quinta-feira, maio 17

Peter Ustinov vai à guerra

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1981
Autor : Peter Ustinov*

Eta guerrinha de morte, sô!

Fui convocado para o serviço militar em janeiro de 1942.
Ao ser entrevistado pela comissão de seleção, perguntaram-me se tinha preferência por alguma arma em especial. Respondi ao oficial que estava interessado em ir para os tanques. Seus olhos brilharam de entusiasmo.
“Por que os tanques?” perguntou avidamente.
Disse-lhe que preferia ir para a guerra sentado. Ele ficou de repente carrancudo, e pouco depois recebi uma carta onde mandavam que me apresentasse num regimento de infantaria. Para mim – se não para os Aliados – esse fato foi crucial na Segunda Guerra.
Um dos mais gélidos invernos da história deu lugar a um escaldante verão. Devíamos então, tentar capturar a cidade de Maidstone, no Kent, das mãos da Guarda Nacional, força esta constituída por veteranos e doentes cuja obrigação era tornar difícil a vida dos alemães em caso de desembarque, e defender posições vitais, até que unidades mais bem armadas do exército pudessem lá chegar.
Para fins de treinamento, devíamos fazer de conta que éramos os alemães. Logo que a batalha começou, abandonei minha unidade e avancei sozinho para dentro da cidade, utilizando o simples expediente de bater à porta das casas das pessoas. Quando se abriam, invariavelmente apareciam homens de pijama ou mulheres de camisola de dormir, pois eram cerca de 6:00 da manhã. Eu aí explicava a natureza fundamental da manobra – sem nunca revelar de que lado estava.
Patrioticamente, os bons burgueses de Maidstone deixavam-me passar através das suas casas e pelos seus jardins. Aí eu subia um muro, passava ao jardim do vizinho e batia na porta dos fundos da casa seguinte. Os proprietários desse faziam-me sair pela porta da frente. Olhando para um lado e para o outro, eu então atravessava a rua correndo, batia noutra porta, e o processo se repetia.
Levei mais de duas horas para chegar ao centro da cidade, aí, de repente me vi diante da sede da Guarda Nacional. Apareceu um general enfurecido. Apontei meu rifle para ele e atirei. Como a arma estava descarregada, apenas fez clique – que nem ele nem o juiz (que estava tomando conta da guerra fingida, um tenente muito gordo) ouviram. Então berrei. “Bangüê!” e informei educadamente ao general que ele tinha virado pernil.
Mas a coisa nem passava pela sua cabeça. “Não diga asneiras!” gaguejou. “Afinal, quem é você?”
O juiz era gago. Rubro de esforço e vergonha, disse ao general que na verdade ele estava m-m-m... Mas não havia meio de conseguir pronunciar a palavra. Foi essa demora que enraiveceu o general. “Isso não adianta nada”, resmungou. “O cara me aponta um rifle e diz bangüê... Pode até ter errado o tiro! Vai ver eu nem fui ferido, não é?”
“O senhor teria preferido que eu tivesse usado bala mesmo?” perguntei.
O general aí perdeu a cabeça. “Quem pediu a sua opinião?” berrou.
“M-m-morto!” conseguiu finalmente dizer o juiz.
“Recuso-me a aceitar isso, ouviram? Você é um mero tenente!” rabujou o general. “Vou inspecionar a linha de frente, e quero ver quem é que vai me impedir!”
Sie sind tot!”, berrei.
O general me encarou de repente, pela primeira vez com suspeita. “Que é que você disse?”
Sie sind tot, Her General!”
“Você está falando numa lingua estrangeira?” perguntou o general, como se tivesse finalmente feito uma grande descoberta.
Ich bin Deutscher.”
“Alemão, hein?” exclamou o general, apertando os olhos. Nesse instante apareceram mais uns componentes da Guarda Nacional. “Peguei um prisioneiro alemão”, afirmou o general. “Prendam-no imediatamente.” Dando um empurrão no juiz, entrou no seu carro oficial e foi embora.
O juiz ficou furioso. “Estou t-t-tão...”, exclamou entre dentes.
“Eu também, senhor”, respondi, enquanto me levavam embora.
Um major da Guarda Nacional começou a me interrogar. Recusei-me a responder em qualquer outra língua que não o alemão. O major foi ficando muito irritado. “Olhe aqui, vou dar queixa de você à sua unidade, se não desistir dessa chateação e começar a responder às minhas perguntas.”
Heil Hitler!”, berrei.
“Isso foi a última gota!”
Eles me pegaram e fecharam no depósito de armas e munições. Apanhei uma metralhadora Sten, arrombei a porta, derrubei a mesa de reuniões e derramei tinta nos mapas e nos planos do alto comando local, antes de ser dominado por um bando de senhores de idade, aos quais não quis machucar, de modo que deixei que me trancafiassem numa despensa vazia. Estavam completamente furiosos. Um ou dois me olharam como se realmente eu fosse um perigoso nazista.
À tarde apareceu o coronel do meu batalhão. Era um homem que não falava alto, murmurava. A cabeça dele emergia da gola do uniforme num ângulo tão extravagante que de lado a gente podia ler a etiqueta do alfaiate. Tinha o curioso aspecto pré-histórico de uma tartaruga perplexa. Sempre achei que, se tivéssemos mesmo de entrar em combate na companhia desse cavalheiro, ele poderia, a qualquer momento de perigo, desaparecer dentro do uniforme até que a situação melhorasse. Expliquei-lhe minha versão dos fatos.
“Mas seria realmente necessário confundir tudo falando alemão?”, murmurou ele interrogativamente.
“É uma das maneiras como os alemães vão confundir as coisas se algum dia desembarcarem em Maidstone, senhor”, sugeri.
“Compreendo o que quer dizer”, disse ele, “embora essa eventualidade seja bastante improvável, não acha?”
Fiquei um pouco surpreendido por ser consultado, e resolvi aventar que, se era improvável um desembarque alemão em Maidstone, estávamos todos perdendo o nosso tempo.
“Sim, sim”, concordou ele vagamente, sorrindo. “Você ganhou.”
Saiu da sala e mandou que me soltassem, sugerindo que toda a Guarda Nacional deveria aprender alemão para poder lidar com prisioneiros recalcitrantes como eu, se, é claro, os alemães algum dia tivessem o mau gosto de desembarcar em Maidstone.

Por essa época, algo aconteceu no exército britânico, que andava exasperado com as sucessivas retiradas frente aos alemães e os japoneses. Foi ordenado que um novo grupo de guerreiros mais agressivo devia surgir, qual fênix vestida de cáqui, de entre o fogo dos suprimentos abandonados e dos fortes destruídos. O resultado dessas lucubrações tomou várias formas, todas elas imensamente desagradáveis.
Mandaram-nos correr para cima e para baixo, descalços, em praias cheias de pedras; isso era chamado de “fortificação dos pés” pelos oficiais que corriam ao nosso lado, de botas calçadas, evidentemente, encorajando-nos a ignorar a dor causada por pedras pontiagudas, vidros quebrados e algas ressequidas.
Depois havia cursos de batalha, normalmente em campos de golfe, onde se simulavam situações de luta; os oficiais, emboscados, tentavam nos molhar com baldes de sangue de animais, para que nos habituássemos, segundo afirmavam, com a visão de sangue. Era fácil evita-los, pois não sabiam se esconder direito e, no fundo, não tinham grande fé na eficácia psicológica dessa tarefa.
Rajadas de metralhadora passavam sobre nossas cabeças, para que adquiríssemos confiança debaixo de fogo, o que não evitou que um homem que ia correndo a meu lado fosse morto. Por negligência dos responsáveis, as metralhadoras tinham sido montadas na areia, e o resultado foi que, em vez de os tiros passarem por cima das nossas cabeças, à medida que eles atiravam, elas iam se enterrando, e então as balas começaram a vir diretamente a nós. E é capaz disse ter sido uma das razões por que os oficiais não jogaram o sangue na gente.
Havia também uma nova arma secreta chamada Treinamento de Batalha, na qual cada unidade de infantaria era subdividida em pelotões, cada homem com uma tarefa especial durante o avanço sobre uma posição inimiga. Atuando como elemento de ligação entre esses pelotões havia um mensageiro, que deveria sair correndo por terreno aberto para levar informações de importância vital. Meu batalhão foi escolhido para dar a demonstração que iria servir de exemplo para todo o Comando do Sudoeste. Meu comandante escolheu a minha companhia para ter a honra de formar os pelotões. O comandante da companhia escolheu o meu pelotão, e é claro que nem é preciso dizer que fui escolhido para ser o tal mensageiro. De todo o Comando do Sudoeste, tinham de me escolher, eu, que não sou propriamente uma pessoa magrinha!
Sua teoria terrivelmente falsa era que, sendo eu ator, estava treinado em decorar longas e complicadas mensagens. O que eles não entendiam era que, quando finalmente chegava ao meu destino, eu não tinha fôlego algum para dar o recado, e, quando o recobrava, já tinha me esquecido de qual era o recado.
Corremos os condados de Surrey, Sussex, Middlesex e Kent em caminhões, fazendo demonstrações inúteis, levando informações que eu não conseguia dar. Daí por diante, nunca mais corri o perigo de me perder nesses condados. Reconhecia cada colina, pois tinha sido um obstáculo a transpor, todo curvado para me fazer um alvo menor. Reconhecia cada sebe como um refúgio, onde eu arquejara, enquanto a fixava para evitar olhar a cara do sargento que lançava sua sombra sobre meu corpo extenuado.
“A mensagem, cretino!”
Dante teve o seu inferno, eu, o meu.
Havia ainda mais uma lição a ser aprendida. Quando apareceu um pedido para que eu fosse me encontrar com o diretor de cinema Carol Reed, na Escócia, a fim de fazer um filme sobre as técnicas de Operações Combinadas, levaram-me à presença do coronel.
“Você quer ir embora?”
“Quero, sim, senhor.”
“Que estranho!”
De qualquer maneira, ele me avisou que eu podia ir me embora no dia seguinte, depois do almoço, passado o treinamento de tiro. Eu estava tão excitado e aliviado com a idéia de deixar aquela unidade maluca que atirei que nem um xerife de filme de bangüe-bangue , com a maior velocidade d fúria. Quando foram pegar meu alvo, descobriram que eu havia acertado todos os 10 tiros na mosca. O coronel então afixou o alvo no quadro de avisos, cancelaram minha transferência e me mandaram par um curso de atirador de tocaia. Eu era a mais nova arma secreta da Grã-Bretanha. O único problema, que eles só vieram a descobrir mais tarde, foi que eu atirava bem, mas só quando 10 homens me levantavam para que eu pudesse atingir o alvo. Alguns dias mais tarde acabei partindo mesmo para a Escócia.
Lição que aprendi no exército: Se você deseja fazer alguma coisa mal feita, tem de se esforçar como se quisesse faze-la muito bem.

*
PETER USTINOV, de ascendência russa, nasceu em Londres, foi educado na West-minister School. Famoso no mundo inteiro como ator, diretor, contador de histórias e autor de cerca de 30 peças, filmes e livros, está atualmente fazendo o papel do detetive Hercule Poirot ( pela segunda vez) num filme baseado num romance de Agatha Christie, Evil Under the Sun. Sua última peça, Overherd, estreou em Londres em maio último. Tem 60 anos e vive na Suíça.

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