quarta-feira, maio 16

Os padioleiros de Lourdes

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1972
Autor : Armand Valière

São 20.000 e vem de 50 países. Tem duas coisas em comum: músculos fortes e coração grande.

Antes do nascer de um dia do verão passado, perto de 50 homens de várias idades e nacionalidades reuniram-se na plataforma da estação da estrada de ferro em Lourdes. Podiam ser tomados por viajantes comuns se cada um não usasse sobre o paletó do terno um acessório característico: uma espécie de arreio de corda ou couro. Membros da grande irmandade dos padioleiros de Lourdes, eles estavam esperando o primeiro trem de peregrinos que afluem do mundo inteiro a este santuário nos Altos Pirineus à procura de bem estar físico e espiritual. Quando a máquina parou chiando, eles entraram no trem, aos pares, reaparecendo momentos depois carregando os doentes em macas suspensas em seus arreios especiais.
Em julho e agosto – os meses mais movimentados em Lourdes – de 3.000 a 4.000 padioleiros afluem ao santuário ao mesmo tempo e ainda assim desaparecem em meio de mais de 50.000 peregrinos. A maioria dos inválidos estão tão gravemente enfermos que não são capazes de ficar de pé sem ajuda; alguns deles estão enrolados com ataduras, outros mostram chagas supuradas. Entre eles há paralíticos e cancerosos. Todos esperam uma cura milagrosa como as centenas que a Igreja tem registrado desde que a Virgem Maria apareceu ali a uma jovem pastora chamada Bernadette Soubirous, em 1858.
Quando estão em Lourdes, os doentes desejam ouvir missa na basílica, seguir procissões, visitar pontos de interesse especial e ser tão ativos quanto os que estão bem. Aqueles que se podem sentar são transportados em carretas de três rodas; outros, os incapazes até de se sentar, são empurrados em carrinhos.
A atração principal para os inválidos é o local das visões, a Grotte de Massabielle, que fica no fundo de uma colina de 2km de longo. Ali, a fonte que brotou da pedra há pouco mais de um século, depois do aparecimento da Virgem a Bernedette, verte 5.500 litros por hora de uma água considerada milagrosa. Durante os meses de verão, 30 hospitalários são designados para as seis piscinas de banho. Não é uma simples questão de ajudar os enfermos a se banharem: eles tem de ser despidos e vestidos outra vez, suas ataduras tem de ser retiradas e postas novamente. E depois de cada excursão, equipes de padioleiros tem de empurrar e puxar as carretas pesadas pelas ruas íngremes atravancadas de pedestres, para levar de volta os peregrinos a seus hospitais e pensões.
O trabalho exige músculos, certamente, mas também exige coração. A dedicação desses homens com arreios é de ver para crer. Trabalham 24 horas por dia, indo ao encontro dos inválidos em trens e aviões, escoltando-os aonde quiserem e dando-lhes atenção dia e noite. E no entanto não são enfermeiros profissionais. Não só prestam serviços voluntários durante cinco a dez dias no ano, como eles próprios custeiam sua estada em Lourdes.
A missão dos padioleiros nasceu em 1884, no dia em que Charles de Roussy, um peregrino, chegando à estação de Lourdes, ficou horrorizado ao ver uma velha numa cadeira de rodas pedindo em vão aos transeuntes que a levassem à Gruta. Empurrando-a pelo caminho difícil, de Roussy pediu ajuda a dois rapazes que voltavam de um casamento. Eles nem hesitaram em ajuda-lo – sem fazer caso de seus fraques e cartolas. Poucos dias depois, de Roussy e seus dois amigos ofereceram ao Padre François Picard, o superior da peregrinação, dedicarem parte de seu tempo aos doentes. O oferecimento foi recebido entusiasticamente. No dia seguinte fundou-se a Ordem dos Hospitalários de Nossa Senhora de Lourdes, tendo por modelo a Ordem dos Cavaleiros de São João de Jerusalém, fundada em 1090 para cuidar dos peregrinos que chegavam à Terra Santa.
Hoje há pouco mais de 20.000 padioleiros de Lourdes, agrupados em inúmeras associações que cooperam com o Hospitalário de Nossa Senhora de Lourdes. Das 50 nacionalidades representadas entre as irmandades os mais numerosos são os franceses, é claro, depois os italianos, belgas, ingleses e irlandeses. Mas também se encontram voluntários de nações distantes como os Estados Unidos, Brasil, Líbano, Guiana Francesa e Nova Zelândia.
Os padioleiros constituem o exército mais democrático do mundo. Entre eles encontrei um antigo ministro de Estado, um oficial do Exército, um comerciante e um lixeiro que economizava dinheiro o ano todo para a sua viagem a Lourdes. Vi um diretor de companhia francês e um barão belga trabalharem sob as ordens de um mensageiro dos cortiços Kremlin-Bicêtre de Paris, porque ele era seu chefe de seção. Os padioleiros devem obediência irrestrita aos líderes designados todos os dias. Essa organização severa é indispensável, pois os padioleiros são freqüentemente chamados a desempenhar missões delicadas nas quais a menor falha pode significar a perda de uma vida humana.
A despeito dos dramas que os cercam constantemente, quando os padioleiros se reúnem no fim de seu dia de trabalho reina uma atmosfera de bom humor. A melhor maneira de saborear isto é sentar com eles em sua cantina. Tenho visto industriais e advogados confraternizarem com operários, redescobrindo os dias alegres da universidade ou do exército.
Tal familiaridade, entretanto, está fora de cogitação quando trabalham com doentes que são objeto de seu cuidado incessante. Aí prevalece uma atmosfera mais reservada; fala-se de maneira mais formal; o fumo é proibido na presença deles.
Os irmãos não se limitam a prestar cuidados físicos às pessoas a seu cargo. Em Lourdes o inválido circula, torna a descobrir a vida em comunidade. O padioleiro que toma conta dele à noite ouve incansavelmente sua triste história, tenta conforta-lo e muitas vezes consegue reacender a esperança no coração do sofredor.
Alguns dos padioleiros conhecem a alegria de testemunhar uma cura quase milagrosa. Em 1958, Jean Claude Campana, desenhista industrial de Mônaco, foi designado para cuidar de uma moça de 20 anos, Anna S., casada com um pedreiro de Cap d’Ail. Ela estava paralítica havia dois anos em conseqüência de um acidente de motocicleta. Uma manhã, quando ele foi, como de costume, busca-la para leva-la à Gruta, encontrou-a num estado de exaltação extraordinário: “Não sei o que está acontecendo comigo, Campana, mas acho que posso andar.”
O padioleiro estava pessimista. Em muitos casos, os cavaleiros tem de moderar o entusiasmo dos doentes que, em Lourdes, vivem na esperança diária de um milagre. Anna levantou-se. Campana ainda não estava convencido. Só se dobrou à evidência quando ela começou a andar, oscilando como um bebê ensaiando seus primeiros passos. Anna hoje está completamente boa e tem filhos. Ela ainda vai a Lourdes todos os anos...mas como enfermeira.
A missão dos hospitalários não termina quando partem de Lourdes. Durante o ano todo, e não apenas por cinco ou dez dias em cada estação, eles se sacrificam para aliviar os sofrimentos dos doentes. Em suas cidades natais, continuam a visitar os enfermos que conheceram no serviço da Ordem.
Um padioleiro, François, um estudante de 22 anos, cuida de uma vítima de esclerodermia.* Patrice, de 23 anos, organizou até um grupo de 15 jovens, todos hospitalários, que fazem excursões com seus tutelados diversas vezes por ano. Essas saídas a restaurantes ou a teatros tem como objetivo dar a eles a sensação de levarem vida normal.
Por que esses homens se tornam padioleiros? Só pude responder a essa pergunta no fim de minha estada em Lourdes, depois de interrogar dezenas de cavaleiros. Alguns seguem uma tradição de família.
“Sou cavaleiro desde a idade de 12 anos”, disse-me M. Coste-Floret, agora com 58 anos. “Meu pai foi cavaleiro antes de mim, e foi ele quem me trouxe a Lourdes pela primeira vez. A princípio fui o que se chama pajem”: era muito pequeno para carregar uma padiola, e então dava recados e prestava pequenos serviços.” Existem até dinastias de padioleiros. No Hospitalário de Nossa Senhora de Lourdes, há 12 membros da família de seu presidente.
Às vezes um voto leva ao alistamento. Aprisionado pelos nazistas em 1940, Charles Aymé, um gráfico de Paris, passou quatro anos num campo de concentração alemão. Jurou a si mesmo que, se sobrevivesse, serviria um período como padioleiro. Quando voltou à França em 1945, cumpriu sua promessa. Tencionava, como ele disse, simplesmente “tirar o chapéu para Nossa Senhora”, pois sua idéia era fazer apenas uma visita a Lourdes. Em vez disso, voltou 21 vezes. “Não acredito que haja nenhum outro lugar que ofereça uma oportunidade comparável de criar felicidade em volta de nós”, afirma.
Assim são os padioleiros. Até o dia em que os conheci, Lourdes, cena de tanta desgraça, parecia-me a cidade mais triste do mundo. Sei agora que é também a cidade da esperança, onde aprendi que, aconteça o que acontecer, nunca devemos desesperar da bondade humana.
*Os cavaleiros aqui citados pediram que só fossem usados seus nomes de batismo.

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