segunda-feira, agosto 20

Corridas de dromedários em Dubai

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autora : Mary Roach

Nos Emirados Árabes Unidos camelos já estariam obsoletos se não fossem extremamente velozes.

Glaysa é um camelo corredor de elite, embora não seja fácil para ninguém chegar a essa conclusão. Assim como todos os camelos, ela tem dentes semelhantes às velhas teclas de um piano, cílios tão longos quanto os bigodes de um gato e cobertura que parece mais um tapete do que pele. Olha para as pessoas de cima para baixo, insinuando presunção, mas isto é apenas questão anatômica, nada pessoal. O rosto dos camelos se molda por um declive.
Glaysa não é igual a qualquer camelo, pois nada com freqüência numa piscina. Camelos selvagens não costumam nadar. Vê-los mergulhar num oásis é tão difícil quanto ver um peixe fora da água tomando sol. Mas Glaysa nunca foi um camelo selvagem.
Nasceu no curral do Xeque Mohammed. Esta é a forma simplificada para Sua Alteza o Xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, príncipe herdeiro de Dubai, proprietário de 1.500 camelos de corrida.
Aqui estão algumas peculiaridades do curral do Xeque Mohammed: esteira para os camelos se exercitarem, ducha para tomarem banhos, caminho a fim de manter as patas adequadamente aparadas para as corridas, além de vagões de transporte com o interior acolchoado. A piscina também é especial, projetada especificamente para camelos, com raia única e 23 metros de comprimento, apresentando ligeiro declive nas extremidades.
Embora os camelos saibam nadar, não o fazem de boa vontade. Para convencer um camelo de que nadar é algo agradável, você tem de coloca-lo ao lado de outro que já o saiba. O camelo nadador se movimenta e o outro o acompanha – pelo menos na teoria.
Nossa personagem Glaysa já está na metade da piscina. Outro camelo, Museha, está de joelhos, empacado. Um camelo empacado emite som peculiar e inesquecível, algo como uma gaita sendo pisoteada.
As travessuras de Museha terminam ensopando o domador. Não consigo imaginar esse camelo do outro lado da piscina. Não é mais fácil fazer um camelo passar pelo buraco da agulha, porém deve ser, no mínimo, mais tranqüilo e menos problemático.
Alheia ao burburinho, Glaysa nada em sistemático e lânguido estilo “cachorrinho”, a corcova fora da água tal qual barbatana de tubarão. Cruza o azul turquesa da piscina, como se estivesse correndo. Não fosse pelo suave “murmúrio” da água, Glaysa pareceria estar correndo no céu.
A atividade do xeque com os camelos não tem fins lucrativos: a jogatina não é permitida nos Emirados Árabes Unidos e o acesso às corridas é gratuito. Ele também financia um centro de reprodução de camelos, e seu irmão, o xeque Hamdan, um hospital para camelos, que dispõe de mesa de operações com abertura no meio para acomodar as corcovas do animal.
Xeques como Mohammed, que transformaram dromedários em valiosos passatempos, vêem na atividade esforço de preservação cultural. Com o advento do transporte de quatro rodas, os camelos caíram de posição. O navio do deserto não é mais o camelo e sim o Land Cruiser.
À medida que menos camelos eram usados para transporte, mais a família real injetava dinheiro nas corridas. A idéia era de não apenas preservar tradição secular, mas também, informa o Ministério de Informação e Cultura, “garantir que a geração mais jovem tenha oportunidade de aprender algo sobre o modo de vida de seus antepassados e compara-lo com as facilidades atuais”.
Isso é reiterado pelo administrador de pistas de corrida de camelo, Mohammed Saeed, proprietário de dois Land Cruisers e25 camelos. Saeed leva-me para passear pela pista. “Durante muitos séculos, o camelo esteve presente em nossas vidas. Dependíamos dele para transporte, alimentação e recreação. Costumávamos fazer tendas de pele de camelo. Era como dormir num hotel”, revela Saeed. Ele ajeita a touca Kaffiyeh na cabeça, amarra-a e joga-a para o lado. “Dubai, a cidade, é apenas metade da vida. A outra metade é o deserto.”
Saeed e eu debatemos se é bom para os xeques usarem meninos, geralmente paquistaneses, como jóqueis de camelos. “Estamos cuidando deles como crianças, de acordo com a nossa religião. São remunerados pelo trabalho e freqüentam a escola desde os 12 anos de idade.”
Pergunto a Saeed quanto os meninos ganham e ele muda de assunto. É hora de falar sobre camelos. Os animais atingem a velocidade de 16km/h. A palavra camelo vem, em parte, da palavra jamal que, imaginem, tem a mesma raiz da palavra que significa beleza em árabe. Pergunto a Saeed se ele anda de camelo. “Com esta idade? Com essa barriga?” Dá tapinhas na barriga. Agora entendo por que os homens parecem tão elegantes em seus frouxos roupões Djellaba: não se consegue ver as gorduras.
Os pés dos camelos foram feitos para a areia: são grandes e chatos, como queijos gigantes. Não fazem clipt-clopt, e sim cush-cush-cush. Camelos andam ao longo de uma trilha com eficiência graciosa, mais deslizando do que galopando. Podemos ouvi-los respirar ao passar.
Eu mesmo os ouço, enquanto estou de pé ao lado da cerca com Saeed. Não fosse por sua hospitalidade, eu estaria nas arquibancadas assistindo à corrida através do monitor de vídeo. As arquibancadas tem apenas seis ou sete filas de cerca de 30 metros de comprimento, divididas em grupos de três. Membros da elite governante acomodam-se no centro, diante de monitores individuais, em sofás de couro branco e mesas forradas com toalhas de seda, protegidos por guardas armados. Os habitantes locais sentam-se em cadeiras de plástico de cor laranja, em ambos os lados, 20 para cada monitor de vídeo, sem mesa e sem toalha de seda. Ninguém parece empolgado, pois não há apostas e, além disso, não é uma grande corrida.
A história já é diferente na super Mercedes que se desloca pela pista, fazendo sombra ao bando de animais. Nele, o locutor e duas dúzias de acalorados proprietários de camelos, pendurados nas janelas, gritam instruções aos seus jóqueis. Eles utilizam intercomunicadores – embora não pareça ser necessário.
Saeed conseguiu colocar-me no ônibus para a segunda corrida. O veículo pára ao lado da linha de partida. Ao contrário dos cavalos de corrida, camelos não tem portões individuais. Ficam todos juntos e os animais se atiram para a frente.
Os camelos começam a sair e o locutor a narrar. Ele parece um leiloeiro. Além dos nomes dos camelos, também cita os nomes dos proprietários – alguns nomes árabes podem ser bastante longos. Felizmente, os donos dos camelos não tem habilidade para nomes excêntricos, como no caso das corridas de cavalos.
Acompanhar a corrida lado a lado cria sensação de tranqüilidade para o evento. Os jóqueis sacolejam para cima e para baixo com as longas passadas dos camelos, parecendo sossegados e até um pouco entediados. Se os proprietários não estivessem gritando nem escorresse espuma das bocas dos camelos seria difícil dizer se isso é corrida ou mero passeio.
Chegamos à última etapa da corrida de 8 quilômetros e cruzamos a linha de chegada. Os jóqueis saltam das selas feitas de cobertores enrolados para os braços de seus treinadores, pela primeira vez parecendo crianças e não pequenos adultos fanfarrões.
Os vencedores recebem o modesto prêmio em dinheiro no escritório, mistura de “alta tecnologia” com “baixa tecnologia”. A sala de vídeo ostenta monitores do chão ao teto. Um homem fica rebobinando e avançando a corrida, fazendo os camelos dançarem na tela. Na sala ao lado, Saeed está sentado numa cadeira desbotada, que usa há 16 anos. Tornozelos cruzados sobre os joelhos, anota os nomes dos vencedores na velha prancheta. É assim que as coisas são no Golfo: algumas mudam, outras continuam do mesmo jeito.
Após cada corrida, os animais vencedores são submetidos a um teste anti-doping feito pelo veterinário da casa. É homem alto e sério – tão sério quanto pode ser um homem que coloca fraldas num camelo. Ele me corrige. Não é fralda, e sim bolsa coletora de urina, com a qual os camelos parecem não se incomodar. Ele insiste em que os animais tem boa índole e nega que cospem nos seres humanos. “São muito cooperativos quando comparados com outros animais. Se você entra no curral das vacas, elas se juntam em grupo para tentar avançar em você.”
“É verdade?”, pergunto.
“Foi o que aconteceu comigo.”
Mais tarde, no centro de reprodução de camelos, a aparência é de cena de presépio: três homens usando djellabas e turbantes, uma bela jovem e um camelo deitado próximo a eles.
A semelhança, no entanto, só vai até aí. Lulu Skidmore é especialista britânica em transferência de embriões de camelo. Nesse momento ela está fazendo uma ultra sonografia. Quando os embriões estiverem prontos, ela os transferirá para ventres de outros camelos. A idéia é reproduzir camelos melhores de forma mais rápida. Normalmente, um camelo pode ter duas crias em três anos. No entanto, Skidmore pode produzir 30 crias por ano usando embriões de uma única fêmea. É o mais avançado equipamento de reprodução que o dinheiro pode comprar. Se é possível para o petróleo, é possível para o camelo.
O progresso é o tema de unificação no Golfo. O povo dessa nação castigada pela areia passou de nômade e comerciante a milionário em 30 anos. Se eles tiverem camelos, então serão os mais avançados do mundo.
Ainda sentado, o camelo 484 estica o pescoço para fora, fuçando a tigela de ração. Certo dia, um de seus embriões do tamanho de uma ervilha poderá vencer a maior das corridas nos Emirados , onde o primeiro prêmio será um Land Cruiser de quatro rodas capaz de alcançar 560 quilômetros sem comida ou água.
Mas jamais será tão interessante quanto o camelo.

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