quinta-feira, maio 10

O que aconteceu ao espírito norte-americano?

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autor : Eric Sloane

Alguns dos valores do passado podem ter enfraquecido, ou desaparecido, diz este escritor, mas devem ser recuperados – se a América quiser sobreviver como nação civilizada.

Há algum tempo, meu editor sugeriu que eu escrevesse um livro para o Bicentenário da Independência dos Estados Unidos da América. Comecei a pensar no assunto, e ocorreu-me uma idéia. Quando voltamos nossos olhos para 1776, o Ano da Independência, podemos ver mais claramente, por comparação, o que é a América de hoje. Há uma diferença, e esta diferença é interessante.
Na América atual, tendemos a acreditar que somos exatamente como os primeiros norte-americanos, só que mais argutos e mais experientes – e que o presente não é mais do que o passado amadurecido. Aceitamos o fato de que o cavalo e a carroça se foram para sempre. Mas quase ainda não nos demos conta de que o homem que conduzia o cavalo e a carroça, aquele homem piedoso, frugal, agradecido e trabalhador, dos primeiros dias, também se foi, substituído (muito freqüentemente) pelo homem ambicioso, extravagante, descontente e mal agradecido dos dias de hoje. Em algum ponto da História, o espírito original da América se tornou obsoleto.
Seria esclarecedor, creio, isolar alguns dos valores daqueles primeiros tempos, enquadrados no “espírito de 1776”, que se enfraqueceram ou sumiram; talvez, fazendo isto, um pouco desse espírito perdido revivesse.

O espírito do patriotismo
Nesta época de bandeiras rasgadas, em que as listras e estrelas da bandeira norte-americana vem sendo usadas nas traseiras dos blue-jeans, o patriotismo na América nunca pareceu tão por baixo. Quando pensei no assunto, entretanto, concluí que os norte-americanos estavam relacionando crescentemente o “patriotismo” com a guerra, o militarismo e o nacionalismo. Eu nunca pensara em patriotismo desta forma, e comecei a imaginar se não estaríamos usando a palavra incorretamente. Fui aos velhos dicionários, os mesmos que devem ter sido usados por George Washington ou Patrick Henry, e, num deles, encontrei o patriotismo definido como: “O espírito de agir como um pai, em relação ao seu próprio país; um espírito público.”
Outro dicionário chamava de patriotismo de “uma qualidade de respeito de alguém que é devotado à sua família numa forma paternal”. Tudo isto pode ter pouco a ver com guerra ou nacionalismo, mas tem muito a ver com a importante palavra “respeito”.
Respeito pela família, respeito pela nação e pela terra, respeito pela bandeira e pela lei, respeito pela humanidade e respeito por si mesmos. Estes são os verdadeiros ingredientes do patriotismo, e são estes os valores do passado que nós, norte-americanos, devemos re-aprender se quisermos sobreviver como um país verdadeiramente civilizado.

O espírito do trabalho
Enquanto me sento em meu estúdio, e contemplo a paisagem da Nova Inglaterra, lá fora, penso no esforço (geralmente de pessoas idosas) que foi necessário para dominar esta terra, há dois séculos. Em certa altura, na América, um trabalho pesado, como este, fazia parte da vida, era um dos prazeres e satisfações de viver. Hoje, nossa obsessão parece consistir em receber a maior soma de dinheiro pela menor quantidade de trabalho. O trabalho pesado é considerado servil, punitivo ou, na melhor das hipóteses, um mal necessário.
A aposentadoria se tornou uma aspiração nacional. Em outros países, esta é uma decisão pessoal; na América, ela é imposta ao homem, e justamente na época em que ele está no auge de suas possibilidades.
Lembro-me de Robb Golding, um dos últimos remanescentes daquela extinta estirpe de veteranos da Nova Inglaterra. “É um velho amigo”, disse minha mulher, “e virá nesta primavera preparar o jardim.” Num certo dia de maio, Robb chegou. Na manhã seguinte, durante o café, fiquei imaginando a que horas se deve acordar um homem de 92 anos.
Naquele instante, ele surgiu na porta da cozinha. “Espero não tê-los acordado”, disse. “Tentei não fazer barulho, mas estas pedras daqui são duras de partir como o diabo.” Estava trabalhando desde as seis horas da madrugada.
Ao cabo de dois dias, Robb havia plantado um extraordinário jardim, com um gradil em volta. Acho que os jardineiros do lugar teriam levado uma semana para fazer o mesmo. Quando falei em pagamento, Robb deu-me uma lição sobre a natureza humana. “Trabalho só é trabalho quando somos pagos para faze-lo”, disse. “Quando é feito de graça, se torna um prazer. Vou ter muito tempo para descansar no céu; por isso, deixem-me aproveitar todas as horas de trabalho, enquanto ainda estiver vivo.”
É raro, hoje em dia, encontrar alguém como Robb, que desfruta prazer em seu trabalho, e tem orgulho pelo que faz. Não era tão raro há dois séculos. As pessoas, então, cultivavam belos jardins, construíam suas próprias casas, faziam sua própria mobília, costuravam suas próprias roupas. O antigo fazendeiro norte-americano legou às futuras gerações inúmeros monumentos ao espírito do trabalho.
Os muros de pedra que compõem os horizontes de minha fazenda e as vigas maciças sobre minha cabeça no estúdio são mais do que decorativas. São como oferendas de um artista a outro, e me fazem lembrar um pano bordado, obviamente feito por uma garotinha, a qual já fazia parte da mobília da casa: “O trabalho árduo sempre encontra recompensa.”

O espírito da frugalidade
Já foi calculado que os norte-americanos gastam, hoje, mais num segundo, do que num ano inteiro há dois séculos. Não havia depósitos de lixo naqueles dias, porque as pessoas aproveitavam todos os resíduos. Restos de gordura, milagrosamente, viravam sabão; a cal que caía das paredes e o excremento do gado serviam de fertilizantes para o jardim; e quase todos os instrumentos usados na fazenda eram compostos de outros implementos quebrados ou imprestáveis.
Mas o espírito da frugalidade (outrora uma característica norte-americana) foi substituído por uma economia de desperdício. Desafiando a lógica, o governo parece querer provar que, quanto mais dinheiro gastamos, mais ricos nos tornamos. A frugalidade é hoje vista com maus olhos, sendo associada à sovinice ou à pobreza. Na realidade, ela é a fonte de uma vida mais rica, porque se funda no princípio de que toda riqueza tem limites.
A frugalidade é também um indício de inteligência e sensibilidade. O artista ou escritor sabe o quanto vale ser frugal com as pinceladas ou palavras; sabe como a extravagância, geralmente, só consegue produzir obras de incomensurável mau gosto.
Lembro-me de quando fui comprar uma colcha de retalhos a uma senhora de Connecticut. Lágrimas vieram aos seus olhos, quando ela contemplou o objeto que eu queria comprar. “Comecei aquela parte do centro quando viemos para a fazenda”, disse. “O senhor ainda pode ver os sacos de farinha que usávamos como cortinas. Aquele retalho listrado... foi o primeiro vestido que Bob me comprou... e há até um pedaço do cobertor do berço do bebê!”
A colcha significava uma grande parte da sua vida, toda feita de retalhos, como os que hoje são jogados fora. “Voltarei outra hora”, menti para ela, “quando tiver dinheiro.” Naturalmente, nunca voltei.

O espírito da gratidão
Os pioneiros norte-americanos eram ricos em espíritos da gratidão. Quando o Mayflower lançou ferro em Plymouth, os peregrinos se reuniram no convés, para rezar; e, quando chegaram à praia, ajoelharam-se na areia, para outra oração de graças. Era comum, naqueles dias, alguém se sentir freqüentemente grato, e expressar em voz alta a sua gratidão. Em nosso século XX, no entanto, demonstrar gratidão está fora de moda.
Mas nem sempre. Lembro-me de Joseph Sartori, um pobre imigrante que fundou o Joe’s Restaurant, em Coney Island, perto de Nova York. Sempre que um de seus empregados passava privações, um envelope anônimo com dinheiro aparecia na casa deste. Joe tinha prosperado sem ajuda de ninguém, e tinha por hábito distribuir seus lucros. Mas lembro-me também como Joe, tristemente, teve um dia que fechar a sua casa. Ele despedira um empregado que se mostrara desonesto. O sindicato, no entanto, discordou de Joe, e cercou de piquetes o restaurante. Nunca me esquecerei de um italianinho, auxiliar de garçom, que marchava pela calçada, em meio dos piquetes, carregando o seu próprio cartaz, onde dizia: “O Sr. Sartori não é injusto. É um bom homem. Deus o abençoe. Por favor, coma em seu restaurante.”
É fácil e popular, hoje em dia, demonstrar revolta, mas manifestar gratidão é notável. As prendas da vida são, cada vez mais, dadas de barato, e a crença geral é a de que, constantemente, merecemos mais do que já temos. Deus faça com que o espírito da gratidão se torne de novo uma característica nacional.

O espírito da piedade
Acredito que o grande homem seja aquele que distribui à humanidade os dotes que Deus lhe conferiu. Talvez houvesse mais deles no passado, pois a sociedade se baseava na devoção. Nos dias de George Washington, a igreja era não só o centro de cada povoado, mas o principal suporte da vida norte-americana, unindo a família, a comunidade e a nação. “Um governo sem Deus é impossível”, disse Washington. Queiram ou não, aceitem ou não, o fato é que a Bíblia foi outrora a principal fonte de identidade nacional da América.
Hoje, a igreja é apenas um adorno; seus freqüentadores, quase sempre, apenas enfeitam suas vidas com um comparecimento ocasional. Muitos norte-americanos tem de recorrer às notas de dólares para recordar o lema nacional. “Confiamos em Deus”, e a adoração pelo dinheiro (e não por Deus) tornou-se obsessiva. As cidades deixaram de ser construídas ao redor de uma igreja. Hoje, o são ao redor de um banco.

O espírito do tempo
Como se patinássemos sobre gelo fino, nossa sobrevivência agora parece depender da velocidade. Acreditamos que o modo mais eficiente de fazer as coisas é faze-las depressa, e devotamos quase todas as nossas energias buscando novos meios para economizar tempo. Estamos sempre com pressa.
Há 200 anos, entretanto, a pressa era considerada vulgar; quem tivesse pressa, era tido como não muito civilizado. Benjamin Franklin expressou-se assim: “Só a fraude e a falsidade tem pressa. Demore-se em tudo; a pressa gera o desperdício.”
Quando o moderno norte-americano observa o extraordinário trabalho de artesanato necessário para a confecção de muitos produtos antigos, sua explicação vem pronta: “Eles tinham muito tempo, naquela época.” Na verdade, eles tinham cerca de um quarto do tempo de que dispomos hoje. Para começar, sua média de vida era mais curta. Sem maquinaria, qualquer coisa demorava dez vezes mais tempo para ser feita. Sem luz elétrica, o dia de trabalho era muito mais curto. E, fosse qual fosse a ocupação de um homem, havia sempre pequenas tarefas domésticas que devia fazer bem cedinho, antes de sair de casa e se dirigir para o trabalho.
Há 200 anos, as areias do tempo pareciam escoar muito mais depressa, mas, de alguma forma, havia mais tempo, e o antigo norte-americano tinha um precioso conhecimento daquilo que, hoje, somos muito impacientes para aprender – como usar cada minuto. Hoje conhecemos formas extraordinárias de economizar o tempo, mas, quando realmente conseguimos poupar alguns minutos, não sabemos absolutamente o que fazer com eles. De fato, parecemos querer ganhar tempo apenas para dissipa-lo, assim como um homem que acumulasse dinheiro para depois o esbanjar.

O espírito da percepção
Resumindo tudo em uma palavra, a diferença mais importante entre o antigo norte-americano e a sua versão moderna é a percepção. Viver, naquele tempo, era uma experiência vital; hoje, habitamos um mundo mecânico, em que parecemos ter um pequeno papel a desempenhar, até em nossas próprias vidas.
Lembro-me de ter hospedado um índio do Novo México, meu amigo, da reserva de Taos, e de tê-lo apresentado às maravilhas de Nova York. “O que mais me impressiona”, disse, “são as pessoas. Parecem andar dormindo. Não tem rostos.” Ele tinha razão: observe-os agora, sentados nos ônibus ou nos restaurantes, trabalhando em escritórios ou andando pelas ruas, retirados do mundo, escondidos atrás de máscaras sem qualquer expressão.
Viver, há dois séculos, era uma experiência mais consciente, porque cada coisa era feita de maneira plena. Beber água significava beber a sua própria água, tirada de um poço cavado com suas próprias mãos; hoje, basta abrir a torneira, e a água jorra de uma fonte desconhecida. Para iluminar um quarto, era preciso acender lampiões construídos pela própria pessoa; hoje, basta apertar o interruptor e, imediatamente, faz-se a luz, vinda, sabe lá Deus de onde – às vezes, nem a própria companhia de eletricidade sabe ao certo. Comer significava saborear a comida plantada e colhida pela própria pessoa e, depois, cozinhada em casa; hoje, raramente sabemos o que estamos comendo, ou de onde vem a comida.
Com todas as necessidades da vida nos sendo providas por alguém que não conhecemos, em algum lugar que ignoramos, o único papel que nos resta desempenhar é o de pagar pelo que consumimos. Nos velhos tempos, dificilmente se usava dinheiro; em vez disso, conhecia-se a fonte, os elementos e o que disso resultaria na vida cotidiana; isto propiciava a satisfação da auto-segurança e da vitalidade.
Um dos encantos dos antigos objetos norte-americanos era o de que o artesão, quase sempre, assinava neles o seu nome ou iniciais, e lhes apunha a data de fabrico.
Hoje, isto parece um costume antiquado, mas era uma prova do espírito de percepção que permeava aqueles tempos. As pessoas tinham consciência de sua posição na nova nação, e não queriam ser anônimas. Quando se cria para a posteridade, é mais fácil se tornar eminente.

O espírito da esperança
Quando entreguei o original à minha secretária, para ser datilografado, perguntei-lhe, depois que ela terminou, qual era sua reação a tudo isto que eu tentava dizer. Ela me deixou uma nota que dizia: “É um artigo interessante, mas muito triste. Não nos dá muitas esperanças.”
Fiquei grato pelo comentário, e acrescentei este pós-escrito, sobre um espírito norte-americano que não desapareceu – o da esperança. A Bíblia nos diz: “Há esperança de que uma árvore, cortada, venha a nascer mais uma vez.” Assim, da mesma forma, espero que o velho espírito norte-americano renasça, em algum tempo, em algum lugar. Quando se sabe distingui-lo, mesmo se forem vozes distantes e abafadas, saberemos suportar, sem dúvida, o mais tonitruante bombardeio da transformação moderna.
A poluição da influência, dos congestionamentos, da automação e da falta de sentido, que mudou tão radicalmente a nação, não é mais forte do que o poderoso espírito do qual nasceu a América. Vivendo pelo Presente, podemos sonhar com o Futuro – e aprender com o Passado.

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