quinta-feira, maio 31

O coração valente de Mel Gibson

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Linden Gross

Beleza e talento explicam só em parte seu sucesso extraordinário

Pegue uma revista sobre celebridades e você lerá o seguinte sobre Mel Gibson: é um rebelde desordeiro que passou anos embriagando-se e brigando até que finalmente domou seus demônios para tornar-se pai de família estável, sóbrio e estabelecido.
No entanto, não descobrirá o ingrediente essencial que o levou ao topo de sua profissão – e ali o mantém. Para isso, terá de voltar a 1992, quando Gibson aceitou o desafio de dirigir seu primeiro filme. O homem sem face.
Peter Weir, australiano diretor de Gibson em O ano que vivemos em perigo, encontrando-se com ele, disse:
“Ouvi dizer que você vai dirigir um filme.”
“É”, respondeu Gibson, “e estou apavorado.”
Weir, com um sorriso, disse francamente:
“E é melhor estar mesmo.”
Diante desse conselho inesperado, o medo de Gibson transformou-se em pavor. O certo é que, durante os meses em que dirigiu o filme, foi posto à prova como nunca antes. Ficou tão cansado que às vezes adormecia no estúdio. Apesar disso, estava resolvido a provar que era capaz de dirigir um filme comovente e memorável.
E conseguiu. Na estréia de O homem sem face, o Los Angeles Times declarou que se tratava de “uma realização considerável”. Outra vez Mel Gibson demonstrava a característica que mais contribuiu em sua carreira: a coragem de desconcertar as expectativas.

Mel Gibson nasceu no dia 3 de janeiro de 1956 em Peekskill, Nova York. Sexto entre 11 crianças tinha três irmãs bem mais velhas e três irmãos de idades muito próximas da sua. Os quatro garotos saltavam do telhado do celeiro, metiam-se em brigas com pedras e esmurravam-se freqüentemente. Ser rebelde era a maneira de Mel garantir que não se perderia no meio da enorme “ninhada”.
Quando a família se mudou para Sydney, Austrália, Mel, então com 12 anos, só aumentou a travessura. Certa vez, na escola, dois colegas e ele competiram para ver quem seria punido com surra mais vezes num só dia. Mel venceu longe, com 27.
No entanto, sementes de outro tipo também estavam sendo plantadas. Seu pai, Hutton, ferroviário guarda-freios e programador de computadores, era católico fervoroso que atacava constantemente o fumo, a bebida e o sexo pré-nupcial. Embora as proezas de Mel fossem uma espécie de reação contra a educação severa, ele via no pai o poder da convicção absoluta. Hoje esse legado constitui parte importante da fibra do próprio Mel Gibson.
Depois de passar com dificuldade pela escola secundária, Mel empregou-se numa fábrica de sucos. Nunca lhe ocorrera ser ator. No entanto, a irmã Mary reconheceu o potencial de ator em Mel e fez sua matrícula no Instituto Nacional de Arte Dramática de Sydney. A princípio o rapaz de 18 anos ficou aborrecido, mas detestava trabalhar na fábrica.
Gibson foi aceito, para sua surpresa. Entretanto, comportou-se desafiadoramente na escola. Certa vez quase foi expulso da turma por se recusar a fazer um exercício de representação que considerava perda de tempo. Mas quando se formou, em 1977, Gibson percebeu que descobrira sua paixão.

Além dos limites
Embora seu objetivo estivesse definido, a ousadia natural de Gibson muitas vezes era desviada para confrontos sem sentido. Uma semana antes de fazer o teste para Mad Max, aventura pós-apocalíptica australiana, ficou tão contundido e ferido numa briga de bar que quase faltou ao teste. Mas acabou ganhando o papel. O diretor, George Miller, achou que as fotos do rosto machucado de Mel combinavam exatamente com o aspecto de gladiador embrutecido que imaginara para o personagem do policial solitário. Mad Max (1979) tornou-se o maior êxito de bilheteria daquele ano na Austrália.
Nessa ocasião Gibson morava numa pensão em Adelaide, Austrália, onde conheceu Robyn Moore, atraente enfermeira. Tornaram-se amigos e após um ano a amizade transformou-se em amor. Casaram-se no verão de 1980 e no ano seguinte tiveram uma filha, Hannah.
Pouco depois, como protagonista em Gallipoli e Mad Max 2 – A caçada continua, Gibson consolidou-se como atração de bilheteria. Para espanto seu, porém, o talento era considerado secundário diante do seu aspecto físico. Queria continuar desempenhando papéis importantes. Tentou, mas não conseguiu, o papel de Mozart em Amadeus.
De 1983 a 1985 estrelou cinco filmes consecutivos, mas não se sentia feliz com a fama recém conquistada. Isso, aliado à separação quase constante da família – a qual aumentara com o nascimento em 1982 dos gêmeos Edward e Christian, e William, dois anos depois – pareceu levá-lo além dos limites.
Irritado, começou a beber muito. Logo o álcool se tornou um problema grave. “Tudo vem acontecendo depressa demais”, confessou, aos 27 anos. “Tenho de dar uma freada nisso, senão vou acabar me arrebentando.”
Na noite de 24 de abril de 1984 o ator, embriagado, provocou um acidente quando dirigia em Toronto. O nível de teor alcoólico no sangue estava acima do limite legal, e ele foi preso. Quando Mel ligou para Robyn contando o acontecido, ela ficou furiosa. “Que diabo está acontecendo com você?”, perguntou.

Restabelecimento
Gibson reconheceu que precisava de descanso das filmagens e foi com a família para seu rancho em Victoria, Austrália. Alimentou e cuidou de 200 cabeças de gado de corte, reconstruiu uma cabana com o pai e uniu-se à mulher e aos filhos. A simples normalidade do dia a dia rejuvenesceu Gibson.
Após o período de ano e meio, voltou para Hollywood, dessa vez para filmar Máquina Mortífera, em 1987. A interpretação de um tira durão impulsionaria Gibson à órbita de superastro. No entanto, como sempre, os críticos focalizavam mais o aspecto físico do que o talento. Um escreveu sobre sua “tendência a ficar parado com ar de bonitão internacional”.
Novamente Gibson sucumbiu às tentações do excesso de trabalho e de bebida. No final da década de 80, quando as histórias de suas bebedeiras chegaram aos jornais, ele finalmente percebeu como o álcool estava afetando sua vida. Parou de beber.
Exorcizando seus demônios, Gibson agora estava pronto para desempenhar um dos papéis mais improváveis de sua carreira: Hamlet, de Shakespeare.
Nenhum estúdio se mostrava disposto a financiar o filme, pois ninguém acreditava que Gibson conseguiria interpretar bem aquele papel. O ator salvou o projeto fundando a própria produtora.
O filme superou as expectativas. “Gibson nunca esteve tão impressionante”, escreveu certo crítico. “Seu desempenho é inteligente, soberbamente físico e isento de posturas poéticas.” Por fim, as pessoas começavam a perceber o talento por trás do rosto.

O verdadeiro valor
O romance sobre um ex-professor cujo rosto desfigurado o isola do resto da sociedade comoveu tanto Gibson que ele resolveu arriscar-se a dirigir pela primeira vez. Depois de vários atores terem recusado o papel principal, ele o assumiu, com relutância.
Logo se tornou evidente por que Peter Weir lhe avisara que “era melhor ficar apavorado”. O projeto era extenuante, mas Gibson acreditava nele. A própria sensibilidade ficou evidente quando disse a um repórter: “Em meu ramo, somos julgados primeiro pelas aparências. Meu filme trata de olhar além das aparências para testar o verdadeiro valor das pessoas.”
Os críticos o acolheram calorosamente. “Gibson fez estréia promissora com um filme piegas e antiquado”, escreveu Peter Travers na revista Rolling Stone. “É aquele raro ator diretor que não concentra em si o espetáculo inteiro.”
Pouco depois os diretores da Paramount convidaram Gibson para ser protagonista de Coração Valente, filme sobre o rebelde escocês William Wallace, do século 13, que lutou para libertar a pátria. Gibson recusou, achando-se velho para o papel. Entretanto, não conseguia tirar a história da cabeça. Fez uma proposta que pareceu a muitos loucura total::: dirigir um épico tendo no currículo apenas uma experiência como diretor.
“Estão presentes todos os elementos para que a crítica o arrase”, escreveu um repórter. “Ele usa um kilt (saia escocesa) e apliques de cabelo. O rosto é borrado de tinta de guerra.” Sem falar no desafio de dar vida a uma história pouco conhecida.
Essa ambiciosa epopéia teria posto à prova até mesmo um diretor veterano. Por três meses e meio Gibson trabalhou durante 18 horas por dia. A equipe do filme percebeu que ele tinha peito, conforme disse o roteirista Randall Wallace.
A maior jogada de Gibson revelou-se também seu maior triunfo cinematográfico. “Conhecemos Mel Gibson como um dos homens mais bonitos de Hollywood”, escreveu Caryn James, do New York Times. “Quem diria que é também um dos mais sagazes? Transformou a pouco promissora história do século 13 em uma das exibições mais espetaculares dos últimos anos.” O trabalho de Gibson rendeu-lhe dois Oscars, de Melhor Diretor e Melhor Filme de 1995.

Escreva do outro lado
Hoje, seguindo a própria visão, Mel Gibson continua a desafiar e a desconcertar as expectativas de Hollywood. Reconhece abertamente sua fé religiosa. Despreza as mordomias típicas da fama. Comparece às cerimônias de Hollywood dirigindo o próprio carro em vez de alugar limusine com chofer. Nas tomadas externas, fica na fila com os outros para pegar o almoço.
No entanto, apesar da nova paixão pela direção, para Gibson a família é de suma importância. Ele afirma o compromisso com o casamento em termos que não são nada comuns em Hollywood: “Afastei a possibilidade de divórcio. Simplesmente a eliminei. Não vou fazer isso.”
Pretende passar o maior tempo possível com os seis filhos, cujas idades vão de 8 aos 17 anos. Sabendo que eles precisam da segurança de sua presença, recusa projetos que exijam separação prolongada da família. O programa e a locação do próximo filme são em grande parte determinados pelas férias de verão das crianças. “Quem cria filhos, gosta de estar presente”, diz, com simplicidade.
Uma tarde na primavera passada, Gibson entra no estúdio da Warner Brothers, onde está sendo produzido seu último filme, Máquina Mortífera 4. Vai filmar uma cena engraçada com os companheiros Danny Glover e Chris Rock. O desempenho correto fará a platéia vibrar; o errado, resultará em tédio mortal. Sabendo que a cena poderia sair de um jeito ou de outro, na véspera Gibson convidara os protagonistas a seu trailer para discuti-la. “Ele tem tantas idéias criativas! E está sempre contribuindo”, diz Glover.
Durante um intervalo atende a telefonemas sobre projetos futuros. Entre os mais promissores; uma versão do romance de Ray Bradbury, Fahrenheit 451 – a história do homem que enfrenta uma sociedade em que livros são queimados e a liberdade de pensamento é proibida. Gibson foi atraído pelo clássico por causa da citação inicial do livro: “Se lhe derem papel pautado, escreva do outro lado.”
Mais uma vez, Gibson prepara-se para abrir novos caminhos. Se a próxima jogada der certo, sem dúvida trará ainda mais elogios a seu talento. E também será mais um tributo à qualidade que distingue Mel Gibson : seu coração valente.

quarta-feira, maio 30

Meu tipo inesquecível: James Michener

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Lawrence Grobel

Sua mais importante missão, como minha filha e eu descobrimos, consistia em incentivar as gerações futuras.

No verão de 1992, planejei uma visita a James A Michener, no Maine. Como nossas duas filhas estavam de férias, minha mulher e eu achamos que seria divertido passear pela região, enquanto eu trabalhava em um livro com o famoso escritor.
“Vamos conhece-lo?”, quis saber Hana, minha filha caçula.
Embora com apenas 8 anos, tinha consciência de que Michener era alguém especial. Havia notado o cuidado com que eu organizara as primeiras edições das obras do escritor em nossa estante. Cada uma delas continha uma dedicatória pessoal e exibia as iniciais J. A M. gravadas em vermelho.
“Vai depender da agenda dele”, expliquei. “É um homem muito ocupado.”
Hana entretanto, insistiu que era importante falar com ele e foi se preparar para o encontro. Apanhou um livro em branco de cinco centímetros de espessura e começou a escrever e ilustrar histórias sobre focas, uma das quais se intitulava A aventura de levar Erny, a foca, para a escola. Como incentivo, contei-lhe que Michener gostava de escrever sobre animais e li para ela trechos de livros sobre o diplódoco, espécie de dinossauro, e também sobre Jimmy, o caranguejo.
No dia 17 de julho, fui com a família até a casa simples onde Michener e a mulher, Mari moravam. Jim lembrou-se de haver carregado no colo minha filha mais velha quando bebê. Mas era a primeira vez que via a caçula. Mesmo assim, Hana logo lhe revelou que também era escritora e que trouxera consigo sua obra.
Jim sorriu.
“Pois bem”, disse ele, “gostaria de saber se você vai me deixar dar uma olhada.”
Sentou-se no sofá e Hana se juntou a ele. Abriu a primeira página e leu em voz alta: “Focas, por Hana Grobel.”
As primeiras 12 páginas do livro de Hana tratavam da natureza e da história das focas, assim como as primeiras cem páginas de Centenial tratam da história do princípio da Terra. O telefone tocou justamente quando Jim ia começar a história sobre a ida de Erny para a escola.
“Estou lendo os originais de uma jovem escritora”, comentou ele com o interlocutor.
Hana ficou radiante. Michener então se desculpou e foi atender a chamada em seu escritório. Quando retornou, dava a impressão de que lhe haviam tirado um peso dos ombros.
“Acabo de ficar 15 milhões de dólares mais pobre. Era tudo que me restava”, confidenciou-me ele. “É melhor que eu passe a tratar Mari muito bem. Vou precisar viver com o que ela tem e com o que eu possa vir a ganhar com os próximos livros.”
Fiquei atônico. Ele estava com 85 anos e prestes a começar tudo de novo.

Conheci James Michener na primavera de 1981, na Flórida, quando fui entrevista-lo para uma revista de circulação nacional. No decorrer de nossas conversas ficamos amigos. Nos anos seguintes costumava me encontrar com ele onde quer que estivesse morando ou, freqüentemente, em aeroportos por ocasião de suas partidas e chegadas do Extremo Oriente e do Pacífico Sul, onde escrevia suas aventuras.
“Minha vida tem sido, a seu modo, uma fábula dos dias de hoje”, contou-me. “É inacreditável que um sujeito como eu, que começou sem absolutamente nada, acabe doando uma fortuna.”
Era de fato inacreditável. Michener começou a vida como criança rejeitada. Foi recolhido por Mabel Michener, viúva pobre em Doylestown, Pensilvânia. Jim, além do próprio filho de Mabel, e as outras crianças de quem ela cuidava usavam roupas de segunda mão. Às vezes, não tinham o que comer.
Jamais descobriu o local de seu nascimento, nem a data (talvez 1907). “Eu poderia ser judeu, mestiço de negro ou qualquer outra coisa, menos oriental, creio”, comentava ele.
Aluno brilhante, Jim ansiava por conhecer os Estados Unidos.
“Aos 14 anos percorri todo o país vivendo de alguns trocados”, contava ele, “Antes de completar 20 anos, já conhecia todos os estados, à exceção de Washington, Oregon e Flórida. Tinha uma paixão insaciável por ouvir as pessoas contarem histórias, e o que não contavam, eu inventava.”
Uma bolsa de estudos permitiu que freqüentasse o Swarthmore College, na Pensilvânia. Embora houvesse sido suspenso duas vezes (“Eu era bem radical naquela época”), formou-se em 1929 com as maiores distinções.
Assim como nas histórias, sua vida estava repleta de extraordinárias reviravoltas. Em meio a empregos convencionais tais como professor e revisor de livros, Michener viajou com toureiros espanhóis, trabalhou em uma barcaça de carvão no Mediterrâneo e compilou canções folclóricas nas Hébridas Exteriores, próximo à Escócia. Alistou-se na marinha durante a Segunda Guerra Mundial, onde criou pitorescos relatos imaginários baseados em povos exóticos com os quais teve contato nos Mares do Sul.
O que ocorreu em seguida teria representado o ápice para qualquer um. Em 1948 sua coletânea de 18 histórias – Contos do Pacífico Sul – ganhou o Prêmio Pulitzer. Adaptado no ano seguinte para um musical de Rodgers e Hammerstein que se tornou extremamente popular na Broadway, o livro se tornou campeão de vendas.
Para Michener foi o marco do novo começo, que o lançava, com mais de 40 anos, em uma carreira espetacular. Em 1959, surgiu Hawaii, primeira de uma série de sagas de enorme sucesso – apreciados épicos históricos abarcando gerações de famílias, que se tornaram sua marca registrada.
Sua vida, no entanto, não se resumia a escrever. Em 1962, candidatou-se ao Congresso, com a idéia de abandonar a carreira de escritor caso fosse eleito. Por sorte, perdeu. Caso contrário não teríamos aqueles que ele considerava seus dois melhores livros, The source e Iberia, sem falar nos demais – num total de 44 obras traduzidas em diversas línguas, com aproximadamente 50 milhões de exemplares vendidos.
Michener vivia modestamente, e sua fortuna se acumulava. Ao menos para ele, parecia óbvio o destino a ser dado ao dinheiro: sem filhos, ele a doaria aos outros.
O desejo de doar se originou de dois incidentes na infância que mudaram sua vida. Um deles envolvia uma coleção de obras de Honoré de Balzac comprada por sua tia que, por sua vez, a enviou à sua mãe.
“A pessoa afortunada”, disse Michener, “é aquela que lê, ou ouve música, ou admira a arte, ou passa por uma experiência que se coaduna com sua postura em determinado momento. No meu caso, algum palhaço passa pela cidade e vende à minha tia uma coleção das obras de Balzac. Para que? Ela não tinha interesse em Balzac nem poderia ter gastado esse dinheiro. Eu, porém, leio toda a coleção, que me cai como uma bomba! Se alguém pudesse escrever exatamente como desejasse, escreveria como Balzac.”
O outro incidente ocorreu quando Michener ganhou a bolsa de estudos para Swarthmore. O diretor de sua escola de 2º Grau foi ver Mabel Michener. Estava convencido de que o garoto não seria motivo de glória para aquela faculdade, e achava que deveria, em vez disso, tornar-se encanador. “Ele desprezava os pobres”, recorda-se Michener. “Ficou indignado com o fato de eu ter recebido aquela bolsa de estudos.”
Michener jamais se esqueceu da importância de sua instrução – e passou toda a vida ajudando discretamente para que outros tivessem a mesma oportunidade. Recordo-me de uma visita que lhe fiz em junho de 1983, em Pasadena, onde ele faria um discurso de formatura. Ouviu-se uma batida à porta de seu quarto de hotel. Entrou um nervoso estudante de Engenharia.
Estava ali para conhecer seu benfeitor e agradecer-lhe as duas bolsas de estudo. Michener soubera que o aluno talentoso fora obrigado a abandonar os estudos para trabalhar. Parecia feliz por ter ajudado o jovem a retomar seu caminho.
Michener e Mari também ajudavam instituições de ensino. As quantias eram assombrosas. Só a Universidade do Texas recebeu o total de 44,2 milhões de dólares. Durante a semana em que estive com ele no Maine, Michener recebia ligações diárias a respeito de sua oferta em subsidiar um curso local de redação.
“É parte do que sempre acreditei sobre o tremendo valor da arte de escrever”, explicou. “Se, por acidente, você é regiamente recompensado como escritor, a única atitude sensata a tomar é reinvestir de volta no sistema.”

Aquela última chamada no Maine em que aceitaram sua oferta representou momento de triunfo pessoal, do qual me senti privilegiado em compartilhar. Michener ainda teria de contar a Mari que estavam mais pobres em 15 milhões de dólares. Antes, disso, porém, tinha outra obrigação a cumprir: ainda não havia terminado de ler a história de Hana. Então, sentou-se ao lado dela e concentrou-se na leitura. Sua missão, afinal, era incentivar novas gerações, e ali estava alguém de 8 anos em busca de estímulo.
“Puxa!”, exclamou Michener quando chegou à parte em que a professora, não permitindo que a foca freqüentasse a escola, fez com que fosse levada ao zoológico.
“Está vendo? Ela está chorando”, disse Hana, apontando para um dos desenhos.
Na página seguinte, quando o administrador do zoológico devolve a foca à menina, Michener demonstrou sua aprovação com um sinal de cabeça.
“A história é muito boa”, conclui ele, “porque no final todos ficam felizes.”

Na vida, os finais nem sempre são tão felizes. Mari Michener morreu de câncer em setembro de 1994. Quando os rins de Michener passaram a falhar, ele precisou fazer diálise e acabaram-se as viagens pelo mundo. Na época estava morando em Austin, mas continuava a escrever livros. Na verdade, foram mais sete, depois de ter “começado tudo de novo” em 1992.
Em 6 de outubro de 1997, liguei para ele e falei com sua querida governanta, Amélia, que revelou que o fim estava próximo. Ela a colocou na linha.
“Sente muita dor?”, perguntei.
“Estamos agüentando bravamente”
“Não resta muito tempo, não é, Jim?”
“Como vão suas filhas?, replicou, mostrando que não desejava mais falar sobre si.
Disse-lhe que minha filha mais velha, Maya, estava no processo de seleção de algumas faculdades.
“Quais?”, quis saber.
Depois que lhe contei, houve silêncio por alguns momentos. Então disse:
“Se quiser traze-la para cá (Universidade do Texas), nós pagaremos a primeira anuidade escolar.”
Foi a última vez que falei com James Michener. Mesmo lhe restando poucos dias, seus instintos sempre se dirigiam à vida, e mais uma vez estendia a mão.
No dia em que Michener morreu, 16 de outubro de 1997, Hana abriu o livro Creatures of the kingdom: stories of animal and nature, que ele lhe enviara alguns meses antes. Com o dedo, percorreu o índice.
“Ele nunca escreveu sobre focas”, disse ela.
“Talvez”, sugeri, “porque sabia que outra outrora, mais jovem, estava se dedicando a isso.”

terça-feira, maio 29

Um cachorrinho fora do comum

Fonte : Revista Seleções
Data : Agosto de 1998
Autor : Peter Muilenburg

‘Santos’ levava uma vida cheia de charme, até enfrentar um dia azarado na África

A lua pálida transformara em mercúrio as águas lamacentas de Oyster Creek (Enseada das Ostras). Mas tudo mudou quando um vento encrespou o local onde estava atracado nosso barco Breath – chaluma de cerca de 13 metros – no delta do caudaloso Rio Gâmbia, perto de Banjul, capital de Gâmbia, no oeste da África. Navegáramos milhares de quilômetros mar afora, durante dias, para chegar até ali. Protegidos no ancoradouro, ouvíamos o troar ensurdecedor das ondas no vão sob a Ponte Denton.
A oportunidade de conhecer a África tinha reunido outra vez a família, para uma temporada de dois meses. Nosso filho mais velho, Rafael, 20 anos, tirara licença na faculdade para juntar-se ao resto da família: Diego, 13 anos, minha mulher, Dorothy, e nosso cãozinho preto, Santos.
O Breath vinha sendo nosso único lar desde que eu o construíra em St. John, nas Ilhas Virgens, no início dos anos 80. A vida a bordo havia estreitado nossos laços. Todo o mundo tinha suas responsabilidades – os meninos faziam vigília desde os 6 anos de idade. E, nos últimos 8 anos, tínhamos conosco Santos, nosso querido shipperke, de cinco quilos.
Quando fomos para a cama naquela noite, Santos ficou no teto da cabine, de onde só saia quando o tempo estava muito ruim. Quando Dorothy se abaixou para lhe dar boa noite, encostou-lhe o focinho no rosto. Por um segundo, seus olhos faiscaram – ele a adorava -, mas logo voltou para seu posto.
Dormíamos mais tranqüilos com ele a bordo. Santos havia assumido por conta própria a missão de garantir que ninguém, amigo ou inimigo, chegasse a menos de cem metros do Breath sem que ele desse o alarme. O cãozinho já navegara conosco pelo Caribe, Atlântico e Mediterrâneo, sempre vigilante e bom companheiro, trazendo-nos sorte. Nos oito anos em que estava no barco, não tivéramos um só contratempo. Entretanto, na noite de 2 de janeiro de 1991 tudo mudou.
Já estávamos dormindo, pouco depois da meia noite, quando as cordas do barco começaram a ranger. Primeiro pensei que fosse algum barco que tivesse passado e feito marola, porém Santos teria latido. O ranger das cordas aumentou. Quando subi ao deque, as cordas roçavam nos cunhos que prendiam nosso barco a outra embarcação.
Numa noite calma como aquela, só podia haver uma causa: correnteza. Meu barco estava ancorado com a popa voltada para a corrente e, quando vi pela lateral a velocidade da água passando pelo casco, fiquei alarmado. A maré estava três vezes mais alta do que seria o normal na primavera. Os cunhos da outra embarcação pareciam a ponto de arrebentar. Se algo se soltasse, talvez os dois barcos fossem carregados juntos e se tornaria impossível evitar a destruição. Eu precisava desatracar.
Estávamos em local difícil. A pouca distância, rio abaixo, dois fios de alta tensão cruzavam a enseada. Cerca de 30 metros atrás dos fios, assomava a gigantesca Ponte Denton. Se não conseguíssemos virar a tempo, nosso mastro principal, de metal, poderia bater nos fios. E se o barco se chocasse com a ponte, ambos os mastros ficariam presos na estrutura, enquanto o casco seria arrastado pelas águas.
Chamei todos para o convés. Percebendo que algo estava errado, Santos se pôs de pé, pronto para agir.
Soltamos as cordas, ficando presos apenas à âncora de popa, mas tínhamos de soltar tudo porque o Breath estava sendo jogado violentamente para a frente e para trás pela força da correnteza. Liguei o motor e já estava quase conseguindo fazer a volta quando percebi que, empurrado pela corrente, o barco ia se chocar com os fios de alta tensão. Dorothy se agarrou a Santos, que tremia. Todos prendemos a respiração.
Pegamos o primeiro fio de raspão. Houve uma chuva de faíscas, como se fossem meteoros. Passamos, mas o segundo fio se aproximava. Virei o timão com toda a força. Mesmo assim batemos no fio – inclinado-se e raspando, a ponta de 15 centímetros do mastro ficou presa na rede de alta tensão.
Houve chuva de explosões elétricas sobre o cordame e terrível incandescência iluminou o céu. Labaredas surgiram dentro da cabine; os fusíveis pulavam dos bocais; rolos de fumaça subiam pelas escotilhas.
De repente, os fogos pararam. O cabo se havia enrolado no mastro, porém estávamos presos entre o segundo fio e a ponte. A única maneira de escapar dali era ir para trás – para cima dos fios. Contorcendo-se, Santos escapou do colo de Dorothy e disparou em direção à proa, pronto para entrar em ação.
Com o timão firme, esperamos o impacto. A ponta do mastro tocou no cabo, provocando chuva de chispas vermelhas. Santos, olhando para cima, continuava na proa, pronto a defender seu território. No entanto, ganiu furiosamente quando as chispas lhe caíram sobre o pêlo. Dando um uivo agudo, disparou pelo deque, com as brasas brilhando em seu dorso, e pulou na água. Quando voltou à tona, começou a nadar em direção ao barco, com os olhos fixos em Dorothy. Mas a correnteza arrastou-o para as sombras sob a Ponte Denton – e ele desapareceu.
Segundos depois uma explosão semelhante a um pequeno trovão sacudiu o estai grande. Meu filho Raffy foi atirado de costas para fora do convés e caiu na água.
E aí tudo acabou. Diego apanhou um extintor de incêndio e combateu o fogo, enquanto eu guiava o barco em direção à traineira atracada a uma plataforma de concreto, perto da margem lodosa. Raffy, campeão de natação na faculdade, conseguiu chegar até a margem.
Apesar de tudo, estávamos sãos e salvos – exceto Santos. Raffy saiu chamando por ele ao longo das duas margens, mas nem sinal. Passamos o resto da noite amarrados à traineira. Eu tentava dormir, porém não conseguia parar de pensar em Santos. Sentindo-me impotente, lamentava sua sorte.
No dia seguinte, Dorothy caminhou quilômetros e quilômetros pela praia, entrando em todos os hotéis para perguntar sobre Santos, conversando com turistas e vendedores. Ninguém tinha visto nosso cãozinho preto.
Ela ofereceu recompensa através do rádio do barco, notificou a polícia e espalhou cartazes. Era comovente, mas me parecia inútil. Para além da ponte, os largos bancos de areia tinham sido açoitados aquela noite por séries e séries de ondas ferozes. Pensar em Santos sendo arrastado pela correnteza em meio àquelas ondas me fazia estremecer.
Dias depois, fizemos os reparos no Breath e ainda não tínhamos notícias de Santos.
“Querida”, disse eu a Dorothy, “precisamos ir em frente com nossa vida: percorrer o rio, atravessar o Atlântico e voltar ao trabalho”
“Mas, e se ele tiver sobrevivido?”, perguntou ela. “E se ele achar o caminho de volta e, chegando aqui, não nos encontrar?”
Ela estudou meu rosto em busca de uma trégua para a realidade. Então os olhos se encheram de lágrimas e a voz saiu embargada.
“Eu não queria abandona-lo!”
Com o coração pesado, levantamos âncora na manhã seguinte para seguir viagem rio acima.
Entretanto, só fomos sentir realmente nossa perda 80 quilômetros adiante, quando estávamos ancorados. De repente, um rosto estranho apareceu na escotilha, perguntando se queríamos comprar peixe. O pescador tinha remado silenciosamente até junto do barco. Quando Santos estava vivo, isso jamais acontecera. Foi quando de fato sentimos a falta de seu latido vigilante, que tantas vezes tentáramos calar.
Não se passava um dia sem que alguém se lembrasse de uma história de Santos. Ele fora um cãozinho pequeno, mas muito valente. Tinha clássico complexo de Napoleão. Precisava ser respeitado e o conseguia colocando animais maiores para correr. Ele era puro blefe. Nunca mais encontraríamos outro cachorro como ele, eu pensava, enquanto navegava rio acima.
Algum tempo depois, acordei no meio da noite e vi que a cama a meu lado estava vazia. Encontrei Dorothy sentada olhando a lua. Pela maneira como seus olhos brilhavam, vi logo que estava pensando em Santos. Sentei-me junto dela e abracei-a .
“Sabe do que sinto mais falta?”, ela perguntou. “Da carinha peluda dele na escotilha. Agora, todas as vezes que vejo uma sombra passar na vigia, lembro do amor que vi naqueles brilhantes olhos negros.”
Observamos a lua desaparecer por trás dos topos das árvores. Então, cheios de tristeza, voltamos para a cama.
Duas semanas se passaram enquanto fazíamos nossa viagem de mais de 240 quilômetros pelo Rio Gâmbia. Uma tarde, Dorothy e eu estávamos reforçando o toldo do convés quando vi um catamarã com um homem a bordo nos espiando de binóculo.
“Vocês são os americanos que perderam o cachorro?” gritou.
“Somos”, respondi, cauteloso.
“Não sei se é de vocês, mas a policia da Ponte Denton está com um cachorrinho preto achado na praia.”
Todo o mundo subiu ao deque na maior gritaria.
“Meu Deus! É o nosso, sim.”
Mas fui prudente.
“Talvez tenham encontrado um vira lata e o trouxeram, pensando na recompensa. Acho bom não termos esperança demais.”
Na manhã seguinte, Dorothy e eu pegamos vários táxis e velhos ônibus até Banjul. Tremendo e esperançosos, pegamos um táxi até a Ponte Denton para ver se Santos tinha mesmo sobrevivido.
“Vocês vieram atrás do cachorro!”, disse o policial que nos recebeu.
Depois se virou e chamou um rapaz.
‘Vá pegar o bichinho.”
Dorothy e eu ficamos esperando, na maior aflição.
Foi então que, amarrado a um pedaço de corda imunda, surgiu Santos. Tinha o andar vacilante, a cabeça pendente. Mas, quando Dorothy gritou Santos!, ele ergueu a cabeça, as orelhas ficaram instantaneamente em pé e todo o corpo começou a tremer diante da voz adorada. Ele disparou em direção a ela e começou a lamber-lhe o rosto. Dorothy o abraçou, com os olhos cheios de lágrimas.
O policial então nos contou que na manhã seguinte à noite que havíamos batido no fio de alta tensão, um turista sueco que andava na praia encontrara Santos – a nove quilômetros de Oyster Creek. Cuidou do cachorro levando-o para o hotel e dando-lhe de comer. Quando chegou o dia de ir embora, entregou Santos à polícia.
Notamos que o focinho de Santos estava mais claro e que, quando passávamos a mão em seu lado direito, ele às vezes gania de dor. Ficamos pensando no que não teria sofrido enquanto era levado pelas águas ao longo da costa. Estávamos maravilhados com sua força e sua sorte. Mas, acima de tudo, felizes por tê-lo de volta.
Na manhã seguinte, subimos o rio. Chegamos pouco depois do por do sol, chamando pelos meninos.
“Era ele?”, gritaram os rapazes.
Então Dorothy mandou que o cachorro latisse. O latido inconfundível atravessou o rio e foi recebido com o maior entusiasmo.
Mais tarde naquela noite fizemos um brinde, com limonada, a Santos. Não foi preciso champanhe porque a alegria já estava borbulhando no ar que respirávamos.

segunda-feira, maio 28

Vem aí a Legião Estrangeira

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Joseph A Harriss

Essa lendária força de guerra transformou-se em extraordinária força de paz

7 de junho de 1997.
Em meio a edifícios enegrecidos pelo fogo e lojas saqueadas e esburacadas por balas, paira sobre Brazzville o cheiro da morte. Durante os últimos dias, a capital da República do Congo transformou-se em campo de batalha da guerra civil. Cadáveres espalham-se pelas ruas enquanto membros das milícias Cobra e Zulu, bêbados e drogados, disparam pesados morteiros e metralhadoras em direção a tudo que se move. Milhares de moradores aterrorizados entrincheiram-se em portas barricadas. Então, no final da tarde, ouvem suas preces serem atendidas: a Legião Estrangeira está chegando!
Um comboio de jipes e caminhões do 2º Regimento Aéreo Estrangeiro, composto de legionários completamente equipados para combate, passa ruidosamente pela Avenida Charles de Gaulle. De repente, os veículos cor de oliva de um dos pelotões enfrentam um bloqueio. Um membro da milícia Cobra, olhar alucinado, aponta a arma.
“Muito bem”, grita, agitando a metralhadora. “saiam todos, rápido!”
Um segundo Cobra, os bolsos repletos de granadas, junta-se a ele, seguido por outros, ansiosos por luta.
Os dois grupos se encaram, dedos no gatilho. Então, o capitão Jean Michel Trotignon, 33 anos, exibe sorriso frio, ao estilo Clint Eastwood.
“Não queremos lutar, mas vamos retirar daqui qualquer civil estrangeiro que deseje partir”, declara de maneira inequívoca ao miliciano.
Os Cobras hesitam, examinam o poder de fogo dos legionários com seus fuzis automáticos e baionetas e finalmente decidem:
“Está bem, está bem, prossigam”, murmura o líder.
Apesar de embates que lhes custaram um morto e oito feridos, os pelotões da Legião Estrangeira salvaram 5.700 civis em diversos países.

O resgate demonstra como a Legião Estrangeira mudou. Por muito tempo conhecida pela doutrina machista e pelo passado cheio de glórias, a legião dos dias de hoje tornou-se presença familiar em pequenos conflitos violentos e ambíguos da era pós Guerra Fria. Com tradição de 166 anos de disciplina férrea e dedicação, consistem em força militar única, com 8.500 soldados profissionais provenientes de cerca de 120 países. Assumiu o papel de força de paz internacional, mas o desempenha com a lendária firmeza e arrebatamento.
Os soldados demonstram dedicação próxima ao fanatismo. Para eles é, ao mesmo tempo, lar e família. Seu lema: Legio Patria Nostra (A legião é nossa pátria). Essa dedicação cria um vínculo quase sobrenatural. Legionários, por exemplo, jamais abandonam um companheiro ferido no campo de batalha. Em combate, freqüentemente protegem os oficiais com os próprios corpos.
“Essa camaradagem não é mito”, diz o capitão Joel Bonis, da 13º Demi-Brigade em Djebuti, no árido e castigado sol da África. Em noite recente, Bonis estava no bar com um amigo civil que fingiu dar-lhe um soco. De súbito, um legionário imobilizou o civil torcendo-lhe o braço atrás das costas e grunhiu: “Ninguém encosta a mão num capitão da legião!”
Combine-se esse espírito de corporação à formação multinacional única da legião e terá um dos grupos de combate mais bem preparados para a exigente tarefa de força de paz internacional. Seja onde for o conflito, a instituição tem sempre à mão intérpretes e guias em seus postos. Quando, por exemplo, entrou em Beirute, devastada pela guerra, os legionários libaneses conheciam a cidade, falavam árabe e sentiam-se em casa.
“Sem dúvida, significa enorme vantagem”, diz o comandante da legião, general Christian Piquemal.
As missões de paz dos últimos anos, tão diferentes das lendárias missões anteriores, parecem fazer aflorar o heroísmo e humanismo dos legionários. Quando um garoto de 14 anos tentou atravessar correndo a pista do aeroporto de Sarajevo, certa noite de outubro de 1993, um atirador sérvio acertou-o no peito. O sargento da legião Bruno Chaumont correu quase 40 metros esquivando-se das balas, carregou o menino e transportou-o para local seguro.

Em Ruanda, onde os legionários distribuíram alimento e remédios, desarmaram pessoas que tentavam matar-se umas às outras e abriram um corredor de 300 quilômetros a fim de que refugiados pudessem escapar. Coube-lhes também a tarefa angustiante de enterrar os mortos. Certo dia de julho de 1994, o tenente Arthur da Silva Santos, de Portugal, veterano há 22 anos, viu um pequeno braço mover-se em meio à pilha de cadáveres em Goma, Zaire. Ordenou às máquinas de terraplenagem que cessassem a operação e, lutando contra a náusea enquanto escalava os corpos em decomposição, arrancou de lá um garoto de 6 anos. Este aqui não vai morrer, prometeu ele.
Da Silva colocou o corpo no jipe e o levou a um hospital militar onde, durante semanas, acompanhou os progressos da recuperação do menino. Quando o garoto podia sair do hospital, Da Silva o levava no jipe em alegres passeios. A mulher e ele teriam adotado a criança caso uma entidade de assistência não houvesse localizado a família do garoto. Posteriormente, o pai enviou ao “soldado branco” profundos agradecimentos.

Embora a maioria continue utilizando identidade fictícia, hoje os profissionais da legião são muito diferentes do antigo bando de fugitivos da lei. Criada pelo rei francês Luis Felipe em 1831 com a finalidade de conquistar novas colônias na África, a Legião Estrangeira lutou arduamente durante décadas nos desertos e florestas do império colonial francês. Era composta da escória da sociedade por causa da política da instituição, que alistava qualquer um, sem fazer perguntas. Enviada ao México em 1863 para apoiar o instável governo do imperador Maximiliano, marionete dos franceses, a legião começou a mostrar a têmpera que a destacaria das demais forças de combate do mundo.
Um grupo de 65 homens, comandado pelo capitão Jean Danjou, foi atacado em 30 de abril por 2 mil combatentes mexicanos e conseguiu resistir por um dia inteiro numa fazenda em Camerone. Em vez de se renderem, os últimos cinco atacaram com baionetas armadas. “Eles não são homens”, exclamou maravilhado o comandante mexicano, “mas demônios!” Nascia a lenda.
O processo para tornar-se um legionário tem início na sede da legião em Aubagne, próximo a Marselha, onde os candidatos se submetem a duas semanas de rigorosos testes. A oportunidade de recomeçar a vida atrai muitos aventureiros, homens atravessando período de má sorte ou com problemas familiares. A legião investiga o passado dos pretendentes antes de aceita-los. Mas, se necessário, aceita um candidato confiando apenas na palavra dele.
Como se trata de Legião Estrangeira, os franceses estão proibidos de alistar-se, a menos que já sejam oficiais das Forças Armadas regulares. No entanto, um dos mais bem guardados segredos da legião consiste em que recrutas franceses estão sempre se alistando sob a “identidade declarada” de suíços ou canadenses.
No total, aproximadamente 8.500 candidatos batem às portas da legião a cada ano. Apenas certa de mil conseguem chegar ao acampamento de treinamento de recrutas e tornar-se legionários.
Os poucos escolhidos são enviados ao 4º Regimento Estrangeiro em Castelanudary, no sudoeste da França. Lá, são submetidos a quatro meses de rígido treinamento no acampamento para recrutas. Além da instrução intensiva em habilidades básicas da profissão de soldado, passam semanas aprendendo a marchar na lenta e majestosa cadência da legião – 88 passos por minuto em vez dos costumeiros 120 de outros exércitos. E, enquanto marcham, assimilam as tradicionais canções da legião: cânticos arrastados e melancólicos, que lembram o sofrimento e a solidão do bando de legionários.
Acima de tudo, descobrem que não são poloneses, australianos, alemães ou japoneses, mas cidadãos de um país chamado Legião Estrangeira, com seu inflexível Código de Honra que reza: “Todo legionário é seu irmão de armas, independentemente da nacionalidade, raça ou religião.”
Assim que lhe é conferido o quepe branco, o novo legionário abre mão de sua vida em troca de cinco anos de “dedicação de monge” e abnegação que poucos mosteiros – e muito menos exércitos – exigem atualmente. No início da carreira, ele está proibido de se casar. Ou de possuir um carro. Ou de ter um quarto fora do alojamento. Ou de usar roupas civis. Em troca, a legião aceita a identidade que ele assumiu, talvez novo nome e nova nacionalidade. Oferece-lhe também a possibilidade de obter a cidadania francesa.
Para muitos recrutas, a maior barreira é a língua. A primeira frase que aprendem é: “Aqueles que entendem francês, sentem-se.” Os que permanecem de pé aprendem rapidamente o mínimo para sobreviver.
Outra habilidade a ser desenvolvido é o cuidado com o uniforme de gala verde-acinzentado, ornado de distintivos verdes e franjas vermelhas, com cinturão azul. A camisa precisa apresentar nada menos do que 15 vincos em locais precisos.
Depois do acampamento para recrutas, o treinamento prossegue permanentemente nas bases da legião no sul da França e em seus extensos postos avançados. Pode se tratar de escalada de montanhas nos Pirineus ou de exercícios de unidade de assalto na Amazônia, que forçam os homens até seus limites físicos e psicológicos. No Centro de Treinamento em Floresta Equatorial, na Guiana Francesa, os legionários aprendem a sobreviver na floresta.
Os treinamentos começam cedo e terminam tarde, como presenciei no 2º Regimento Aéreo Estrangeiro, de elite, na ilha mediterrânea da Córsega. Recentemente, ao amanhecer, eu estava espremido em meio a 80 homens equipados para combate, com pesadas mochilas e dois pára-quedas, a bordo de aeronave militar muito barulhenta. Quando o encarregado dos saltos levantou os braços como um maestro de orquestra, colunas de homens em ambos os lados ergueram-se, prenderam suas cordas de comando automático aos cabos acima e amontoaram-se em direção às portas traseiras abertas. De súbito o avião sobrevoou a zona de lançamento. A luz vermelha de sinalização mudou para verde, ouviu-se uma buzina irritante e os assistentes em cada porta começaram a gritar:
“Vá! Vá! Vá!”
Os legionários lançaram-se um por cima do outro a uma velocidade estonteante – dois por segundo, de acordo com meu cronômetro.
Naquele mesmo dia, fui de carro até uma região longínqua e acidentada da ilha. Um pelotão de legionários, fardas escurecidas pelo suor, praticava táticas de patrulha sobre terreno acidentado. Com os rostos pintados de tinta oleosa verde e marrom, capacetes e fuzis camuflados com galhos, mergulhavam para se proteger quando os fogo “inimigo” estalava logo adiante. Subitamente uma granada caiu ao lado do homem mais à frente. Quando se abaixava para apanha-la e a jogar de volta, a granada explodiu – cobrindo-o de farinha branca.
“Você tem sorte por ser granada de exercício”, gritou o sargento. “Só em filmes de guerra se joga de volta a granada do inimigo. Em combates reais, você salta o mais longe que puder e se atira no chão.”
Depois de horas de treinamento em meio a espinhosos arbustos, o esgotado pelotão passou a noite marchando de volta ao acampamento, com as armas e pesadas mochilas.
Em meu último dia na base do 2º Regimento Aéreo Estrangeiro, visitei pequeno museu próximo à entrada da guarnição militar. Examinei a exposição das flâmulas de batalha, capacetes perfurados por balas, pinturas e fotos de gloriosas porém trágicas resistências. Uma das mostras era dedicada a Camerone, mas foi a de Dien Bien Phu que me chamou a atenção. Naquele vale da Indochina, a Legião Estrangeira, em maio de 1954, viu-se encurralada. Sitiados pela organização comunista Viet Minh, os legionários resistiram por 56 dias. No final, havia 657 mortos e 1.503 feridos na legião. Dirigi-me ao capitão Yann Talbourdel:
“Camerone, Dien Bien Phu”, refleti em voz alta. “É engraçado como a legião exalta as derrotas em vez de suas vitórias.”
O jovem capitão pareceu aturdido. Fitou-me cuidadosamente para ver se eu estava brincando e, após refletir por um momento, formulou sua resposta.
“De fato, porém são as ações mais sagradas para nós”, disse. “Simbolizam nossos ideais de esforço máximo e sacrifício final.”

sexta-feira, maio 25

Um tipo raro de coragem

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1998
Autor : Peter Michelmore

Exigiu-se do biólogo preso em um helicóptero descontrolado o impossível: ir para o lado de fora e, de alguma forma, efetuar o conserto.

Dave Zalunardo olhava atentamente para o solo através da bolha transparente do pequeno helicóptero fretado. Abaixo, raios solares e sombras se espalhavam pelas copas de pinheiros e moitas de juníperos.
“Acabo de ver”, falou pelo intercomunicador acoplado ao fone de ouvido. “Sete fêmeas e quatro filhotes.”
Por mais de duas horas, o biólogo de 43 anos, especialista em vida selvagem do Serviço Florestal dos Estados Unidos, e sua colega Meg Éden, 41 anos, do Departamento de Peixes e Vida Selvagem do Oregon, haviam cruzado a floresta em ziguezague, fazendo censo da população de alces. Sentado entre os dois, naquela fria tarde de quinta-feira, 13 de fevereiro de 1997, estava o piloto Philip Stevenson, 43 anos.
Com a mão esquerda, Stevenson apertou com força o comando de passo coletivo das pás do rotor. Sentiu-o frouxo na mão. Moveu-o para cima e para baixo. Não respondia.
Com o coração disparando, Stevenson virou-se. Para seu horror, viu através da bolha que a extremidade superior da haste vertical de conexão de comando, de 50 centímetros, por alguma razão soltara-se do eixo do rotor principal e balançava livremente.
No instante seguinte, Stevenson sentiu que a aeronave se elevava por conta própria. Esforçando-se para parecer calmo, falou ao bocal.
“Temos um problema.”
A haste desconectada era parte vital da conexão que controlava o ângulo, ou passo, das pás do rotor principal. Descontroladas, as pás do rotor assumiram ângulo máximo, e o helicóptero subia fora de controle.
“Vamos continuar a subir até nossa altitude máxima de 3.500 metros acima do nível do mar”, explicou Stevenson. Então, por causa do ar mais rarefeito, o helicóptero automaticamente se nivelaria. “Permaneceremos lá em cima até que se esgote o combustível.”
Éden olhou para o relógio. Haviam decolado às 13h30 e agora já eram quase 15h45. normalmente, o aparelho voava duas horas e meia com o tanque cheio. Com um pouco mais na reserva, calculou ela, ainda lhes restavam cerca de 30 minutos.
Stevenson aumentou a velocidade para quase 100 nós (180km/h) a fim de reduzir o ritmo de subida do helicóptero. O altímetro indicava então cerca de 1.300 metros. Estavam subindo a pelo menos 60 metros por minuto. Ele via apenas uma saída, que exigiria raro ato de coragem. Voltou-se para Zalunardo.
“Você vai ter de ir lá fora e acertar o passo das pás”, disse. “Do contrário, vamos todos morrer.”
Da posição onde se encontravam na cabine apertada, nem Stevenson nem Éden tinham condições de sair.
Zalunardo permaneceu sentado quieto por um instante. Embora houvesse aprendido a tranqüilizar-se no interior de uma aeronave, jamais superara completamente o medo de altura. Mesmo numa plataforma de caça a 4,5 metros do solo, sentia-se perturbado. Estremeceu ao pensar que assim que acabasse o combustível despencariam como uma pedra.
Sem ousar olhar para baixo, Zalunardo soltou o cinto de segurança e fez correr a porta esquerda, deixando entrar o ronco do motor e uma rajada de ar gélido. Com o vento de frente, a temperatura equivalia a cerca de –28°C.
Simples acaso colocara Zalunardo no helicóptero naquele dia. No departamento de Meg Éden ninguém estava disponível para ajudar com o censo dos alces. Ardoroso preservacionista, o homem de barba escura, pai de dois filhos, imediatamente concordou em auxilia-la. “Cuidar da vida selvagem é o que mais gosto de fazer”, dizia aos amigos.
Entre os outros grandes interesses de Zalunardo estava a segurança de aeronaves. Vinte anos antes, tarde da noite, estava a bordo de um avião quando um dos dois motores pegou fogo. Os pilotos, após apagarem as chamas utilizando o extintor de incêndio acoplado, pousaram a salvo, mas o medo de voar permaneceu com Zalunardo.
Agora, em pé na entrada da cabine, Zalunardo enrolou a parte superior do cinto de segurança diversas vezes no pulso esquerdo. Deu um passo pela porta e colocou firmemente os dois pés na cesta de carga de malha metálica de 45 centímetros de largura que se estendia sob a aeronave. Mesmo protegido pelo casaco vermelho de esqui, luvas e o calor do motor, o frio era cortante.
“O que terei de fazer?”, Zalunaro perguntou pelo fone, bem ajustado sobre seu boné de beisebol. O ronco do motor e o alarido das pás do rotor eram quase ensurdecedores.
Stevenson fez um gesto em direção ao braço metálico de conexão do comando – de 20 centímetros de comprimento – que se projetava do eixo do rotor.
“Você precisa empurrar aquele braço para cima”, disse a Zalunardo. Assim o ângulo ascendente dos rotores seria invertido.
Ainda preso ao cinto de segurança, o biólogo esticou-se. Uma rajada de vento arrancou-lhe subitamente os óculos escuros, mandando-os pelos ares. O braço de comando de passo ainda estava além de seu alcance. Com a adrenalina aumentando, agarrou-se ao suporte do motor do helicóptero e soltou a mão do cinto de segurança. Em seguida subiu 20 centímetros sobre a estreita grade do cesto de carga e inclinou-se em direção à aeronave.
Observando através da bolha, Stevenson manobrou fazendo um amplo círculo à direita para manter o peso de Zalunardo inclinado em direção ao helicóptero. Pelo intercomunicador instruiu:
“Empurre lentamente...um pouquinho, só um pouquinho.”
Agarrando-se ao suporte do motor com a mão esquerda, Zalunardo colocou a ponta dos dedos enluvados na base do braço de comando de passo. Suavemente empurrou para cima, mas o pequeno toque foi excessivo. Em fração de segundo, a aeronave caiu violentamente. Lutando para respirar, ele agüentou firme.
Stevenson não podia parar a queda livre do aparelho.
“Para o outro lado!”, gritou o piloto.
Utilizando seu fone, Éden repetiu: “Para o outro lado!”
Zalunardo empurrou para baixo, e as pás do rotor reverteram ao ângulo máximo ascendente. Quase no mesmo instante o helicóptero retomou a subida. Zalunardo respirou profundamente diversas vezes. Ainda mantinha as botas sobre a grade e a mão no suporte.
No interior do helicóptero, Stevenson tremia. Sabia quão perto o biólogo estivera de ter sido arremessado nas pás. Do lado de fora, Zalunardo sentiu que sua lente de contato do olho esquerdo escorregava e logo sua visão de anuviou. A lente se fora. Retirando as luvas para segurar melhor o braço de comando, encaixou-as atrás do suporte do motor. Em segundos o vento as levou.
“Ahhh!”, gritou, agarrando-se ao suporte do motor com as duas mãos.
Na cabine, os olhos de Stevenson estavam fixos na agulha do marcador de combustível. Restava-lhes apenas um oitavo do tanque – cerca de 15 minutos de combustível.
Ainda abraçando o helicóptero, Zalunardo então apanhou a haste de aço de conexão que se soltara do braço de comando e, com a mão direita congelada, ergueu-a, mantendo-a em posição vertical.
Observando-o através da bolha, Éden dirigiu-se ao piloto:
“Philip, ele está tentando reconectar a haste àquele braço.”
Se Zalunardo conseguisse restabelecer a conexão, Stevenson poderia controlar o passo novamente e trazer o helicóptero para o solo. Mas como seria possível Zalunardo efetuar o conserto equilibrando-se do lado de fora de um helicóptero?
“Se eu tivesse um pino para colocar entre os orifícios, poderia funcionar” disse Zalunardo, retornando à cabine.
Éden encontrou um pequeno pino. Zalunardo, apoderou-se dele, as mãos rígidas de frio. Nesse meio tempo, Stevenson via a agulha do altímetro ultrapassar os 2.800 metros.
“Vá para fora, Dave”, insistiu o piloto. “Você tem de faze-lo, meu chapa, ou nós vamos morrer!”
O braço de comando de passo terminava em forma de U, semelhante a um diapasão, com orifícios em ambos os lados. A haste, entretanto, terminava em esfera giratória, como a ponta de uma caneta esferográfica. No meio da esfera havia um orifício.
De alguma forma, o parafuso e a porca de fixação, que mantinham o conjunto preso, soltaram-se gradualmente e caíram. A idéia era conseguir alinhar os orifícios, transpondo-os com o pino.
Momentos depois, com os pés se equilibrando no cesto de carga, Zalunardo encaixou a haste no braço de comando com a mão esquerda e fincou o pino com a direita. A mão, porém, oscilou. Errou o alvo.
Dez vezes ele investiu com o pino. Vinte. Em vão. Cada vez que o biólogo tentava alinhar os orifícios, a esfera girava.
Bem lá no fundo, sentia-se furioso pela visão embaçada e falta de jeito. De repente, o helicóptero elevou-se no meio das nuvens e Zalunardo ficou envolto em neblina.
“Você tem de faze-lo, companheiro”, disse Stevenson pelo fone.
Finalmente Zalunardo viu os orifícios alinhados e fincou. Dessa vez o furador passou até o fim.
O piloto sentiu então a súbita tensão no comando de coletivo de passo e empurrou-o para baixo bem devagar. Imediatamente as pás do rotor inverteram a inclinação. O helicóptero começou a perder altitude.
“Você conseguiu, Dave!” gritou Éden.
Lutando contra a ânsia de acelerar, Stevenson manteve a descida gradual. Sabia que Zalunardo tinha de manter pressão contínua no furador.
Qualquer movimento súbito deslocaria o biólogo e o mandaria pelos ares. Éden prendeu a respiração.
Do lado de fora, Zalunardo sentia a cabeça pender de tanto esforço e fadiga. “Agüente”, disse a si mesmo.
Stevenson conduziu o helicóptero de volta para um pouso suave sobre a neve de oito centímetros de espessura. Eram 16h10, segundo o relógio de Éden – 25 minutos depois que Zalunardo saíra da cabine pela primeira vez. Vencido pela exaustão, Zalunardo esparramou-se ao lado do piloto. Olhando para ele, Stevenson pensava sobre a rara coragem que fora necessária para salva-los.
“Você é o meu herói, Dave”, disse, em voz baixa.
Stevenson encontrou num compartimento do motor o parafuso desaparecido e fez o conserto provisório. Em seguida voou até um posto de abastecimento – restavam apenas 11 litros de combustível.
Mais tarde, Éden levou Zalunardo para casa.
“Seu pai salvou três vidas hoje”, contou Éden a Michael, de 10 anos.
Quando ouviu a história, o garoto foi até o quarto e retornou com a medalha de ouro que ganhara no campeonato de natação na escola. Era o seu mais precioso bem. Colocando a medalha em torno do pescoço de Dave Zalunardo, o garoto disse:
“Isto é seu, papai!”

quinta-feira, maio 24

Última chance para os garotos perturbados

Fonte : Revista Seleções
Data : Maio de 1998
Autor : Lawrence Elliott

Em sua fazenda, o pai adotivo dá o exemplo decisivo do que significa ser um homem

Quando o carro afinal parou em frente a uma casa de fazenda desgastada pelo tempo, a primeira a saltar foi Laurel Anderson, assistente social infantil.
“Você vai gostar dos Potter”, disse ao menino ao seu lado.
Mark Bissonette Jr. Olhou para as montanhas que se elevavam em volta do vale Willamette, on Oregon. Parecia desconfiado.
Dentro de casa, Tom e Maryann Potter os receberam com simpatia e Laurel retirou-se. Caminhando em direção ao carro, a assistente social implorou ao silêncio que a rodeava: “Por favor, que isso dê certo.”
Mark, que ainda não estava na sexta série, era um problema. A mãe não conseguia mais controla-lo. O pai, divorciado havia seis anos, não mantinha contato regular com ele. Mark mentia, era um vândalo no colégio e roubava os colegas. Diagnosticado como portador de distúrbio por deficiência de atenção, falava compulsivamente, negando, justificando ou vangloriando-se do que fazia. Muitas vezes agredia os outros a socos. Já tinha sido expulso de dois lares adotivos.
Por isso fora levado para os Potter. Eles tem oferecido lar para garotos que ninguém mais aceita – meninos que praticamente não tem outra oportunidade, figurando entre os casos mais difíceis da divisão do Serviço Estadual de Assistência para Crianças e Famílias do condado de Lane. Maryann tem um coração que não sabe dizer não. Tom, fazendeiro durão, ensina os garotos como encilhar e montar um cavalo, laçar um boi e caçar para comer. Também lhes diz a verdade mais dura de todas: “No final das contas, só há uma pessoa no mundo que pode derruba-lo ou leva-lo para cima, e essa pessoa é você.”
Na tarde de verão em que Laurel levou Mark, já estavam morando lá dois garotos problemáticos, além dos filhos dos Potter, Scotty e Jennifer.
“Aqui somos uma família”, disse Tom a Mark. “Nas horas boas ou más. Acha que quer vir morar aqui?”
“O que tenho de fazer?” indagou Mark, desconfiado.
“Gostar de nós do mesmo modo que vamos gostar de você. Como se faz nas famílias.”
Mark deu uma risada.
“O que tenho de fazer de verdade?”
Tom Potter puxou o rosto do menino para junto do seu.
“Já disse. Amor. Você sabe amar?”
O menino negou, com a cabeça.
“Bem, antes de tudo, pare de viver tendo pena de si mesmo. O amor é uma rua de duas mãos. Você o deseja? Tem de dá-lo.”
Tom propôs a Mark o que chama de trato de 30 dias. Mark podia ir morar lá, com o direito de desistir a qualquer momento antes de decorrido um mês, sem discussão.
“Depois disso”, disse Tom, “estamos presos um ao outro. Se você fizer algo errado, eu o castigo. Se fugir, vou busca-lo. Porque aí você já será parte da família, entende? E as famílias são unidas.”
Mark concordou. Ninguém imaginava que ele fosse agüentar.

Amor difícil
Os Potter não começaram a vida como pais adotivos. Tom, depois de um período no Vietnam, tornou-se policial. Em seguida tentou vários outros empregos até resolver assumir a profissão de criador. Pouco depois de se casar com Maryann – representante de um serviço de saúde particular – instalou-se como criador de gado e cavalos.
Um belo dia Maryann comoveu-se ao ler um artigo de jornal sobre adoção.
“Todos querem bebês”, disse a Tom. “Mas as crianças mais velhas estão ficando de lado.”
Os dois resolveram tornar-se pais adotivos. Logo o primeiro de muitos filhos adotivos foi morar com eles.
Poderia ter sido o último. Wes Alford, robusto, 17 anos, era fujão crônico, com experiência de drogas e solto por sursis. Tom dedicou muito tempo a conversar com Wes e pensou ter feito progressos. No entanto, certa noite Wes mandou Maryann calar a boca e empurrou-a para passar.
Quando percebeu, tinha sido atirado no sofá e Tom, furioso, o dominava.
“Escute, filho”, disse Tom. “Enquanto estiver nesta casa, Maryann Potter é sua mãe. Agora, levante-se e peça desculpas.”
“Não peço”, foi a resposta abafada. “E vou dizer a meu assistente social que você me agrediu fisicamente.”
“Tudo bem. Vamos fazer isso já.” Tom agarrou Wes pela gola e o puxou para o telefone. “Diga que estará na casa dele dentro de 15 minutos!”
Doze anos depois, recordando aquele instante crítico de sua vida, Wes disse: “Ficamos ali nos encarando, com raiva. Minha primeira reação foi lutar com Tom. De repente, entendi que não podia passar a vida abrindo meu caminho a tapa.”
Pediu desculpas a Maryann e ela o abraçou. Ele teve dificuldade em falar, mas afinal disse:
“Obrigado por me salvar.”
Aos poucos, Wes começou a assumir nova identidade. Hoje, casado, com emprego firme, deu o nome de Tom ao primeiro filho. “Sem a influência dos Potter, nem sei onde eu estaria hoje”, diz Wes.
Será que Tom realmente o teria expulso, há 13 anos? “Digamos que foi importante para ele acreditar que eu o faria”, responde Tom.
Em certa manhã de 1989, Tom foi acordar o filho, Scotty, e encontrou um de seus amiguinhos, Robbie Wilkinson, na outra cama.
“Briguei com meu pai de novo”, explicou Robbie, depressa. “Nunca mais volto para casa. Nunca.”
“Vamos tomar café”, retrucou Tom. “Depois falamos sobre isso.”
Robbie foi ficando. Tom verificou que a mãe dele concordava e fez com que Robbie fosse visitá-la sempre. Os Potter o tratavam como filho, mas não o deixavam esquecer-se de que tinha pais na cidade. E seis anos depois, aos 19 anos, Robbie fez as pazes com o pai e voltou para casa.
A chegada de Robbie foi um marco. Os Potter resolveram que, se tinham espaço para ele, poderiam receber até mais do que um ou dois garotos adotivos que vinham criando.

Vai ficar?
Os primeiros 30 dias de Mark, no verão de 1988, foram turbulentos. Roubou 20 dólares de Maryann e deixou cair de propósito uma pilha de pratos. Aprendendo a montar a cavalo, esporeou o animal com tal força que o fez sangrar. Por essas faltas passou muito tempo limpando as baias dos cavalos e carregando e empilhando pedras.
No entanto, deu gritos de alegria ao ver as botas de vaqueiro que Maryann lhe comprou. Começou a chamá-la de mãe e Tom de pai, como faziam os outros meninos. E quando começaram as aulas, perguntou se podia matricular-se como Mark Potter.
“Vai ficar?” indagou Tom.
“Se me quiserem”, respondeu.
Tom estendeu a mão.
“Combinado, Mark Potter.”
Entretanto, nunca ficou claro se Mark conseguiria ficar. Tom tinha de repetir tudo o que lhe dizia e nem assim ele parecia entender.
“Não se esqueça de verificar a cilha, para a sela não escorregar.”
Sem ligar, Mark punha o pé no estribo e, claro, a sela rolava para baixo do cavalo e o garoto acabava no chão.
“Não disse?”
“Ora, que diabo, qual é o problema?” retrucava Mark.
Aquilo lhe custaria duas horas espalhando esterco do estábulo para os cantos mais distantes do pasto, pois Tom não tolerava falta de respeito. Mas isso não curou Mark.
“Observe as orelhas do cavalo”, dizia ele ao menino, enquanto cavalgavam. Elas telegrafam o que ele vai fazer em seguida. Se as aponta para trás, isso pode significar problemas.
Mas quando Tom olhava para Mark, só via olhos vidrados e a boca em movimento incessante.
Tom e Maryann tampouco conseguiam que ele se desse bem na escola. Os anos iam passando e Mark estava sempre em recuperação. Mesmo assim tinha notas baixas.
“Escute”, disse-lhe Tom, certa vez, “quer passar a vida enchendo tanques de gasolina ou carregando lixo?” É só isso que pode esperar sem um diploma de curso secundário.”
“Estou fazendo o melhor que posso”, respondeu o garoto, emburrado.
“Não creio. Já o vi dando o melhor que pode. E é um bocado acima do que nota abaixo de quatro.”
Aquilo estimulava o menino por algum tempo, mas inevitavelmente sua atenção se desviava. No entanto, Mark se importava com o problema. Desejava muito ser tão bom quanto os outros garotos, só não queria que soubessem o quanto estava se esforçando.
Por vezes a fúria que fervilhava dentro dele explodia. Certa noite, quando Mark tinha 16 anos, um dos outros implicou com ele por causa da dificuldade que apresentava com os deveres de casa. Quando Mark avançou na direção do provocador, Tom agarrou-o no meio do caminho.
“Ei, garoto! Calma!”
“Ouviu o que ele disse?” berrou Mark.
“Ouvi, e foi errado”, disse Tom. “Mas quebrar a cabeça de seu irmão por isso seria pior.”
“É, é sempre assim. Você sempre defende os outros!” gritou Mark.
“Você nunca me enganou com todo esse papo de família e amor. Pode ser que você ame esses caras, mas nunca me amou.” Então correu para o quarto e bateu a porta.
No meio da noite, Scotty foi acordar os pais para avisar que Mark tinha fugido. Tom pegou o furgão e dirigiu-se para a cidade.
Meia hora depois, o vulto desamparado de Mark surgiu à luz dos faróis.
“Entre”, disse Tom.
Mark viu que não podia discutir.
“O que pretende fazer?”, indagou Tom.
“Arranjar trabalho.”
“Você já tem trabalho. Está trabalhando para ter um diploma do curso secundário, lembra-se? Pensa que sua mãe e eu não sabemos como tem sido difícil para você? E agora que está quase vencendo, quer largar tudo e virar um vagabundo? Esta terra não precisa de mais um vagabundo, Mark.”
“Ora, você não está ligando.”
Em seguida ficaram calados. Por fim, Tom disse que o levaria aonde ele quisesse ir.
“Quero ir para casa”, disse Mark.

Momento de se tornar adulto
Não houve grandes mudanças. Ele continuava a falar sem parar e a ter os ataques súbitos. Entretanto, aos poucos suas notas foram melhorando e, como recompensa, Tom levou-o numa excursão por trilhas com dois homens de negócios.
Mark afeiçoou-se a eles, a boca funcionando a toda velocidade, como sempre. Quando acamparam na primeira noite, Tom desculpou-se.
“É um ótimo garoto”, disse, “mas é impossível faze-lo calar-se. Espero que ele não esteja estragando o passeio.”
“Está brincando?”, respondeu um dos homens. “Só espero poder me lembrar de tudo quanto nos ensinou.”
Então, imitando Mark, começou a repetir as lições do dia:
“Nunca se esqueça de verificar a silha, senão a sela escorrega. Observe as orelhas do cavalo...”
Tom ficou boquiaberto. Parecia uma gravação do que tentara ensinar a Mark. Mais tarde, ele passou o braço em volta dos ombros do garoto e brincou:
“Então, filho, diga-me agora o que acha da raça humana?”
Mark disse, sorrindo:
“Ora, pai.”
E eles se abraçaram.
No inverno de 1996, no meio da segunda série do secundário, Mark completou 18 anos e estava emancipado – livre para decidir sobre seu futuro. Resolveu morar com a mãe natural, que estava com a vida organizada.
“Não se preocupe, pai”, Mark tranqüilizou Tom. “Vou conseguir aquele diploma e aplicar todas essa história boa que você me ensinou, de acreditar em mim. Você vai ver, vai dar certo.”
Tom sorriu e o abraçou. Seu coração estava pesado, mas também sentia orgulho. Maryann e ele tinham dado a mão a um jovem confuso, que agora parecia ter certeza do que tinha de fazer. Era o momento de se tornar homem.
Em junho do ano passado chegou o telefonema que Tom e Maryann Potter aguardavam. Mark obtivera diploma do curso secundário.

Os Potter hoje cuidam de dois garotos e esperam em breve receber mais dois. Os jovens estão aprendendo a treinar cavalos e criar gado, adquirindo habilidades e autoconfiança ao mesmo tempo. Mais uma vez, os Potter estão ajudando seus vaqueiros a serem homens.
“Bem no fundo desses garotos há uma centelha de humanidade. Isso é um dom de Deus. Se a alcançamos e alimentamos, talvez se tenha uma chance de ajudar um garoto perdido”, diz Tom. “Existe algo mais compensador do que investir o coração e as esperanças num garoto e vê-lo vencer?”

terça-feira, maio 22

Quatro dicas para quem leva o carro ao mecânico

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autor : Carlos Tautz

Simples procedimentos para colocar você a salvo de mecânicos desonestos.

Ninguém mais acredita que o defeito na rebimboca da parafuseta, peça imaginária que durante anos personificou a ignorância popular no ‘quesito mecânica de automóveis’, seja motivo para o carro enguiçar. Mas eu sofri na pele até aprender isso.
Meu aprendizado em achar uma oficina competente começou depois que um ônibus atingiu em cheio a lateral do meu Uno Mille sem seguro. No dia seguinte, lá estava eu em peregrinação por oficinas mecânicas, atrás do menor orçamento.
Aos olhos de amigos, tornei-me espécie de doutor em “como-não-ser-passado-para-trás-por-mecânicos-e-lanterneiros-desonestos”. Descobri que, de acordo com a Associação Brasileira de Reparadores Independentes de Veículos (Abriv), que abriga sindicatos e associações de donos de oficinas mecânicas, dos 3 bilhões de reais que os brasileiros gastam por ano em consertos de automóveis, entre 600 milhões e 1,8 bilhões de reais são reparos fraudados ou mal-feitos – mais de 50% do total. E embora a maioria dos 1,2 milhão de mecânicos das 172 mil oficinas do país faça trabalhos adequados, há motivos para preocupação.
Interessei-me tanto pelo assunto que somei minhas emoções de consumidor em busca de bons serviços às de jornalista em busca de boas informações. E aqui estão as quatro dicas que aprendi para quem leva o carro ao conserto:

Conserte, não troque
1 – Um erro (ou truque) muito comum é quando simples conserto pode recuperar a peça gasta, mas o mecânico sugere a completa substituição. É o que aponta a engenheira Valéria Said de Barros Pimentel, do Laboratório de Máquinas Térmicas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Todos os carros podem superaquecer-se. Mas nos que ainda tem carburador, o superaquecimento pode empenar a base da peça, o que impediria seu assentamento correto”, diz Valéria, que na universidade ministra cursos de mecânica básica para leigos. “Se o profissional lixar a base do carburador, a peça poderá readquirir o contorno adequado”, ensina a engenheira. “Resolve-se isso com uma lixadinha de 40 minutos e um ajuste no pé do carburador, porém muitas oficinas recomendam a troca por inteiro”, alerta.
A mão-de-obra, nesse caso, não custa mais do que 40 reais a hora, enquanto com um carburador novo o orçamento sobe, em São Paulo, para 350 reais ou mais.
É também o caso dos bicos do sistema de injeção eletrônica. Em oficinas de confiança, um entupimento pode ser resolvido com meia hora de dedicação do mecânico, enquanto outros profissionais recomendam logo a troca. O preço? Varia de 20 a 30 reais para a limpeza de cada bico e até 315 reais por peça nova, além da mão-de-obra para instalação.
Queixa freqüente a respeito das concessionárias é o conserto ou troca de peças que nem sequer estão defeituosas. O profissional diz, por exemplo, que o sistema de injeção eletrônica funciona bem, mas pode quebrar a qualquer momento. “Não se deve sair por aí trocando peças. Faça um diagnóstico do seu veículo”, recomenda Valéria. Na UFRJ, ela participa do laboratório da oficina-escola, que cobra 70 reais para analisar mais de 180 itens e fazer uma lista de peças e serviços de que eventualmente seu carro necessita.
Alguns sistemas de peças, como a correia do motor e o controle do nível do óleo, realmente precisam de troca ou manutenção antes que apresentem algum risco para o carro. Entretanto, em muitos casos o sistema de aviso do carro – luzes de cores vermelha, amarela e verde distribuídas pelo painel – vai alertar você a tempo. É o caso da bateria. Se o marcador, geralmente de cor vermelha, permanecer aceso após o carro estar funcionando, cuidado. É sinal de que ela necessita de no mínimo uma carga, que pode ser dada em qualquer oficina especializada na parte elétrica dos automóveis. Essa carga pode adiar por muitos meses a troca definitiva da bateria.

Peça um orçamento por escrito e ‘agarre-se’ a ele
2 – Um mecânico de confiança provavelmente não faria com um conhecido a seguinte malandragem: você leva seu carro à oficina para trocar uma peça e recebe um orçamento verbal. Na hora de apanhar o carro, o mecânico informa que no momento do conserto percebeu que novas peças deveriam também ser trocadas. E o orçamento inicial – claro – acaba subindo muito. “É o caso da troca de radiador, que em média custa 100 reais”, explica Valéria. “Quando apresentam a conta, alguns mecânicos embutem no preço a substituição das mangueiras, que custam em média de 40 a 50 reais.”
Contra essas e outras fraudes, a melhor proteção é um orçamento por escrito, com o nome e o CGC da oficina. “Depois, se você não se sentir satisfeito, pode até reclamar na Justiça”, ensina Luiz Antonio Bragatto, superintendente do Instituto de Qualidade Automotiva (IQA), que estuda os serviços mecânicos e certifica processos de reparo.
Se tiver dúvidas sobre o diagnóstico – e até leigos podem ver se a oficina está equipada -, procure uma segunda opinião. Além disso, diga ao mecânico que gostaria de, após a troca, levar para casa a peça danificada.
Embora seja difícil para o leigo perceber a diferença entre a peça quebrada e a nova, só o fato de questionar indica ao mecânico que você não é um consumidor qualquer.
O orçamento por escrito é a garantia de que o serviço será feito da maneira estabelecida pelo mecânico. Se faltar alguma peça ou se o conserto for mal feito, o orçamento servirá como prova de má fé ou da incompetência do profissional – e também para embasar possível ação judicial.

Conheça seu mecânico
3 . Geralmente as relações pessoais aumentam as chances de você conseguir bom serviço. “Mecânico que põe a mão no carro da gente deve ser como o médico da família: de confiança. Dificilmente uma pessoa em que confiamos vai dar o mesmo diagnóstico de alguém que fez um orçamento inadequado”, ensina Geraldo Santo Mauro, presidente da Abriv.
Mecânicos certificados pela Excelência em Serviços Automotivos (ASE) – entidade americana que desde 1996 tem filial no Brasil – são opção de profissionais com referências técnicas. Eles passam por uma espécie de “vestibular para mecânicos”, que os credencia em seis áreas de especialização: mecânica de motor, sistema elétrico/eletrônico, freio, funilaria/lanternagem, pintura e motor diesel.
No entanto, verifique se a oficina que você procurou tem mecânicos certificados na especialidade necessária para reparar seu automóvel. Nas oficinas mais modernas e organizadas, é fácil fazer essa verificação. Os próprios mecânicos terão orgulho em exibir os certificados, que deverão estar fixados em local visível aos clientes.
Não espere encontrar bons serviços apenas na rede autorizada. Há poucos anos, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – órgão do Ministério da Justiça que zela pela competição justa entre as empresas - teve de obrigar conhecido fabricante de automóveis a fornecer o manual do proprietário a oficinas independentes, que cobravam preços menores do que os serviços autorizados.
“Sem o manual ficava quase impossível fazer alguns serviços”, lembra Geraldo, que na Abriv responde gratuitamente a 6 mil ligações de consumidores e de mecânicos todos os meses. Para mecânicos, só a primeira consulta é gratuita, mas para consumidores o serviço é ilimitado. “Se uma oficina independente dispuser de equipamentos adequados, pode-se obter um orçamento mais atraente”, assegura ele.
As oficinas autorizadas tem uma série de custos próprios – que não se repetem na rede independente – e que terminam por aumentar o preço do serviço. Vale lembrar que em geral a qualidade do serviço é a mesma.

Faça a garantia valer
4 – Nunca se esqueça de que os zero-quilômetro tem todos os itens – da porta que não se fecha direito ate o motor que não pega – garantidos pelo fabricante, em prazo que quase sempre alcança um ano após a compra. Esse é um direito em todo o território nacional e está assegurado pelo Código de Defesa e Proteção do Consumidor.
Se na concessionária disserem que o defeito não está coberto pela garantia, entre em contato imediatamente com o gerente da revendedora antes de dar sinal verde para o reparo.
“Falhas em diagnósticos, embora possam ocorrer, são fatos isolados em nossa rede de concessionárias”, garante Cláudio José Oliani, supervisor da Central de Satisfação do Cliente Volkswagen, o fabricante do Gol, líder de vendas no Brasil.
“Mecânicos desonestos não enganam qualquer um. Se os clientes fizerem o dever de casa de todo consumidor, essa possibilidade cai muito”, diz Luiz Antonio.

Meu Uno Mille? Finalmente foi consertado na oficina de um amigo. Paguei 300 reais – quase seis vezes menos do que o menor preço que eu havia conseguido nas concessionárias onde também fiz orçamento. É claro que desconfiei da disparidade no preço.
No entanto, depois de examinar outros automóveis sendo consertados na oficina de meu amigo, mandei fazer o serviço e não tenho do que me queixar.
Mas decidi fazer o seguro do carro.

Você pode entrar em contato com a Abriv pelo telefone 0800-55-4477.

segunda-feira, maio 21

Quando a criança é superdotada

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Tom Crabtree

Música, esporte, matemática, dança – seja qual for o talento, merece ser cultivado.

Quando eu trabalhava como psicólogo infantil, o diretor de uma escola primária telefonou-me. “Estou perplexo”, disse-me. “Um de meus alunos escreveu um ensaio intitulado ‘As propriedades do núcleo’. O professor dele não entendeu uma palavra. Nem eu!”
Fui à escola. Mark tinha 8 anos, cabelos ruivos, sardas e um nariz pingando. Pareceu-me um garoto muito comum. Emprestei-lhe meu lenço e comecei a aplicar um teste de inteligência.
Ele completou todos os testes com rapidez de relâmpago, inclusive um de Matemática adequado para crianças em nível muito mais avançado. Então, olhou-me como quem diz: “Não arranja algo mais difícil?”

Eu já vira crianças talentosas, porém aquele menino era fora de série na avaliação do Q. I.
Também já tinha visto o que pode acontecer com crianças que tem algum talento especial – não forçosamente intelectual -, mas cuja família e professores não sabem como lidar com isso. Elas passam a almejar menos.
Conheci um garoto que poderia ter-se tornado grande engenheiro. Tornei a encontra-lo por acaso quando estava com 23 anos. Era mecânico de automóveis, trabalhando muito para ter a própria oficina. Não posso deixar de pensar no que poderia ter sido, com o devido encorajamento.
O diretor de Mark e eu providenciamos para que ele tivesse aulas particulares com um professor de Ciências na escola primária. Em muitos sentidos, porém, era apenas uma criança normal. Teria de fazer amigos, aproveitar a vida ao máximo. Queríamos que fosse socialmente ajustado, além de intelectualmente brilhante. Assim, resolvemos que por enquanto ficaria na turma com crianças da sua idade. Perguntei aos pais o que achavam dele.
“Ele sabe ser difícil” disse a mãe. “Faz cada pergunta impossível!” E concluiu, sorrindo: “Mas nós o amamos muito.”
Aquilo era importantíssimo. Como a maioria de nós, crianças talentosas precisam ser amadas. O pai de Mark ensinou-o a jogar xadrez. Ele conseguiu o diploma de aprovação com louvor e é hoje presidente da própria companhia de computadores, casado e feliz com dois filhos.
Calcula-se que uma em cada 25 crianças possui alguma aptidão especial, seja acadêmica, artística ou esportiva. Pode ser talento oculto, que precisa ser descoberto e cultivado. Era o caso de Karen que, aos 14 anos, estava deprimida e não ia bem na escola. Tinha uma irmã gêmea inteligente e popular.
Karen estava na minha sala de espera, curvada como um ponto de interrogação, parecendo muito insegura. Seu belo cabelo era castanho avermelhado e os olhos, grandes e castanhos. Quando se descontraia um pouco, tinha um lindo sorriso. Notei seus dedos compridos, de artista.
Ela me confiou que detestava a escola. A única disciplina de que gostava era pintura. Fui à sua escola, onde a professora de artes me mostrou alguns trabalhos de Karen. Eram originais e coloridos.
Pedi à professora para passar tarefas a Karen e elogia-la freqüentemente. “Temos de desenvolver sua auto estima”, aconselhei. Sugeri aos pais que lhe comprassem um bloco de desenho e material para aquarela. “Ela tem muito talento”, disse-lhes.
Muitas vezes o trabalho de psicólogo infantil é fazer com que os adultos vejam a criança de um novo ângulo. Os pais de Karen passaram a aprecia-la mais; os mestres, a acreditarem nela. Mais importante, Karen começou a acreditar em si.
Pode ser difícil ter um filho talentoso. É preciso tempo, dedicação e apoio constante para garantir que os dons da criança floresçam.
Sei disso por experiência pessoal. Aos 7 anos ficou evidente que minha filha Sally era ginasta excepcional. Na adolescência, fez parte da equipe de ginástica britânica e obteve bolsa para treinar em Moscou.
Seu talento significava que tinha de treinar seis dias por semana e competir por todo o país. Tivemos de garantir que o sucesso dela não ofuscasse nossos dois outros filhos, enquanto lhe dávamos constante apoio material e emocional. Na Rússia, nos exercícios de chão, disseram a Sally que seus dedos eram tortos. Levamos semanas para convence-la de que eram perfeitos.
Numa festa ao ar livre, conversei com a mãe de uma campeã de natação. A filha tinha de levantar-se de madrugada para treinar na piscina.
“Faria tudo de novo?” indaguei. “Eu não” respondeu a mãe. “Minha filha, sim. É isso que importa”.
Crianças talentosas podem representar desafio, mistério e trabalho duro. Também podem encher-nos com sensação de assombro, alargar nossos horizontes, abalar nosso mundo. Dão-nos prova de talento. Merecem tudo o que temos de melhor.

sábado, maio 19

Precisa fazer um discurso?

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1998
Autora : Peggy Noonan

Algumas dicas de uma ex-redatora de discursos presidenciais.

Como alguém já disse: “A mente é algo maravilhoso. Começa a funcionar no minuto em que você nasce e não pára nunca... até o dia em que você tem de falar em público.”
Pesquisa feita nos EUA há alguns anos mostrou que, de todas as coisas das quais as pessoas tem medo na vida, nada apavora mais do que falar em público. Não fiquei surpresa. Eu mesma tive essa fobia até os 40 anos, quando fiz meu primeiro discurso.
No entanto, o temor do palco é apenas parte do desafio. Em primeiro lugar precisamos saber o que vamos dizer. E é aqui que muitos ficam paralisados, imóveis diante da crença de que os discursos são algo mágico, espécie de combinação entre bruxaria e show business, inalcançável para um comum mortal.
Bem, mas discursos nada tem a ver com mágica. O discurso é essencialmente a combinação de informação e opinião, escrita no papel e falada. Se você é capaz de manter uma conversa inteligente, provavelmente será capaz de escrever e proferir um discurso bem articulado.
Aqui vão alguns pontos que aprendi como redatora de discursos, que podem ser úteis.

Duração de no máximo 20 minutos
Geralmente, embora paradoxal, é correta a afirmação de que, quanto mais importante a mensagem, menor o tempo necessário para transmiti-la. Devo acrescentar que 40 anos de televisão afetaram a maneira como as pessoas recebem a informação. Elas estão acostumadas a trechos de 15 a 18 minutos em programas como o 60 minutos e a segmentos de 12 minutos como parte do drama de Plantão Médico, com comerciais interrompendo o fluxo de pensamento. Por isso, não se esqueçam do conselho que, dizem, foi dado pela mulher de Hubert Humphrey: “Querido, para que um discurso seja imortal, ele não precisa ser interminável.”

Focalize um ponto
Somos humanos, com tendência a ter vários pensamentos (geralmente fragmentados), além de várias opiniões, idéias e deduções. É preciso fazer uma seleção.
Focalize um assunto. Evite detalhes paralelos alheios à questão. Inclua e desenvolva apenas aqueles que sirvam para explicar e reforçar seu ponto de vista.
Imagine-se como um garimpeiro que vasculha os campos com um cavalo de carga que leva os instrumentos de trabalho. Se você não sobrecarregar o cavalo, poderá movimentar-se com mais facilidade, cobrindo área maior, e quem sabe até encontrar ouro. Se o cavalo estiver pesado demais, porém, vai acabar desabando e você não vai chegar a lugar nenhum.

Escolha palavras com cuidado
É importante lembrar que suas palavras precisam ser ouvidas e compreendidas de imediato. Muitas palavras tem sons semelhantes. Por exemplo, sabre e padre soam quase iguais se pronunciadas por alguém que está a cerca de 20 metros de distância. Você pode estar querendo dizer que o homem carregava um sabre e a platéia entender que ele carregava um padre.
Em geral se compreende o significado pelo contexto global, porém às vezes isso não acontece. Leia seu discurso em voz alta para a família ou para os amigos, a fim de que eles avisem se o estiverem achando confuso. Você pode até manter a palavra que queria usar – se acreditar que ela é mesma a mais correta – desde que a torne mais compreensível, dando mais detalhes: “O soldado sabia que ainda possuía uma arma, um sabre, preso à cintura.”
Às vezes os problemas de compreensão decorrem não de uma palavra, mas de uma frase. Certa vez, quando trabalhava em um discurso para o vice-presidente George Bush, tentei expressar o que ele pensava sobre trabalho voluntário. Cheguei à conclusão de que o que ele realmente queria era uma espécie de altruísmo muscular. E coloquei essa expressão no discurso. Alguns dias depois John Sununu, à época assessor da campanha – e que no futuro se tornaria chefe de pessoal do presidente Bush -, disse para mim, com uma cópia do discurso nas mãos: “Tire esse altruísmo muscular. Parece doença.”
Eu ri. Ele tinha razão. Se Bush falasse em “altruísmo muscular”, as pessoas pensariam em “distrofia muscular”. Por que? Porque é uma expressão comum e elas estão acostumadas a ouvir as duas palavras juntas, “distrofia” antes de “muscular” e não “altruísmo”.

Para comover, use a lógica em vez do drama
Geralmente os políticos dizem aos redatores de seus discursos: “Quero emocionar de verdade. Quero música e poesia.” Os executivos pedem o mesmo: “Quero um discurso emocional, cheio de sentimentalismo.” Hoje, as pessoas costumam pensar que bom discurso é aquele que faz chorar.
No entanto, nada seca mais os canais lacrimais do que um discurso claramente orientado para que o público caia em soluços. Lembro-me de certa senhora que fez um pronunciamento há alguns anos diante de um grupo de conservadores, a respeito do futuro do movimento. Falou com grande sensibilidade a respeito do Congresso e da legislação pendente. Entretanto, no fim contou história que ouvira sobre Eisenhower em seu leito de morte, quando ele teria feito uma saudação de despedida para um amigo. Ao terminar, ele própria fez a saudação.
Silêncio. Em seguida, aplausos tímidos. A audiência não respondia como se estivesse comovida: as pessoas reagiam como se alguém tivesse tentado manipula-las.
Até quase o final ela fizera bom discurso. Mas evidentemente se rendera à idéia de que é preciso encerrar com um argumento bombástico. Ao contrário, é necessário tentar ajudar o público a pensar. Um bom caso, bem argumentado e contado, é sempre capaz de comover.

Humor é fundamental
Todos os discursos precisam de humor e o seu também, provavelmente logo no início. Ronald Reagan queria sempre uma piada no começo de suas falas porque precisava conquistar rapidamente a audiência através da risada. Isso o ajudava a relaxar, e ao público também.
Se você for capaz de inventar as próprias piadas, ótimo. Esse processo, no entanto, pode ser demorado. Por isso, comece a pensar no assunto a partir do momento em que elaborar o discurso. Se pedir ajuda, diga aos amigos exatamente do que se trata: onde você vai falar e por que, qual o assunto, quem é o público.
Pense a respeito do momento em que vai pronunciar o discurso. Algum campeonato de futebol está acontecendo na mesma época? Então você pode fazer referências aos jogos ou algum comentário engraçado sobre aquele técnico famoso ou sobre a velha rivalidade entre esse e aquele time.

Não deixe de agradecer
O velho clichê diz que você deve, no início do discurso, agradecer àqueles que o convidaram e à pessoa que o apresentou. O novo clichê diz que você jamais, no início do discurso, deve agradecer àqueles que o convidaram ou à pessoa que o apresentou. Normalmente isso é considerado maçante e previsível.
Eu, porém, não acho maçante ser educado. E fazer os agradecimentos no início tem uma razão prática. Enquanto você o faz, a audiência se distrai pensando e se aquieta. Eles vão se distrair de qualquer maneira em algum momento, e é melhor que isso aconteça antes que você chegue ao cerne da questão.
Agradeça com a forma, ou o tom de alguém que, tendo sido convidado para uma festa, sente-se feliz por estar a li e acaba de entrar para apertar a mão do dono da casa. Ofereça um cumprimento, uma palavra calorosa. Não é necessário mais do que isso.
Há também velhas fórmulas para as introduções. Uma de que sempre gostei foi dita por Lyndon Johnson ao abrir um de seus discursos: “Gostaria de que tanto meu pai quanto minha mãe estivessem aqui. Meu pai teria gostado de minhas palavras e minha mãe teria acreditado nelas.”

quinta-feira, maio 17

Peter Ustinov vai à guerra

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1981
Autor : Peter Ustinov*

Eta guerrinha de morte, sô!

Fui convocado para o serviço militar em janeiro de 1942.
Ao ser entrevistado pela comissão de seleção, perguntaram-me se tinha preferência por alguma arma em especial. Respondi ao oficial que estava interessado em ir para os tanques. Seus olhos brilharam de entusiasmo.
“Por que os tanques?” perguntou avidamente.
Disse-lhe que preferia ir para a guerra sentado. Ele ficou de repente carrancudo, e pouco depois recebi uma carta onde mandavam que me apresentasse num regimento de infantaria. Para mim – se não para os Aliados – esse fato foi crucial na Segunda Guerra.
Um dos mais gélidos invernos da história deu lugar a um escaldante verão. Devíamos então, tentar capturar a cidade de Maidstone, no Kent, das mãos da Guarda Nacional, força esta constituída por veteranos e doentes cuja obrigação era tornar difícil a vida dos alemães em caso de desembarque, e defender posições vitais, até que unidades mais bem armadas do exército pudessem lá chegar.
Para fins de treinamento, devíamos fazer de conta que éramos os alemães. Logo que a batalha começou, abandonei minha unidade e avancei sozinho para dentro da cidade, utilizando o simples expediente de bater à porta das casas das pessoas. Quando se abriam, invariavelmente apareciam homens de pijama ou mulheres de camisola de dormir, pois eram cerca de 6:00 da manhã. Eu aí explicava a natureza fundamental da manobra – sem nunca revelar de que lado estava.
Patrioticamente, os bons burgueses de Maidstone deixavam-me passar através das suas casas e pelos seus jardins. Aí eu subia um muro, passava ao jardim do vizinho e batia na porta dos fundos da casa seguinte. Os proprietários desse faziam-me sair pela porta da frente. Olhando para um lado e para o outro, eu então atravessava a rua correndo, batia noutra porta, e o processo se repetia.
Levei mais de duas horas para chegar ao centro da cidade, aí, de repente me vi diante da sede da Guarda Nacional. Apareceu um general enfurecido. Apontei meu rifle para ele e atirei. Como a arma estava descarregada, apenas fez clique – que nem ele nem o juiz (que estava tomando conta da guerra fingida, um tenente muito gordo) ouviram. Então berrei. “Bangüê!” e informei educadamente ao general que ele tinha virado pernil.
Mas a coisa nem passava pela sua cabeça. “Não diga asneiras!” gaguejou. “Afinal, quem é você?”
O juiz era gago. Rubro de esforço e vergonha, disse ao general que na verdade ele estava m-m-m... Mas não havia meio de conseguir pronunciar a palavra. Foi essa demora que enraiveceu o general. “Isso não adianta nada”, resmungou. “O cara me aponta um rifle e diz bangüê... Pode até ter errado o tiro! Vai ver eu nem fui ferido, não é?”
“O senhor teria preferido que eu tivesse usado bala mesmo?” perguntei.
O general aí perdeu a cabeça. “Quem pediu a sua opinião?” berrou.
“M-m-morto!” conseguiu finalmente dizer o juiz.
“Recuso-me a aceitar isso, ouviram? Você é um mero tenente!” rabujou o general. “Vou inspecionar a linha de frente, e quero ver quem é que vai me impedir!”
Sie sind tot!”, berrei.
O general me encarou de repente, pela primeira vez com suspeita. “Que é que você disse?”
Sie sind tot, Her General!”
“Você está falando numa lingua estrangeira?” perguntou o general, como se tivesse finalmente feito uma grande descoberta.
Ich bin Deutscher.”
“Alemão, hein?” exclamou o general, apertando os olhos. Nesse instante apareceram mais uns componentes da Guarda Nacional. “Peguei um prisioneiro alemão”, afirmou o general. “Prendam-no imediatamente.” Dando um empurrão no juiz, entrou no seu carro oficial e foi embora.
O juiz ficou furioso. “Estou t-t-tão...”, exclamou entre dentes.
“Eu também, senhor”, respondi, enquanto me levavam embora.
Um major da Guarda Nacional começou a me interrogar. Recusei-me a responder em qualquer outra língua que não o alemão. O major foi ficando muito irritado. “Olhe aqui, vou dar queixa de você à sua unidade, se não desistir dessa chateação e começar a responder às minhas perguntas.”
Heil Hitler!”, berrei.
“Isso foi a última gota!”
Eles me pegaram e fecharam no depósito de armas e munições. Apanhei uma metralhadora Sten, arrombei a porta, derrubei a mesa de reuniões e derramei tinta nos mapas e nos planos do alto comando local, antes de ser dominado por um bando de senhores de idade, aos quais não quis machucar, de modo que deixei que me trancafiassem numa despensa vazia. Estavam completamente furiosos. Um ou dois me olharam como se realmente eu fosse um perigoso nazista.
À tarde apareceu o coronel do meu batalhão. Era um homem que não falava alto, murmurava. A cabeça dele emergia da gola do uniforme num ângulo tão extravagante que de lado a gente podia ler a etiqueta do alfaiate. Tinha o curioso aspecto pré-histórico de uma tartaruga perplexa. Sempre achei que, se tivéssemos mesmo de entrar em combate na companhia desse cavalheiro, ele poderia, a qualquer momento de perigo, desaparecer dentro do uniforme até que a situação melhorasse. Expliquei-lhe minha versão dos fatos.
“Mas seria realmente necessário confundir tudo falando alemão?”, murmurou ele interrogativamente.
“É uma das maneiras como os alemães vão confundir as coisas se algum dia desembarcarem em Maidstone, senhor”, sugeri.
“Compreendo o que quer dizer”, disse ele, “embora essa eventualidade seja bastante improvável, não acha?”
Fiquei um pouco surpreendido por ser consultado, e resolvi aventar que, se era improvável um desembarque alemão em Maidstone, estávamos todos perdendo o nosso tempo.
“Sim, sim”, concordou ele vagamente, sorrindo. “Você ganhou.”
Saiu da sala e mandou que me soltassem, sugerindo que toda a Guarda Nacional deveria aprender alemão para poder lidar com prisioneiros recalcitrantes como eu, se, é claro, os alemães algum dia tivessem o mau gosto de desembarcar em Maidstone.

Por essa época, algo aconteceu no exército britânico, que andava exasperado com as sucessivas retiradas frente aos alemães e os japoneses. Foi ordenado que um novo grupo de guerreiros mais agressivo devia surgir, qual fênix vestida de cáqui, de entre o fogo dos suprimentos abandonados e dos fortes destruídos. O resultado dessas lucubrações tomou várias formas, todas elas imensamente desagradáveis.
Mandaram-nos correr para cima e para baixo, descalços, em praias cheias de pedras; isso era chamado de “fortificação dos pés” pelos oficiais que corriam ao nosso lado, de botas calçadas, evidentemente, encorajando-nos a ignorar a dor causada por pedras pontiagudas, vidros quebrados e algas ressequidas.
Depois havia cursos de batalha, normalmente em campos de golfe, onde se simulavam situações de luta; os oficiais, emboscados, tentavam nos molhar com baldes de sangue de animais, para que nos habituássemos, segundo afirmavam, com a visão de sangue. Era fácil evita-los, pois não sabiam se esconder direito e, no fundo, não tinham grande fé na eficácia psicológica dessa tarefa.
Rajadas de metralhadora passavam sobre nossas cabeças, para que adquiríssemos confiança debaixo de fogo, o que não evitou que um homem que ia correndo a meu lado fosse morto. Por negligência dos responsáveis, as metralhadoras tinham sido montadas na areia, e o resultado foi que, em vez de os tiros passarem por cima das nossas cabeças, à medida que eles atiravam, elas iam se enterrando, e então as balas começaram a vir diretamente a nós. E é capaz disse ter sido uma das razões por que os oficiais não jogaram o sangue na gente.
Havia também uma nova arma secreta chamada Treinamento de Batalha, na qual cada unidade de infantaria era subdividida em pelotões, cada homem com uma tarefa especial durante o avanço sobre uma posição inimiga. Atuando como elemento de ligação entre esses pelotões havia um mensageiro, que deveria sair correndo por terreno aberto para levar informações de importância vital. Meu batalhão foi escolhido para dar a demonstração que iria servir de exemplo para todo o Comando do Sudoeste. Meu comandante escolheu a minha companhia para ter a honra de formar os pelotões. O comandante da companhia escolheu o meu pelotão, e é claro que nem é preciso dizer que fui escolhido para ser o tal mensageiro. De todo o Comando do Sudoeste, tinham de me escolher, eu, que não sou propriamente uma pessoa magrinha!
Sua teoria terrivelmente falsa era que, sendo eu ator, estava treinado em decorar longas e complicadas mensagens. O que eles não entendiam era que, quando finalmente chegava ao meu destino, eu não tinha fôlego algum para dar o recado, e, quando o recobrava, já tinha me esquecido de qual era o recado.
Corremos os condados de Surrey, Sussex, Middlesex e Kent em caminhões, fazendo demonstrações inúteis, levando informações que eu não conseguia dar. Daí por diante, nunca mais corri o perigo de me perder nesses condados. Reconhecia cada colina, pois tinha sido um obstáculo a transpor, todo curvado para me fazer um alvo menor. Reconhecia cada sebe como um refúgio, onde eu arquejara, enquanto a fixava para evitar olhar a cara do sargento que lançava sua sombra sobre meu corpo extenuado.
“A mensagem, cretino!”
Dante teve o seu inferno, eu, o meu.
Havia ainda mais uma lição a ser aprendida. Quando apareceu um pedido para que eu fosse me encontrar com o diretor de cinema Carol Reed, na Escócia, a fim de fazer um filme sobre as técnicas de Operações Combinadas, levaram-me à presença do coronel.
“Você quer ir embora?”
“Quero, sim, senhor.”
“Que estranho!”
De qualquer maneira, ele me avisou que eu podia ir me embora no dia seguinte, depois do almoço, passado o treinamento de tiro. Eu estava tão excitado e aliviado com a idéia de deixar aquela unidade maluca que atirei que nem um xerife de filme de bangüe-bangue , com a maior velocidade d fúria. Quando foram pegar meu alvo, descobriram que eu havia acertado todos os 10 tiros na mosca. O coronel então afixou o alvo no quadro de avisos, cancelaram minha transferência e me mandaram par um curso de atirador de tocaia. Eu era a mais nova arma secreta da Grã-Bretanha. O único problema, que eles só vieram a descobrir mais tarde, foi que eu atirava bem, mas só quando 10 homens me levantavam para que eu pudesse atingir o alvo. Alguns dias mais tarde acabei partindo mesmo para a Escócia.
Lição que aprendi no exército: Se você deseja fazer alguma coisa mal feita, tem de se esforçar como se quisesse faze-la muito bem.

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PETER USTINOV, de ascendência russa, nasceu em Londres, foi educado na West-minister School. Famoso no mundo inteiro como ator, diretor, contador de histórias e autor de cerca de 30 peças, filmes e livros, está atualmente fazendo o papel do detetive Hercule Poirot ( pela segunda vez) num filme baseado num romance de Agatha Christie, Evil Under the Sun. Sua última peça, Overherd, estreou em Londres em maio último. Tem 60 anos e vive na Suíça.