segunda-feira, maio 28

Vem aí a Legião Estrangeira

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1998
Autor : Joseph A Harriss

Essa lendária força de guerra transformou-se em extraordinária força de paz

7 de junho de 1997.
Em meio a edifícios enegrecidos pelo fogo e lojas saqueadas e esburacadas por balas, paira sobre Brazzville o cheiro da morte. Durante os últimos dias, a capital da República do Congo transformou-se em campo de batalha da guerra civil. Cadáveres espalham-se pelas ruas enquanto membros das milícias Cobra e Zulu, bêbados e drogados, disparam pesados morteiros e metralhadoras em direção a tudo que se move. Milhares de moradores aterrorizados entrincheiram-se em portas barricadas. Então, no final da tarde, ouvem suas preces serem atendidas: a Legião Estrangeira está chegando!
Um comboio de jipes e caminhões do 2º Regimento Aéreo Estrangeiro, composto de legionários completamente equipados para combate, passa ruidosamente pela Avenida Charles de Gaulle. De repente, os veículos cor de oliva de um dos pelotões enfrentam um bloqueio. Um membro da milícia Cobra, olhar alucinado, aponta a arma.
“Muito bem”, grita, agitando a metralhadora. “saiam todos, rápido!”
Um segundo Cobra, os bolsos repletos de granadas, junta-se a ele, seguido por outros, ansiosos por luta.
Os dois grupos se encaram, dedos no gatilho. Então, o capitão Jean Michel Trotignon, 33 anos, exibe sorriso frio, ao estilo Clint Eastwood.
“Não queremos lutar, mas vamos retirar daqui qualquer civil estrangeiro que deseje partir”, declara de maneira inequívoca ao miliciano.
Os Cobras hesitam, examinam o poder de fogo dos legionários com seus fuzis automáticos e baionetas e finalmente decidem:
“Está bem, está bem, prossigam”, murmura o líder.
Apesar de embates que lhes custaram um morto e oito feridos, os pelotões da Legião Estrangeira salvaram 5.700 civis em diversos países.

O resgate demonstra como a Legião Estrangeira mudou. Por muito tempo conhecida pela doutrina machista e pelo passado cheio de glórias, a legião dos dias de hoje tornou-se presença familiar em pequenos conflitos violentos e ambíguos da era pós Guerra Fria. Com tradição de 166 anos de disciplina férrea e dedicação, consistem em força militar única, com 8.500 soldados profissionais provenientes de cerca de 120 países. Assumiu o papel de força de paz internacional, mas o desempenha com a lendária firmeza e arrebatamento.
Os soldados demonstram dedicação próxima ao fanatismo. Para eles é, ao mesmo tempo, lar e família. Seu lema: Legio Patria Nostra (A legião é nossa pátria). Essa dedicação cria um vínculo quase sobrenatural. Legionários, por exemplo, jamais abandonam um companheiro ferido no campo de batalha. Em combate, freqüentemente protegem os oficiais com os próprios corpos.
“Essa camaradagem não é mito”, diz o capitão Joel Bonis, da 13º Demi-Brigade em Djebuti, no árido e castigado sol da África. Em noite recente, Bonis estava no bar com um amigo civil que fingiu dar-lhe um soco. De súbito, um legionário imobilizou o civil torcendo-lhe o braço atrás das costas e grunhiu: “Ninguém encosta a mão num capitão da legião!”
Combine-se esse espírito de corporação à formação multinacional única da legião e terá um dos grupos de combate mais bem preparados para a exigente tarefa de força de paz internacional. Seja onde for o conflito, a instituição tem sempre à mão intérpretes e guias em seus postos. Quando, por exemplo, entrou em Beirute, devastada pela guerra, os legionários libaneses conheciam a cidade, falavam árabe e sentiam-se em casa.
“Sem dúvida, significa enorme vantagem”, diz o comandante da legião, general Christian Piquemal.
As missões de paz dos últimos anos, tão diferentes das lendárias missões anteriores, parecem fazer aflorar o heroísmo e humanismo dos legionários. Quando um garoto de 14 anos tentou atravessar correndo a pista do aeroporto de Sarajevo, certa noite de outubro de 1993, um atirador sérvio acertou-o no peito. O sargento da legião Bruno Chaumont correu quase 40 metros esquivando-se das balas, carregou o menino e transportou-o para local seguro.

Em Ruanda, onde os legionários distribuíram alimento e remédios, desarmaram pessoas que tentavam matar-se umas às outras e abriram um corredor de 300 quilômetros a fim de que refugiados pudessem escapar. Coube-lhes também a tarefa angustiante de enterrar os mortos. Certo dia de julho de 1994, o tenente Arthur da Silva Santos, de Portugal, veterano há 22 anos, viu um pequeno braço mover-se em meio à pilha de cadáveres em Goma, Zaire. Ordenou às máquinas de terraplenagem que cessassem a operação e, lutando contra a náusea enquanto escalava os corpos em decomposição, arrancou de lá um garoto de 6 anos. Este aqui não vai morrer, prometeu ele.
Da Silva colocou o corpo no jipe e o levou a um hospital militar onde, durante semanas, acompanhou os progressos da recuperação do menino. Quando o garoto podia sair do hospital, Da Silva o levava no jipe em alegres passeios. A mulher e ele teriam adotado a criança caso uma entidade de assistência não houvesse localizado a família do garoto. Posteriormente, o pai enviou ao “soldado branco” profundos agradecimentos.

Embora a maioria continue utilizando identidade fictícia, hoje os profissionais da legião são muito diferentes do antigo bando de fugitivos da lei. Criada pelo rei francês Luis Felipe em 1831 com a finalidade de conquistar novas colônias na África, a Legião Estrangeira lutou arduamente durante décadas nos desertos e florestas do império colonial francês. Era composta da escória da sociedade por causa da política da instituição, que alistava qualquer um, sem fazer perguntas. Enviada ao México em 1863 para apoiar o instável governo do imperador Maximiliano, marionete dos franceses, a legião começou a mostrar a têmpera que a destacaria das demais forças de combate do mundo.
Um grupo de 65 homens, comandado pelo capitão Jean Danjou, foi atacado em 30 de abril por 2 mil combatentes mexicanos e conseguiu resistir por um dia inteiro numa fazenda em Camerone. Em vez de se renderem, os últimos cinco atacaram com baionetas armadas. “Eles não são homens”, exclamou maravilhado o comandante mexicano, “mas demônios!” Nascia a lenda.
O processo para tornar-se um legionário tem início na sede da legião em Aubagne, próximo a Marselha, onde os candidatos se submetem a duas semanas de rigorosos testes. A oportunidade de recomeçar a vida atrai muitos aventureiros, homens atravessando período de má sorte ou com problemas familiares. A legião investiga o passado dos pretendentes antes de aceita-los. Mas, se necessário, aceita um candidato confiando apenas na palavra dele.
Como se trata de Legião Estrangeira, os franceses estão proibidos de alistar-se, a menos que já sejam oficiais das Forças Armadas regulares. No entanto, um dos mais bem guardados segredos da legião consiste em que recrutas franceses estão sempre se alistando sob a “identidade declarada” de suíços ou canadenses.
No total, aproximadamente 8.500 candidatos batem às portas da legião a cada ano. Apenas certa de mil conseguem chegar ao acampamento de treinamento de recrutas e tornar-se legionários.
Os poucos escolhidos são enviados ao 4º Regimento Estrangeiro em Castelanudary, no sudoeste da França. Lá, são submetidos a quatro meses de rígido treinamento no acampamento para recrutas. Além da instrução intensiva em habilidades básicas da profissão de soldado, passam semanas aprendendo a marchar na lenta e majestosa cadência da legião – 88 passos por minuto em vez dos costumeiros 120 de outros exércitos. E, enquanto marcham, assimilam as tradicionais canções da legião: cânticos arrastados e melancólicos, que lembram o sofrimento e a solidão do bando de legionários.
Acima de tudo, descobrem que não são poloneses, australianos, alemães ou japoneses, mas cidadãos de um país chamado Legião Estrangeira, com seu inflexível Código de Honra que reza: “Todo legionário é seu irmão de armas, independentemente da nacionalidade, raça ou religião.”
Assim que lhe é conferido o quepe branco, o novo legionário abre mão de sua vida em troca de cinco anos de “dedicação de monge” e abnegação que poucos mosteiros – e muito menos exércitos – exigem atualmente. No início da carreira, ele está proibido de se casar. Ou de possuir um carro. Ou de ter um quarto fora do alojamento. Ou de usar roupas civis. Em troca, a legião aceita a identidade que ele assumiu, talvez novo nome e nova nacionalidade. Oferece-lhe também a possibilidade de obter a cidadania francesa.
Para muitos recrutas, a maior barreira é a língua. A primeira frase que aprendem é: “Aqueles que entendem francês, sentem-se.” Os que permanecem de pé aprendem rapidamente o mínimo para sobreviver.
Outra habilidade a ser desenvolvido é o cuidado com o uniforme de gala verde-acinzentado, ornado de distintivos verdes e franjas vermelhas, com cinturão azul. A camisa precisa apresentar nada menos do que 15 vincos em locais precisos.
Depois do acampamento para recrutas, o treinamento prossegue permanentemente nas bases da legião no sul da França e em seus extensos postos avançados. Pode se tratar de escalada de montanhas nos Pirineus ou de exercícios de unidade de assalto na Amazônia, que forçam os homens até seus limites físicos e psicológicos. No Centro de Treinamento em Floresta Equatorial, na Guiana Francesa, os legionários aprendem a sobreviver na floresta.
Os treinamentos começam cedo e terminam tarde, como presenciei no 2º Regimento Aéreo Estrangeiro, de elite, na ilha mediterrânea da Córsega. Recentemente, ao amanhecer, eu estava espremido em meio a 80 homens equipados para combate, com pesadas mochilas e dois pára-quedas, a bordo de aeronave militar muito barulhenta. Quando o encarregado dos saltos levantou os braços como um maestro de orquestra, colunas de homens em ambos os lados ergueram-se, prenderam suas cordas de comando automático aos cabos acima e amontoaram-se em direção às portas traseiras abertas. De súbito o avião sobrevoou a zona de lançamento. A luz vermelha de sinalização mudou para verde, ouviu-se uma buzina irritante e os assistentes em cada porta começaram a gritar:
“Vá! Vá! Vá!”
Os legionários lançaram-se um por cima do outro a uma velocidade estonteante – dois por segundo, de acordo com meu cronômetro.
Naquele mesmo dia, fui de carro até uma região longínqua e acidentada da ilha. Um pelotão de legionários, fardas escurecidas pelo suor, praticava táticas de patrulha sobre terreno acidentado. Com os rostos pintados de tinta oleosa verde e marrom, capacetes e fuzis camuflados com galhos, mergulhavam para se proteger quando os fogo “inimigo” estalava logo adiante. Subitamente uma granada caiu ao lado do homem mais à frente. Quando se abaixava para apanha-la e a jogar de volta, a granada explodiu – cobrindo-o de farinha branca.
“Você tem sorte por ser granada de exercício”, gritou o sargento. “Só em filmes de guerra se joga de volta a granada do inimigo. Em combates reais, você salta o mais longe que puder e se atira no chão.”
Depois de horas de treinamento em meio a espinhosos arbustos, o esgotado pelotão passou a noite marchando de volta ao acampamento, com as armas e pesadas mochilas.
Em meu último dia na base do 2º Regimento Aéreo Estrangeiro, visitei pequeno museu próximo à entrada da guarnição militar. Examinei a exposição das flâmulas de batalha, capacetes perfurados por balas, pinturas e fotos de gloriosas porém trágicas resistências. Uma das mostras era dedicada a Camerone, mas foi a de Dien Bien Phu que me chamou a atenção. Naquele vale da Indochina, a Legião Estrangeira, em maio de 1954, viu-se encurralada. Sitiados pela organização comunista Viet Minh, os legionários resistiram por 56 dias. No final, havia 657 mortos e 1.503 feridos na legião. Dirigi-me ao capitão Yann Talbourdel:
“Camerone, Dien Bien Phu”, refleti em voz alta. “É engraçado como a legião exalta as derrotas em vez de suas vitórias.”
O jovem capitão pareceu aturdido. Fitou-me cuidadosamente para ver se eu estava brincando e, após refletir por um momento, formulou sua resposta.
“De fato, porém são as ações mais sagradas para nós”, disse. “Simbolizam nossos ideais de esforço máximo e sacrifício final.”

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