia, Meca do golfe. Estivéramos lá antes – eu como anotador de golfe, papai como sargento da Força Aérea durante a Segunda Guerra Mundial-, mas nunca jogáramos juntos.
Duas semanas antes de partirmos, ele me telefonou. “Estou com sangramento”, avisou. O Câncer voltara, espalhando-se para a região pélvica, costas e estômago. Teria um mês de vida, dois no máximo.
“Podem me encher de veneno e me fazer durar mais algumas semanas, mas quem diabos precisa disso?” Ele revelou que planejava deixar a natureza seguir seu curso. Disse-lhe que admirava sua coragem. Ele me respondeu para poupar a força dos pulmões para o campo de golfe. “Estou planejando dar-lhe uma surra em St. Andrews”, brincou. “Vejo-o no aeroporto;” Oti, o místico, falara.
Decidimos jogar em vários campos da Inglaterra antes de irmos para St. Andrews. A primeira partida seria em Royal Lytham, perto do vilarejo inglês de Freckleton. Por 13 meses, durante a Segunda Guerra, papai servira como inspetor de pára-quedismo da Força Aérea nos arredores da aldeia. Nos dias livres, jogava golfe.
Quando entramos em Freckleton, as calçadas estavam cheias de crianças de escola. “Havia crianças como estas passeando próximo à base”, disse meu pai. “Tirei fotos de várias delas. Tínhamos uma parede coberta com as fotografias.”
No campo, naquele dia, papai nitidamente saltitava ao andar. Pude vê-lo fazendo um swing com seu uniforme de sargento.
Sentamos para descansar na grama do décimo marco.
“Nosso placar está horrível”, comentei.
“Não importa. Isso é tão gostoso. Olhe aqueles pássaros.”
Avistei inúmeros pássaros brancos sobre os tetos vermelhos pontiagudos. O momento era realmente gostoso, provando, como alguém já disse, que o golfe depende, em grande parte, do parceiro que se escolhe para jogar.
Durante a partida com alguns residentes na noite seguinte, certa mulher falou sobre a recente reunião na antiga base.
“Houve uma cerimônia para lembrar o bombardeiro”, contou.
“Que bombardeiro?”, perguntei.
“O que explodiu”, respondeu ela.
Olhei para papai.
“Sabe de que bombardeiro ela está falando?”
Estava pálido.
“Sim.” Sua voz era quase um sussurro. “Venha comigo.”
Caminhamos até o cemitério nos fundos da igreja no centro do vilarejo. Eu o segui até uma grande cruz de granito polido. Li alguns dos nomes inscritos na margem de pedra que cercava o canteiro: Gillian e June Parkinson, George Preston, Michael Probert, Annie Harrington...
Trinta e oito nomes ao todo. Um túmulo coletivo.
“Como esses caras morreram?”, perguntei.
“Não eram caras”, respondeu. Eram crianças. De 4 e 5 anos. Freqüentavam a escola da igreja. Um de nossos bombardeiros chocou-se contra a escola.”
Fechou os olhos, e me perguntei se estaria rezando ou revivendo as cenas que eu não conseguia imaginar.
“Eram mais ou menos 10h30min”, disse ele. “Eu acabara de me espreguiçar na cama para dormir mais um pouco quando ouvi o enorme ronco seguido da explosão. Fui um dos primeiros a chegar à escola. Deus, que cena! Combustível queimando pela rua. Lembro de ter removido pedaços do avião, tijolos e todas essas preciosas criancinhas lá dentro, enterradas vivas...”
Vi lágrimas brotarem-lhe dos olhos. Abracei-o, e ficamos ali por vários minutos.
Ele pigarreou e prosseguiu:
“Havia uma garota em especial. Sempre sorrindo. Eu a chamava de Madame Alegria. Estava entre os mortos.”
Senhor misericordioso, pensei.
“Uma semana depois do acidente, encontrei uma nota dos pais da menina no boletim da base. Queriam saber se alguém a fotografara. Dei-lhe todas as fotos que tinha, sentamos na sala e choramos. Acho que nunca experimentei algo tão triste.”
Saímos do cemitério, fechando lentamente o portão atrás de nós.
“Estou surpreso por nunca ter me contado essa história”, falei. Ele parou e olhou para trás, para a igreja.
“Para mim, a guerra terminou aqui”, disse. “Prometi a mim mesmo que nunca falaria sobre isso novamente.”
Na noite anterior, ele me confidenciava que, ao se juntar ao Exército, era um convencido que pensava entender de tudo. Foi quando “algo aconteceu” e percebeu que “a única coisa que a vida realmente nos promete é o sofrimento. Depende de nós criar a alegria.”
Oti, o místico, nascera no acidente do bombardeiro.
Naquela noite, minha prece foi simples: queria que meus filhos jamais conhecessem a dor que papai conhecera. Porém, se tivessem de enfrenta-la, eu esperava que fossem como Oti.
Há seis esplêndidos campos em St. Andrews. No entanto, é o Antigo Campo – o mais famoso do mundo – que atrai peregrinos do golfe. A demanda é tão grande que há sorteio diário para ver quem vai jogar. Eu conhecia um funcionário que nos colocaria no campo, mas quando contei a papai sobre a subversão que planejara, ele pareceu desconcertado.
“Por que quer fazer isso?”
“Não viajamos até aqui para não jogar no Antigo Campo?”
“Acha justo ignorar as regras?”
“Não se trata disso, papai”, falei, sentindo-me como se tivesse 12 anos, ao explicar que colara na prova.
“Então, por que quer jogar lá? Já jogou muitas vezes”, perguntou.
Ambos sabíamos por que era tão importante jogar lá, mas eu não queria dizer, e tinha certeza de que ele não queria ouvir: nossa ida ao Antigo Campo, provavelmente, seria a última partida juntos. Despedida à altura, porém uma despedida é sempre uma despedida. Era disso que eu mais sentia medo.
“Se é assim que deseja”, concordei. “Vamos depositar nossas esperanças na urna.”
“Só quero se for assim, e você também, se pensar melhor”, afirmou ele.
Não fomos sorteados nos dois primeiros dias.
“Vamos esperar mais um dia”, disse ele.
“E depois?”
“Bem, se não tivermos sorte, talvez seja melhor irmos.”
“Você quer dizer ir embora?”, perguntei calmamente.
“Acho que é hora. Tenho umas coisas para fazer.”
Fui caminhar e parei junto à cerca atrás do primeiro marco do Antigo Campo. Faltava, talvez, uma hora para escurecer. Vi dois jogadores terminarem, erguerem suas sacolas e se afastarem do campo. Fiquei ali com pena de mim mesmo. Percorrêramos toda aquela distância para nada.
Naquele instante, uma voz atrás de mim observou: “Disseram-me que há quase 500 anos se joga golfe aqui e qualquer pessoa está autorizada a usar estes campos públicos.” Era meu pai.
Caminhamos devagar e conversamos sobre golfe, sobre o passado, sobre mamãe. Logo estávamos no 17º marco, o Buraco da Estrada, considerado por muitos o mais difícil do mundo. O campo estava quase totalmente envolvido pelo crepúsculo azul de outubro.
“Gostaria que estivéssemos com nossos tacos”, disse eu.
“Ah, quem precisa deles?”, perguntou papai. “Vamos jogar assim mesmo.”
Ele sacou o taco imaginário, fingiu acertar a bola e fez o swing.
“Lá”, gritou. “Bem sobre a linha. Exatamente como há 50 anos.”
Eu o passei, como sempre, em pelo menos uma centena de metros. Da parte lisa do campo, papai utilizou o taco imaginário para acertar o buraco abominável. Depois anunciou que estava usando um calço de areia, e empurrou a bola suavemente para o gramado. Estávamos jogando magnificamente.
Caminhamos até o 18º marco, fizemos belas jogadas na escuridão, e descemos para a parte lisa do campo. Durante semanas eu tivera medo deste momento. Porém, estranhamente, estava quase feliz.
“Pode me chamar de sentimental”, disse papai, “mas acho que foi uma grande jornada.”
“Os chuveiros do hotel eram muito piores do que se esperava”, respondi.
“Você está falando da viagem. Estou me referindo à jornada.”
Papai morreu em março. Algum tempo depois, fiquei incomodado pelo sonho em que eu me esquecia do som da sua voz. Acordei encharcado de suor, chorando.
Três meses mais tarde, fui ao Antigo Campo mais uma vez. Quando meus parceiros e eu nos aproximamos do Buraco da Estrada, tirei da sacola de golfe um saquinho de veludo azul. Os outros avisados sobre o que aconteceria, assistiam solenemente.
“Vocês parecem os três Cavaleiros do Apocalipse”, comentei. “Por favor, mostrem um pouquinho de desrespeito.”
Disse-lhes que meu velho falava que o golfe é um jogo que nos faz sorrir.
“Então, por favor, sorriam.”
Enquanto eles riam, despejei lentamente as cinzas de meu pai no buraco.
Após a partida, um garoto, de 11 ou 12 anos, passou por mim com a sacola de golfe nas costas.
“Como se saiu?”, perguntei.
“Mais ou menos. Sou meio fraquinho.”
“Tudo bem”, disse eu. “Aproveite. O jogo termina logo, sabia?”
“Certo. Obrigado.”
Ele seguiu seu caminho e eu o meu. E então, parei. Eu o ouvira – a voz de papai. Sorri. Oti, o místico, voltara.

quinta-feira, julho 26

Feliz no casamento

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autoras : Dianne Hales e Doris Wild Helmering

Como vencer as dificuldades e ser feliz no casamento.

Ele se esqueceu do aniversário dela. Ela se atrasou para o jantar com um cliente importante. Ele quebrou a perna uma semana antes da viagem dos sonhos do casal. Ela gastou a devolução do imposto em móveis de jardim sem consulta-lo.
Mais cedo ou mais tarde a pessoa que amamos nos decepciona. O marido não se mexe para instalar o ar-condicionado, apesar do calor escaldante. A esposa se esquece da lavagem a seco do terno dele.
Se o comportamento não muda (por exemplo, um dos cônjuges continua gastando demais no cartão de crédito), ou a decepção é particularmente dolorosa (um deles revelou os maiores segredos do parceiro ao amigo), a mágoa pode ameaçar toda a relação.
No entanto, grande parte das decepções pode ser diminuída – e até apagada - , se o cônjuge fizer algo além de simplesmente se sentir mal ou ficar com raiva.
Eis aqui cinco sugestões de conselheiros matrimoniais para lidar com inevitáveis omissões e deslizes:

Vá além do momento
Certa mãe ocupada tinha o tempo exato para deixar a filha na creche e ir a um compromisso importante quando percebeu que o marido, que lhe emprestara o carro na véspera, deixara o tanque vazio. Ela passou rapidamente no posto de gasolina, porém se atrasou para a reunião.
Naquela noite, reclamou do marido: “Como pode ser tão desligado?” Médico, ele se distraíra com a ligação de emergência de um paciente no telefone do carro, e nem observara o combustível. Quando a raiva passou, ela percebeu que se zangara não tanto com o que ele fizera, mas com o pensamento de que fora desinteressado.
“A maioria dos parceiros não age de má-fé”, diz a conselheira matrimonial Michaeleen Cradock. “Só estão cuidado das próprias necessidades imediatas.” Maridos e esposas que se esquecem de pegar o videocassete no conserto ou comem a última fatia do bolo de chocolate não querem prejudicar o outro. Estão simplesmente atravessando momento de desatenção.
Da próxima vez que achar seu cônjuge omisso, tente se colocar no lugar dele: o que está acontecendo em sua vida neste momento? Provavelmente ele se esqueceu de que é parte de uma equação e que seu comportamento afeta duas pessoas.

Lembre-se da grande imagem
Todos os dias, ao lavar a louça, a colunista de certo jornal via da janela uma bela árvore florida. “Adorava aquela árvore”, conta. “As folhas voavam como borboletas ao vento.” Quando o marido começou a podar os arbustos, pediu-lhe especialmente que não tocasse na árvore. Mas, ao voltar das compras, a árvore fora cortada. “Tive de corta-la”, disse o marido. “Ficou feia depois que a podei.”
Apesar da explicação, a mulher ficou furiosa. “Pensei: ‘Por que não cumpriu a palavra? Não sabia o quanto eu gostava da árvore?’”. Após martirizar-se e ao marido durante alguns dias, ela forçou-se a parar e pensar. “Percebi que estava deixando meus sentimentos negativos levarem a melhor sobre mim e meu casamento – e, se aquela era a pior coisa que meu marido já fizera, eu era uma esposa de sorte. Ele teve um instante de desatenção, que equilibrei com a vida inteira de consideração.”
Perspectiva é algo difícil de se manter no casamento porque não se tem o tempo nem a distância suficientes para deixar os maus sentimentos se dissiparem. A promessa quebrada de hoje se soma à retirada bancária não registrada de ontem. E camadas de sentimentos negativos vão sendo construídas.
Para evitar ser sufocado por mágoas antigas, não se esqueça da decepção recente – resolva-a logo quando acontecer – e resista à tentação de voltar ao passado. Se houver algo que o cônjuge possa fazer para que você se sinta melhor – leva-lo para jantar em comemoração ao aniversário de que ele ou ela se esqueceu, por exemplo, ou, no caso da colunista, plantar uma nova árvore – diga.

Exercite suas opções
Às vezes, o que mais ajuda a resolver diferenças individuais é o senso de humor. Durante anos, o hábito de certa mulher de não fechar as portas exasperou o marido. “Eu levantava à noite para ir ao banheiro e – bam! – esbarrava na porta do armário aberta”, queixa-se ele.
Depois de pedir que fechasse as portas, reclamar e enfurecer-se cada vez que ela se esquecia, ele desistiu de tentar muda-la. “É uma das características que a faz ser quem e”, diz. Hoje ele ri e vai ao banheiro à noite com os braços estendidos.
John Gladfelter, psicólogo clínico, lembra: “Não devemos deixar que sentimentos negativos dominem nossa vida. Temos outras opções.”

Busca de soluções
Em 20 anos de casamento, a secretária e o despachante discutiram sobre a divisão de tarefas em casa. Quando mudaram para uma casa maior, a esposa precisou de mais ajuda do marido. Então, concordaram que ela cozinharia e faria compras, enquanto ele aspiraria a casa nos fins de semana. “No início, ele cumpriu o trato, mas depois começou a esquivar-se”, queixa-se a esposa. “Conversamos. Ele reassumiu a função, porém voltou a se esquivar. Conversamos novamente.” O modelo se repetia e a esposa ficava cada vez mais ressentida.
Muitos parceiros caem na armadilha de tentar resolver uma questão recorrente da mesma velha maneira. “Cada vez que não funciona, o problema piora”, explica a conselheira matrimonial Serra Bording-Jones. “A mulher pode acusar o marido de não ama-la porque ele não mantém a palavra. O Mario, achar que ela está tentando controla-lo e recusa-se a ceder. E ambos podem tornar-se sarcásticos ou cínicos.” Como uma bola de neve, o assunto cresce e fica potencialmente mais destrutivo.
Nessas situações, os dois precisam pensar num compromisso criativo que funcione para ambos. Aqui, o casal poderia permutar as tarefas, com a esposa aspirando e o marido fazendo compras. No entanto, escolheram outra opção: ele aspira a cada duas semanas, o que é mais do que gostaria, porém mais flexível”, conta ela. “Se ele se esquece, não declaro a Terceira Guerra Mundial. Além disso, está cumprindo o trato muito melhor agora.”

Reacenda o romance
Após 20 anos servindo no mundo todo, freqüentemente sem a família, certo coronel da Marinha se reformou e começou a trabalhar como consultor. “Quando passei a ficar mais tempo em casa, apaixonei-me de novo por minha mulher”, revela. “Queria sair para jantar, viajar nos fins de semana, recuperar todo o tempo perdido. “Porém ela, que tinha a própria vida, estava ocupada com seu bufê e o trabalho voluntário.
As queixas de que um dos parceiros é mais atencioso, romântico, carinhoso ou disponível como antes são comuns no casamento. Freqüentemente são as mulheres que, negligenciadas, sentem falta de pequenos gestos, como elogios ou buquês de flores, que mostram que os maridos ainda se preocupam. Eles, também, podem ansiar por maior intimidade e romance. Homens acham natural o carinho de suas mulheres. Porém, quando ele desaparece, sentem falta, e querem-no de volta.
Por sugestão de um amigo, o coronel decidiu agradar à mulher, como fazia anos antes. À noite, quando ela chegava exausta, acendia a lareira e esperava-a na porta com um copo de vinho. Depois de verificar a agenda da esposa, planejou um fim de semana numa romântica pousada na praia, e enviou convite formal requisitando o prazer de sua presença. Os dois agora se descrevem como um “casal em lua de mel”.
Mesmo nos casamentos duradouros, gestos carinhosos e românticos mantém a chama acesa. Elogie com freqüência. Diga a ele o quanto sempre o admirou. Diga a ela que adora sua risada.
Se a vida está atribulada pela rotina doméstica e pelos filhos, estabeleça momentos só para os dois. Simples mensagem, como “penso sempre em você”, ou “queria estar com você agora” anima o dia de qualquer pessoa.
Com algum esforço, pequenas mágoas que inevitavelmente ocorrem no relacionamento podem ser postas de lado. Então, marido e mulher tem possibilidades de se voltar para os prazeres – e não para as decepções – que o casamento traz.