terça-feira, maio 8

O outro lado da guerra

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1999
Autor : Christopher Besse

Mesmo os soldados mais endurecidos pelo combate sentem necessidade de salvar vidas, muito mais do que tira-las.

Enquanto a ambulância seguia caminho pela estrada, tenso, eu não desgrudava os olhos do pára-brisa, de vez em quando olhando pelo retrovisor lateral para os veículos que vinham atrás de nós. Meia hora antes tivemos de nos jogar ao chão para nos proteger, quando uma batalha entre sérvios e croatas explodiu à nossa volta. Até agora eu mantinha os olhos presos na estrada, à procura de fios que denunciassem minas.
Em 19 de outubro de 1991, nosso comboio de uma dúzia de ambulâncias e caminhões – preparado pela organização Médicos Sem Fronteiras, com sede na Bélgica – deixava Vukovar, cidade croata sitiada. Estávamos retirando 114 pacientes de um hospital quase demolido pela artilharia sérvia.
De repente, um estrondo terrível sacudiu a ambulância. Pelo retrovisor, vislumbrei uma nuvem de fumaça negra.
Voltei correndo pela estrada e vi uma enorme cratera ao lado do sétimo veículo do comboio. A frente do caminhão estava destruída. Quase seis metros adiante, caídos na estrada, viam-se os corpos dilacerados e ensangüentados de duas enfermeiras que tinham sido projetadas através do pára-brisa do veículo.
Com muito cuidado, foram deitadas de costas. Enquanto um anestesista cuidava de Fabienne Schimit, 27 anos, da Bélgica, eu me encarreguei da suíça Ghislaine Jacquier, com ferimentos mais graves.
O rosto da bela morena de 31 anos estava desfigurado pelos cortes feitos pelo vidro. O ângulo irregular dos pés sugeria fraturas nas pernas, e o maxilar estava solto. O céu da boca tinha se deslocado e havia risco de bloquear a passagem de ar.
De um estojo médico peguei um laringoscópio e um tubo endotraqueal, e o introduzi na jovem suíça, passando pelas cordas vocais até a traquéia. Prendi o tubo a uma bolsa de borracha e comecei a bombear o ar para dentro de seus pulmões. Enquanto só o pulmão direito parecia inflar-se; as lesões cerebrais já estavam prejudicando a capacidade de Ghislaine respirar espontaneamente. Eu teria de continuar a ventilação artificial. Ela estava em choque e com hemorragia interna. Iniciei uma infusão para introduzir líquidos em seu organismo.
Começava a chover. Enquanto eu trabalhava, duas equipes de televisão surgiram do nada. Ghislaine precisava ser levada de helicóptero par um hospital bem equipado. Mas, segundo um oficial sérvio, por causa da chuva as nuvens estavam muito baixas para que um helicóptero pudesse voar. Tudo o que os sérvios podiam oferecer era levar as enfermeiras feridas em dois blindados, cruzando os campos até o hospital de campo mais próximo, que ficava em Negoslavci.
Um sargento de expressão severa e um soldado corpulento subiram conosco na parte de trás do veículo. Na frente sentaram-se o motorista e outro soldado. Todos me olharam num silêncio sombrio. Estava claro que o grupo não se oferecera voluntariamente para a viagem.
Ocupei-me, acomodando a maca de Ghislaine no chão do blindado e prendendo a bomba de infusão no teto. Mesmo na semi-escuridão, podia ver a cor fugindo-lhe do rosto quando eu parava de ventilá-la.
O veículo arrancou e os soldados iniciaram as provocações. Os sérvios vinham acusando nossa organização de parcialidade. Embora não soubesse uma só palavra de servo-croata, não era difícil captar a raiva e o rancor na voz dos soldados. Por que sempre fazíamos tanto pelos croatas? Por que não ajudar também os sérvios?
Na realidade, o nosso comboio havia auxiliado na evacuação de feridos tanto sérvios quanto croatas. À medida que as acusações prosseguiam, podia sentir minha própria raiva aumentando. Eu tinha algumas perguntas a fazer a respeito daquela explosão: seis veículos pesados já haviam ultrapassado aquele ponto antes que o sétimo explodisse. A mina devia ter sido acionada por meio de um fio puxado da lateral da estrada. Pensei ainda na rapidez com que chegaram as duas equipes de televisão. Seria possível que todo o incidente tivesse sido montado de forma a incriminar os croatas? Lutei para afastar esses pensamentos. Você é um médico. É responsável pela vida desta mulher. Esqueça a política.
Mas eu tinha outro problema: a dor nas mãos, enquanto tentava manter o ritmo com que manejava a bolsa de borracha usada para ventilá-la. Logo comecei a sentir câimbras na parte superior do tronco.
Tentei apertar a bolsa com uma das mãos, depois com as duas, empurrando-a contra o joelho. Mas eu sabia que chegaria a um ponto em que os músculos do braço simplesmente não agüentariam mais. Então me ocorreu: Ghislaine morreria se eu não pudesse contar com o auxílio daqueles homens.
Mas como? Para os soldados, Ghislaine e eu estávamos ajudando os croatas.
Ainda estava viva em minha mente a viagem até Vukovar naquela manhã – através de uma terra de ninguém, bombardeada e coberta de destroços de tanques e veículos civis, queimados e retorcidos. Corvos bicavam os corpos que, atingidos por minas, não podiam sequer ser removidos para o enterro. Embora tivesse trabalhado em atendimentos de emergência tanto na Romênia quanto no Curdistão, não estava preparado para a calculada selvageria desencadeada por esta guerra.
Em desespero busquei os olhos de meus companheiros, à procura de alguma solidariedade, de algum lampejo de humanidade.
O soldado grandalhão, sentado aos pés de Ghislaine, tinha pouco mais de 20 anos. Havia pronunciado algumas palavras em inglês e pareceu ser o mais solícito quando lutávamos para colocar Ghislaine no veículo.
“Você fala inglês?”, perguntei.
Silêncio.
“Um pouco”, admitiu ele, com cautela.
“Mas o seu inglês é muito bom”, encorajei-o .
Outro longo silêncio.
“Se algum dia voltar a Vukovar”, recomendei, “vou fazer questão de viajar num tanque sérvio.”
Eu agora falava absurdos, aleatoriamente, apenas para manter contato com o homem.
“Talvez você viesse comigo. Poderíamos fazer um piquenique lá.”
O homem sorriu ligeiramente.
“Eu poderia lhe preparar uma ótima refeição”, disse ele. “Sou cozinheiro.”
Um pouco depois se inclinou para a frente e murmurou que seu único desejo era voltar para a cozinha do restaurante em Belgrado. Seu nome era Drago. Convocado, quis fazer sua parte pela Sérvia. Mas essa luta havia se transformado numa guerra estúpida e fútil.
Continuei bombeando o ar, meus braços agora parecendo de chumbo. Afinal, arrisquei:
“Pode me ajudar?” E passei a bolsa de borracha para Drago. “Precisamos continuar bombeando. Assim está ótimo. Não muito rápido.”
Finalmente pude aliviar as câimbras nos braços e ombros. Disse a Drago que a única maneira de sabermos se Ghislaine estava recebendo oxigênio suficiente era observando a cor de seu rosto. Quando não estivesse respirando, começaria a ficar azul.
Embora meu rosto fosse inexpressivo, meu coração se animou quando Drago começou a traduzir minhas palavras para os outros. Verifiquei a pressão arterial de Ghislaine: estava perigosamente baixa. Precisava de mais líquido. Iniciei então uma segunda infusão em seu braço.
Nesse momento o sargento procurou um pedaço de corda para ajudar a prender a segunda bomba da infusão no teto do blindado. Depois se ofereceu par substituir Drago na bolsa de borracha. Sorri, agradecendo. Mais tarde, a bolsa foi transferida do sargento para o soldado da frente.
Estávamos viajando havia mais de uma hora. Às vezes o blindado parecia mover-se quase na vertical, num aclive, e Ghislaine começava a deslizar na maca. Drago e o sargento apressavam-se a segurá-la no lugar.
Duas, três horas se passaram. A diferença lingüística não parecia mais importar. Olhando intensamente para o rosto de Ghislaine, o sargento de vez em quando chamava minha atenção:
“Olha, olha!”
“Será que o rosto estava ficando azul?”
Fiz o possível para tranqüiliza-lo, mas eu estava desesperado. Mal conseguia sentir-lhe o pulso.
Drago agora tinha a mão enorme sobre a de Ghislaine, acariciando-a .
Vez por outra afastava a mecha de cabelos negros que caía sobre o rosto sereno e pálido da mulher. O sargento passou a olhar o relógio e a se contorcer para espiar pela fresta da janela da frente do blindado, com freqüência cada vez maior.
Finalmente, o veiculo parou. Ghislaine foi logo passada para a maca rodeada de médicos e enfermeiras. Apertei a mão da equipe do blindado antes de correr atrás dela, em direção à sala de cirurgia do hospital.
Mais tarde encontrei Drago ainda esperando do lado de fora.
“Acho que ela vai ficar bem”, disse a ele.
Os olhos do homem brilharam de alívio e ele então se foi, de volta à guerra.

Ghislaine Jacquier sobreviveu, embora só tenha voltado a andar um ano depois e até hoje tenha deficiência auditiva. Ela se tornou membro da diretoria dos Médicos sem Fronteiras.

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