quinta-feira, agosto 16

Vizinhos difíceis

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Carlos Tautz

A maioria de nós já teve um destes conflitos, grande ou pequeno – saiba como evita-los daqui para a frente.

A professora Regina Coeli há anos se irrita com o pontual asseio do vizinho. Todos os dias, exatamente às seis da manhã e às sete da noite, a água do banho do vizinho escorre pela parede do banheiro de Regina. “Bastava ele abrir o chuveiro e pronto”, lembra Regina.
O problema começou em 1994. A professora se queixou várias vezes à proprietária do apartamento vizinho e nada. Reclamou na imobiliária que alugava o imóvel para ele e nada. O inquilino não queria consertar o vazamento. Pensou em contratar alguém para quebrar a parede e reparar tudo, mas temeu que desse em briga. Afinal, desistiu.
Infelizmente, situações como esta não são raras. A maioria de nós já teve conflito, grande ou pequeno, com algum vizinho. Nos Juizados Especiais – denominação dos antigos Juizados de Pequenas causas -, problemas com vagas na garagem, barulhos, festas, crianças indisciplinadas, animais, vazamentos e até obscenidades são os mais comuns.
O juiz Luiz Felipe Salomão, que desde 1989 trabalha nos Juizados Especiais do Estado do Rio de Janeiro, recebe 45 novos casos todos os dias em seu gabinete. Cerca de 70% dos processos são decididos em uma simples audiência de conciliação entre as partes.
“Algumas vezes não há saída e as disputas acabam parando na justiça Comum”, observa o juiz Ricardo Cunha Chimenti, do Juizado Especial Cível Central, o maior do estado de São Paulo. Junto com outro juiz, ele comanda equipe de 216 conciliadores na comarca, tem 11 mil ações em andamento sob sua responsabilidade e recebe de 600 a 700 novas causas todos os meses. Apenas parte delas diz respeito a brigas entre vizinhos. Umas realmente são sérias, outras nem tanto.
“Num bairro de classe média do Rio de janeiro”, lembra o juiz Salomão, “uma bela senhora de meia-idade costumava tomar banho de sol no terraço da casa. Quando um vizinho percebeu que o bronzeamento acontecia todos os dias às mesmas horas, começou a acompanha-lo de longe, utilizando binóculo. A esposa do observador levou ao Juizado Especial a mulher bronzeada, acusando-a de assédio sexual.”
“Depois de ouvir a moça, o rapaz e a esposa”, recorda Salomão, “chegamos a um acordo e uma tela foi colocada no terraço para que os atributos da mulher não fossem mais admirados por espectadores indesejados.” Ao final da conciliação, o homem disse que valia a pena ter enfrentado um juiz porque a vizinha era realmente muito bonita.
“Ame o próximo”, ensina a Bíblia. No entanto, é difícil imaginar que alguém possa ter sempre sentimentos positivos por aquela vizinha fofoqueira. “Às vezes é complicado conviver em sociedade”, reconhece a advogada e antropóloga Ângela Moreira Leite, que desde 1995 pesquisa as disputas nos Juizados de Pequenas Causas.
Como evitar o envolvimento numa briga entre vizinhos ou resolver uma desavença que não pode ser evitada? As dicas estão abaixo.

Seja cortês
Se está planejando fazer aquela festa que vai durar até a madrugada, convide os vizinhos – ou pelo menos alerte-os de que haverá barulho até tarde. Caso a mangueira do quintal jogue folhas no terreno do vizinho, ofereça-lhe algumas frutas.

Faça amigos
O filho do vizinho bateu em seu carro no estacionamento do condomínio, quando manobrava o automóvel do pai. “Para que seu carro seja consertado, é necessário que o responsável pela batida dê entrada no seguro dele primeiro”, observa Salomão. “Se ele quiser, pode atrasar a operação de propósito e você perderá dinheiro se vender o carro amassado. Com uma boa conversa é possível apressar os trâmites burocráticos e o conserto do carro.”

Converse antes e procure soluções que atendam aos dois lados
Em São Gonçalo, Rio de Janeiro, duas senhoras viviam brigando porque as folhas da árvore que ficava no quintal de uma delas voavam para o outro lado do muro, entupindo a bomba da piscina. Na audiência de conciliação, no Juizado Especial, elas concordaram em fazer a poda da árvore e limpar o terreno duas vezes por semana. “Saíram do Juizado amigas”, lembra Ângela Moreira Leite.
Quando a disputa é iminente, planeje com cuidado o que fazer e falar. Ataque objetivamente o problema, não a pessoa. Se o vizinho gosta de ouvir o som alto, calmamente informe a ele ou a ela como isso afeta você. “Tenho de levantar cedo para trabalhar. Que tal diminuir o volume depois das dez horas da noite?”
Se possível, escolha campo neutro para conversar sobre o problema: Calçada, elevador ou playground. “Isto reforça os laços de convívio social”, ensina Gustavo Tepedino, diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UEJR).

Tome notas
Pode parecer muito burocrático, mas vale a pena. “Anote o dia, local e atitudes do vizinho que incomoda”, recomenda Tepedino. “Ao mostrar as anotações ao vizinho é possível ele simplesmente parar de aborrecer.”
Por outro lado, você pode rastrear algum exemplo incontestável. E terá evidências para apresentar ao vizinho. “Freqüentemente, perceberá que seu vizinho não está atento ao problema, até que este lhe seja indicado”, afirma Cora Jordan, advogada e autora do livro “A lei do vizinho” (Neighbor Law). Se o vizinho se mostrar rude, as anotações terão grande importância caso você decida propor uma ação.

Pesquise as leis
A maioria das cidades tem códigos de posturas e leis de edificações que regulamentam , no município, níveis de ruído, ocupação de calçadas, horários e dias de festividades e até a coleta do lixo. Esses regulamentos, em geral bem objetivos, determinam exatamente medidas de estacionamento, volume da música do clube ao lado ou horários em que se pode fazer obra em prédios de apartamentos.
Procure na prefeitura e nas bibliotecas municipais, tire cópias e as envie pelo correio para seu vizinho, mas de forma educada: “O senhor provavelmente não se deu conta de que é proibido fazer barulho em seu apartamento antes das sete da manhã.” O juiz Chimenti ensina: “Registre a carta descrevendo o problema e exija dos correios um Aviso de Recebimento da correspondência.”

Organize apoios
“Vários vizinhos e eu reclamamos da síndica de um prédio onde morei há 11 anos. Todas as sextas-feiras, ela fazia festas que varavam a madrugada e botava nas alturas o volume da música. Depois de quase o prédio inteiro se colocar contra ela, as festas terminaram”, lembra a dona de casa Antonia Barbosa dos Santos, que viveu por quase cinco anos em um edifício à primeira vista tranqüilo, na Freguesia, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. “Tente sempre o diálogo. Se for impossível, reúna outros que também estejam incomodados”, explica o juiz Chimenti.

Pense bem antes de chamar a polícia
Na realidade, há várias situações em que apenas a autoridade policial tem poderes para resolver. “No entanto, nem sempre resolve”, atesta, no Rio de Janeiro, a conselheira da Associação dos Moradores da Lauro Muller, Henriette M. Krutman. Munida da portaria de interdição emitida pela Secretaria Municipal do meio Ambiente, ela já chamou a radiopatrulha várias vezes na tentativa de suspender os “bailes” do clube próximo à sua residência. “Os policiais, quando vêm, somente conversam com o organizador do baile – cujo ruído diminui enquanto eles estão ali - e depois vão embora. Aí a música recomeça a todo o vapor e vai até quatro ou cinco horas da madrugada.”
Ainda assim, se aquela festa de arromba continua a impedir o sono às cinco da manhã, um carro de polícia pode dar resultado. E nem sempre a polícia é tão condescendente quanto no caso reclamado por Henriette.
Lembre-se de que outras autoridades – Saúde Pública, Corpo de Bombeiros e até secretarias do meio ambiente – podem ser muito mais indicados para resolver determinados problemas.

Encontre um mediador
Atualmente estão em funcionamento no Brasil mais de 300 juizados Especiais, que oferecem intermediação gratuita em pequenas causas. “Eles são, por excelência, o fórum adequado para se resolver brigas de vizinhos”, alerta o juiz Salomão.
A mediação permite que as partes sejam plenamente ouvidas. Pesquisa realizada pela cientista política Maria Celina D’Araujo, da Fundação Getúlio Vargas, mostra que em 63% das ações propostas em quatro Juizados no Rio de Janeiro a conciliação é alcançada em apenas uma sessão, que acontece menos de três meses após a primeira “visita” do Autor ao Juizado.
Se houver concordância, as partes selam ali mesmo, na presença do mediador, um acordo que tem força de decisão judicial. Mas se as partes não se acertarem ocorre a segunda etapa do processo, momento em que um juiz de direito dará a palavra final sobre a disputa.
“Além de eficaz e rápida, a mediação é a maneira mais democrática de se ter acesso à justiça”, observa a pesquisadora Celina. Mas tanto ela quanto a advogada e antropóloga Ângela Moreira Leite apontam que o início promissor dos Juizados Especiais criou uma avalanche de ações que já começa a contaminar com certa lerdeza essa ramificação da justiça, antes considerada maneira rápida para “amenizar a recorrente ‘crise’ do Judiciário”, como aponta Celina em sua pesquisa.

Entrar na justiça
Se a diplomacia não funcionar, o jeito é apelar par a justiça. “Só utilize a justiça se o vizinho não quiser de forma alguma negociar”, enfatiza Chimenti. Se o valor da causa se mantiver no limite de 20 salários mínimos, não há qualquer custo. No entanto, se ficar entre 21 e 40 salários mínimos, será necessária a contratação de advogado ou a assistência judiciária instituída pelo próprio juizado.
“Nessas circunstâncias, a mediação pode se estender por mais tempo. Existe ainda a possibilidade de seu vizinho levar o caso à Justiça Comum através do procedimento ordinário ou sumário, apenas por vingança. Aí estaríamos quase caindo nos mesmo casos em que se levam até anos para resolver disputas na Justiça”, lembra José Rubens Morato leite, que dirige o escritório modelo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
Porém não deixe que a raiva contamine você: “Uma disputa entre vizinhos não precisa transformar-se em verdadeira guerra”, ensina Terry Amler, mediador de causas semelhantes nos Estados Unidos, país com mais de 30 anos de tradição em resolução de conflitos entre vizinhos. “Só é necessário um pouco de paciência para sentar, ouvir o que o outro lado tem a dizer e conversar”.

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