segunda-feira, maio 14

O velho

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Larry L. King

Se tiver sorte, um pai pode chegar a ver o dia em que os filhos venham a amá-lo mais do que podem exprimir...

Houve aquele período de infância de adoração cega, em que meu pai era o homem mais forte e mais sábio de todos. De noite, ele espantava os ursos que eu temia em minha imaginação infantil, na nossa fazenda no Texas: ele é que dava a luz do Sol, as coisas boas da vida e mandava embora o mundo mau. Fazia imitações de todos os animais do campo; quando lutávamos boxe, fazia com que eu vencesse por nocaute. Ele me ensinou a assobiar, rezar, montar a cavalo, apreciar a música folclórica. Ensinou-me que comprar a crédito não era coisa de homem, não era inteligente e provavelmente não seria perdoado no céu; que a gente tinha de respeitar a mulher, a bandeira e o orgulho pessoal.
Eu não tinha como saber que espécie de coragem era a do Velho (sem instrução, sem esperança de enriquecer da noite para o dia, sem emoções que o levassem a novos horizontes) que lhe permitia ser tão animado, forte e bondoso. Não era homem de sonhar muito, nem de compreender que outros pudessem precisar de sonhos. Embora considerasse a vadiação um pecado tão grande quanto a aventura, teve o infortúnio de ser pai de um hedonista que sonhava com conquistas improváveis alcançadas num passe de mágica melhor que o trabalho duro. Quando entrei nos turbulentos anos da adolescência, estávamos a caminho de uma viagem longa e tenebrosa. Existia uma sede mútua de predomínio – uma vontade infecciosa e obstinada de evitar a mais ligeira concessão.
O Velho me surrava por fumar, beber, mentir, não ir à igreja ou à aula e ficar na rua até tarde. Já tendo tido grande intimidade, nós agora nos agredíamos. Eu achava que o Velho era cego para as maravilhas do mundo real. Por sua vez, o Velho esperava que eu aceitasse obedientemente seus próprios valores. O fato de eu não poder (ou não querer) faze-lo o perturbava e irritava.
Num sábado, quando eu tinha 15 anos, neguei-me a cavar uma fossa em nosso quintal, porque tinha coisa melhor a fazer na cidade, e reagi: foi selvagem e feio, uma briga horrível. Não houve vencedores. Depois disso nós nos falávamos em resmungos sucintos ou gritos zangados e não nos comunicamos polidamente durante três anos. Antes de completar os 18 anos, escapei, alistando-me no exército.
Na manhã de meu alistamento, o Velho parou junto à mesa da cozinha, onde eu estava tentando engolir o café da manhã. Ele estava com o macacão de zuarte desbotado que eu tanto desprezava e tinha na mão uma marmita, preparando-se para algum dos trabalhos da monótona série que então o ocupavam.
“Posso fazer alguma coisa por você?”, perguntou ele.
Sacudi a cabeça.
“Precisa de dinheiro?”
“Não.”
O Velho de uns passos, sem jeito.
“Bom”, disse ele, “desejo-lhe felicidades.”
Meses depois, numa licença de 10 dias, eu apareci sem avisar, madrugada fria, na varanda daquela casa tão familiar. O Velho levantou-se rápido, em suas ceroulas de lã, dispensando os cumprimentos. “Você é soldado raso?”, implicou ele. “Juro por Deus, eu pensava que a esta altura um King já seria general.” Mas a maior parte do tempo (quando eu não estava na rua impressionando as garotas com o uniforme) reinava uma reserva cautelosa. Falávamos hesitantes, com cuidado.
No terceiro ou quarto dia, o Velho me acordou na varanda, marmita na mão. “Lawrence”, disse ele, “sua mãe encontrou uma garrafa de uísque na sua mala. Você sabe que nossa família é abstêmia. Nunca tivemos uma garrafa de uísque em casa e estamos casados desde 1911. Você é muito bem-vindo aqui, mas o seu uísque não é.” Resmunguei alguma coisa sobre ir para o motel. “Você sabe que não é isso”, ralhou o Velho. “Não queremos que você vá para uma porcaria de hotel.” Depois, numa irritação cansada: “Por Deus, filho, o que é que faz você querer arranjar briga o tempo todo?” Ficamos nos olhando num silêncio sem remédio.
Na última manhã de minha licença tivemos uma geada úmida e o carro do Velho não queria pegar. “Vou com você a pé até à estação”, disse ele, agasalhando-se num casaco de pelo de carneiro. Caminhamos tremendo de frio por ruas escuras, passando pelas casas de meus ex colegas, por terrenos baldios onde eu tinha jogado beisebol. Eu queria dizer alguma coisa simpática para o Velho, dar-lhe um adeus afável. Mas não foi possível, eu não sabia por onde começar.
Ficamos sentados uma eternidade nas luzes irreais de uma estação de ônibus, no meio de bebês que choravam, vaqueiros de ressaca e velhos mexicanos cochilando. O Velho ofereceu-me um cigarro, calado. Ele estava então com 59 anos e ainda era forte, musculoso, tinha os olhos brilhantes e os cabelos escuros, mas quando estendeu aquele maço de cigarros eu vi claramente a sua mão – crestada pelo tempo, cheia de cicatrizes, um dedo torto e rígido, conseqüência de um acidente – e de repente e inexplicavelmente percebi que um dia o Velho havia de murchar, fraquejar e morrer. Acho que naquele momento, pela primeira vez, senti – embora sem compreender – algo sobre a mortalidade; sobre tribos, sangue e rituais herdados.
Na porta do ônibus, o Velho de repente abraçou-me, rudemente, brevemente: talvez sem saber se uma intimidade dessas seria tolerada. Sua voz estava entrecortada quando disse. “Escreve, filho. Nós te amamos.” Apertei a mão dele e me afastei, sem poder falar. Naquele momento compreendi que o amava, também, e sempre o amara, mesmo nas horas piores, e nunca havia de deixar de amar.
No verão passado fizemos uma viagem que o Velho desejou secretamente a vida toda. Aos 82 anos, seus 90 quilos de músculos tinham-se reduzido a uns 70. as roupas estavam folgadas; o brilho de águia se fora dos seus olhos, que estavam lacrimosos e aguados. Ele já não ouvia muito bem e falava com voz trêmula.
Perguntei-lhe se queria ver algum lugar ou coisa em especial. Para minha surpresa (pois o Velho nunca falara de paixões secretas), respondeu que sim, que desde menino tivera de visitar a missão de Álamo, em San Antonio. Ficou sentado junto de mim no assento da frente, encolhido e meio distante, mas ainda assim irradiando uma certa animação de juventude.
Mal começáramos a viagem quando o Velho iniciou um monólogo que durou quase uma semana. Ele gesticulava, apontava, ria; elogiava as flores silvestres, os rebanhos de gado leiteiro, rebentos de algodão, campos de cereais. “Isso é boa terra”, disse ele apontando. “Bom capim. O gado pode juntar-se naqueles bosquezinhos no inverno e dar as costas ao vento.” A gente percebia, à medida que o Velho se entusiasmava, como ele se havia sentido aprisionado.
Paramos para almoçar numa vilazinha onde meu pai tinha tido uma ferraria. Cansado do carro e da estrada, o Velho resolveu ficar de pé no meio das mesas apinhadas do café, enquanto esperava a comida, indiferente às garçonetes que esbarravam nele, de cara fechada.
“Diga ao vovô para sentar”, cochichou Kerri, minha filha.
“Ele está bem”, disse eu.
“Bom, meu Deus! Pelo menos diga-lhe para tirar o chapéu!”
O Velho assustou um sujeito de barbas grisalhas agarrando-o pelo braço no momento justo em que ele levava à boca uma colherada de purê de batata. “Como se chama?”, perguntou ele. O lavrador velhote, nervoso, fez a vontade dele. “Acho que não o conheço”, disse meu pai. “Você não deve ter vindo para cá há muito tempo.”
Há uns vinte e tantos anos, resmungou o recém-chegado. “Eu tinha uma ferraria bem ali”, disse o Velho. Ele apontou para um cartaz anunciando refrigerantes. “Foi aí por 1920. Meu nome é Clyde King. Lembra-se de mim?” Quando o velhote não acertou a adivinhação, meu pai, abandonou-o . “Qual é seu nome?”, perguntou ele a outra vítima afundada em sua torta de amoras. Meu filho de 12 anos riu; a irmã cobriu o rosto, envergonhada.
Naquela noite ele sentou-se em sua cama do motel, recordando os detalhes de esquecidas transações de gado, a única vez em que ele se embebedou (aos 16 anos), a sua alegria incrédula quando minha futura mãe aceitou o seu hesitante pedido de casamento.
“Você se lembra do que disse?, perguntou minha filha, intrigada.
“Claro que sim! Não podia deixar de lembrar-me, pois treinei durante semanas.”
E ele deu uma gargalhada arquejante.
“Nós tínhamos ido até à varanda do pai dela uma noite, e eu disse: ‘Srta. Cora, não tenho muita coisa no mundo, e de instrução não tenho nada. Mas acho que sou um homem de hábitos decentes e se quiser dar-me a honra de ser minha mulher, sempre farei tudo o que puder pela senhorita.’”
Ele curvou a cabeça, para esconder as lágrimas.
“Vovô”, perguntou minha filha, “você a beijou?”
“Meu Deus, não!”
O Velho estava escandalizado, talvez um pouco indignado:
“Beijar não era coisa à toa naqueles tempos.”
Quando chegamos à missão de Álamo, a veneração do Velho foi tocante e entusiástica. Andou pelo meio das vitrinas que continham peças preciosas de uma época mais vigorosa, e reuniu seus descendentes para explicar a utilidade de cada relíquia, cuidadosamente associando-se – e ao sangue de seu sangue – àqueles tempos e lugares antigos. Adquiriu uma nova autoridade; sua voz melhorou. Em breve um grupo de turistas o acompanhava fazendo perguntas.
Mas no fim do dia, de repente, sua energia falhou; parecia mais frágil, uma cabeça velha e cansada que tinha de fazer uma viagem. Para atravessar uma esquina movimentada, peguei no braço dele. O Velho deu uma meia risada, que era um meio grunhido: “Lembro-me de tê-lo ajudado a atravessar muitas ruas, quando você era pequenino. Nunca pensei que um dia você estaria fazendo o mesmo por mim.” Respondi-lhe: “Já ajudei aquele garoto ali”, - apontando para meu filho, distante e irrequieto – “a atravessar algumas ruas. Até hoje, nunca me ocorreu que algum dia ele poderá retribuir o favor.” “Bom”, disse o Velho, “ele o fará, se você tiver sorte.”
Conversamos até tarde, na minha última noite em casa do Velho. Na manhã seguinte eu o deixei na varanda da frente, nas suas roupas de trabalhador, ameaçando-me de brincadeira com o que faria se eu não escrevesse com mais freqüência à sua mãe.
Seis semanas mais tarde, depois de ter comido uma copiosa quantidade de folhas de nabos da sua horta,ele ficou enjoado. Sentindo muitas dores, concordou em que meu irmão o levasse par o hospital, queixando-se o tempo todo de que seu cortador de grama e suas ferramentas tinham sido abandonadas: podia meu irmão encarregar-se de tranca-las no depósito? Depois pegou a mão de meu irmão e disse: “Weldon, obrigado por tudo.” Antes de eu chegar a casa ele já falecera.
Clyde Clayton King viveu 82 anos, sete meses e 15 dias. Sua viúva, quatro dos cinco filhos, sete dos oito netos, seis bisnetos e dois trinetos estão vivos. Sua época estende-se desde os tempos em que “beijar não era coisa à toa” até espetáculos de sexo grupal: desde cinco anos antes da ocupação do Oeste americano, até um ano depois da primeira caminhada do homem na Lua. Embora tivesse arado a terra com bois, nunca entrou num avião. Morreu sem dever nada a ninguém.
Ajudei meu irmão e meu filho a juntarem as ferramentas do velho naquele depósito do quintal. Depois, cada qual ocupado com seus pensamentos, apanhamos a mangueira furada e os velhos regadores e fomos regar o seu gramado.

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